"Devastamos mais da metade do nosso País pensando que era preciso deixar a natureza para entrar na história: mas eis que esta última, com sua costumeira predileção pela ironia, exige-nos agora como passaporte justamente a natureza".
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos motes da fundação do ISA em 1994.
O ISA trabalha em parceria com povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para elaborar soluções inovadoras para os desafios enfrentados por estas comunidades e povos. Nossas iniciativas apoiam e promovem a defesa de direitos, gestão e proteção territorial, economias do cuidado, processos formativos, restauração ecológica inclusiva e produtiva. Elas são baseadas em processos de experimentações e trocas de saberes transparentes, equitativas e de longo prazo com nossos parceiros, que tem como base a valorização dos modos de vida destas populações e a garantia de seus direitos.
Nossa abordagem de atuação coloca a potência dos saberes tradicionais em diálogo com práticas legais, acadêmicas e de mercado. A inovação, produzida a partir dessa interação entre diferentes mundos, pensamentos e linguagens, oferece caminhos para o reconhecimento pela sociedade brasileira - e mundial -, que são estes povos que cuidam e protegem as florestas que prestam os serviços socioambientais para a própria sobrevivência do planeta e cada um de nós.
Há diversas outras iniciativas que apontam para soluções originais para os desafios enfrentados pelas populações indígenas e tradicionais para garantir o direito à terra, o bem-viver, a preservação de suas florestas e modos de vida, intrinsecamente interdependentes. A formação de jovens comunicadores indígenas, por exemplo, capacita tecnicamente a juventude dos territórios do Xingu e do Rio Negro em dominar a tecnologia para contar suas próprias histórias, defender seus direitos e se conectar com a cultura de seus de seus antepassados. Conheça abaixo outros exemplos de soluções desenvolvidas pelo ISA e seus parceiros locais e nacionais:
Copiô, Parente, o primeiro podcast feito no Brasil para os povos da floresta
Xingu Solar, projeto de promoção de energia fotovoltaica no Xingu
A Central da COP, projeto do Observatório do Clima (OC) que mistura noticiário climático com linguagem de futebol, fará sua estreia no estádio Mangueirão, em Belém do Pará, na próxima quarta-feira (7/5), durante a primeira partida entre Paysandu e Remo pela final do campeonato estadual, o Parazão, com público estimado em cerca de 60 mil pessoas. A ação em campo é uma parceria do Observatório do Clima com a Federação Paraense de Futebol.
O projeto do OC procura levar o debate sobre mudanças climáticas para dentro de grandes eventos populares, como explica Joana Amaral, coordenadora de engajamento do OC: “Os efeitos das mudanças do clima afetam todos, indistintamente, no campo ou na cidade, seja pelo calor, pela seca, pelo excesso de chuva ou pela falta dela. Nada melhor, portanto, do que usar um palco querido dos brasileiros para falar sobre esse tema: um estádio de futebol.”
Na entrada do Mangueirão, as torcidas passarão por stands de 18 metros quadrados, produzidos com a cor de cada time, onde estarão disponíveis materiais explicativos e especialistas de plantão, preparados para conversar sobre aquecimento global, conferência do clima e o que mais as pessoas quiserem perguntar sobre a temática.
Nos telões do estádio, será exibido um vídeo produzido pela agência Temple, com narração de Guilherme Guerreiro, ícone da locução esportiva no Pará, explicando como funciona a Conferência das Partes da ONU, agendada para novembro em Belém.
Haverá ainda distribuição de exemplares do álbum de figurinhas da Central da COP e a entrada em campo de crianças usando uniformes com os logos da Central e da Federação Paraense de Futebol.
“O futebol, que é a maior paixão nacional, tem tido cada vez mais uma responsabilidade social. Por isso, aproveitamos o clássico entre Paysandu e Remo, um dos mais tradicionais do país, para convidar o público a participar mais ativamente dos preparativos para a conferência do clima de Belém”, explica Ricardo Gluck Paul, presidente da FPF. “Afinal de contas, até o futebol depende da estabilidade do clima.”
O evento conta com apoio de organizações que integram o Observatório do Clima, como Ipam, ISA, IEB e Engajamundo. O vídeo voltará a ser exibido no estádio durante o segundo jogo da final, marcado para o próximo domingo, 11 de maio, também no Mangueirão.
“A Central da COP usa a linguagem do futebol, tão familiar aos brasileiros, para descomplicar um tema técnico, que é a mudança do clima. Para nós é uma alegria falar desse assunto dentro de um estádio, para milhares de pessoas, justamente na cidade que sediará a COP30", diz o jornalista Roberto Kaz, editor da Central da COP. “Uma tabelinha como essa, com a Federação Paraense de Futebol, é um gol de placa.”
Serviço
Em 7/5, quarta-feira
- Entrada de crianças em campo Vinte crianças vestidas com a camisa da Central da COP entrarão em campo segurando os escudos dos times.
- Vídeo institucional nos telões Vídeo de 1 minuto antes do jogo e vídeo de 30 segundos no intervalo, reforçando a mensagem da Central em parceria com a FPF.
- Espaços instagramáveis Dois stands, um de cada lado do estádio, com instalações visuais para interação do público e distribuição de material impresso explicando a importância da COP.
- Espaço da Central da COP Espaço reservado para conversas com imprensa, convidados e distribuição de kits sobre a COP.
Em 11/5, domingo
- Vídeo institucional nos telões Vídeo de 1 minuto antes do jogo e vídeo de 30 segundos no intervalo, reforçando a mensagem da Central com o público da final em parceria com a FPF..
- Panfletagem e entrega de brindes nas arquibancadas Distribuição direta de materiais ao público presente.
Sobre o Observatório do Clima - Fundado em 2002, é a principal rede da sociedade civil brasileira sobre a agenda climática, com 133 integrantes, entre ONGs ambientalistas, institutos de pesquisa e movimentos sociais. Seu objetivo é ajudar a construir um Brasil descarbonizado, igualitário, próspero e sustentável, na luta contra a crise climática. O OC publica desde 2013 o SEEG, a estimativa anual das emissões de gases de efeito estufa do Brasil.
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Escudos da Central da COP, da Federação Paraense de Futebol, do Paysandu e do Remo
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Planalto sanciona sem vetos lei que cria mercado de crédito de carbono
Projeto que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa foi aprovado em novembro na Câmara e no Senado, garantindo vitória do governo
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, nesta quarta-feira (11/12), a Lei 15.042/2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), regulando, assim, o mercado de crédito de carbono no país. A nova legislação foi sancionada sem vetos, seguindo a expectativa de parlamentares e organizações da sociedade civil que acompanharam a tramitação da proposta no Congresso.
Após anos de debates em torno de diversas regras e critérios de funcionamento do mercado de carbono, a votação final do projeto ocorreu no dia 19/11, na Câmara dos Deputados. Antes disso, a matéria havia sido votada, no dia 13, pelos senadores, que aprovaram o parecer da senadora Leila Barros (PDT/DF).
As duas votações ocorreram enquanto acontecia a 29° conferência da ONU sobre mudanças climáticas, a COP-29, em Baku, no Azerbaijão. Tanto no Senado quanto na Câmara prevaleceram os pontos mais centrais defendidos pelo Planalto. Por isso, o resultado foi considerado uma vitória do governo, que tem enfrentado desgastes diante do empenho de parlamentares ruralistas em aprovar propostas desfavoráveis à agenda ambiental.
A proposta define um marco regulatório para a venda de créditos de carbono a partir de iniciativas de preservação ambiental e de enfrentamento às mudanças climáticas. O principal objetivo é ajudar o cumprimento das metas climáticas brasileiras, por meio do estabelecimento de limites de emissões para os diversos segmentos econômicos e do comércio limitado de compensações de emissões entre os maiores poluidores (saiba mais no quadro ao final da reportagem).
A principal fonte de emissões do Brasil é o desmatamento, com 46% do total, enquanto as outras atividades agropecuárias respondem por 28%, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) do Observatório do Clima (OC). Portanto, a produção rural é responsável por cerca de 3/4 das emissões nacionais. Por outro lado, a grande extensão da floresta amazônica no país torna-o um grande candidato a iniciativas e políticas de geração de créditos por meio da conservação, em projetos de manutenção ou ampliação de estoques de carbono florestal.
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Sessão da Câmara dos Deputados que aprovou o PL que cria o mercado de crédito de carbono no Brasil 📷 Mário Agra / Câmara dos Deputados
O que são os créditos de carbono?
A comercialização de créditos de carbono permite que empresas ou pessoas compensem as emissões de gases de efeito estufa causadores das mudanças climáticas, resultantes de empreendimentos e atividades econômicas, pela aquisição de créditos gerados por projetos de redução dessas emissões ou da captura de carbono da atmosfera.
Uma iniciativa para restringir os poluentes de uma indústria, o reflorestamento ou a conservação de uma área com vegetação nativa são exemplos desse tipo de projeto. Um crédito de carbono corresponde a uma tonelada métrica de gases de efeito estufa, como o CO2.
Há dois tipos de mercado de carbono: o voluntário e o regulado. O primeiro não depende de lei e comercializa créditos certificados para quem quer compensar emissões voluntariamente. Já o segundo funciona com base numa legislação nacional que estabelece limites de emissões para atividades econômicas, permitindo a compra e venda de créditos entre quem polui e precisa compensar emissões e quem consegue remover carbono, evitar ou reduzir emissões.
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Votação no Senado do substitutivo da relatora Leila Barros (PDT-DF) ao PL 182/2024, que regula o mercado de carbono no Brasil 📷 Waldemir Barreto / Agência Senado
Populações indígenas e tradicionais
Especialistas e organizações da sociedade civil que acompanham o assunto avaliam que o PL foi aperfeiçoado ao longo da tramitação, embora o texto final esteja muito longe do ideal.
“Essa lei vai assegurar aos povos indígenas e comunidades tradicionais, por meio das suas entidades representativas, e aos assentados em projetos de reforma agrária, o direito à comercialização de certificados de remoções e créditos de carbono gerados com base no desenvolvimento de projetos nos territórios que ocupam, condicionado ao cumprimento das salvaguardas socioambientais”, ressalta Ciro Brito, analista de políticas climáticas do Instituto Socioambiental (ISA).
Brito explica, ainda, que ao longo do processo legislativo, organizações da sociedade civil atuaram para que fossem retirados do projeto dispositivos que previam que o desenvolvimento de projetos de créditos de carbono por comunidades tradicionais dentro de Unidades de Conservação tivessem que constar previamente no plano de manejo. Também foram suprimidos os que previam que os órgãos responsáveis pela gestão das áreas públicas concedessem permissão prévia às comunidades que quisessem desenvolver projetos de carbono em seus territórios.
“Em ambos os casos havia uma grande interferência na autonomia das comunidades. Porque elas tinham a titularidade de créditos de carbono, mas não teriam o direito de desenvolver projetos no caso do plano de manejo não autorizar isso previamente”, pontua (saiba mais no box ao final da reportagem).
Segundo o analista do ISA, um ponto de crítica à nova lei é que, durante a tramitação do projeto no Congresso, o setor agropecuário foi excluído das obrigações referentes ao limite de emissão de gases de efeito estufa. “Não é prerrogativa da lei a exclusão de qualquer setor do sistema. Isso precisaria ser feito por meio de regulamentação, com base nas características de cada setor e na evolução do SBCE. Por isso, não haveria por que o setor agropecuário ter sido retirado do limite de emissões, ainda mais considerando a sua grande contribuição na emissão de gases no país”, salienta Ciro Brito.
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Sobrevoo do Rio Jamanxim, no Pará. Preservar a floresta é primordial para possibilitar projetos de estoque de carbono florestal 📷 Vinícius Mendonça / Ascom / Ibama
Como ficam os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais?
Autorização e consulta
O desenvolvimento de projetos de crédito de carbono em territórios indígenas e tradicionais dependerá da anuência e da consulta livre, prévia e informada às populações envolvidas, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos termos, quando houver, de protocolo ou plano de consulta. Os custos desses processos serão arcados pela empresa interessada, garantidas a participação e a supervisão dos órgãos oficiais responsáveis - o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF).
Titularidade dos créditos; anuência de órgãos oficiais
A titularidade sobre os créditos de carbono será de quem tem o usufruto da terra, o que garante essa prerrogativa a essas comunidades, em princípio. No caso em que a área for de domínio público e o usufruto for delas, para desenvolver um projeto de carbono será necessário comunicar previamente ao órgão público responsável, para eventual acompanhamento, a pedido das populações. Se o domínio e o usufruto forem públicos, a iniciativa vai depender da anuência e do acompanhamento do órgão oficial envolvido.
Participação nos benefícios
A Lei 15.042/2024 garante às comunidades o recebimento e a participação na gestão dos recursos financeiros gerados pelos projetos de crédito de carbono realizados em seus territórios. Elas terão direito a 50% dos créditos, no caso de iniciativas convencionais de remoção de gases de efeito estufa, e 70% dos créditos, no caso de projetos de desmatamento e degradação florestal evitados, conservação e manejo florestais (REDD+).
Parte dos recursos poderá ser destinada a atividades produtivas sustentáveis, à proteção social, à valorização da cultura e à gestão territorial e ambiental, nos termos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) e da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT).
Indenização
A lei assegura a indenização por danos coletivos, materiais e imateriais, decorrentes de projetos e programas de geração créditos de carbono (essa salvaguarda também vale para assentados da reforma agrária).
Como vai funcionar o mercado de carbono?
A nova lei define um marco regulatório para a venda de créditos de carbono, incluindo a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). O SBCE terá um órgão gestor, um órgão deliberativo e um comitê consultivo permanente. O detalhamento das regras de governança desses órgãos será regulamentado diretamente pelo governo mais tarde.
São abrangidos pelas novas regras programas locais e jurisdicionais (estaduais e nacional) baseados em projetos de Redução das Emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e preservação ambiental, como os de desmatamento e degradação florestal evitados, conservação, manejo ou aumento de estoque de carbono florestal (REDD+).
Poderão participar do SBCE dois tipos de empresas: as que emitirem entre 10 mil e 25 mil toneladas de CO2 equivalente (tCO2e) por ano não terão meta de redução, mas deverão reportar suas emissões e estabelecer um plano de redução de emissões; as empresas que emitirem mais de 25 mil tCO2e terão de cumprir essas obrigações e ainda vão ter de reduzir suas emissões obrigatoriamente.
Os chamados planos nacionais de alocação deverão prever metas graduais e a trajetória dos limites de emissão para cada período de compromisso de redução de emissões previsto na lei. Em cada período, um novo plano deverá prever o volume de Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs) e o percentual máximo de Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE) admitidos no mercado.
Os CBEs são a quantidade de CO2 equivalente a que cada operador do mercado terá direito. Elas poderão ser compradas por aqueles que não atingirem suas metas de emissão. O CRVE é outro ativo comercializável que será gerado quando houver redução nas emissões. Ele também poderá ser comercializado para que países cumpram suas metas no Acordo de Paris, ou seja, em transações internacionais. Cada CBE ou CRVE representa 1 tonelada de CO2 equivalente.
As empresas com mais dificuldades de reduzir emissões deverão comprar cotas para poluir e certificados que atestem a captação de carbono na atmosfera para zerar as emissões líquidas (emissões brutas menos remoções e reduções). Ao fim de cada período de compromisso, as empresas deverão fazer um levantamento das emissões líquidas e, a partir da sua confirmação, terão direito a um certificado que permitirá cancelar uma cota de emissão.
Quando realizado no mercado financeiro e de capitais, o comércio de créditos estará sujeito à regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas também poderá haver a transação privada em separado, sem essa regulação, no chamado mercado voluntário.
Como será a regulamentação da Lei
Pelas regras previstas no texto da nova lei, o SBCE será implementado num período de seis anos, após seguir todos os passos da regulamentação. Organizações representativas de povos e comunidades tradicionais e entidades ambientais da sociedade civil devem acompanhar as etapas da regulamentação para garantir que a lei seja aplicada e as salvaguardas socioambientais sejam cumpridas.
Etapas de implementação:
1. Será de 12 meses a partir de sua entrada em vigor, prorrogáveis por igual período. Por meio de decreto presidencial, serão definidos o escopo, limiares de inclusão, natureza do limite, regras de monitoramento e relato de emissões para remoções de gases de efeito estufa.
2. Até um ano paraque os operadores organizem os instrumentos para relato de emissões.
3. Mais dois anos, quando os operadores deverão submeter o plano de monitoramento e de apresentação de relato de emissões e remoções de gases de efeito estufa ao órgão gestor do SBCE.
4. Começa a vigência do primeiro Plano Nacional de Alocação, com distribuição não onerosa das Cotas Brasileiras de Emissão (CBE) e a implementação do mercado de ativos do SBCE.
5. Implementação plena do SBCE, ao fim da vigência do primeiro Plano Nacional de Alocação.
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Câmara aprova e vai à sanção presidencial projeto que cria mercado de créditos de carbono
Diante de correlação desfavorável, votação pode ser considerada vitória surpreendente do governo, que deve usá-la como trunfo em negociações internacionais
O relator do projeto de lei do mercado de carbono, deputado Aliel Machado (PV-PR) | Mário Agra / Câmara dos Deputados
*Com informações da Agência Câmara e do Observatório do Clima (OC)
O plenário da Câmara aprovou, no início da noite desta terça (19), e agora vai à sanção presidencial, o projeto de lei (PL 182/2024) que cria um mercado formal de créditos de carbono com o objetivo de ajudar o país a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa causadores da emergência climática.
Até certo ponto, o resultado pode ser considerado uma vitória surpreendente do governo, dada a correlação de forças desfavorável no Congresso, em especial na agenda ambiental. Defendido pelo Planalto, o texto vindo do Senado foi integralmente aprovado (com exceção de um único ponto) por ampla maioria ‒ 336 votos contra 38. Mais radical que a média do Legislativo, uma parte da extrema direita acabou ficando isolada na votação.
Apesar disso, até o fim da tarde de terça, a informação era de que Centrão e oposição seguiam defendendo a redação original da Câmara, considerada pior também pela sociedade civil. Os oposicionistas já haviam conseguido adiar a votação do projeto por duas vezes no Senado, entre outras razões para impedir o governo de apresentar a nova lei como um trunfo na COP-29, a conferência internacional de mudanças climáticas da ONU que acontece neste momento em Baku, no Azerbaijão.
O receio era de que o relator, deputado Aliel Machado (PV-PR), cedesse às pressões e voltasse atrás no acordo feito inicialmente com o governo e as cúpulas das duas casas legislativas para manter a proposta aprovada pelos senadores (saiba mais). Mas não foi o que aconteceu.
Machado afirmou que, com o estabelecimento de restrições ambientais a produtos importados, sobretudo pela União Europeia (UE), a nova lei vai evitar prejuízos bilionários aos exportadores brasileiros. “É muito mais barato precificar as emissões no Brasil do que esperar que isso aconteça nos países importadores”, disse.
“[É] um golaço, que coloca o Brasil de vez no pódio no enfrentamento das mudanças climáticas e na atração de recursos para manter a floresta de pé, para a sustentabilidade”, comemorou o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, num post nas redes sociais. Ele disse que será feito um “ato muito forte” para a sanção da nova legislação pelo presidente Lula.
O projeto cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que será supervisionado pelo governo. A proposta prevê o estabelecimento de limites de emissão para os diferentes setores econômicos, para obrigar as empresas a pagarem pela poluição que ficar acima dos níveis permitidos, comprando créditos de carbono (leia mais abaixo e no quadro ao final da reportagem).
Se tudo der certo, a ideia é que a economia seja descarbonizada gradualmente, isto é, que as empresas substituam tecnologias poluidoras, que usam combustíveis fósseis, por outras mais limpas, baseadas em biocombustíveis, energia solar e eólica etc. O objetivo final é ajudar o país a cumprir sua meta de redução de emissões acordada no tratado internacional de mudanças climáticas.
A principal fonte de emissões do Brasil é o desmatamento, com 46% do total, enquanto as outras atividades agropecuárias respondem por 28%, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) do Observatório do Clima (OC). Portanto, a produção rural é responsável por cerca de 3/4 das emissões nacionais. Por outro lado, a grande extensão da floresta amazônica no país torna-o um grande candidato a iniciativas e políticas de geração de créditos por meio da conservação, em projetos de manutenção ou ampliação de estoques de carbono florestal.
O que são os créditos de carbono?
A comercialização de créditos de carbono permite que empresas ou pessoas compensem as emissões de gases de efeito estufa causadores das mudanças climáticas, resultantes de empreendimentos e atividades econômicas, pela aquisição de créditos gerados por projetos de redução dessas emissões ou da captura de carbono da atmosfera. Uma iniciativa para restringir os poluentes de uma indústria, o reflorestamento ou a conservação de uma área com vegetação nativa são exemplos desse tipo de projeto. Um crédito de carbono corresponde a uma tonelada métrica de gases de efeito estufa, como o CO2.
Há dois tipos de mercado de carbono: o voluntário e o regulado. O primeiro não depende de lei e comercializa créditos certificados para quem quer compensar emissões voluntariamente. Já o segundo funciona com base numa legislação nacional que estabelece limites de emissões para atividades econômicas, permitindo a compra e venda de créditos entre quem polui e precisa compensar emissões e quem consegue remover carbono, evitar ou reduzir emissões.
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O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), conduz sessão que analisou o projeto de lei do mercado de carbono | Mário Agra / Câmara dos Deputados
Comunidades indígenas e ruralistas
Especialistas e organizações da sociedade civil que acompanham o assunto avaliam que o PL foi aperfeiçoado ao longo da tramitação, embora o texto final esteja muito longe do ideal. De acordo com eles, os dispositivos sobre os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais estão entre os que foram aprimorados (saiba mais no quadro ao final da reportagem).
“É melhor termos uma lei sobre o assunto do que não termos. Ela é um ganho político”, afirma o sócio fundador e presidente do Instituto Socioambiental (ISA), Márcio Santilli. "Apesar de todos os problemas que a norma possa ter, a sua aprovação significa um reconhecimento da crise climática, ainda que por um viés economicista, e uma derrota do negacionismo no Congresso, onde ele é muito forte”, continua.
Santilli receia, no entanto, que a nova legislação não consiga evitar as pressões indevidas de empresas sobre as populações indígenas e tradicionais e os órgãos oficiais responsáveis por sua proteção. Daí a necessidade dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil mobilizarem-se para informar e apoiar essas comunidades na defesa de seus direitos. Muitas delas têm sido vítimas de projetos duvidosos ou fraudulentos de créditos de carbono florestal. Por serem mais conservados, os territórios desses grupos são passíveis de abrigar essas iniciativas.
A despeito da vitória do governo, a bancada ruralista mostrou sua força mais uma vez: por causa da sua pressão a agropecuária ficará de fora da regulação, conforme o texto original da Câmara, mas poderá se beneficiar de projetos voluntários de créditos de carbono, inclusive pela recomposição ou manutenção nas propriedades da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente (APPs). O problema é que essas áreas já devem ser obrigatoriamente conservadas pela legislação atual. Portanto, os produtores rurais poderão ganhar dinheiro para cumprir a lei. As propostas causaram polêmica porque, além disso, o setor, incluindo o desmatamento, é maior responsável pelas emissões nacionais de gases de efeito estufa.
No Senado, foram feitas mais modificações no projeto que ainda garantem aos proprietários rurais participação na verba gerada por iniciativas desenvolvidas nos mercados jurisdicionais (estaduais ou federal). A mudança desagradou até a governadores da Amazônia, que tentaram revertê-la, sem sucesso.
Outro lobby poderoso que se fez presente na última hora foi o do mercado financeiro. Segundo a única alteração feita no texto do Senado, com a retomada da redação da Câmara, seguradoras e algumas empresas de previdência e capitalização poderão comprar um mínimo de 1% ao ano de “ativos ambientais” comercializados no mercado para compor suas reservas técnicas e de provisões. A redação aprovada pelos senadores previa um percentual de 0,5%.
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Comunidades indígenas têm sido assedias por empresas interessadas em créditos de carbono florestal. Desmatamento na fronteira com o Território Indígena do Xingu, no Mato Grosso | Pedro Biondi / Agência Brasil
COP-29
A votação na Câmara acontece dias depois dos delegados presentes à COP-29 pré-aprovarem algumas normas para viabilizar um mercado de carbono internacional gerido pela ONU, após anos de impasse. Elas dizem respeito só a princípios e critérios básicos da metodologia de contabilização da remoção de carbono entre os países. Em função das divergências ainda existentes entre os países, uma série de temas foi deixada para ser deliberada nas próximas conferências. O início do funcionamento do novo mercado, portanto, ainda vai demorar. O mecanismo foi previsto no Acordo de Paris, tratado internacional sobre as mudanças climáticas assinado em 2015.
A realização da votação do assunto logo no primeiro dia da conferência, com pouco tempo para discussão, provocou críticas de parte dos países e das organizações da sociedade civil. Além disso, alguns deles não acreditam que o comércio de carbono seja uma alternativa para reduzir as emissões mundiais. Essa não é a posição do Brasil.
“Um dos pontos prioritários para a delegação brasileira era justamente o avanço das negociações sobre o mercado carbono”, informa o analista de políticas climáticas do ISA Ciro Brito. Ele esteve em Baku e explica que o Brasil defende o avanço das tratativas sobre esse ponto porque o futuro mercado internacional poderá destinar investimentos tanto ao mercado nacional quanto para alguns fundos globais de conservação florestal, que poderão financiar projetos no país, mas cujo funcionamento também ainda está em discussão na ONU.
Como ficam os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais?
Autorização e consulta
O desenvolvimento de projetos de crédito de carbono em territórios indígenas e tradicionais dependerá da anuência e da consulta livre, prévia e informada às populações envolvidas, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos termos, quando houver, de protocolo ou plano de consulta. Os custos desses processos serão arcados pela empresa interessada, garantidas a participação e a supervisão do órgão oficial responsável - o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF).
Titularidade dos créditos; anuência de órgãos oficiais
A titularidade sobre os créditos de carbono será de quem tem o usufruto da terra, o que garante essa prerrogativa a essas comunidades em princípio. No caso em que a área for de domínio público e o usufruto for delas, para desenvolver um projeto de carbono será necessário comunicar previamente ao órgão público responsável, para eventual acompanhamento a pedido das populações. Se o domínio e o usufruto forem públicos, a iniciativa vai depender da anuência e do acompanhamento do órgão oficial envolvido.
Participação nos benefícios
O PL 182 garante para as comunidades o recebimento e a participação na gestão dos recursos financeiros gerados pelos projetos de crédito de carbono realizados em seus territórios. Elas terão direito a 50% dos créditos, no caso de iniciativas convencionais de remoção de gases de efeito estufa, e 70% dos créditos, no caso de projetos de desmatamento e degradação florestal evitados, conservação e manejo florestais (REDD+).
Parte dos recursos poderá ser destinado a atividades produtivas sustentáveis, à proteção social, à valorização da cultura e à gestão territorial e ambiental, nos termos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) e da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT).
Indenização
O projeto assegura a indenização por danos coletivos, materiais e imateriais, decorrentes de projetos e programas de geração créditos de carbono (essa salvaguarda também vale para assentados da reforma agrária).
Como vai funcionar o mercado de carbono?
O PL 182 define um marco regulatório para a venda de créditos de carbono, incluindo a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). O SBCE terá um órgão gestor, um órgão deliberativo e um comitê consultivo permanente. O detalhamento das regras de governança desses órgãos será regulamentado diretamente pelo governo mais tarde.
São abrangidos pelas novas regras programas locais e jurisdicionais (estaduais e nacional) baseados em projetos de Redução das Emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e preservação ambiental, como os de desmatamento e degradação florestal evitados, conservação, manejo ou aumento de estoque de carbono florestal (REDD+).
Poderão participar do SBCE dois tipos de empresas: as que emitirem entre 10 mil e 25 mil toneladas de CO2 equivalente (tCO2e) por ano não terão meta de redução, mas deverão reportar suas emissões e estabelecer um plano de redução de emissões; as empresas que emitirem mais de 25 mil tCO2e terão de cumprir essas obrigações e ainda vão ter de reduzir suas emissões obrigatoriamente.
Os chamados planos nacionais de alocação deverão prever metas graduais e a trajetória dos limites de emissão para cada período de compromisso de redução de emissões previsto na lei. Em cada período, um novo plano deverá prever o volume de Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs) e o percentual máximo de Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE) admitidos no mercado.
Os CBEs são a quantidade de CO2 equivalente a que cada operador do mercado terá direito. Elas poderão ser compradas por aqueles que não atingirem suas metas de emissão. O CRVE é outro ativo comercializável que será gerado quando houver redução nas emissões. Ele também poderá ser comercializado para que países cumpram suas metas no Acordo de Paris, ou seja, em transações internacionais. Cada CBE ou CRVE representa 1 tonelada de CO2 equivalente.
As empresas com mais dificuldades de reduzir emissões deverão comprar cotas para poluir e certificados que atestem a captação de carbono na atmosfera para zerar as emissões líquidas (emissões brutas menos remoções e reduções). Ao fim de cada período de compromisso, as empresas deverão fazer um levantamento das emissões líquidas e, a partir da sua confirmação, terão direito a um certificado que permitirá cancelar uma cota de emissão.
Quando realizado no mercado financeiro e de capitais, o comércio de créditos estará sujeito à regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas também poderá haver a transação privada em separado, sem essa regulação, no chamado mercado voluntário.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Um marco sobre diversidade biológica para chamar de seu
A especialista Nurit Bensusan analisa as dificuldades para a implementação do tratado internacional sobre biodiversidade. Leia documentos sobre o assunto
Nurit Bensusan
- Especialista em Biodiversidade do ISA
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), uma das grandes convenções assinadas na Rio-92, é um instrumento multilateral que contribuiu significativamente para colocar o tema da biodiversidade nas agendas políticas e socioambientais dos países. Trouxe também, à época, contribuições importantes, como o reconhecimento do uso sustentável como estratégia de conservação da biodiversidade e do relevante papel do conhecimento de povos indígenas e comunidades locais para a manutenção da biodiversidade. Essas ideias, bastante difundidas hoje, ganharam um impulso fundamental com a CDB. Outras, como a repartição dos benefícios oriundos do uso da biodiversidade (e sua implementação), permanecem desafios para os países e para a própria Convenção.
O que é diversidade biológica ou biodiversidade?
Segundo a CDB, a diversidade biológica ou biodiversidade é a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos, outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte. Abarca, ainda, a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.
Apesar de sua importância inicial, a CDB vem perdendo espaço nos debates nacionais e internacionais sobre o assunto, e certamente um dos motivos é sua baixa implementação. Os compromissos assumidos pelos países são voluntários, e não mandatários, e eles não vêm sendo cumpridos, uma das razões para que as taxas de perda de biodiversidade continuem crescendo.
Um novo marco global de biodiversidade, conhecido como Marco Global de Kunming-Montreal da Diversidade Biológica, foi aprovado na última COP (decisão 15/4) da CDB. Esse novo marco possui 23 metas a serem cumpridas até 2030 e é bastante amplo. Ainda assim, não foram concebidos novos instrumentos que permitam dar um impulso à implementação da Convenção. Ou seja, trata-se de mais uma tentativa de implementar uma convenção que vem amargando fracassos sucessivos. As metas anteriores, conhecidas como Metas de Aichi, que deveriam ser implementadas até 2020, não foram executadas. Esse novo marco é possivelmente a última oportunidade de implementação dessa Convenção.
Implementação no Brasil
Diante desse cenário, torna-se relevante criar condições favoráveis para sua implementação no Brasil, principalmente engajando a sociedade civil e os movimentos sociais em um esforço de incidência política, novas propostas, participação, cobrança e controle social. Não haverá, porém, chances de sucesso sem o envolvimento de povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, que vivem em seus territórios e dominam as mais importantes estratégias de conservação e uso sustentável da biodiversidade. Não haverá, tampouco, nenhuma chance de êxito sem contar com um compromisso dos setores que mais destroem a biodiversidade do país.
O Brasil está, nesse momento, preparando uma nova Estratégia Nacional de Biodiversidade (EPANB), aderida às metas do novo Marco Global de Biodiversidade. Apesar de ser a terceira Estratégia Nacional de Biodiversidade que o país prepara, seu processo de elaboração padece dos mesmos males das anteriores. Assim, dificilmente ela terá melhores resultados.
Para colaborar nesse processo e convidar seus participantes a uma reflexão mais profunda sobre as metas e suas possibilidades de implementação, o ISA produziu dois documentos. O primeiro, o Mapa do Caminho, elaborado por Jaime Gesisky e Marta Salomon, traz as políticas públicas federais existentes, ordenadas por cada uma das metas do Marco Global da Biodiversidade. A ideia é dar materialidade a cada uma das metas, bem como ajudar a identificar as lacunas e ajustes que precisam ser feitos. O segundo, Marco Global da Biodiversidade: Entender e Refletir, elaborado por mim, é um documento no qual as metas são decupadas e problematizadas, convidando a refletir sobre as questões que envolvem sua implementação.
Ademais, a publicação conta com exemplos de políticas para cada uma das metas, suas conexões com povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, além da seção “dançando no fio da faca”, que mostra como o governo brasileiro, ao mesmo tempo que se compromete com metas ambientais, segue incentivando setores da economia cujas as práticas são deletérias para a manutenção da biodiversidade.
A próxima COP, a décima sexta, será realizada em Cali, na Colômbia, entre os dias 21 de outubro e 1º de novembro de 2024. Os países deverão apresentar seus avanços na construção de suas novas estratégias nacionais e decisões importantes sobre o novo programa de trabalho sobre o artigo 8j e outras provisões da CDB relacionadas com povos indígenas e comunidades locais, bem como sobre o mecanismo de repartição de benefícios ligado ao acesso às sequências digitais, serão tomadas. Ainda assim, é difícil crer, pelos resultados apresentados pela CDB até o momento, e pelo andar das negociações nas reuniões preparatórias de seus corpos subsidiários, que haja algum avanço efetivo que contribua ao menos para diminuir marginalmente o ritmo da perda de biodiversidade. Mais que isso, ninguém ousa sequer esperar...
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Política de manejo do fogo vai à sanção com proteção a conhecimentos tradicionais
Senado aprova de forma unânime projeto que tenta responder à crise dos incêndios no Pantanal. Votação é considerada vitória da área ambiental do governo
Erramos: diferentemente do informado inicialmente, o PL 5.482/2020 (Estatuto do Pantanal) não foi aprovado no plenário, mas na Comissão de Meio Ambiente do Senado.
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O relator do PL 1.818/2022, senador Fabiano Contarato (PT-ES) | Jefferson Rudy | Agência Senado
Na noite desta quarta (3), o plenário do Senado aprovou o projeto que cria a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF), com diretrizes e regras gerais para o controle e uso seguro da queima de vegetação na zona rural em todo o país (saiba mais no quadro ao final da reportagem).
A proposta, que segue agora à sanção presidencial, busca reduzir e punir os incêndios criminosos, prevê instrumentos para a substituição gradual da utilização do fogo, regras para áreas protegidas, instâncias de formulação e coordenação da política nacional sobre o assunto, entre outros pontos.
A aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.818/2022 acontece em meio à maior crise de incêndios já sofrida pelo Pantanal desde 1998, quando começaram os registros. A área consumida e o número de focos de calor já superaram os observados em 2020, ano até então considerado o pior da série histórica.
O PL tinha apoio do governo Lula e sua aprovação foi considerada uma resposta à situação e uma vitória da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O texto também contou com apoio de pesquisadores e organizações ambientalistas.
“Os esforços por consensos prevaleceram e agora o Brasil possui uma política sólida e adequada para o enfrentamento deste grave problema, que atinge o meio ambiente, a economia e os direitos sociais”, diz Mauricio Guetta, consultor jurídico do ISA que apoiou a elaboração do texto aprovado. “A nova lei deve ser saudada e integralmente sancionada pelo presidente da República, após aprovações unânimes tanto pela Câmara quanto pelo Senado”, defende.
"A medida vai contribuir para o desenvolvimento do Brasil no combate aos incêndios florestais", comemorou no X (antigo Twitter) o relator da matéria, senador Fabiano Contarato (PT-ES).
Aprovação unânime
O projeto acabou sendo aprovado de forma simbólica (por unanimidade, sem registro de votos individuais), após acordo de última hora pelo qual a senadora Tereza Cristina (PP-MS) retirou suas emendas. Ela temia que o governo alterasse e tornasse mais rígidas regras para autorização de queima do Decreto 2.661/1998, que regulava o assunto até então. Para evitar isso, pretendia inserir um trecho da norma no texto da nova lei. Após negociações, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), comprometeu-se a não alterar o decreto.
O PL 1.818/2022 foi apresentado pelo governo de Michel Temer (2016-2018), na gestão do ex-deputado Sarney Filho (PV-MA) no Ministério do Meio Ambiente (MMA), e aprovado pela Câmara em 2021, após a grande temporada de incêndios no Pantanal e na Amazônia, em 2020
Plenário do Senado durante votação do PL 1.818/2022 | Jefferson Rudy / Agência Senado
O que diz o projeto?
O PL 1.818 reforça a proibição de colocar fogo como método de supressão de vegetação nativa, exceto quando o objetivo for a queima controlada de seus resíduos. A prática será permitida, sem necessidade de autorização, para a cultura de subsistência de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Por outro lado, a autorização será exigida para produtores rurais, a monocultura de árvores, pesquisa científica, conservação ambiental, prevenção e combate a incêndios. Quem quiser realizar uma queima prescrita, de forma legal, deverá apresentar Planos de Manejo Integrado do Fogo (PMIF).
O texto prevê a possibilidade de que o órgão ambiental estabeleça critérios para autorização de uso do fogo por adesão e compromisso, desde que cumpridos os requisitos ambientais e de segurança da lei. A autorização dessas queimadas poderá ser suspensa ou cancelada em algumas situações, como no caso de risco de morte, danos ambientais, condições meteorológicas desfavoráveis ou descumprimento da legislação.
O projeto cria ainda o Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo (CNMIF), como instância interinstitucional de caráter consultivo e deliberativo da PNMIF. O colegiado terá representantes da sociedade civil e do poder público de todos os níveis e será vinculado ao MMA. Entre suas competências, deverá propor mecanismos de coordenação para detecção e controle dos incêndios florestais e instrumentos de análise de impactos dos incêndios e do manejo integrado do fogo sobre a mudança no uso da terra, a conservação dos ecossistemas, a saúde pública, a flora, a fauna e a mudança do clima.
O projeto também institui o Sistema Nacional de Informações sobre Fogo (Sisfogo), que terá o objetivo de gerenciar as informações sobre incêndios florestais, queimas controladas e queimas prescritas no território nacional. O texto também incentiva a formação e a capacitação de brigadistas florestais, tanto dos órgãos públicos como de voluntários.
Comunidades indígenas e tradicionais
Um dos avanços comemorados do PL 1.818/2022 é a instituição de normas respeitando as práticas e saberes de povos indígenas e comunidades tradicionais sobre o tema. Essas populações detêm conhecimentos milenares sobre o uso sustentável do fogo, para a abertura e conservação de roças, por exemplo.
Nos últimos anos, no entanto, os efeitos das mudanças climáticas, como a desregulação dos períodos de seca e chuva, vêm dificultando sua aplicação, de modo que pequenas queimadas, feitas de forma segura há séculos, passaram a sair de controle. Da mesma forma, incêndios florestais provocados por invasores ou vizinhos também têm causado grandes estragos nos territórios tradicionais.
Apesar de não exigir autorização para o uso do fogo para essas comunidades, a nova lei prevê a necessidade de acordo interno prévio e a comunicação aos brigadistas florestais responsáveis pela área. Além disso, a queimada deverá sempre ocorrer nas condições apropriadas, como na época do ano adequada, para evitar acidentes.
Ações de manejo integradas nesses territórios, previstas na política nacional, deverão ser implementadas pelo Ibama, em parceria com os órgãos responsáveis envolvidos, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Fundação Cultural Palmares, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União.
Quando o órgão ambiental autorizar a queima controlada em áreas vizinhas a territórios indígenas ou quilombolas e nas zonas de amortecimento de unidades de conservação, ele deverá informar aos órgãos gestores respectivos. Se houver sobreposição entre as áreas protegidas, o manejo integrado do fogo deverá ser planejado para compatibilizar os objetivos, a natureza e a finalidade de cada área.
O que é manejo do fogo?
O Manejo Integrado do Fogo (MIF) é a técnica que permite escolher a época, as condições meteorológicas, a frequência e o local em que o fogo pode ou não ser usado de forma segura na vegetação. O objetivo do MIF é evitar os grandes incêndios, a emissão de gases de efeito estufa e proteger os ecossistemas mais sensíveis, as áreas produtivas e as prioritárias à conservação.
O PL 1.818/2022 define dois tipos de queima que podem ser feitas legalmente: controlada e prescrita. A primeira é a usada para fins agropecuários em áreas determinadas e deverá constar em plano de manejo integrado do fogo, com autorização prévia dos órgãos competentes. Já a queimada prescrita ocorre com planejamento e controle do fogo para fins de conservação, pesquisa ou manejo dentro do plano integrado. É o que ocorre, por exemplo, no controle de espécies exóticas ou invasoras. Essa modalidade também exige autorização prévia.
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Senado aprova projeto de adaptação climática em resposta a desastre no RS
Oposição rejeitou a proposta em comissão, mas acabou aceitando a aprovação simbólica no plenário. Só Flávio Bolsonaro foi contra na votação final
Apenas Flávio Bolsonaro (PL-RJ) votou contra o projeto no plenário | Roque de Sá / Agência Senado
O plenário do Senado aprovou, no início da noite desta quarta (15), o projeto de lei (PL) que estabelece normas nacionais para a formulação e implementação dos planos federal, estaduais e municipais de adaptação climática. O PL 4.129/2021 segue agora para a Câmara e, se for aprovado, vai à sanção presidencial.
Trata-se de uma das respostas do Congresso à tragédia no Rio Grande do Sul. Até às 18h, segundo a Defesa Civil do estado, eram 149 mortos, 806 feridos, 108 desaparecidos, cerca de 76 mil desabrigados e 538,1 mil desalojados. No total, 2,1 milhões de pessoas e 452 municípios afetados de alguma forma.
No esforço de desgastar o governo e dificultar a votação de medidas contra a crise climática, a oposição conseguiu adiar a análise do PL de ontem para hoje, sob a justificativa de que ele precisaria ser mais discutido. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), acabou cedendo à pressão para que o texto retornasse à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), desde que fosse apreciado pelo plenário hoje.
Depois de se posicionar contra o projeto no colegiado pela manhã, os oposicionistas acabaram aceitando que o projeto fosse aprovado simbolicamente no plenário, com um único voto contrário de Flávio Bolsonaro (PL-RJ), logo após os senadores chancelarem a suspensão por três anos das dívidas do governo gaúcho com a União, também com resistências da extrema direita.
Na CCJ, como relator, Wagner acatou parcialmente uma emenda de Flávio, que explicitou a participação do setor privado na formulação e implementação do plano nacional de adaptação e a necessidade dele conciliar a "proteção do meio ambiente com o desenvolvimento econômico”. A alteração não foi considerada ruim por ambientalistas.
A sessão na CCJ acabou se tornando um palanque da extrema direita para atacar a política e os órgãos ambientais. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi um dos alvos. O presidente do colegiado, Davi Alcolumbre (União-AP), informou que vai apresentar um requerimento para que a ministra vá à comissão.
Alguns senadores alegaram que o PL 4.129 não traz medidas concretas e imediatas, mas não apresentaram nenhuma alternativa. O líder da oposição, Rogério Marinho (PL-RN), chegou a justificar que ele traria mais problemas que soluções ao atribuir funções a órgãos e técnicos ambientais e prever a participação da sociedade civil na formulação e gestão dos processos de adaptação.
“O projeto não traz efeito prático nenhum. É uma elaboração de diretrizes, é uma preocupação de fortalecer ainda mais os órgãos ambientais”, disse Flávio Bolsonaro no plenário.
De fato, a redação trata de diretrizes e critérios gerais, mas foi incluída na pauta prioritária da Câmara e do Senado por ter sido considerada a mais completa sobre o assunto em tramitação e adequada para iniciar a preparação à ameaça climática.
O assessor do ISA Ciro Brito explica que o texto aprovado respeita as peculiaridades de cada estado e município. “A aprovação do PL de Adaptação na CCJ é adequada, especialmente neste momento em que a sociedade está entendendo e fazendo juízos sobre as catástrofes climáticas e sendo instada a refletir sobre o que fazer. Mas vimos que o debate não está alinhado e que as causas e soluções apresentadas são bem diferentes”, comenta.
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O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), discursa no plenário durante votação | Roque de Sá / Agência Senado
Pacote de projetos positivos
De autoria da deputada Tábata Amaral (PSB-SP), o PL 4.129 foi indicado como prioritário pelo Observatório do Clima (OC) e a Frente Parlamentar Ambientalista no pacote de projetos positivos que o Congresso deveria aprovar em função da catástrofe no Rio Grande do Sul. As duas entidades também encaminharam uma lista de propostas em tramitação que deveriam ser rejeitadas, o chamado “Pacote da Destruição”.
O PL 4.129 prevê que os planos de adaptação sejam integrados aos planos de ação climática, conforme a Política Nacional sobre a Mudança do Clima (PNMC). Além disso, municípios, estados e União também devem alinhar estratégias de mitigação e adaptação aos compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris, o tratado internacional sobre a emergência climática.
O PL prevê ainda que os planos de adaptação municipais e estaduais priorizem áreas, setores e populações mais vulneráveis, conforme critérios de “etnia, raça, gênero e condição de deficiência”. As ações deverão ser monitoradas e avaliadas, e revistas a cada quatro anos. Além disso, o PL estabelece mecanismos de monitoramento da agenda de adaptação nos três níveis federativos.
"A aprovação do PL 4129/21 representa mais um passo para que o plano de adaptação, a nível federal, se traduza em políticas públicas estaduais e municipais”, disse Sarah Darcie, coordenadora de advocacy do Instituto Clima de Eleição e secretária executiva do Grupo de Trabalho de Clima da Frente Parlamentar Ambientalista. “Em um ano de eleições municipais e diante dos eventos climáticos extremos recentes, é mais do que urgente que o debate sobre adaptação seja pautado pelas novas lideranças políticas”, ressaltou.
“O Estado precisa parar de fazer gestão de desastre e se dedicar com responsabilidade em adaptar as cidades”, afirmou Mariana Belmont, assessora de Clima e Racismo Ambiental do Geledés - Instituto da Mulher Negra. “É fundamental produzir políticas públicas eficientes e focadas no curto e médio prazos. A adaptação às mudanças climáticas precisa questionar que tipo de sociedade que teremos no futuro”, completou.
Quais os principais pontos do PL 4.129?
Áreas e populações prioritárias. Os planos de adaptação nacional, municipais e estaduais deverão priorizar áreas e populações mais vulneráveis, conforme critérios de "etnia, raça, gênero e condição de deficiência”. Esses critérios deverão levar em conta a “identificação, quantificação e reporte contínuo das vulnerabilidades e ameaças climáticas”.
Apoio aos municípios. Priorização dos municípios mais vulneráveis e a possibilidade de criação de “consórcios intermunicipais”.
Participação social. Garantia de participação social na coordenação e gestão dos planos nas várias esferas de governo.
Financiamento. Possibilidade de acesso ao Fundo Nacional de Mudança Climática (FNMC) e à cooperação internacional para o financiamento da elaboração e das ações dos planos.
“Soluções baseadas na natureza”. Adoção de medidas como a restauração florestal e a criação de áreas protegidas urbanas, como parte das estratégias de adaptação, considerando os benefícios adicionais e sinergias com as ações de mitigação.
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Agência nacional de resolução fundiária
O sócio fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, analisa os desafios da destinação de terras públicas e propõe a criação de uma instância federal sobre o assunto
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Erramos:o número de comunidades quilombolas tituladas até hoje no país é de 382, e não de cerca de 390, como informado originalmente.
Na semana passada, o presidente Lula homologou duas Terras Indígenas (TIs): Aldeia Velha, do povo Pataxó (BA), e Cacique Fontoura, do povo Iny Karajá (MT). A homologação – penúltima etapa do processo de demarcação — é muito importante para essas populações. A conclusão dos processos é esperada por décadas e abre caminho para resolver conflitos e estabilizar a situação fundiária nas suas regiões.
Mas Lula sabe – e admitiu – que o anúncio sobre as duas áreas frustraria o movimento indígena, que esperava, também, a homologação de outras quatro, mas que o presidente resolveu adiar: Toldo Imbu, do povo Kaingang, e Morro dos Cavalos, dos Guarani Mbyá e Guarani Nhandeva (SC); Xukuru-Kariri, dos Xukuru-Kariri (AL); e Potiguara de Monte-Mor, do povo Potiguara (PB).
O petista alegou “problemas burocráticos”, presença de ocupantes não indígenas, a necessidade de dar mais tempo aos governadores desses estados para resolverem essas ocupações e o risco de decisões judiciais em contrário. Mas é improvável que existam dificuldades burocráticas. Além disso, as terras homologadas também demandam indenização ou reassentamento de não indígenas e qualquer demarcação está sujeita à judicialização. Lula não esclareceu o que espera que os governadores façam para viabilizar as desocupações.
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Cerimônia de lançamento do programa Terra da Gente, no Palácio do Planalto, com o presidente Lula, no dia 15/4/2024 | Ricardo Stukerte / PR
Assentamentos e quilombos
Ainda na semana passada, o MST promoveu 28 ocupações de terras improdutivas, em 10 estados e no DF. Cerca de 20% das 105 mil famílias acampadas no país participaram da mobilização. “A paciência é inimiga da fome e do abandono para quem está debaixo de uma lona preta”, disse o MST em carta aberta. A reforma agrária pouco avança e o governo não tem desapropriado novas áreas para assentamentos.
Ao mesmo tempo, o governo federal lançava, em Brasília, o programa “Terra da Gente”. No evento, o presidente e o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, anunciaram 17 caminhos legais para obter e disponibilizar terras para a reforma agrária, as chamadas “prateleiras de terras”. O anúncio teve o mérito de pautar o tema e reflete a busca de alternativas à desapropriação.
A titulação de quilombos também anda devagar, quase parando, embora disponha de status constitucional, assim como a demarcação das TIs, e possa ser feita também pelos estados e não só pela União. Apenas 382 comunidades quilombolas foram tituladas até agora pelos governos federal e estaduais, diante de uma pendência de, pelo menos, cerca de 3,1 comunidades. Os números consideram as mais de 3,5 mil comunidades já certificadas pela Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, mas há milhares de outras ainda não reconhecidas.
Unidades de Conservação
Não há estimativa, sequer, sobre quantas são as comunidades tradicionais extrativistas que vivem em áreas sem proteção legal. São milhares, com certeza, e estão em todas as regiões, do litoral aos confins da Amazônia. Elas são vítimas frequentes de grileiros, pistoleiros, empresas e projetos imobiliários. Em geral, não têm infraestrutura para armazenar e transportar os seus produtos, ficando sujeitas aos atravessadores, que controlam e se apropriam da renda gerada pelo comércio dos produtos da floresta e de nossas outras paisagens naturais. Essas populações raramente acessam políticas públicas, como a de aquisição de alimentos para a merenda escolar.
Ainda há, portanto, uma grande demanda pela criação de novas Reservas Extrativistas, inclusive marinhas. Mas o seu sucesso depende, assim como a produção indígena e quilombola, de programas nos três níveis de governo para acolher e destinar esses produtos aos mercados. Regular o pagamento por serviços ambientais e o mercado de carbono será relevante para ampliar a renda das comunidades tradicionais.
Também cabe avaliar o grau atual de proteção efetiva de cada bioma do país, além da criação de outras áreas de uso restrito. Com o agravamento das mudanças climáticas, todas as formas de vida estão sujeitas aos seus impactos, que precisam ser monitorados, mitigados e, se possível, compensados. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), além da proteção da biodiversidade e das comunidades tradicionais, terá crescente importância na regulação do clima e dos regimes de chuvas.
Terras sem destinação
Um estudo recente, publicado há duas semanas pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), pelo Centro de Empreendedorismo da Amazônia e pelo Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio), estimou em 143 milhões de hectares – seis vezes o Estado de São Paulo – a extensão das terras públicas sem destinação na Amazônia, sujeitas à grilagem e à devastação.
Essa estimativa considerou as áreas privadas e as destinadas por atos oficiais das várias instâncias de governo, tanto para fins sociais, ambientais, produtivos e administrativos. Mas foi feita remotamente, sem checagens em campo, o que demandaria uma estrutura cara e complexa. Partes dessa área correspondem às TIs e aos quilombos ainda não reconhecidos, ou são ocupadas por comunidades tradicionais, posseiros e grileiros.
As terras públicas sem destinação são áreas em disputa. Foi-se o tempo em que o Brasil era terra de ninguém. Nunca foi, na verdade. E, agora, é ainda muito menos. As situações de sobreposição e de conflito já superam, em muito, as terras efetivamente disponíveis. Os processos de ocupação já extrapolam as fronteiras e, logo logo, só haverá o que regularizar, e não mais o que destinar.
Agência executiva
No início deste mês, Lula editou um decreto para orientar a destinação das terras federais. "Começamos por dar o destino correto à terra, pois ela que sustenta a vida, o homem e a floresta. A União tem, na Amazônia Legal, nada menos do que 50 milhões de hectares de terras públicas. É o equivalente a uma Espanha inteira em meio à floresta. Não faz sentido que o Poder Público não dê um destino claro a esse verdadeiro país dentro de outro país", afirmou o presidente, no anúncio da medida.
No ano passado, o governo já havia retomado o funcionamento da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Além do MDA, o órgão é composto pelos ministérios do Meio Ambiente (MMA) e dos Povos Indígenas (MPI), a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai). Os ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Igualdade Racial são membros consultivos.
Porém, a complexidade e a urgência da missão exigem mais que uma instância de articulação interinstitucional federal. Melhor seria fazer o mapa da situação de ocupação real dessas áreas de forma centralizada, sem prejuízo das ações em curso no âmbito de cada órgão. Ocorre que eles atuam segundo competências específicas e não dispõem de estrutura, recursos e versatilidade de atribuições para fazer o mapa completo. Da soma das ações, resultaria um levantamento fragmentado. O presidente deve considerar a possibilidade de criar uma agência executiva, com estrutura ágil e missão temporária, para fechar essa conta, coordenar esforços e mediar interesses sobrepostos, identificando a vocação de cada área a ser tratada por cada órgão.
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Governo anuncia pacote ambiental e homologa duas Terras Indígenas
Lula oficializa o equivalente a três cidades de São Paulo em áreas protegidas na Amazônia, mas Terras Indígenas já prontas para conclusão de demarcação chegam a 66
Para celebrar o Dia da Amazônia, nesta terça-feira (5), o governo federal lançou um pacote de ações ambientais, incluindo a regularização de cinco áreas protegidas e a ampliação de outras duas, totalizando mais de 454,4 mil hectares sob proteção federal na região, extensão equivalente a três vezes a cidade de São Paulo (saiba mais no quadro abaixo).
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou os decretos de homologação (a última etapa do processo de demarcação) da Terra Indígena (TI) Rio Gregório, de 187 mil hectares, dos povos Katukina e Yawanawá, no município de Tarauacá (AC), e da TI Acapuri de Cima, com 19 mil hectares, do povo Kokama, em Fonte Boa (AM). As duas TIs abrangem uma população de cerca de mil pessoas (leia mais no quadro ao final da reportagem).
Também foram destinados quase 20 mil hectares para a regularização da TI Valparaíso (AM) e outros 2,5 mil hectares para a TI Kanela do Araguaia (MT). Um hectare mede, mais ou menos, um campo de futebol.
Apesar disso, Lula continua sem cumprir integralmente a promessa de homologar 14 TIs já prontas para isso, listadas ainda durante a transição do governo. Mais longe ainda está de cumprir a outra promessa, feita em abril, quando homologou seis territórios, de acabar com as pendências dos procedimentos demarcatórios até o fim de seu mandato (saiba mais logo abaixo).
Na cerimônia no Palácio do Planalto, nesta terça, como já havia feito em abril, Lula reconheceu que é preciso acelerar a tramitação dos processos e voltou a prometer que irá fazê-lo. “Vocês sabem que o governo tem de fazer mais e vocês sabem que nós vamos fazer mais”, afirmou.
“Temos um grande passivo de demarcação de terras indígenas e titulação de quilombos nas gavetas do poder público, mas o anúncio de hoje é para comemorar”, afirma a assessora do ISA, Adriana Ramos.
“Ao celebrar o dia da Amazônia com um conjunto de medidas que inclui a oficialização de áreas protegidas e ações de regularização fundiária, o governo dá mais concretude ao que o presidente Lula vem destacando como compromisso de seu governo”, conclui.
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Fonte: ICMBio
UCs federais
Também foram assinados os decretos de criação da Floresta Nacional (Flona) do Parima, com 109,4 mil hectares, e de ampliação da Estação Ecológica de Maracá, em 50,7 mil hectares, que alcança agora 154,2 mil hectares, ambas em Roraima. Junto com a Flona de Roraima (instituída em 1989), as duas áreas formam agora um escudo que pode proteger contra invasões a fronteira leste da TI Yanomami, que ainda enfrenta uma crise humanitária sem precedentes (veja os mapas acima e mais abaixo).
O presidente anunciou ainda a ampliação do Parque Nacional do Viruá, também em Roraima, em 66 mil hectares ‒ a Unidade de Conservação (UC) soma agora mais de 281 mil hectares. A proteção das novas áreas no estado faz parte de um acordo realizado, em 2009, para a transferência de terras federais para o governo roraimense.
A Flona do Parima é a segunda UC criada por Lula: em junho, ele oficializou o Parque Nacional da Serra do Teixeira (PB), com 61,1 mil hectares. Antes dele, a última UC federal havia sido formalizada em 2018. Somando as outras TIs e UCs oficializadas até agora, a terceira gestão de Lula alcança a marca de mais de 1,1 milhão de hectares protegidos ou o equivalente a quase duas vezes a extensão do Distrito Federal.
Pacote ambiental do Dia da Amazônia
‒ Homologação da TI Rio Gregório (AC), de 187 mil hectares, e da TI Acapuri de Cima (AM), com 19 mil hectares ‒ Destinação de 19,9 mil hectares para a regularização da TI Valparaíso (AM) e de 2,4 mil hectares para a TI Kanela do Araguaia (MT) ‒ Criação da Floresta Nacional do Parima (RR), com 109,4 mil hectares ‒ Ampliação do Parque Nacional do Viruá (RR) em 66 mil hectares ‒ Ampliação da Estação Ecológica de Maracá (RR) em 50,7 mil hectares ‒ Programa União com Municípios, com promessa de R$ 600 milhões, até 2025, para prefeituras que reduzirem o desmatamento ‒ Programa Florestal Viva, com promessa de R$ 500 milhões não reembolsáveis do BNDES e iniciativa privada para restauração florestal, em até três anos ‒ 1º edital do programa Floresta Viva, com R$ 26,7 milhões em recursos não reembolsáveis para apoio a até nove projetos de restauração florestal e fortalecimento de cadeias produtivas associadas na Bacia do Xingu ‒ Retomada do funcionamento da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) ‒ Repasse de terras de seis UCs federais em Roraima, somando 3,6 milhões de hectares, da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para o ICMBio (uma das últimas etapas da regularização fundiária das UCs) ‒ Entrega de 534 títulos para agricultores familiares de São Gabriel da Cachoeira (AM) ‒ Declaração de interesse da Funai em 3,81 milhões de hectares para reconhecimento de TIs na Amazônia ‒ Declaração de interesse do MMA em 3,75 milhões de hectares para futura criação de UCs e concessão florestal
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Presidente Lula oficializa áreas protegidas no Palácio do Planalto ao lado de ministros: Marina Silva, do Meio Ambiente (E), Sonia Guajajara, dos Povos Indígenas (D), entre outros | Ricardo Stuckert / PR
Promessa de R$ 1,1 bilhão
Outro anúncio feito pelo governo foi o de um novo programa que pretende incentivar os municípios da Amazônia a reduzir suas taxas de desmatamento e degradação florestal. O governo promete liberar, até 2025, R$ 600 milhões do Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
“Os municípios que mais reduzirem o desmatamento vão ter acesso a um maior volume de recursos para investir em ações de regularização fundiária e regularização ambiental, restauração agroflorestal, atividades produtivas sustentáveis”, explicou o secretário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA), André Lima, em entrevista ao ISA, ao final da cerimônia no Planalto.
De acordo com ele, a ideia é comprometer, além das prefeituras, também deputados, senadores e vereadores com o programa, inclusive com emendas parlamentares destinadas ao combate ao desmatamento e que servirão como contrapartida aos recursos do BNDES. Lima informa ainda que o ministério pretende acelerar a redução das taxas de destruição da floresta nesses municípios, até a realização da Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP-30), em Belém, em 2025, como uma vitrine para a captação de mais recursos internacionais para esse fim.
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Fonte: ICMBio
Ainda na cerimônia no Planalto, a diretora socioambiental do BNDES, Tereza Campello, informou que o banco está lançando um edital de R$ 26 milhões para o reflorestamento de 1,5 mil hectares em TIs, UCs e áreas de agricultura familiar na Bacia do Rio Xingu. A medida faz parte do programa Floresta Viva, que pretende captar e ofertar R$ 500 milhões em recursos não reembolsáveis, em até três anos, para atividades de restauração florestal e o fortalecimento de cadeias produtivas a elas associadas. De acordo com Campelo, metade do montante será oferecido pelo banco e a outra metade pela iniciativa privada.
Como fez em relação às demarcações, Lula também prometeu ampliar as ações de combate ao desmatamento. “Nós vamos provar que aqueles que acham que têm de derrubar uma árvores para ganhar dinheiro são muito mais ignorantes do que espertos. Porque ele pode ganhar muito mais dinheiro com a floresta em pé”, disse.
O presidente voltou a dizer que pretende formar um grupo composto pelos países amazônicos, mais a Indonésia e o Congo, com um posicionamento único nas negociações internacionais sobre mudanças climáticas, para pressionar as nações desenvolvidas a cumprirem a promessa de ofertar US$ 100 bilhões ao ano para conservar as florestas tropicais.
Como vem fazendo recentemente, o presidente, no entanto, acenou aos governadores da Amazônia, quase todos mais ou menos alinhados a bolsonaristas e ruralistas, e voltou a destacar a necessidade de promover o desenvolvimento econômico da região. “O povo da Amazônia tem pressa de conquistar oportunidades, de ter apoio para empreender e produzir. O povo da Amazônia tem pressa de viver em uma economia dinâmica para encontrar mais e melhores empregos”, apontou.
Desafios para as demarcações
Considerando processos já abertos na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o país tem hoje 740 TIs. Com as homologações desta terça, passa a contar com 500 TIs com seu processo de demarcação finalizado. Ainda restam, no entanto, 66 TIs declaradas que seguem aguardando pela assinatura do decreto de homologação.
Além disso, ainda há 46 TIs com seus relatórios de identificação já publicados pela Funai e 128 ainda em processo de estudo para produção do relatório de identificação de suas áreas. Ao todo ainda são 240 Terras Indígenas com processo não concluído e, para elas, o futuro ainda é incerto (entenda o processo de demarcação).
Entre as 66 terras declaradas, o tempo médio de espera até a finalização do processo, com a homologação pelo Presidente da República, é de 12 anos. Em alguns casos, como o da TI Acapuri de Cima, homologada nesta terça, a demora chegou a mais de duas décadas: o Ministério da Justiça reconheceu os estudos para sua delimitação e declarou a área em 2000.
“Hoje, 66 áreas já passaram por todas essas etapas do longo processo de demarcação, com investimento de tempo e recursos públicos, e aguardam um ato de confirmação do presidente, com sinais ainda muito tímidos de avanço. Não há mais nada a ser feito nesses processos. Eles já estão prontos. A única explicação para a demora em finalizá-los são as pressões de setores que trabalham para mudar o processo de demarcação”, defende Moreno Saraiva Martins, coordenador do programa Povos Indígenas no Brasil (PIB) do ISA.
Lula precisará acelerar os processos de demarcação e ir além do que foi feito em todos os seus mandatos para cumprir a promessa feita em abril. Para se ter uma ideia, em seu último governo (2007-20100, ele homologou 21 áreas, totalizando 7,7 milhões de hectares, em uma média de pouco mais de cinco homologações por ano. Na primeira gestão (2003-2006), por outro lado, foram homologadas 66 terras, totalizando 11 milhões de hectares e uma média de 16,5 homologações ao ano.
Para cumprir a promessa e acabar com as pendências de 240 TIs que já tem seus processos iniciados, o presidente precisaria homologar 60 áreas por ano, ou cinco por mês, em seus quatro anos de mandato. Atualmente, a média está abaixo de uma homologação ao mês.
Conheça as duas Terras Indígenas homologadas
Rio Gregório (AC)
A TI Rio Gregório é parte do território tradicional dos Yawanawá, povo de língua Pano que vive no município de Tarauacá (AC). Essa é única área destinada a esse povo, e chegou a ter uma parte de sua extensão delimitada em 1984, sendo a primeira demarcação feita no Acre. A homologação realizada, em 1991, deixou de fora partes significativas do território original. Por essa razão, uma nova área foi delimitada, em 2006, e declarada em 2007. A TI possui quase um quarto de sua área sobreposta à Floresta Estadual Rio Liberdade, UC de uso sustentável. Há ainda uma pequena sobreposição, menor que 1%, com a Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade. Atualmente, cerca de 600 pessoas vivem na TI.
Acapuri de Cima (AM)
Terra do povo Kokama, localizada no Amazonas, possui mais de 19 mil hectares e aguarda a homologação há mais de 23 anos. Apesar da ocupação tradicional registrada por ao menos 116 anos, teve seu processo de reconhecimento oficial iniciado só em 1997, com seus limites identificados em 1999, com a aprovação do relatório de delimitação pela Funai. O Grupo Técnico que fez o levantamento fundiário e cartorial só encontrou dois imóveis sobrepostos à TI, em 1998: um terreno do Ministério da Educação, adquirido para a construção de uma escola, e um segundo imóvel de posse de um antigo patriarca de uma das famílias kokama residente na área. Sua população hoje é de aproximadamente 500 pessoas. A TI foi declarada pelo Ministro da Justiça em 2000.
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Lula veta ataques à Mata Atlântica e a áreas protegidas e anuncia plano contra crimes ambientais
Presidente exclui da lei “contrabandos legislativos”, restabelece instâncias contra as mudanças climáticas e oficializa as duas primeiras Unidades de Conservação federais em cinco anos
No Planalto, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, entregou ao presidente Lula a nova versão do plano de combate ao desmatamento | Ricardo Stuckert / PR
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou, na tarde de segunda-feira (5), medidas para comemorar o Dia Internacional do Meio Ambiente.
Ele vetou pontos do projeto de lei de conversão da Medida Provisória (MP) 1.150/2022, cujo texto final trouxe dispositivos que enfraqueceriam a proteção à Mata Atlântica, às Unidades de Conservação (UCs), como parques e reservas, e às Áreas de Preservação Permanente (APPs) às margens de cursos de água, essenciais para a manutenção de mananciais e evitar desastres, como deslizamentos e enchentes. A MP foi aprovada pela Câmara há duas semanas.
Agora, o Congresso pode manter ou rejeitar os vetos. Nesse caso, um acordo foi feito na primeira votação na Câmara para que o União Brasil acatasse os vetos. O partido propôs as alterações mais radicais na MP.
O Senado havia “impugnado” esses pontos, o que significa que os considerou inexistentes, por violação formal ao processo legislativo. Na volta à Câmara, no entanto, os deputados retomaram o texto que saiu da Casa.
Os senadores avaliaram que os dispositivos eram “jabutis” ou “contrabandos legislativos”, jargão usado no Congresso para uma emenda que entra de surpresa num projeto de conversão em lei de uma MP e sem relação com seu tema original, atropelando o processo legislativo. Desde 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) veda a manobra. O conteúdo da medida original tratava apenas de prazos para cumprimento do novo Código Florestal (saiba mais).
Lula também vetou o dispositivo sobre o assunto pelo qual, a partir da assinatura do Termo de Compromisso do Programa de Regularização Ambiental (PRA) e durante sua vigência, o produtor rural não poderia ter financiamentos negados por causa de infrações ambientais. Por meio do PRA, os produtores rurais formalizam o compromisso de reflorestar ou compensar áreas desmatadas ilegalmente.
“A redação do artigo era ampla demais e dava margem à interpretação de que o produtor rural não poderia ter pedidos de crédito negados por outras infrações eventualmente cometidas, além daquelas objeto do termo de compromisso”, analisa o consultor jurídico do ISA Mauricio Guetta. Segundo o texto da lei sancionada, agora esses financiamentos poderão ser rejeitados pelos bancos.
Ainda conforme a redação final da MP, os produtores rurais passam a ter até um ano após a “notificação do governo estadual para ingressar no PRA. Antes, eles devem ter validadas as informações do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e identificados os passivos ambientais a serem recuperados pelo órgão ambiental responsável. O problema é que a validação do CAR anda a passos de tartaruga: menos de 1% dos cadastros foram validados, após mais de 10 anos da publicação do novo Código Florestal.
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O cacique Raoni Kaypó participou da cerimônia do anúncio das medidas ambientais no Palácio do Planalto | Ricardo Stuckert / PR
Compromisso ambientais
“Tenho o compromisso de retomar a liderança mundial do Brasil na mitigação das mudanças do clima e no controle do desmatamento”, afirmou Lula. Ele voltou a cobrar os US$ 100 bilhões anuais prometidos pelos países ricos para o combate ao aquecimento global. “Até agora, saiu pouquíssima coisa, e não se sabe para quem”, criticou.
O presidente prometeu cumprir a meta de desmatamento zero na Amazônia até 2030, apresentada pelo Brasil nas negociações internacionais sobre mudanças climáticas, e disse que o governo vai atualizar o conjunto dessas metas, conhecido por Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês).
Os compromissos do Brasil foram alvo de uma “pedalada climática” do governo Bolsonaro: a linha de base foi atualizada mas o mesmo não aconteceu com o percentual de emissões de gases de efeito estufa que o país deveria emitir até 2030. Assim, o volume absoluto de emissões caiu.
O presidente Lula também assinou decretos que criam, restabelecem ou atualizam o funcionamento de conselhos, alguns com participação da sociedade civil, sobre meio ambiente e mudanças climáticas (saiba mais no quadro ao final da reportagem).
Um deles atualiza as normas de funcionamento do comitê gestor do Fundo Nacional de Mudança do Clima, paralisado no governo Bolsonaro. Em ação judicial articulada pelo Observatório do Clima (OC), o STF considerou inconstitucional a paralisação e determinou a retomada de seu funcionamento .
“Com os anúncios, Lula mostra-se coerente com as promessas ambientais de campanha. O caso deve servir de alerta máximo para que a articulação política do governo se antecipe e faça a mediação junto ao Congresso sobre outros retrocessos em tramitação”, alerta Guetta.
Ele avalia que, se o governo não se antecipar e negociar com o Congresso, pode cair no colo do presidente da República o ônus político de vetar ou sancionar projetos que podem desmontar o licenciamento ambiental, intensificar a grilagem de terras e permitir o uso de agrotóxicos cancerígenos, por exemplo.
No evento do Palácio do Planalto, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, entregou ao presidente a versão final da quinta e nova fase do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). O documento estava em consulta pública e sua divulgação era esperada há meses.
“Os mecanismos de inteligência, tecnologia e combate aos crimes ambientais talvez sejam as ações mais inovadoras desta versão do PPCDAm”, comenta o pesquisador do ISA Antonio Oviedo. "Ações como o monitoramento de alertas de desmatamento em tempo real, rastreio de madeira, checagens de CNPJ e autorizações, e rastreio da cadeia que financia atividades ilegais são ações muito importantes para garantir maior eficiência nas operações de fiscalização”, completa.
Ele explica que, de acordo com o texto divulgado, pela primeira vez o plano integrará, de forma explícita, as atividades de fiscalização fiscal, financeira, mineral, fundiária e de sanidade animal, de modo a ampliar a gama de sanções aos desmatadores ilegais.
No evento no Palácio do Planalto, Lula destacou que o governo está retomando a criação de áreas protegidas. Ele assinou os decretos de criação do Parque Nacional da Serra do Teixeira (PB), com 61 mil hectares, e de ampliação em mais 1,8 mil hectares da Reserva Extrativista Chocoaré-Mato Grosso (PA), totalizando agora mais de 4,5 mil hectares. Um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol. As duas UCs são as primeiras oficializadas pela administração federal em cinco anos.
O presidente prometeu ainda lançar o Plano de Segurança e Soberania da Amazônia, que trará iniciativas de combate aos crimes ambiental e organizado na região, inclusive em UCs e Terras Indígenas (TIs). Estão previstas a criação da Companhia de Operações Ambientais, da Força Nacional de Segurança, e a implantação de bases fluviais e terrestres de fiscalização, postos policiais e delegacias.
“A Polícia Federal e as Forças Armadas estão a postos para agir prontamente em qualquer emergência ambiental, seja um incêndio florestal, seja um socorro aos povos indígenas, seja o combate implacável a toda a atividade ilícita relacionada ao meio ambiente”, salientou Lula.
O presidente voltou a dizer que o governo irá tratar criminosos ambientais de forma dura. Ele afirmou que protegerá as TIs “com uso da força, se necessário” e que irá demarcar o “maior número possível” dessas áreas até o fim de seu mandato. Em abril, chegou a prometer acabar com as pendências de demarcações. Na ocasião, homologou seis TIs, as primeiras em cinco anos.
Críticas ao Congresso
Os anúncios foram feitos depois de o Congresso aprovar, na semana passada, a MP 1.154/2022, com a proposta da gestão de Lula para a reestruturação dos ministérios. Produto da pressão de ruralistas e bolsonaristas, o texto final esvaziou algumas competências importantes das pastas de Meio Ambiente e Povos Indígenas.
Além disso, o plenário da Câmara aprovou o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que inviabiliza a demarcação de TIs e abre essas áreas a empreendimentos predatórios de grande impacto socioambiental. O projeto está agora no Senado. Se for alterado, volta à Câmara.
O Palácio do Planalto e sua articulação política receberam críticas por sua atuação nos dois temas. Tanto o texto final da MP 1.154 quanto o do PL 490 colocam em risco as promessas do governo na agenda socioambiental.
“Infelizmente, em recente decisão do Congresso Nacional, tivemos um retrocesso e uma reversão dessa sua decisão [de priorizar as politicas ambientais]. É uma decisão que não está em acordo com aquilo que é o fortalecimento do Sistema Nacional do Meio Ambiente, que acatamos, porque na democracia a gente acata as decisões legítimas do Congresso Nacional, mas não posso concordar”, lamentou Marina Silva, dirigindo-se a Lula.
“Não posso concordar porque elas vão na contramão daquilo que significa ter uma legislação ambiental robusta e que faça com que o Ministério do Meio Ambiente possa cumprir com suas atribuições que lhe são conferidas na Constituição Federal e em todas as leis”, destacou.
A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima retomou o contexto em que seu ministério foi encontrado, após o desmonte na gestão do ex-ministro Ricardo Salles. Ao assumir o mandato, Lula indicou Marina para a liderança da pasta e, conforme o texto original da MP 1.154, órgãos ambientais voltaram a sua competência para o fortalecimento da área.
"Foi atendendo ao chamado de justiça e reparação por crimes dessa natureza [como o assassinato de Bruno Pereira e Dom Philips] que o presidente Lula já no primeiro dia de seu governo fez a criação do Ministério dos Povos Indígenas, colocando uma mulher corajosa Soninha Guajajara, para dar uma resposta a todas as atrocidades que vêm sendo cometidas contra os povos indígenas brasileiros, ter políticas públicas para assegurar seus direitos e protegê-los”, completou.
Medidas do governo no Dia Internacional do Meio Ambiente
Outras medidas ambientais tomadas pelo governo em seus seis primeiros meses
- Recriação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)
- Retomada das Conferências Nacionais de Meio Ambiente
- Retomada da Comissão Nacional do REDD+
- Retomada do comitê gestor do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima
- Criação do Conselho de Segurança Climática com a Casa Civil
- Criação de um Plano de Prevenção e Controle de problemas causados pelos eventos climáticos extremos
- Retomada do Programa “Bolsa Verde”, para populações de baixa renda que vivem em comunidades tradicionais
- Retomada de políticas de valorização dos trabalhadores catadores
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Amazônia sem lei
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa as consequências da possível transição política para a Amazônia. Artigo publicado originalmente no site do Mídia Ninja em 9/9/2022
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
É cada vez menos verdade se dizer que é a lei da selva que prevalece na Amazônia. Foi assim em outros tempos. Na floresta tropical, a abundância de vida e a intensidade da luta pela sobrevivência tornam mais evidente a presença da violência. Essa violência, porém, não difere, em essência, daquela destinada por sociedades que se consideram “civilizadas” aos migrantes e outras populações de origens geográficas, culturais, políticas ou sociais diversas. Mesmo assim, associamos a palavra “selvagem” à prática deliberada da violência.
A arqueologia contemporânea ensina que a ação humana sempre foi protagonista na produção da biodiversidade, desde que os seres humanos vivem nela e dependem dela. A ciência tem demonstrado que a Amazônia é, também, produto dessa vivência, o que deixa evidente que a associação entre selva e violência – a noção de “selvageria” – é mais colonial do que propriamente humana. É mais fruto de uma estranheza, uma exterioridade.
Não há dúvida de que a floresta impôs e continua impondo forte resistência ao padrão ideal de ocupação colonial, fundado no seu consumo mercantil e, afinal, na sua supressão. Se considerarmos a persistência da violência colonial contra a floresta, intensificada pelo avanço tecnológico, é surpreendente que florestas ainda existam, embora cada vez menos. Nesse processo, o que fica mais evidente é que a selvageria, no sentido da violência, é o próprio desmatamento. E que a vida, em sentido amplo, depende do que resta das florestas.
“Selva!”
A página do Exército no Facebook ensina que a saudação “Selva!”, comumente usada entre os militares, teve origem na frequência com que os motoristas dos veículos militares repetiam esse brado para indicarem o seu destino, na portaria do Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus. Nunca houve uma guerra na selva nem em Manaus. A indicação dos motoristas era de que o seu destino estava além do enclave urbano. A saudação também vai além, expressando a disposição de enfrentar as agruras da selva.
O Exército vale-se do poder legal de convocação, muito mais efetivo do que o das demais instituições públicas, para garantir alguma presença do Estado na região amazônica. Presença de um Estado estruturado a partir de fora da selva, ou da Amazônia, que não foi constituído a partir das formas próprias de organização das populações originais. Embora o censo do IBGE considere como essencialmente rurais 85% dos municípios da região, o poder político nos estados se articula a partir de 20 cidades, onde vive a metade da população e a maioria dos eleitores. A maior parte do território e os que vivem nela estão à margem das estruturas e dos investimentos públicos.
A presença do Exército vem sendo reforçada e aporta recursos e benefícios em algumas regiões de fronteira. Também é crescente o recrutamento local de efetivos, inclusive de indígenas. Porém, a leniência dos governos diante da predação organizada dos recursos naturais e a sucessão de assassinatos na Amazônia escancaram a ineficácia da presença militar para conter o avanço da criminalidade, mesmo nas regiões de fronteira, e para garantir a paz e a segurança dos que vivem lá.
Nos últimos anos, valendo-se da impunidade, tomou proporções inéditas a organização da grilagem de terras públicas e da invasão de terras indígenas e de unidades de conservação, associadas à exploração predatória e intensiva dos recursos minerais e florestais. A violência é um dos seus resultados, assim como o aumento do desmatamento a cada ano.
Investigações recentes da Polícia Federal sobre garimpos predatórios nas terras Yanomami (AM-RR), Munduruku e Kaiapó (PA), assim como sobre os assassinatos recentes, no Vale do Javari (AM), do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Don Phillips, mostram o protagonismo do narcotráfico, que lava dinheiro e se vale da logística da produção predatória, controlando extensão crescente da Amazônia.
Também estão sendo apuradas as relações entre essas engrenagens do crime organizado com empresas formalmente constituídas, que legalizam a produção predatória nas respectivas cadeias produtivas, e com políticos e governantes. Essas redes de interesses criminosos permeiam as pressões, no Congresso Nacional, pela legalização da grilagem de terras e da predação mineral em terras indígenas. Assim como permeiam a agenda do presidente Bolsonaro, com visitas a garimpos e a presença dos envolvidos nas suas lives e em outros eventos oficiais.
Emergência
Se as eleições de outubro confirmarem a vitória do Lula, indicada nas pesquisas, será este o tamanho da bronca: desmontar as redes de formação de milícias da Amazônia. A situação requer, como emergência, o comando da inteligência policial e militar sobre as forças. Como estratégia, impõe priorizar investimentos em projetos das populações amazônicas marginalizadas, que ainda garantem o que há de floresta em pé.
Lula pretende indicar um civil para o Ministério da Defesa, criar um ministério para assuntos indígenas e uma secretaria especial para orientar o desenvolvimento científico e tecnológico da Amazônia. Ele tem reiterado que vai reprimir o garimpo predatório em terras indígenas e retomar a política de redução do desmatamento. Desarticular as quadrilhas da predação organizada será uma condição de viabilidade para o seu programa de governo.
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| André Villas-Bôas / ISA
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