Alessandra Munduruku, liderança indígena do Tapajós, teve sua luta reconhecida pelo Prêmio Goldman Environmental 2023|Fred Mauro/Terra Floresta Filmes/ISA
Alessandra Korap Munduruku, 39 anos, liderança indígena da região da Bacia do Rio Tapajós, foi premiada no Goldman Environmental de 2023, considerado o mais importante para ativistas ambientais.
A cerimônia de premiação acontece nesta segunda-feira (24/04) Assista!
Alvo constante de ameaças e ataques por sua luta – em 2019 e 2021 ela teve sua casa em Santarém (PA) invadida – Alessandra frequentemente afirma em entrevistas que seu povo resiste “para continuar vivo”.
"É um reconhecimento da luta de todo o meu povo, de todas as mulheres que não conseguiram chegar até aqui. Não quero ser vista e ouvida depois que eu estiver morta. Dorothy Stang e Chico Mendes morreram nesta luta. Quero ser vista agora, neste momento, nesta existência", disse Alessandra Munduruku à Deutsche Welle, dias antes de receber o prêmio, em São Francisco, Estados Unidos.
Alessandra Munduruku, que atualmente estuda Direito na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), foi a primeira mulher a presidir a Associação Indígena Pariri, que representa mais de dez aldeias do Médio Tapajós.
Em 2019, chegou a discursar para mais de 270 mil pessoas no Portão de Brandenburgo, em Berlim, e recebeu, em 2020, o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos.
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Alessandra Munduruku: "defender o território é defender a vida"|Christian Braga/ISA
Alessandra Munduruku foi escolhida para a premiação por sua dedicação e liderança na luta do povo Munduruku pela defesa de seu território contra o garimpo ilegal, em especial pela campanha contra a atuação da empresa britânica de mineração Anglo American, que pretendia extrair cobre no território indígena Sawré Muybu, no Pará.
Devido à pressão, a corporação se comprometeu, em maio de 2021, a formalmente retirar os 27 pedidos de pesquisa feitos à Agência Nacional de Mineração (ANM). Desses, 13 impactavam diretamente o território dos Munduruku.
O interflúvio Tapajós-Teles Pires é o território tradicional dos Munduruku, que hoje somam aproximadamente 14 mil pessoas e se encontram nas TIs Kayabi, Munduruku, Sai Cinza, Sawre Muybu e Sawre Bapim, além das reservas Praia do Mangue e Praia do Índio.
Mas nem todos esses territórios estão demarcados: a TI Sawre Muybu, ainda sem portaria declaratória, teve o seu processo de regularização fundiária interrompido por conflitos em torno do Complexo Hidrelétrico do Tapajós e, posteriormente, pela edição do Parecer 001 da AGU. A TI Sawre Ba’pim ainda está em processo de identificação — que tem corrido sob intensa pressão de interesses locais contrários.
Há, ainda, diversas ameaças aos territórios dos Munduruku. Entre os projetos de infraestrutura aos quais os indígenas têm resistido, destaca-se o corredor logístico Xingu-Tapajós, que conta já com diversas Estações de Transbordo de Carga (ETCs) em Miritituba (PA), e ainda prevê a construção da Ferrogrão, ferrovia de quase 1000 km de extensão que atravessa o Pará.
No que diz respeito às invasões, vale lembrar que as TIs Munduruku e Sai Cinza têm figurado, desde 2020, entre as mais desmatadas pelo garimpo ilegal, segundo o Mapbiomas. Essa atividade predatória tem provocado altos índices de contaminação por mercúrio, conforme comprovam estudos recentes da Fiocruz. As consequências para a saúde das pessoas são drásticas, especialmente crianças.
“Eu não queria ficar viajando. Eu queria ficar com meus filhos, cuidar da roça, banhar no rio, brincar, pescar. Não posso mais fazer nada disso. Isso dói. Mas, eu não vou desistir, eu vou estudar e lutar pelo meu povo contra o retrocesso, não posso me calar vendo o homem branco destruir a terra dos meus filhos. Ver outros povos sofrendo também, crianças sendo abusadas, como as Yanomami. Defender o território é defender a vida”, frisou Alessandra Munduruku em encontro em maio de 2022, no Rio Negro.
Recentemente, ela e outras lideranças dos povos Yanomami e Kayapó lançaram um dossiê com um panorama do avanço do garimpo ilegal nos territórios desses três povos, considerados os mais afetados pela atividade ilícita.
Criada em dezembro de 2021, a Aliança em Defesa dos Territórios, articulação política dos povos Yanomami, Munduruku e Kayapó, atua conjuntamente contra o garimpo e outras atividades que destroem as Terras Indígenas onde vivem.
Premiação
Alessandra Munduruku é a quarta brasileira a ser homenageada com o prêmio na categoria América do Sul e Central. Em 2006, o ambientalista Tarcísio Feitosa recebeu o prêmio por sua trajetória em defesa da região do Xingu e da Terra do Meio, no Pará.
Em 1996, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva foi reconhecida por sua atuação na criação das Reservas Extrativistas no Acre.
O primeiro brasileiro a ser premiado com o prêmio Goldman foi um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), Beto Ricardo, em 1992, por sua atuação na garantia dos direitos dos povos indígenas.
* Com informações da Deutsche Welle, g1 e BBC Brasil
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Guia traz orientações para verificação da Consulta Prévia sobre investimentos em infraestrutura
Documento busca fortalecer controle do direito de povos indígenas e comunidades tradicionais baseado em padrões de direito internacional e recomendações da OCDE
Realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), o documento aborda boas práticas de governança de investimentos em infraestrutura da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), assim como outras recomendações internacionais e nacionais sobre o cumprimento do DCCLPI.
As diretrizes são direcionadas a gestores públicos e a auditores de controle e tem por objetivo contribuir com a discussão de critérios de verificação do direito de CCLPI, assim como fortalecer o controle social sobre decisões presentes no ciclo de investimento em infraestrutura que envolvem riscos e impactos a territórios, modos de vida e direitos de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Também visa disseminar a obrigatoriedade de verificação do cumprimento do DCCLPI por parte de órgãos de controle: “Ainda são incipientes as iniciativas por parte dos Poderes Executivos para a realização de Consultas Prévias sobre decisões públicas que envolvem o ciclo de investimento em infraestrutura. Ademais, órgãos de controle, internos e externos, tampouco incorporaram a verificação do cumprimento do DCCLPI em suas auditorias de políticas públicas, planos setoriais e projetos de infraestrutura individuais”.
Em meio ao anúncio de retomada de investimentos estratégicos em infraestrutura por parte do governo federal, os autores alertam para a urgência da aplicação imediata do direito à Consulta Prévia sobre projetos selecionados para compor o “novo PAC”, e atentam para a necessidade de uma atuação coordenada do Governo Federal para pactuação de Planos de Consulta junto às comunidades potencialmente impactadas que respeitem as determinações presentes em seus Protocolos Autônomos de Consulta.
“O governo Lula 3 tem a chance de efetivar o direito de Consulta e Consentimento Prévio no país, para isso é indispensável respeitar o instrumento criado pelos próprios povos indígenas e comunidades tradicionais: os Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento ” afirma Biviany Rojas, coordenadora do Programa Xingu do ISA.
O documento afirma que “Cabe ao Poder Público cumprir e fazer cumprir seu dever de consultar povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais potencialmente impactadas por investimentos em infraestrutura desde seu planejamento e em todas as etapas onde sua participação seja relevante”.
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ISA repudia gesto supremacista branco em show
Condutas como a de Sigmund Vestrheim, baterista da banda da cantora Aurora, fazem parte de uma história de violência contra populações perseguidas, entre elas judaicas, negras, ribeirinhas, quilombolas e indígenas
O Instituto Socioambiental (ISA) vem a público manifestar total repúdio ao gesto supremacista branco do baterista da banda da cantora norueguesa Aurora, Sigmund Vestrheim, ao final do show realizado neste domingo (27/3), em São Paulo. O gesto está associado a publicações com outros símbolos nazistas e supremacistas nas redes sociais do baterista.
Condutas como essas fazem parte de uma história de violência contra populações perseguidas, entre elas judaicas, negras, ribeirinhas, quilombolas e indígenas. A atitude é frontalmente contrária aos valores e à missão do ISA, que há 29 anos trabalha na defesa dos direitos dos povos indígenas e populações tradicionais no país.
Na manhã que precedeu o show, o ISA, em parceria com a Fundação Rainforest da Noruega, realizou um encontro entre Aurora e as lideranças indígenas Watatakalu Yawalapiti e Vanda Witoto e apresentou à cantora o recém-lançado livro “Povos Indígenas no Brasil 2017-2022”.
A publicação, entregue em mãos a Aurora, faz o registro do período mais cruel pós-redemocratização para os Povos Indígenas no Brasil, e é um instrumento para manter viva a memória coletiva sobre essa história de ataques, que não podem mais se repetir. O encontro foi realizado em um hotel na capital paulista, registrado e postado nas redes sociais do ISA.
O compromisso da luta pela defesa dos direitos dos povos indígenas e populações tradicionais não permite que pessoas públicas tomem posições contraditórias sobre gestos supremacistas, e ao mesmo tempo desconsiderem seus impactos nefastos sobre a sociedade.
Seguindo nosso posicionamento, as postagens que registravam o encontro foram excluídas das redes sociais do ISA. O racismo, a apologia ao nazismo e ao supremacismo são crimes no Brasil e não podem ser tolerados.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
A solução para o caos ambiental de Belo Monte está na mesa do Ibama
Pesquisadores indígenas, ribeirinhos e da academia apresentaram à Procuradoria-Geral da República dados alarmantes que mostram: o Rio Xingu está morrendo
Peixe morto fotografado na Volta Grande do Rio Xingu, em maio de 2017. Região foi severamente afetada pela construção da usina de Belo Monte|Cristiane Carneiro
Atualizada dia 27/03/2022 às 14h26
O pulso do Rio Xingu é o que garante a vida do próprio rio e de todos os seres que o habitam. Os povos indígenas e ribeirinhos da Volta Grande do Xingu – trecho do rio logo após o barramento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte – sempre souberam disso.
Ao longo dos últimos anos, eles juntaram as informações em um aprofundado e minucioso monitoramento da região para embasar suas afirmações: a usina de Belo Monte alterou drasticamente o fluxo da água do Rio Xingu e, por isso, ele está morrendo.
Há uma saída. E ela passa por garantir novamente o pulso de inundação, ou seja, que a água do rio aumente em uma determinada velocidade e quantidade em um período do ano, e depois reduza alguns meses depois, no período certo.
No Xingu, a água precisa começar a subir em novembro, que é o início do ano para as culturas ribeirinhas locais. Isso porque é o mês de chegada da água nova que deve permanecer nas áreas de floresta alagada. Essa água precisa ir aumentando dia após dia até atingir o pico da cheia, em abril.
Esse é período necessário para a reprodução dos peixes, as piracemas. A partir de maio, a água começa a recuar dia após dia, marcando o período da vazante e atingindo o pico máximo de seca em setembro. Essa é a época de reprodução das tracajás, espécie de quelônio, abundantes na região antes do barramento do Rio Xingu por Belo Monte. Um ciclo que se repete há milhares de anos
Trata-se de um ciclo comum das paisagens amazônicas. A alternância cíclica entre a cheia, que ocorre no período de chuvas, e a várzea, que ocorre no período seco, garante a alta complexidade da floresta e da biodiversidade local.
“Belo Monte não é um fato consumado. Belo Monte é uma destruição que está em curso em um ambiente altamente complexo como o Rio Xingu e essa destruição deve ser reavaliada e mitigada, e não tomada como algo que já aconteceu”, afirma a pesquisadora Camila Ribas, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ribas é uma das peritas indicadas pelo Ministério Público Federal (MPF) para avaliar os impactos da usina.
Ribas e outros peritos do MPF apresentaram algumas de suas conclusões na sede da Procuradoria-Geral da República (PGR), em Brasília, no dia 14 de março. O evento também contou com as falas dos povos Juruna, Arara e de ribeirinhos da Volta Grande, impactados pela redução de vazão do rio.
Ao longo do dia, os pesquisadores indígenas, ribeirinhos e os peritos do MPF apresentaram os dados do monitoramento de impactos e uma proposta detalhada de vazão de água para o rio que retoma, ao menos em parte, o pulso de inundação do Xingu e garante a reprodução de algumas espécies de peixes.
Rodrigo Agostinho, presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Joênia Wapichana, presidenta da Fundação nacional dos Povos Indígenas (Funai), Juma Xipaya, representante do Ministério dos Povos Indígenas, além de membros da Casa Civil, Agência Nacional de Águas, Advocacia-Geral da União (AGU) e Secretaria do Meio Ambiente do Pará estavam presentes e ouviram o que essas pessoas tinham para falar.
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Desvio das águas do Rio Xingu (PA) por Belo Monte é debatido em seminário técnico do MPF, em Brasília|LeoBark/SECOM/MPF
Está nas mãos do Ibama a renovação da licença de operação da usina e a definição de qual quantidade de água passará por suas turbinas e qual quantidade será liberada para o Rio Xingu. Além disso, Joenia Wapichana adiantou que a Funai vai organizar um plano para a consulta livre, prévia e informada dos povos impactados por Belo Monte antes da renovação desta licença, e que essa consulta começará pelos povos da Volta Grande do Xingu.
A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que começou a operar em 2015, é uma usina fio d'água. Ou seja, a água do Xingu segue seu fluxo até a sede do município de Altamira, no Pará. Próximo dali, seu curso é desviado para o reservatório, onde a água passa pelas turbinas e a energia efetivamente será gerada. Abaixo desse ponto, é o trecho de vazão reduzida. Quem controla a água que flui rio abaixo são as comportas da hidrelétrica e, portanto, a empresa concessionária de Belo Monte, a Norte Energia.
Monitoramento indígena e ribeirinho
O Monitoramento Ambiental Territorial Independente (Mati) acontece desde 2013, quando ficou claro que a Norte Energia era parte interessada nos resultados do monitoramento que fazia. Por isso, indígenas e ribeirinhos decidiram coletar seus próprios dados para comprovar os impactos ambientais.
Ao longo desses anos, os pesquisadores do Mati assistiram à redução drástica da quantidade de peixes, Sara Rodrigues, pesquisadora e ribeirinha da comunidade da Baleia, mostrou as fotos de corvinas e pescadas deformadas devido à falta de alimentação.
Mais recentemente, em um episódio trágico, os pesquisadores encontraram um cemitério de ovas de curimatã. Um grande berçário de vida em potencial estava apodrecendo devido ao fluxo irregular e insuficiente das águas.
“Estamos numa guerra. Nós, povos tradicionais e indígenas. É uma luta pela água. E se é uma luta pela água, é uma luta pela vida”, diz Sara Rodrigues. “Hoje está muito difícil viver na Volta Grande. Pela falta de peixe, pela dificuldade de deslocamento. O rio tá acabando. Estão desviando 80% da água do rio. Para nós, que dependemos do rio, tá sendo muito difícil”, denunciou a pesquisadora.
Esse trecho do rio, na Volta Grande do Xingu, possui muitas ilhas. Historicamente, elas compõem os trechos de ocupação Juruna. Até hoje, são considerados lugares sagrados para esse povo.
Antes do barramento, no fluxo natural do rio, as ilhas começavam a ser alagadas a partir de novembro, quando a água do rio começa a subir e quando o ano inicia para os moradores da região. A partir dessa época, as árvores começam a frutificar e despejar alimento no rio, consumido pelos peixes.
Frutos como a golosa e o sarão, típicos dessa região, caem na água e peixes como pacu e as tracajás se alimentam deles.
As ilhas também são essenciais para a reprodução dos peixes, pois é onde acontecem as piracemas: as águas formam bolsões escondidos dentro das ilhas que oferecem a calmaria necessária para que os peixes depositem suas ovas e depois os alevinos (peixes filhotes) se desenvolvam o suficiente até conseguirem deixar as piracemas e seguir o fluxo das águas junto com a sua descida até chegar no curso principal do rio.
A usina alterou não só a quantidade do fluxo de água, mas o período de início da cheia e, consequentemente, a permanência da água. Isso está inviabilizando as piracemas e, portanto, a reprodução dos peixes. Além disso, há um ritmo de alterações abruptas e diárias das quantidades de água.
Atualmente, nesse pulso artificial e mortífero, a água começa a subir apenas entre os meses de fevereiro e março, quando não há mais reprodução de peixes. Além disso, a usina opera com alterações abruptas:registros do monitoramento mostram que, no dia 20/01/2022, a usina liberou 11.825 metros cúbicos por segundo. No dia 13/02/2022, menos de um mês depois, a usina liberou quase a metade da quantidade: 6812 m³/s.
"A água tá uma desordem. Uma hora ela tá seca, outra hora ela enche de metro, outra ela seca de metro. É um efeito sanfona que para nós tá difícil, imagine para quem vive na água. Os peixes ficam desorientados”, diz Sara Rodrigues.
Nas palavras de seu Raimundo, ribeirinho da Volta Grande, pesquisador do Mati e escritor, o peixe está "analfabeto de rio".
“A Norte Energia manda a água quando ela quer, e não é suficiente para a vida”, afirma Adauto Arara, cacique da Terra Indígena Arara da Volta Grande. “Antigamente, o peixe se alimentava do camu-camu (sarão), que tem muita Vitamina-C, e a gente se alimentava do peixe, e acabava absorvendo essa vitamina. Hoje isso não acontece mais”, explica.
“A gente não tá aqui por indenização, a gente tá aqui por água, porque a gente precisa de vida naquela região”, afirma Gilliard Juruna, cacique da aldeia Muratu da Terra Indígena Paquiçamba.
Escute episódio do Xingu no podcast Casa Floresta:
Cemitério de ovas
No dia 8 de fevereiro, Josiel Juruna e outros pesquisadores encontraram milhares de ovas de curimatã apodrecendo na piracema do Odilo. O episódio foi narrado por Josiel durante o seminário. Ele monitora essa piracema quase diariamente. Todos os dias, ele vai até a piracema e fotografa as réguas que medem o nível de água naquele ponto. Depois, esse dado é relacionado com o dado de vazão de água colocado pela Norte Energia no site do empreendimento.
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Josiel Juruna e Juma Xipaya participam de seminário técnico do MPF em Brasília|LeoBark/SECOM/MPF
No dia anterior, fortes chuvas caíram na Volta Grande. Por conta disso, a água do que seria a piracema estava subindo rápido. Com isso, Josiel notou que as curimatãs estavam entrando nesse local.
Uma expectativa apreensiva, preocupada, tomou conta do grupo, que retornou para a aldeia Muratu. No dia 8, a chuva havia cessado. E o pior se confirmou: a água do Xingu, em níveis muito abaixo das médias históricas, não tinha “segurado” a água na piracema, que havia refluído para o rio e esvaziado a área onde as ovas haviam sido depositadas pelos peixes.
No que antes era um berçário, o grupo encontrou o cemitério de ovas. “Foi uma catástrofe para a gente. Foi muito triste se deparar com esse momento”, disse Josiel. “Meu irmão Gilliard, que está presente aqui também estava lá, e ele como mais velho, falou que nunca tinha visto acontecer, nem meu pai nunca nem tinha visto isso acontecer”, disse.
Jansen Zuanon, ictiólogo do Inpa, também falou sobre esse episódio durante o seminário. “Os peixes precisam de sinais ambientais. Ninguém vai no ouvido do peixe dizer que ele precisa desovar. O que informa os peixes é a subida consistente do rio. Existe um sincronismo muito grande para isso”, explica.
“Então, os peixes interpretaram um sinal ‘mais ou menos’ e desovaram, mas as condições não se mantiveram e as ovas morreram. É um ato de desespero”, definiu o professor.
Hidrograma Piracema
A proposta de mitigação apresentada pelos pesquisadores aponta para quantidades de água e períodos em que elas devem ser liberadas para garantir a reprodução dos peixes. O “hidrograma das piracemas” também estabelece que as alterações do fluxo do rio devem ser graduais, tanto na enchente quanto na vazante, tentando aproximar o pulso artificial do pulso natural do rio.
Nos hidrogramas A e B, propostos pela Norte Energia, as variações são abruptas e sem qualquer conexão com os tempos da natureza.
Nessa proposta, advinda de pesquisa colaborativa, o fluxo de água começa a aumentar sutilmente a partir de outubro, tendo um aumento mais substancial em novembro e uma elevação gradual até abril, quando começa a baixar. Isso permite a inundação de várias piracemas no período de reprodução de algumas espécies.
O período da enchente, quando a água precisa subir, precisa ocorrer de forma gradual para garantir o desenvolvimento dos filhotes de peixes dentro dos igapós e lagos. O peixe recém-nascido precisa de cerca de três meses para se desenvolver em águas calmas, e precisa, da mesma forma, do fluxo da água baixando para conseguir aproveitar a correnteza gerada por essa mudança e se deslocar novamente da piracema para o leito do rio.
Além disso, o nível de alagamento de pelo menos parte do igapós deve ser atingido durante o período de frutificação de suas árvores. Dessa forma, os frutos caem nas águas alagadas e servem de alimento para as espécies aquáticas.
Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, afirmou no fim do seminário que a questão é prioritária e será analisada “com carinho”. E foi questionado pela pesquisadora ribeirinha Sara Rodrigues: “até vocês fazerem essas análises, a gente vai comer o quê? Porque peixe, não temos mais”.
Saiba mais sobre o impacto dos diferentes hidrogramas na Volta Grande do Xingu:
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Restauração faz crescer floresta onde antes era pasto e soja
Equipe do ISA planta mais de 350 hectares de florestas no Mato Grosso em 2022 e cria ilhas de verde em território desmatado pelo agronegócio
“Desmatar é fácil, o difícil é fazer a floresta crescer de novo”, diz Artemizia Moita. A bióloga se define como predestinada - devido ao nome vegetal, por assim dizer. No fim de novembro, ela conduziu a equipe do Instituto Socioambiental (ISA) e parceiros pelo mundo da restauração florestal na Fazenda Santa Cândida, da Agropecuária Fazenda Brasil, em Barra do Garças (MT). Moita já restaurou centenas de hectares de florestas em fazendas por todo o Mato Grosso dominadas pela soja e outras monoculturas, além da agropecuária.
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Equipe do ISA e parceiros fazem restauração florestal manual na Fazenda Santa Cândida, Barra do Garças (MT) |Manoela Meyer/ISA
Plantar florestas vai ser uma das tarefas essenciais para o Brasil cumprir suas metas de reduzir 50% das emissões até 2030 e zerá-las até 2050, segundo compromisso estabelecido na Conferência do Clima da ONU em 2021 (COP-26). Em seu discurso de posse, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, destacou a restauração florestal como uma alternativa econômica sustentável e potente. “O Brasil tem a meta de recuperar 12 milhões de hectares de áreas degradadas, com potencial de gerar 260 mil empregos”, disse ela.
Fazer uma floresta crescer onde antes havia pasto ou monocultura, porém, não é uma tarefa simples, ao contrário do que possa sugerir o senso comum. São várias técnicas possíveis e cada uma delas exige um aprimoramento minucioso. Moita trabalha com isso há 23 anos e, depois de testar muitas delas, se decidiu pela semeadura direta, ou a muvuca de sementes, técnica que o ISA ajudou a aprimorar, executar e para a qual fornece assistência técnica para plantios da região do Xingu e Araguaia, no Mato Grosso.
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"Desmatar é fácil, difícil é fazer a floresta crescer de novo", diz Artemízia Moita |Manoela Meyer/ISA
Estamos em um dos celeiros da Fazenda Santa Cândida e Moita sobe numa boleia presa na traseira de um trator. A carga: mais de dois mil quilos de sementes florestais e adubação verde de 87 espécies diferentes. Estão com ela três trabalhadores da fazenda designados para a missão. Orientados por ela, todos começam a abrir os sacos e despejar o conteúdo sobre o chão da carroceria. “Eu recomendo que todos tirem as botas e fiquem de meia, senão entra semente por todo o lado”, ela lembra.
As sementes aladas, como os ipês e carobas, só devem ser despejadas pouco antes do plantio para que não saiam voando pelo caminho. Depois de jogar todo o conteúdo dos sacos, Moita pega uma pá e começa a misturar as sementes, seguida por seus assistentes, que usam as mãos.
As várias espécies tem que estar todas bem misturadas. Cada uma delas tem uma função diferente, e um momento certo para despontar. Primeiro, são as sementes da adubação verde: o feijão de porco, a crotalaria, o feijão-guandu. Dessas sementes, vão crescer arbustos baixos, que fazem sombra na área. É a melhor maneira de matar a braquiária, uma espécie de capim, e outras gramíneas, bem como de nitrogenar o solo naturalmente, abrindo espaço para as espécies pioneiras - como mamoninha, carvoreiro e lobeira.
Depois de seis anos, as pioneiras vão dar lugar para as primeiras espécies nativas, ou espécies-clímax, como o jatobá, os ipês ou a copaíba, que formam a floresta consolidada.
Por isso, a quantidade de sementes de cada espécie envolve um cálculo apurado, que foi sendo aprimorado nos últimos anos. A quantidade de sementes totais, adubação verde e nativas, por exemplo, foi diminuindo ao longo dos anos, de 150 kg para 70 kg de sementes por hectare.
“O misturado tá bom quando aparece o feijão, o branquinho”, Moita orienta. Quando a mistura fica boa, todos se sentam sobre a grossa camada de sementes. O trator onde está presa a boleia começa a andar em direção à área do plantio.
Moita trabalha no setor de sustentabilidade do grupo Agropecuária Fazenda Brasil (AFB). Quando uma nova fazenda é comprada, ela e sua equipe identificam áreas que, por causa da legislação ou porque não são produtivas, podem ser restauradas e tornar-se floresta outra vez. “Comprou, resolve o problema ambiental que tem nela”, afirma. Um dos casos mais comuns é a recuperação de nascentes. Um solo degradado, sem floresta, pode acabar com uma nascente. Quando você planta uma floresta, aos poucos, essa nascente vai voltando a minar água e cumprir sua função ecológica.
O Instituto Socioambiental (ISA) fornece assessoria para mais 30 plantios no Mato Grosso, Pará e São Paulo, entre fazendas, assentamentos, terras indígenas e unidades de conservação. Ao todo, já foram 4 mil hectares convertidos em floresta. Desde 2006, quando esse trabalho começou, foram muitos aprendizados. Cada proprietário rural tem o seu tempo para compreender a restauração ecológica e seus benefícios, que vão além do cumprimento da legislação ambiental. Quanto mais engajados os atores da restauração, melhores são os resultados alcançados.
“O que é uma floresta madura? Difícil falarmos o tempo exato que podemos considerá-la madura, se é com com 10 anos, 100 anos, 1000 anos. É importante que ela se estabeleça e comece a cumprir a parte ecológica dela”, explica Guilherme Pompiano, da equipe de restauração florestal do ISA. Na própria Fazenda Santa Cândida, depois de um ano, já começou a aparecer onça, capivara, jacaré e tamanduá. É a floresta começar a voltar que os animais voltam junto.
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Trator carrega sementes florestais para restauração em Barra das Garças, MT |Manoela Meyer/ISA
O trator arrastando a carreta de sementes chega à área do plantio. São 32 hectares que antes serviam como área de pastagem. O solo foi preparado com várias gradagens, para inibir o crescimento do pasto por um mês. É o tempo da adubação verde despontar e impedir que as gramíneas voltem a invadir. O grupo se dividiu em dois: uma parte da expedição vai fazer o plantio a pé, a outra no trator.
Os que vão trabalhar a pé se posicionam em uma linha, com sacolinhas cheias de sementes. A cada passo, distribuem um punhado de sementes variadas, simulando uma plantadeira. O grupo de Moita segue para o outro lado na boleia. Dois de cada lado e um nos fundos, saem jogando punhados de sementes no solo enquanto o trator vai andando de um lado para o outro. A ideia é distribuir toda essa carga de sementes ao longo de 32 hectares, cuidando para nenhuma área ter muito mais sementes que a outra.
Ao fim do dia de trabalho, as sementes foram espalhadas. Agora, é deixar a natureza agir: o plantio é sempre feito em época de chuvas (outubro-dezembro), para garantir o estabelecimento da futura floresta. Moita acompanhará o crescimento e o desenvolvimento daquela área mas, na maior parte das vezes, a natureza faz seu trabalho sozinha. “Na minha carreira, eu já fiz muito plantio com muda. Mas hoje abandonei completamente a muda e só trabalho com a semeadura direta, com a muvuca. Para plantio em escala, é o melhor custo-benefício”, diz.
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Florestas de quatro (esq.) e doze (dir.) anos na Fazenda Santa Cândida, em Barra das Garças (MT) 📷Manoela Meyer/ISA
Depois do plantio, Moita nos mostra áreas em diferentes estágios de desenvolvimento. A partir de um ano, a adubação verde já está bem consolidada. Entre os arbustos, já é possível ver espécies pioneiras e até pequenas mudas de nativas que ficaram centenas de anos no local. Na área que tem cerca de quatro anos, as pioneiras já estão crescendo. Ainda tem capim, mas o crescimento das pioneiras logo fará sombra o suficiente para acabar com ele. Em casos mais graves, que o capim é muito resistente, Moita solta alguns bois na área - nessa fase, pode ser uma técnica para acabar com o capim.
A partir dos 6 anos, o solo já se consolida como o de uma floresta: sem capim, coberto de folhas e material orgânico. Entre as pioneiras, as nativas secundárias e clímax já estão crescendo, como o pé de buriti da foto abaixo. Moita nos conduz então para uma floresta consolidada: as pioneiras estão morrendo com o crescimento das nativas, e as espécies-clímax já estão em equilíbrio, resgatando paisagens naturais dessa região de transição entre o Cerrado e a Amazônia. O fluxo natural de dispersão de sementes e enriquecimento florestal já acontece, assim como serviços ambientais ligados à floresta, como evaporação/transpiração, enriquecimento do solo e habitat para espécies nativas.
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Pé de buriti na Fazenda Santa Cândida; espécies-clímax como ela já estão crescendo após seis anos da restauração |Manoela Meyer/ISA
De onde vem tanta semente?
Plantios como o de Moita e tantos outros que acontecem no Mato Grosso só são possíveis graças à Associação Rede de Sementes do Xingu. A Rede forneceu as mais de 2 toneladas de sementes utilizadas no plantio da Fazenda Santa Cândida e faz o mesmo para todos os outros plantios apoiados pelo ISA. Uma coisa não funciona sem a outra. Para ter floresta, é indispensável o trabalho dos mais de 600 coletores de sementes em todo o Mato Grosso que, ao longo dos 16 anos da rede, já coletaram 325 toneladas de sementes.
A coleta de sementes, além de ser a base para milhares de hectares de florestas, é uma alternativa de renda para dezenas de famílias urbanas e rurais. É o caso de Vera Alves da Silva Oliveira, 52 anos. Depois de muitos anos trabalhando como empregada doméstica, Vera mudou de profissão e, com os ganhos obtidos no trabalho com a coleta e venda das sementes, conseguiu ter uma casa própria, um carro e uma moto.
Sua filha, Milene Alves, 24, seguiu seus passos como coletora. E, com o interesse despertado pela Rede, decidiu estudar biologia na graduação e no mestrado. Assista aqui ao vídeo sobre a comemoração dos 15 anos da Rede de Sementes do Xingu:
“Cada um tem seu ritmo, seu jeito de colher semente”, afirma Bruna Dayanna, diretora da Rede. O coletor Vanderlei Augusto, por exemplo, sobe na árvore, coloca uma lona no chão e balança os galhos. Assim, dezenas de sementes de carvoeiro caem ali, proporcionando grandes quantidades dessa espécie. E enquanto alguns, como a Vera Oliveira, preferem beneficiar a semente retirando-as do envoltório com uma roçadeira manual, as Yarang, grupo de coletoras indígenas do povo Ikpeng, preferem beneficiar uma a uma com uma tesoura.
Outro ponto interessante é o sentido que cada um dá para a Rede. As Yarang, por exemplo, entendem que o trabalho de coleta de sementes é uma ponte para restaurar as florestas do entorno e, por isso, exigem que suas sementes sejam utilizadas apenas para restauração florestal, e não em outros fins, como artesanato ou pesquisa. As sementes coletadas pela ARSX já recuperaram 8 mil hectares em plantios com parceiros - 27 milhões de árvores.
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Equipe do ISA e parceiros fazem muvuca de sementes durante expedição na Fazenda Santa Cândida (MT) |Manoela Meyer/ISA
A sede da ARSX fica no centro de Nova Xavantina. Ali, além da parte administrativa e das salas onde trabalha a equipe fixa, tem também a Casa de Semente. Como essa, existem outras 10 Casas de Sementes espalhadas pelo Estado. Nelas, passam cerca de 30 toneladas de sementes por ano.
Hoje, a demanda de semente é previamente contratada, ou seja: os coletores só coletam espécies e quantidade de sementes que tem fim certo. Isso permite uma maior sustentabilidade da Rede.
Em trator, equipe espalha sementes na área a ser reflorestada 📷Manoela Meyer/ISA
Equipe do ISA e parceiros participam de expedição na Fazenda Santa Cândida 📷Manoela Meyer/ISA
Floresta de reflorestamento margeia vicinal em Fazenda Santa Cândida 📷Manoela Meyer/ISA
Muvuca de sementes para restauração na Fazenda Santa Cândida 📷Manoela Meyer/ISA
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Rede de Sementes do Xingu celebra 15 anos com encontrão e forró no Mato Grosso
Comemoração reuniu representantes de 16 grupos coletores, além de colaboradores, parceiros e apoiadores, no Território Indígena do Xingu
Uma grande reunião de pessoas com as mais diferentes culturas, classes sociais, tons de pele, idiomas, religiões e gêneros, unidas em um momento de profundas trocas sobre algo que todas compartilham: a vontade de restaurar a sociobiodiversidade do planeta.
Essa reunião de emoções voltadas a um sentido comunal é o que marca o tom dos Encontrões que a Rede de Sementes do Xingu realiza desde que foi fundada, em 2007. Não foi diferente neste 17º Encontrão, que ocorreu entre os dias 8 e 10 de setembro no Polo Pavuru e na aldeia Moygu, Território Indígena do Xingu (TIX), Mato Grosso. Assista:
Dessa vez, o Encontrão celebrou os 15 anos de história da Rede, que vem crescendo com autonomia, tanto nos planos individuais e coletivos dos Grupos Coletores e das equipes, quanto nos processos que estruturam a Rede. Sua maneira de funcionar serve de inspiração para que comunidades ao redor do Brasil também organizem suas próprias redes de sementes voltadas para o reflorestamento, a produção de sistemas agroflorestais e o fortalecimento de espécies vegetais nativas e crioulas.
Durante dois dias, cerca de 210 pessoas celebraram as realizações dessa que é a maior rede de coleta de sementes do Brasil. O Encontrão começou com a apresentação de todos os convidados – um grupo formado por 46 pessoas, entre parceiros e apoiadores, que viajaram longas distâncias para chegar ali – e depoimentos de coletores e pessoas diretamente envolvidas no trabalho de transformação da Rede ao longo de sua história.
O trabalho de semear florestas resiste em meio a grandes desafios
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Coletor Ermínio Oliveira, de Nova Xavantina, explica o beneficiamento de sementes durante o 17º Encontro da Rede de Sementes do Xingu |Erik Vesch/Cama Leão/ISA
A sessão de depoimentos foi aberta com as anfitriãs Magaró e Makawa Ikpeng, que contaram a história do grupo coletor que lideram – o Movimento das Mulheres Yarang, composto por cerca de 90 mulheres que moram, em sua maioria, nas aldeias Moygu e Arayo, vizinhas ao Polo Pavuru (TIX). Juntas, elas já coletaram ao longo de 13 anos pouco mais de cinco toneladas de sementes nativas para o reflorestamento do Cerrado e da Amazônia brasileiros.
“Hoje estamos seguindo firme nesse trabalho, que começou aqui e está se espalhando por todas as partes de Mato Grosso. É bom ver que todo mundo está preocupado com a preservação da natureza, especialmente da água que é a fonte da vida”, disse Makawa.
Água foi uma das preocupações de quem esteve presente no Encontrão. Durante o evento, uma fumaça densa, resultado de queimadas na região, tomou conta da atmosfera, tornando o clima seco e reduzindo ainda mais o nível de água do rio Xingu, principal via de abastecimento da vida no território indígena e no seu entorno. “Quando você queima os matos, você queima as espécies. Vamos segurar as nossas florestas porque não podemos queimar as nossas sementes. A gente não pode abandonar nosso trabalho aqui no Xingu”, disse Akari Waurá, que além de cacique do povo Wauja e coletor da Rede de Sementes do Xingu, também integra uma equipe de brigadistas no Território Indígena.
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Parceiros chegam de barco pelo Rio Xingu. Durante o Encontro, uma das maiores preocupações foi a água, cada vez mais escassa na região |Erik Vesch/Cama Leão/ISA
A resistência dessas comunidades tradicionais vem de longa data. Aos 73 anos, o coletor Placides Pereira Lima, que vive no assentamento da agricultura familiar Manah, no nordeste de Mato Grosso, mandou um recado consciente de que as transformações climáticas são resultado de ações baseadas na ideia de lucro ilimitado: “O importante é plantar. Nós estamos plantando vida, plantando saúde. Nessa corrida do trabalho da Rede, nosso trabalho é de boa vontade e nós estamos em guerra. Enquanto estamos coletando, plantando, outros vêm atrás arrancando. No nosso assentamento, a minha propriedade está cercada de soja. Isso precisa ter um limite. Não significa parar toda a soja, mas a soja tem de respeitar os assentamentos, ela está expulsando os pequenos. Quando eu alugo meu pedacinho de chão, serão cinco anos que eu não vou colher nem uma batata. Às vezes, a pessoa está iludida e fica só esperando receber o dinheiro. Porém, com esse dinheiro, ela está comprando a fome. Porque os pequenos produtores de alimento estão sendo expulsos de suas propriedades para ir para as favelas da cidade”.
Um Encontro repleto de abraços, sorrisos, esperança, cantorias e danças
Mesmo com tantos desafios e ameaças ao trabalho de reflorestar e garantir a vida com diversidade e abundância de água e alimento, o Encontrão também foi um momento de festejar toda a trajetória da Rede de Sementes do Xingu, que começou como uma iniciativa implementada pelo Instituto Socioambiental em 2007, e hoje é uma associação sem fins lucrativos com presença de coletores de sementes nas bacias dos rios Xingu, Araguaia e Teles Pires – uma área de atuação maior do que a do estado do Rio Grande do Sul.
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Jovens fazem apresentação cultural durante o 17º Encontrão da Rede de Sementes do Xingu |Erik Vesch/Cama Leão/ISA
“A gente ficou muito tempo sem poder se encontrar por causa da pandemia, e esse momento foi de celebrar, de encontrar pessoas que fazem essa Rede acontecer. Foi muito especial comemorar os 15 anos da Rede de Sementes do Xingu dentro do território que leva o seu nome, porque foi ali que tudo começou. Os povos do Xingu fizeram o primeiro chamado, ao observar a mudança no território indígena com o avanço do agronegócio. Eles pediram ajuda para restaurar e a Rede nasceu a partir disso”, relembra Bruna Ferreira, diretora-executiva da Rede.
Para celebrar esses 15 anos de restauração da vida, os povos indígenas Ikpeng, Wauja e Xavante apresentaram cantos e danças de festa tradicionais de cada cultura. Também teve uma saída para coletar sementes com as coletoras do Movimento das Mulheres Yarang, seguida pelas estações – exposições sobre os diferentes trabalhos realizados pela Rede e seus parceiros.
Nas estações, os coletores e convidados puderam conhecer as inovações mais recentes no beneficiamento de algumas sementes, desenvolvidas pelos próprios coletores, os trabalhos do grupo de jovens, o modo de funcionamento das Casas de Sementes, as publicações que orientam os coletores a realizar o trabalho (como o Livro do Coletor), detalhes sobre o Fundo Rotativo Solidário, e também puderam assistir ao filme em realidade virtual “Fazedores de Floresta”, sobre a Rede de Sementes do Xingu, lançado em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) – o maior parceiro da Rede de Sementes do Xingu – em 2021.
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Dança tradicional do povo Ikpeng celebra os 15 anos da Rede de Sementes do Xingu na aldeia Moygu |Erik Vesch/Cama Leão/ISA
Na noite de 10 de setembro, o Encontrão de 15 anos foi encerrado com três bolos, parabéns, um concurso de forró e uma noite de muito lambadão, que só terminou com o desligamento do gerador. A dupla vencedora dessa edição especial de 15 anos do tradicional concurso de forró foi Rymoata e Siry Kayabi, que são casados e moram na aldeia Samaúma, no Território Indígena do Xingu.
Estiveram presentes na festa – e também na Assembleia Geral da Associação, realizada no dia 8 de setembro – participantes dos grupos coletores indígenas Movimento das Mulheres Yarang, Matipu, Yudjá, Kaiabi, Warawara e Kuyuwi (do povo indígena Wauja), Ripá, Paraíso e Pi'õ Romnhama Ubumrõi'wa (do povo indígena Xavante), além dos Grupos coletores de assentamentos da agricultura familiar Bordolândia, Macife, Fartura, Manah e Ceiba, e também os grupos das cidades de Nova Xavantina e Santa Cruz do Xingu.
“Até acontecer o Encontrão eu não sabia o quanto é importante participar da Rede de Sementes do Xingu. Estou me sentindo muito orgulhosa de fazer parte disso tudo. Agora não fico mais em casa não, toda vez que surgir uma oportunidade de encontro eu estou indo! Foi muito bom, estou sem palavras para expressar o tanto que foi maravilhoso", diz Lourença Costa, coletora no assentamento Manah.
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Concurso de forró embalou os presentes no encerramento do 17º Encontrão |Erik Vesch/Cama Leão/ISA
Assembleia Geral aprova a alteração de endereço da sede da Rede
A principal definição da Assembleia foi sobre a mudança de endereço da sede da Rede de Sementes do Xingu para a cidade de Nova Xavantina (MT). Desde a retomada de atividades presenciais seguras após a pandemia, as operações do escritório da Rede estão concentradas na cidade. Antes disso, o escritório ficava em Canarana (MT), nas dependências do Instituto Socioambiental (ISA).
Entre as razões para a mudança, expostas durante a Assembleia, estão a logística facilitada, a presença de um grupo de coletores consolidado, e a parceria com a Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat), em que a Rede ajuda a manter o laboratório de análise de sementes.
Além dos coletores, também estiveram presentes no Encontrão as equipes de trabalho da Rede de Sementes de Xingu e representantes das instituições parceiras ISA, Operação Amazônia Nativa (Opan), Instituto Bacuri, Gusmão & Labrunie, Senselab, WWF Brasil, Black Jaguar, Instituto Sociedade, População e Natureza (Ispn), Rede de Sementes do Cerrado, Associação Cerrado de Pé, Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (Sobre), Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Redes de Sementes do Vale do Ribeira e do Vale do Paraíba, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra do Mato Grosso (MST-MT), Escola Família Agrícola Jaguaribana Zé Maria do Tomé, Polo Socioambiental Sesc Pantanal e Instituto Talanoa.
Uma associação não-governamental sem fins lucrativos, estruturada por povos indígenas, agricultores familiares e comunidades urbanas localizadas em territórios da Amazônia e do Cerrado no estado de Mato Grosso, Centro-Oeste do Brasil. São mais de 600 coletores de sementes unidos por dois objetivos em comum: a restauração florestal por meio da coleta e comercialização de sementes de diferentes espécies, e a valorização da autonomia dos povos e culturas tradicionais que fazem parte da Rede de Sementes do Xingu — a maior e mais inspiradora rede de coleta de sementes nativas do Brasil.
Saiba mais assistindo ao filme "Fazedores de Floresta", produzido em parceria com o Instituto Socioambiental:
Coletoras Yarang selecionam sementes de amescla 📷 Ludmilla Balduino/ARSX
Em Assembleia Geral, foi decidida a mudança da Rede para Nova Xavantina (MT) 📷 Ludmilla Balduíno/ARSX
Claudia Araújo (esq.), Wanku Ikpeng e Bruna Ferreira cantam parabéns à Rede de Sementes do Xingu 📷 Ludmilla Balduíno/ARSX
Criança assiste ao filme em realidade virtual "Fazedores de Floresta" durante o Encontrão 📷 Erik Vesch/Cama Leão/ISA
Muvuca de sementes durante o 17º Encontrão da Rede de Sementes do Xingu 📷 Erik Vesch/Cama Leão/ISA
Coletores e parceiros celebram os 15 anos da Rede de Sementes do Xingu 📷 Erik Vesch/Cama Leão/ISA
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Banco Central precisa enfrentar comércio ilegal de ouro no Brasil
Não existe no país um mecanismo de rastreabilidade. É necessário um aprimoramento da fiscalização e da regulação das operações
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Garimpo no rio Mucajaí, Terra Indígena Yanomami: impacto ambiental, social e econômico |Bruno Kelly/Hutukara Associação Yanomami
No dia 19 de setembro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Aerogold com o objetivo de desarticular uma organização criminosa envolvida na extração e na comercialização de ouro ilegal extraído em rios dos estados de Rondônia e do Amazonas.
A operação teve como um dos principais alvos a instituição financeira que mais comprou ouro de garimpo nos últimos cinco anos. Embora esteja cada vez mais evidente a participação das instituições financeiras na lavagem do ouro, o Banco Central pouco tem feito para aperfeiçoar a fiscalização e para prevenir e combater os crimes do setor.
A legislação atribui ao ouro de garimpo natureza jurídica de ativo financeiro ou instrumento cambial e confere exclusividade da primeira aquisição a instituições financeiras autorizadas pelo BC, as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs).
Ou seja, após ser explorado em garimpos autorizados, o ouro só pode ser comprado por Postos de Compra de Ouro (PCO), que são os braços das DTVMs nos municípios com produção aurífera.
O vendedor deverá apresentar seus documentos pessoais e o número do processo minerário de origem, que corresponde à área autorizada de onde o ouro teria sido extraído. Como não existe no país qualquer mecanismo de rastreabilidade, o vendedor pode indicar um processo que não corresponde à verdadeira origem do minério.
É a modalidade mais comum de lavagem de ouro: o ouro é explorado ilegalmente em áreas protegidas (como terras indígenas e unidades de conservação) ou não autorizadas e, no momento da venda, é vinculado fraudulentamente a lavras garimpeiras regularizadas.
Em razão da facilidade de fraude, o mercado do ouro tem sido utilizado para lavar dinheiro oriundo de diferentes atividades ilegais e até mesmo do tráfico de drogas, como vem revelando diversas operações da PF.
O risco de fraude é agravado por uma benesse legal que confere ao vendedor a responsabilidade pelas informações prestadas e que estabelece uma presunção de legalidade do ouro e da boa fé do comprador, isto é, das DTVMs.
Em um mercado dominado pela ilegalidade, a regra – conquista do lobby da Associação Nacional do Ouro – funciona na prática como um escudo jurídico, pois dificulta a responsabilização criminal dos donos das DTVMs e permite que elas comprem grandes volumes de ouro em regiões tomadas pela exploração ilegal, sem fazer qualquer averiguação.
Conforme estudo da UFMG, ao menos 54% da produção de ouro em lavras garimpeiras autorizadas no país foi realizada de modo irregular (ouro ilegal e potencialmente ilegal) – o equivalente a 27 toneladas. O estudo aponta que 96% das áreas convertidas em garimpo estão fora de processos minerários que registraram oficialmente produção de ouro.
São as DTVMs que compram ouro ilegal e o introduzem no mercado com um verniz de legalidade, para ser exportado para bancos, joalherias e até mesmo para grandes bigtechs, como Apple, Google, Microsoft e Amazon, como revelou matéria recente da Repórter Brasil.
A prevenção e o combate ao comércio ilegal de ouro demandam um aprimoramento da fiscalização e da regulação das operações das DTVMs, o que é de responsabilidade do BC.
É urgente a intensificação da fiscalização, para apurar infrações das DTVMs, como o descuido de controles internos, negligência a boas práticas de auditoria, prestação de informações falsas. Atualmente, existem oito DTVMs no país, que juntas somam 89 postos de compra. Trata-se de um mercado monopolizado, o que facilitaria a fiscalização.
Também se faz necessário maior rigor na aplicação de penalidades às DTVMs que comprarem ouro ilegal, sobretudo as reincidentes. Entre 2018 e 2021, as DTVMs mais do que quintuplicaram o valor de suas operações de compra de ouro de garimpo, saltando de R$ 1,4 bilhão para R$ 7,4 bilhões.
Ao menos seis das oito instituições financeiras foram ou estão sendo investigadas pela PF. Essas empresas seguem operando normalmente.
Outra medida importante seria reforçar a responsabilidade das DTVMs pelo ouro ilegal comprado nos seus postos de compra. É bastante comum que essas instituições aleguem na justiça não serem responsáveis pela compra e lavagem do ouro ilegal praticadas por seus mandatários.
O BC precisa robustecer as obrigações de prevenção e de combate à lavagem de bens e capitais pelas DTVMs, previstas na Lei de Lavagem de Dinheiro. São aplicáveis a todas as instituições financeiras, em conformidade com as diretrizes internacionais sobre o tema, no sentido de conhecer seus clientes e de reportar operações consideradas suspeitas, para evitar que seus serviços sejam utilizados em práticas de lavagem.
As instituições financeiras devem avaliar o risco financeiro, jurídico e socioambiental de suas atividades. As operações serão consideradas suspeitas de acordo com suas características, como o porte, a forma e as partes envolvidas.
Freio de arrumação
A exigência dessas obrigações poderá contribuir com o enfrentamento ao comércio de ouro ilegal. Por exemplo, o atual regramento dispõe que as instituições deverão considerar na avaliação de risco sua “área geográfica de atuação”, o que é particularmente importante para o tema em questão.
Segundo a UFMG, o Pará produziu 30,4 toneladas de ouro de garimpo, dos quais ao menos 22,5 toneladas (74%) foram extraídas de maneira irregular.
As cidades de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso responderam por 85,7% do comércio de ouro irregular em 2019 e 2020. Na avaliação das operações nessas localidades, as DTVMs precisam adotar procedimentos proporcionais ao nível de risco.
A expansão do garimpo predatório é um problema grave e complexo, cujo enfrentamento demanda um esforço coordenado de diversas instituições, ainda mais neste momento de crise social e econômica e de valorização do ouro no mercado internacional.
No entanto, não há dúvidas de que o combate ao comércio ilegal demanda um “freio de arrumação” nas DTVMs, ao que o BC não se comprometeu efetivamente até o momento. Enquanto essas instituições batem recordes de lucros, o garimpo segue provocando mortes de indígenas, a destruição de rios e florestas e a contaminação da população amazônida.
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Sem água e sem peixes, indígenas e ribeirinhos lutam por reparação justa na Volta Grande do Xingu
Pescadores protestam contra proposta da Norte Energia, que opera há um ano com sua licença vencida; ao Ibama, também apresentaram proposta que garante mais água para região
Indígenas, ribeirinhos e pescadores da Volta Grande do Xingu (PA) manifestaram insatisfação com a proposta de reparação da Norte Energia, empresa responsável pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A empresa sugeriu pagar R$20 mil a famílias que, desde a construção da usina, viram os peixes, base de sua subsistência, sumirem do rio Xingu.
Os pescadores e comunidades locais discordam das condições levantadas pela Norte Energia para determinar a reparação, entre elas, o universo de pessoas que receberiam o dinheiro, de 1.976. A quantidade é insuficiente para atender todos os atingidos e desconsidera que a pesca é uma atividade tradicional de indígenas e ribeirinhos da região.
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Pescadores e povos tradicionais da Volta Grande lutam por reparação justa aos impactos da UHE Belo Monte |Cristiane Carneiro
Também são contrários à forma como a empresa toma suas decisões, sem diálogo amplo com os representantes dos pescadores e comunidades indígenas e ribeirinhas. “Estamos aqui de pé para que nossas vozes sejam ouvidas. Não vamos aceitar reuniões de portas fechadas em comitês que não nos representam”, afirmam em carta do Conselho Deliberativo de Povos Tradicionais do Baixo e Médio Xingu.
No início da semana, pescadores reunidos em Altamira (PA) protestam contra a forma como a Norte Energia escolheu apresentar a proposta de reparação, em um espaço restrito para a participação de todos os interessados e diante de um Comitê de Pesca que não representa as famílias atingidas.
“Esse tipo de reparação tem que ser para todos nós que somos pescadores. Desde quando a NE [Norte Energia] chegou, ela barrou e destruiu nosso Xingu. Muita gente não tem o que comer”, afirma Raimundo Juruna, em uma segunda carta do Conselho de Povos Tradicionais.
Em manifestação encaminhada à Fundação Nacional do Índio (Funai) na terça-feira (22), o povo Juruna pediu para ser incluído na proposta de reparação, salientando que as famílias indígenas “perderam sua dignidade, sua fonte de alimentação e sua fonte de renda” desde que o empreendimento se instalou no rio Xingu.
A reparação é a condição imposta pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a renovação da Licença de Operação da UHE Belo Monte, que completa um ano vencida nesta sexta-feira (25). O pagamento é referente a um período de dois anos e dois meses em que a Norte Energia falhou em cumprir com as medidas de mitigação dos danos de implantação da usina, e não contempla todo o sofrimento causado às famílias da Volta Grande do Xingu.
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Indígenas “perderam sua dignidade, sua fonte de alimentação e sua fonte de renda” após a UHE Belo Monte se instalar |Todd Southgate
A proposta da Norte Energia sugere o pagamento da verba de reparação em duas parcelas, a primeira mediante assinatura de um termo de quitação e a segunda em 30 dias. Inclui ainda uma verba de R$10 mil para o desenvolvimento de projetos de geração de renda, também em duas parcelas anuais e com prestação de assistência técnica por três anos.
Em reunião, indígenas, ribeirinhos e pescadores determinaram critérios mínimos para aceitar a proposta da Norte Energia. Eles e elas indicam que não irão assinar documentos de quitação dos impactos de Belo Monte nem aceitar a divisão em duas parcelas e pedem que o universo de pessoas a receberem o dinheiro não seja condicionado a um cadastro junto à Norte Energia, mas a bancos de dados que incluam de maneira mais ampla os pescadores e povos tradicionais da Volta Grande do Xingu.
Afirmam ainda que sua única entidade representativa é o Conselho Deliberativo de Povos Tradicionais e dizem que antes de aceitar a proposta, precisam refletir sobre seus projetos produtivos, de modo que faça sentido para as famílias pescadoras e para a recuperação do rio.
“A Norte Energia, desde que apareceu, fez nossas vidas se tornarem dor, sofrimento e conflito. Estamos numa guerra por água, defendendo nossos direitos, as nossas vidas e os direitos e as vidas dos peixes, as piracemas”, afirma o Conselho de Povos Tradicionais.
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Ao desviar água para gerar energia, Belo Monte causou uma série de impactos sociais e ambientais nas populações da Volta Grande do Xingu |Marcelo Soubhia/ISA
Para gerar energia, Belo Monte desvia parte da água do Xingu para suas turbinas, barrando o rio. Desde que começou a funcionar, em 2016, essa redução da vazão tem tido efeitos catastróficos no meio ambiente aquático da Volta Grande porque impede o alagamento das piracemas, regiões de reprodução dos peixes e tracajás. Várias espécies estão desaparecendo, com impacto desastroso para os ribeirinhos e os povos indígenas Arara e Juruna que vivem na Volta Grande e que dependem da pesca para alimentação e geração de renda.
Indígenas e ribeirinhos também lutam na Justiça por mais água. No dia 10/11, eles protocolaram um parecer com uma proposta de vazão de água que garante a manutenção da vida na região. Entenda aqui.
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Belo Monte: Depois de peixes sumirem, indígenas e ribeirinhos elaboram proposta para garantir a vida no Xingu
Após anos de monitoramento, pesquisadores independentes estabelecem vazão necessária para reprodução de peixes e aguardam posicionamento do Ibama em mais um capítulo de guerra judicial
Indígenas e ribeirinhos apresentaram ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) uma proposta para que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte libere água suficiente para a manutenção da vida na região. O órgão ainda não se manifestou, mas deve fazê-lo a qualquer momento.
Chamada de Hidrograma Piracema, a proposta apresentada é a primeira que considera critérios ecológicos para definir as quantidades de água liberadas de acordo com cada período do ano e respeita as áreas de reprodução dos peixes e tracajás, as piracemas.
“Quem sabe quando a água precisa chegar? Quem sabe quanta água precisa chegar? Juruna sabem, tracajás sabem, pacus sabem, curimatás sabem, ribeirinhos sabem”, afirma a pesquisadora local Sara Rodrigues Lima, em parecer do Monitoramento Ambiental Territorial Independente da Volta Grande do Xingu (MATI-VGX). “Essas existências sabem e já está na hora de serem ouvidas”. Acesse aqui.
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"Donos" do Rio Xingu, indígenas e ribeirinhos da Volta Grande lutam por mais água para garantir a vida na região |Zé Gabriel/Greenpeace
A quantidade de água que Belo Monte libera para o trecho do rio abaixo do barramento, a Volta Grande do Xingu, é motivo de polêmica e disputa judicial.
A Norte Energia, concessionária que opera Belo Monte, havia apresentado duas propostas para a vazão de água, os chamados “hidrograma A” e “hidrograma B”, que liberavam pouquíssima água para a região, em um cálculo cujos critérios nunca foram esclarecidos.
Segundo o Ministério Público Federal e o Ibama, nenhuma das duas opções garantia condições mínimas para a manutenção da vida na Volta Grande do Xingu, o que fez com que a Justiça Federal de Altamira, atendendo ao MPF, obrigasse a Norte Energia a liberar água num “hidrograma provisório”, mais parecido com as vazões naturais do rio antes do barramento.
Enquanto isso, a Norte Energia deveria apresentar uma proposta que respeitasse patamares mínimos de existência de vida no rio Xingu - o que nunca foi feito por parte da empresa, que tampouco demonstrou qual a lógica ambiental dos hidrogramas “A” e “B”. No ano passado, atendendo a um pedido da Norte Energia, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1) suspendeu a decisão que implantava o hidrograma provisório do Ibama.
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Dinâmicas de enchente e vazante na Volta Grande do Xingu quando aplicados o Hidrograma Piracema e os hidrogramas "A", "B" e provisório |MPF
Oito anos de estudo
O hidrograma sugerido pelas comunidades locais é fundamentado no monitoramento minucioso das piracemas e dos impactos causados pela alteração no fluxo da água. Esse monitoramento independente é feito desde 2014 por pesquisadores indígenas e não indígenas, e foi uma saída para se contrapor ao monitoramento pouco preciso que a Norte Energia faz da região.
O Hidrograma Piracema estabelece não só números para a vazão de água, mas o período do ano que cada vazão é necessária. Outro ponto importante é que ele estabelece que as alterações do fluxo do rio devem ser graduais, tanto na cheia quanto na vazante, tentando aproximar o pulso artificial do pulso natural do rio. Nos hidrogramas A e B propostos pela Norte Energia, as variações são abruptas e sem qualquer conexão com os tempos da natureza.
Apesar de considerar critérios ecológicos, o Hidrograma Piracema é uma proposta de consenso. Os povos da região tiveram que abrir mão de algumas espécies de peixes, tracajás e de vegetação nativa, já que a quantidade de água liberada ainda será bem menor do que o fluxo natural do rio.
Historicamente, a vazão do rio começa a reduzir em maio, quando inicia a seca, e chega a um mínimo em setembro. A partir de outubro, quando volta a chover, o rio começa a subir de novo. Tanto o processo de cheia quanto de seca são graduais: a água vai reduzindo ou aumentando mês a mês. Com a instalação da hidrelétrica, esse ritmo natural e sutil foi substituído por um fluxo mecânico.
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Média das vazões históricas e níveis de água propostos pelo Hidrograma Piracema e pelos Hidrogramas "A", "B" e provisório |MPF
Da noite para o dia, grandes quantidades de água eram barradas ou liberadas, de acordo com as necessidades da hidrelétrica. Muitos peixes e tracajás morreram. Os Juruna também relatam que encontravam muitos peixes com ovas secas em sua barriga. Isso porque essa inundação e redução instantâneas criavam uma situação de estresse para os peixes e eles simplesmente não conseguiam desovar. As fêmeas morriam com as ovas secas, num cenário de catástrofe ambiental.
“É como uma mulher que tem dentro dela um bebê morto. Conseguem perceber a importância das piracemas?”, questiona Josiel Juruna, coordenador do Monitoramento Independente. Em junho de 2022, pesquisadores locais encontraram curimatás que perderam a época da desova, realizada normalmente entre os meses de janeiro e fevereiro, porque o volume de água liberado não garantia segurança para as fêmeas e suas ovas.
No mês de dezembro, quando a enchente é chave para que as fêmeas se sintam confortáveis para entrar na piracema e iniciar a desova, os volumes liberados pela Norte Energia (uma média de 967 m3/s) foram três vezes menores ao proposto pelo Hidrograma Piracema e quatro vezes menores que a média histórica do rio Xingu, antes da construção e operação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Níveis tão baixos impossibilitam a manutenção da vida na região.
No Hidrograma Piracema, o fluxo de água começa a aumentar sutilmente a partir de outubro, tendo um aumento mais substancial em novembro e uma elevação gradual até abril, quando começa a baixar. Isso permite a inundação de várias piracemas no período de reprodução de algumas espécies. Outras serão sacrificadas, e suas áreas de reprodução não serão alagadas, causando sua extinção. Neste mapa, é possível aumentar e reduzir a vazão e entender qual o alagamento que isso gera.
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Curimatá com ovas secas na barriga, devido à vazão insuficiente para que a fêmea se sinta confortável para entrar na piracema e desovar |Cristiane Carneiro
A vazão de vazante (quando a água começa a baixar) precisa ocorrer de forma gradual para garantir o desenvolvimento dos filhotes de peixes dentro dos igapós e lagos. O peixe recém-nascido precisa de cerca de três meses para se desenvolver em águas calmas, e precisa, da mesma forma, do fluxo da água baixando para conseguir aproveitar a correnteza gerada por essa mudança e se deslocar novamente da piracema para o leito do rio.
Além disso, o nível de alagamento de pelo menos parte do igapós deve ser atingido durante o período de frutificação de suas árvores. Dessa forma, os frutos caem nas águas alagadas e servem de alimento para as espécies aquáticas. Nos últimos anos, esses frutos estão caindo no seco e os peixes e tracajás estão morrendo sem alimento.
“A Norte Energia continua a defender os hidrogramas A e B, ignorando um parecer do Ibama que mostra que esses fluxos são impraticáveis. Do outro lado, tem uma alternativa fundamentada em critérios ecológicos transparentes. O órgão vai ter que escolher por algum deles, ou por um terceiro, mas independente da decisão, vai ter que motivar tecnicamente sua decisão”, afirma Biviany Rojas, pesquisadora do Instituto Socioambiental (ISA).
“Se não mudarmos o rumo das coisas, a Volta Grande vai ser um grande cemitério de gente e de peixe”, conclui a pesquisadora Sara Rodrigues Lima.
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Após expulsão forçada pela ditadura, povo Panará comemora 25 anos de retorno ao seu território
Indígenas celebraram volta por cima do contato trágico com festa e retomada de tradições na aldeia Nãsepotiti, na Terra Indígena Panará (PA)
Dois grupos de homens descem o estradão de terra numa corrida embalada. Sob o intenso sol do meio dia, cada um dos grupos carrega um tronco de palmeira buriti, de no mínimo 100 kg e três metros de altura.
Um homem sustenta o tronco por alguns metros, logo outro chega para substituí-lo. Eles se revezam em uma velocidade impressionante em busca do objetivo principal: ultrapassar o grupo adversário. É a corrida de tora, uma tradição do povo Panará.
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Corrida de tora durante a festa de comemoração dos 25 anos do retorno dos Panará a uma parte de suas terras tradicionais no Rio Iriri |Kamikiá Kisêdjê/ISA
Conforme a estrada se aproxima da aldeia, a velocidade aumenta, até que um dos grupos se desgarra e dispara, chegando na frente e encerrando a corrida na Casa dos Homens, uma construção de madeira e palha no centro da aldeia. Depois, com as toras no chão, todos se reúnem para dançar e cantar. As mulheres, com pinturas, adornos de pena nos braços, chocalhos de sementes de pequi amarrados nas pernas e saia de miçangas, seguem em fila e se reúnem aos homens na dança circular.
A comemoração dos 25 anos do retorno dos Panará ao seu território tradicional foi promovida pela Associação Iakiô Panará, que os representa. Aconteceu nos dias 15, 16 e 17 de outubro, com dança e cantos tradicionais, corrida de tora, disputa de arco e flecha, moitará (troca de objetos entre os participantes do evento), encontro das mulheres e falas importantes dos Panará e de seus convidados.
Durante o período da ditadura militar, impactados pela construção da BR-163, os Panará foram transferidos contra sua vontade para o Parque Indígena do Xingu – onde viveram um exílio dentro do próprio país.
Há 25 anos, eles retornaram ao seu território de origem, encerrando um ciclo de perdas e muita dor. Os Panará são guerreiros e têm muitas conquistas a comemorar. Confira o vídeo feito por Arewana Yudja e Kujãesage Kaiabi, da Rede de Comunicadores Xingu+:
“Eu fui corajoso. Eu fui forte. Eu fui guerreiro para poder tomar esse pedaço de terra. Se não fosse eu, a gente não tava aqui. Por isso que eu lutei. Eu não tinha medo dos brancos. Eu tinha coragem. Estou feliz ouvindo e celebrando a nossa história”, afirma Akâ Panará na mesa de abertura da festa.
Akâ é ancião do seu povo e vivenciou o contato com os não-indígenas na década de 1970. É um dos poucos dessa época que ainda estão vivos. Durante a mesa de abertura, além de Akâ, falaram também o parceiro de décadas Steve Schwartzman, antropólogo que atuou junto aos Panará e atual coordenador da organização EDF, André Villas-Bôas, sócio-fundador do ISA, Sofia Mendonça, coordenadora do projeto Xingu da Unifesp, Douglas Rodrigues, médico da Unifesp que atua com os Panará desde o tempo que moravam no Xingu, Kanse Panará, Pasyma Panará e outros parceiros, como a enfermeira Marisa, que atuou anos no território.
Durante as comemorações, os Panará também se manifestaram contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Assista:
O contato
“Vamos começar pelo começo”, diz Akâ, sentado em um banco de madeira em frente à sua casa. “Onde tá Matupá [cidade do Mato Grosso] hoje, foi lá que eu nasci, na aldeia grande Inkasã”, continua. Akâ viveu sua infância em um tempo anterior ao contato com os brancos. Os Panará viviam espalhados em dezenas de aldeias em uma região que se estende por todo o norte do Mato Grosso e Sul do Pará, e hoje abrange cidades como Colíder, Matupá, Peixoto de Azevedo, Guarantã do Norte e o sul de Altamira. São falantes da língua Panará, do tronco linguístico jê.
“Antes de o branco chegar, eu era feliz, eu caçava, eu brincava sem ter que pensar nos inimigos. Eu tinha liberdade, era só alegria”, conta. Os Panará faziam corrida de tora, festejavam, caçavam e pescavam muito.
Nessa época, porém, povos indígenas ao sul do Mato Grosso já haviam sido contatados pelos irmãos Villas-Bôas (Cláudio, Leonardo e Orlando).
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Akè e Sinku Panará na festa na aldeia Nãsepotiti |Kamikiá Kisêdjê/ISA
Em 1961, o Parque Indígena do Xingu (hoje Território Indígena do Xingu) havia sido demarcado para abrigar e proteger todos esses povos, alguns deles trazidos de outras regiões, como os Ikpeng e os Kawaiwete. Essa história é relatada no filme Xingu, disponível na plataforma de streaming Netflix.
Os Panará não haviam sido alcançados pelo movimento dos Villas-Bôas. Até que entraram no caminho dos generais. Em 1973, o governo militar ordenou que Cláudio e Orlando Villas-Bôas empreendessem uma expedição para contatar este povo e retirá-lo da rota da rodovia BR-163 (Cuiabá/Santarém).
“A gente tinha saído para caçar e ouviu o barulho do avião”, conta Akâ. Os Panará foram pegar seus arcos e flechas. “Foi um tumulto na aldeia, ficaram assustados com o avião rasante”. No dia seguinte, o avião voltou e os Panará tentaram flechá-lo. Provavelmente, eram voos de aviões militares indo até a base militar na Serra do Cachimbo.
“Ficamos muito preocupados. Pessoas de outras aldeias vieram e se juntaram para enfrentar esse inimigo”, relata. Em uma ocasião, os Panará encontraram com um branco e mataram ele com uma flechada. Por dias, os Panará continuaram a ouvir o barulho dos aviões. Então, começaram a encontrar objetos no mato, deixados pelos sertanistas no processo de contato.
Kreton Panará, que também viveu essa época, conta que se cortou com a faca que encontrou na floresta, porque não sabia para que servia. Depois de um encontro com um branco na mata, Kreton conta que os Panará se juntaram e discutiram o que fariam. “Vamos esperar ou vamos matar eles?”.
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Mesa de abertura da festa dos 25 anos do retorno dos Panará, com participação de convidados e lideranças |Kamikiá Kisêdjê/ISA
Nessa época, os Panará migraram para uma aldeia mais distante com o intuito de fugir dos brancos. Mas os irmãos Villas-Bôas seguiram nas tentativas de aproximação. Um dia, eles se depararam com os sertanistas descendo o rio em duas canoas grandes, e resolveram falar com eles. Cláudio se aproximou e um Panará pegou o facão da mão dele. Estava feito o contato.
“O pessoal desesquentou, pararam de brigar e começaram a aceitar as coisas. Os jovens falaram: ‘eles vieram aqui para amansar a gente, não é para matar’. E o resto do pessoal concordou”, conta Akâ.
O contato, porém, trouxe a morte. “Era morte de manhã, de tarde e de noite”, lembra Kreton. A gripe e o sarampo assolaram os Panará. “Sobrou pouca gente”, lamenta Akâ.
Ao menos 176 Panará morreram em decorrência de doenças contraídas após o contato, entre 1973 e 1975. Quando a rodovia começou a ser construída e centenas de trabalhadores se deslocaram para a região, as consequências foram ainda piores. Kreton conta como foi a primeira vez em que os brancos deram cachaça para ele e outros Panará. “Os Panará não sabiam da bebida e começaram a passar mal de bêbado”, lembra.
Nesse cenário, em 1974, os irmãos Villas-Bôas decidiram transferir os Panará para o Parque Indígena do Xingu. Segundo Akâ, eles foram enganados, pois achavam que teriam outros Panará vivendo lá. Foi um tempo de exílio. A floresta ali era muito diferente da que estavam acostumados. O Parque era pior para a caça e para encontrar os frutos que eram base de sua alimentação.
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Disputa de arco e flecha durante a festa dos 25 anos do retorno dos Panará |Kamikiá Kisêdjê/ISA
Sofia Mendonça conta de um episódio em que os Panará quase morreram intoxicados pelo consumo de mandioca brava, uma variedade consumida pelos indígenas do Parque, mas cujo veneno os Panará não sabiam como neutralizar antes do consumo. Essa é só uma das muitas histórias de desamparo.
Nos 20 anos que ficaram no Parque Indígena do Xingu, os Panará viveram primeiro com os Kawaiwete. Depois, com os Kaiapó, e depois, ainda, com os Khisêtje. Nos últimos anos de morada no Parque, foram viver em aldeias próprias. Mas nunca se sentiram em casa.
No início da década de 1990, eles tomaram a decisão de lutar para retornar ao seu território. Toda essa saga está descrita em detalhes no livro Panará - A Volta dos Índios Gigantes, lançado em 1998 como parte das ações voltadas a apoiar a demarcação do território Panará. Já o site, feito na ocasião dos 20 anos do retorno, também reúne depoimentos importantes sobre a saga. Confira o mapa de deslocamentos do povo Panará nos anos de contato, transferência e retorno:
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Mapa de deslocamentos do povo Panará de 1967 a 1997, ano em que se completou o retorno à parte de suas terras tradicionais | ISA
O branco comeu nossa terra
Lideranças Panará como Akâ e Kreton se articularam para empreender a jornada de retorno. A Fundação Nacional do Índio (Funai), segundo eles, não ajudava. Então encontraram os parceiros Steve Schwartzman, que já havia feito seu doutorado junto aos Panará e falava a língua e o indigenista André Villas-Bôas – que alguns anos depois fundaria o ISA.
O primeiro passo foi fazer uma missão de reconhecimento. Seis Panará juntamente com Steve e André viajaram de ônibus para o município de Peixoto de Azevedo (MT). Onde antes era aldeia e floresta, agora era cidade, pasto, soja e campos de terra arrasada pelo garimpo. “Os brancos comeram nossa terra”, denuncia Akâ.
Ali mesmo, manifestaram o desejo de se encontrar com as autoridades responsáveis. Ficaram indignados e exigiram satisfação. Então Akâ, Kreton e Kokè resolveram sobrevoar o território. Das oito principais aldeias antigas dos Panará, seis haviam sido destruídas. Mas uma porção de floresta mais ao norte ainda estava preservada.
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Em círculo, os Panará cantam, dançam e festejam os últimos 25 anos vivendo em seu território tradicional |Kamikiá Kisêdjê/ISA
“Eu fiquei muito feliz”, diz Akâ. A partir daí, começou uma intensa luta pela demarcação de uma parcela ainda preservada da Terra Indígena Panará e um longo processo dentro da Funai.
Entre 1994 e 1997, os Panará começaram a jornada de retorno. Em 1997, eles comemoraram na aldeia Nãsepotiti a sua volta definitiva e o fim dos dias de exílio, doenças e sofrimento. Em 2001, o território foi demarcado fisicamente e finalmente homologado pelo presidente da República.
Futuro: bonança, desafios e ameaças
Quando saíram de seu território e foram para o Parque Indígena do Xingu, os Panará eram apenas 74, dos mais de 700 de antes do contato. Chegaram no Parque combalidos. Durante os anos da transferência, a população cresceu pouco. Chegou a pouco mais de 170 em 1994. Desde que voltaram, a população ressurgiu: hoje são 704, número similar à população antes do contato.
Kunity Panará, uma liderança de 38 anos que cresceu junto aos Kayapó e chegou na TI Panará aos 16 anos, fala da bonança do retorno. “A pescaria é fácil. A caça é fácil. Muita fruta comestível que é nossa alimentação tradicional. Tem muito açaí, cacau, yapanitu, sotiv, pakÿ. Os mais velhos falam que lá no Xingu a terra e o mato eram diferentes, muito fraco para alimentação. Pessoal morreu muito no Xingu”, conta.
Além de liderança, Kunity é comunicador da Rede Xingu+. Ele conversou com a reportagem do ISA em uma das salas da escola da aldeia Nãsepotiti, um dos locais onde a conexão do wi-fi é melhor. Sobretudo os mais jovens se reúnem ali para se conectarem à internet.
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Vista áerea da aldeia Nãsepotiti, Terra Indígena Panará |Kamikiá Kisêdjê/ISA
Nos últimos 25 anos, os Panará conseguiram retomar várias tradições perdidas na época do exílio. Entre elas, as tradicionais roças, que são redondas e estão entre as mais belas da região. Em 2015, os Panará organizaram um concurso de roças tradicionais, descritas no livro Kâprepa puu popoti hã kia - Livro da Roça Redonda dos Panará, material didático para as escolas nas aldeias.
“Todo mundo trabalhando junto na roça. Pessoal se reúne para caçar, pescar, mulheres bem organizadas com a alimentação. Todo mundo trabalhando junto. Gostava muito dessa organização”, conta o comunicador.
Ele descreve um pouco os principais alimentos: a mandioca é a base da alimentação, para não faltar beiju nem farinha. O amendoim é para guardar no tempo da chuva, para colocar no beiju e no mingau. “Com amendoim seu corpo fica mais forte para fazer movimento”. Tem também cará, milho, melancia, banana, mamão e abacaxi.
Ainda assim, a soberania alimentar é uma preocupação. A Terra Indígena Panará fica próxima de cidades como Guarantã do Norte e Peixoto de Azevedo. “A alimentação dos brancos está enfraquecendo a gente. Estamos preocupados com isso. Estamos conversando para trazer alimentação tradicional mais forte”, afirma Kunity.
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Dança tradicional dos Panará |Kamikiá Kisêdjê/ISA
Kreton Panará também se ressente da influência cultural dos brancos do entorno. “Hoje, todos tem corte de cabelo de branco”, reclama. Depois de tudo que seu povo passou, ele teme que, sem a cultura, eles percam também seu território.
Durante os dias de festa, Kreton fez apelos aos mais jovens para que valorizassem a cultura tradicional. A questão é que, com o crescimento populacional expressivo após o retorno ao território tradicional, a maioria dos Panará hoje tem menos de 25 anos. São poucos os anciãos que sobreviveram e a manutenção das tradições tem sido um desafio.
A preocupação foi partilhada sobretudo pelas mulheres. Durante os festejos, elas tiveram um espaço de fala garantido na programação. No centro da aldeia, no local conhecido como “Casa dos Homens”, as mulheres Panará e suas convidadas manifestaram seu desejo de sair mais da aldeia, ampliar a atuação política e a representação em espaços de luta. E também a necessidade de segurar a cultura tradicional.
“Os homens precisam de nós”, defende Kwatum, uma das principais lideranças femininas. “Vamos fazer as coisas certas. Tenho parentes que não querem mais se pintar ou estar na cultura. Mas é só assim, com a nossa cultura, que vamos conseguir ter força. Precisamos nos unir”, segue. “Vamos fazer festa, ensinar os jovens a cantar”. Ela lembra que seu pai a ensinou como festejar na cultura. “Meu pai trazia alegria. Eu vou continuar do jeito que meu pai me ensinou”.
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Festa dos 25 anos do retorno dos Panará a uma parte de suas terras tradicionais no Rio Iriri, aldeia Nãsepotiti 📷 Kamikiá Kisêdjê/ISA
Pakiaprin, outra importante voz feminina Panará, manifesta seu desejo de que as mulheres ocupem os espaços de representação política na luta indígena e em eventos fora da aldeia.
“Nós, mulheres, temos força, temos muito o que falar. Nós temos que começar a sair e os homens também têm que cuidar da casa para isso”, afirma. “A festa foi um pouco triste, porque não tem mais velho, os mais velhos se foram, que tinham força para animar. Agora, nós vamos ter que segurar”, anuncia.
Sãso Panará também abordou a questão das tradições. Segundo ela, a mudança de fora está chegando nas aldeias, e o povo Panará precisa se unir para impedir isso. “Eu quero a minha cultura na nossa festa. A mulherada tem que ter força para segurar a cultura. Com a força das mulheres, vamos continuar”, afirma Sowakriti.
Mesmo em um contexto adverso como o dos últimos quatro anos, os limites da Terra Indígena Panará foram resguardados. Não há sinal de invasão de garimpeiros, grileiros e madeireiros, como ocorre em outros territórios. Mesmo assim, os Panará temem pelo seu pedaço de floresta.
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Mulheres Panará participam de dança tradicional em comemoração dos 25 anos do retorno dos Panará |Kamikiá Kisêdjê/ISA
Kunity fala da aproximação das fazendas do agronegócio, e da contaminação das cabeceiras dos rios pelos agrotóxicos. “Estamos preocupados com os animais do mato e os peixes do rio. Vamos continuar lutando para manter a nossa vida do jeito que está, para que nenhum garimpeiro ou madeireiro entre na nossa terra”, explica.
“Esse tipo de kuben (não indígena, em Kayapó) estraga a nossa natureza. Seres humanos que vivem na cidade e precisam de natureza. O mundo precisa de natureza para sobreviver”, conclui.