Decisão veio após ausência da presidência da autarquia em reunião. Segundo quilombolas, não há compromisso e encaminhamentos das pautas apresentadas pelo movimento
Após ausência da presidência do Incra em reunião, a Conaq retirou-se da 18ª Mesa Quilombola. Mesa de coordenação da reunião desta quinta vazia | Pedro Garcês / Conaq
Texto atualizado em 25/4/2025 às 20:47.
A Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) anunciou, nesta quinta-feira (24), sua saída da Mesa Quilombola do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em vídeo divulgado no Instagram, a coordenadora executiva da Conaq Maria Rosalina informou a decisão acompanhada de um grupo de lideranças quilombolas e disse que “não há mesa para dialogar se aqueles que têm a caneta na mão não participam”.
A decisão veio após a ausência da presidência da autarquia, na reunião desta quinta. De acordo com a Conaq, a ausência reflete a falta de compromisso e de encaminhamentos das pautas apresentadas pelo movimento anteriormente.
Em nota publicada em seu site, a Conaq afirmou estar aberta ao diálogo e pediu uma agenda com o presidente da República, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, e outros ministérios envolvidos na agenda quilombola. “A complexidade e a gravidade das questões enfrentadas pelos quilombos demandam a participação efetiva e compromissada de outros ministérios e órgãos federais, com poder de decisão e capacidade de estabelecer e cumprir compromissos concretos”, aponta.
“De acordo com dados da Terra de Direitos, ‘no atual ritmo, Brasil levará 2.188 anos para titular todos os territórios quilombolas com processos no Incra’. Diante do exposto, tendo em vista a morosidade estrutural na titulação dos territórios quilombolas, a CONAQ exige o diálogo com as instituições e autoridades responsáveis pela proteção dos nossos territórios, conforme previsto em ampla legislação nacional e internacional – como o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o Decreto nº 4.887/2003 e a Convenção nº 169 da OIT”, diz a nota.
Criada em 2013, a Mesa Quilombola tem por finalidade efetivar e garantir direitos, como o reconhecimento e a titulação de territórios. A instância reúne representantes do movimento quilombola, entidades parceiras e órgãos públicos para discutir e propor soluções para os desafios enfrentados pelas comunidades. A mesa foi suspensa, em 2017, no governo Temer, e retomada somente seis anos depois, em 2024.
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Bandeira da Conaq colocada à frente da mesa de coordenação da reunião da mesa de diálogo em protesto | Pedro Garcês / Conaq
Gota d’água
A reunião estava programada e várias lideranças quilombolas de diferentes estados se deslocaram de seus territórios para estarem presentes e tratarem de demandas urgentes. Entretanto, o presidente do Incra, César Aldrighi, não compareceu e enviou sua vice, Débora Mabel Nogueira, que saiu antes da reunião acabar, deixando o encontro sem que tivessem sido feitos encaminhamentos.
“É a 18ª reunião que a gente vem para colocar nossos lamentos para nós mesmos, porque quem de fato tem o poder da caneta não se faz presente para não se comprometer com a causa quilombola”, explicou Rosalina no vídeo.
Não é a primeira vez que a Conaq se retira da Mesa Quilombola. Em 2015, durante a 9ª Mesa Nacional da Política de Regularização Fundiária Quilombola, a entidade também saiu do encontro justificando o descaso do Incra com a pauta. Apesar das críticas ao órgão, a situação voltou a se repetir.
"Desde 2023, o Incra tem pautado suas ações a partir do diálogo e respeito à autonomia dos movimentos sociais. A Mesa Nacional de Acompanhamento da Política de Regularização Fundiária Quilombola é uma conquista da sociedade. Suas atividades foram retomadas depois de ser suspensa entre os anos de 2017 e 2022", diz o órgão em nota enviada à reportagem do Instituto Socioambiental (ISA). "O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e o Incra estão à disposição para continuidade do diálogo e planejamento das ações que fortaleçam a política quilombola no País", continua o texto.
"Importante salientar que a retomada da política quilombola resultou em mais de 735 mil hectares identificados e destinados, 32 títulos entregues e 19 mil famílias beneficiadas. Foi criada a Diretoria de Territórios Quilombolas do Incra - inédita na história do Brasil. Em 2024, tivemos o maior número de decretos de interesse social de territórios quilombolas por ano da história: 31", informa o documento.
Titulação no Pará
Ainda nesta quinta, a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu) também publicou uma nota de repúdio contra a estagnação da titulação de terras quilombolas no Pará. A organização denuncia que o Incra não titula comunidades quilombolas no Pará desde 2018, quando ocorreu a última, no município de Bujaru. A Malungu reúne 31 organizações quilombolas.
“Enquanto a regularização não acontece, as áreas quilombolas permanecem vulneráveis à invasão de fazendeiros, garimpeiros e posseiros, além do avanço de grandes projetos. Milhares de famílias quilombolas paraenses seguem na luta pela efetivação do direito garantido pela Constituição Federal: a regularização de suas terras coletivas”, afirma a nota. Além disso, a Malungu aponta o sucateamento do órgão, que não dispõe de servidores o suficiente para dar conta da quantidade de processos de titulação abertos.
“Na Superintendência do Incra em Santarém, há mais de três anos, apenas uma servidora responde pelo encaminhamento de 19 procedimentos para a titulação de Terras Quilombolas, 84% deles abertos há mais de 18 anos. [...] Já na Superintendência do Incra em Belém, tramitam 53 procedimentos e dentre estes, 29 constam em fase inicial, sem ida do órgão fundiário a campo. Entre estes, há procedimentos iniciados no ano de 2005”, informa o documento.
A Malungu exige a exoneração do atual superintendente do Incra de Santarém, José Maria de Sousa Melo, e a imediata estruturação da Divisão Quilombola na mesma superintendência. Também cobra ação imediata para acelerar os processos de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) na Superintendência de Belém. Reivindica ainda medidas urgentes para a atualização da Relação de Beneficiários dos territórios quilombolas em todo o estado do Pará.
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Mulheres quilombolas lançam comitê para Marcha das Mulheres Negras
Mobilização ocorrerá em 25 de novembro, em Brasília, para dar visibilidade a luta pela garantia de direitos das mulheres negras
A Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) lançou, nesta terça-feira (25), o Comitê de Mulheres Quilombolas para a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. O evento aconteceu em Arniqueiras (DF) e contou com a participação de mais de 60 mulheres de todos os estados onde há presença quilombola, entre elas representantes de organizações apoiadoras e parceiras da Conaq.
Também estiveram presentes as ministras dos Direitos Humanos e Cidadania, Macaé Evaristo, e das Mulheres, Cida Gonçalves, além da diretora de Políticas para Quilombolas e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Paula Balduíno, e da coordenadora executiva da Associação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e representante do Comitê Nacional da Marcha das Mulheres Negras, Vinólia Andrade.
A Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, ou 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras, ocorrerá em 25 de novembro, em Brasília, e pretende marcar a luta pela garantia de direitos das mulheres negras do Brasil. A expectativa é reunir cerca de 1 milhão de mulheres de todos os estados e regiões do país, além de participações internacionais. A última marcha aconteceu há dez anos, em 2015.
O lançamento do comitê faz parte do Planejamento do Coletivo de Mulheres da Conaq, que tem como objetivo organizar o calendário de luta das quilombolas para o período de 2025 a 2027. O colegiado pretende fortalecer a luta das mulheres quilombolas por justiça e reconhecimento pelos danos históricos sofridos por suas comunidades. Além disso, busca garantir visibilidade às demandas específicas do grupo e reforça a importância da sua participação nas questões de reparação e direitos territoriais e sociais.
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Lançamento do comitê quilombola da marcha das mulheres negras | Acervo da Conaq
Luta quilombola
A ministra Macaé endossou a presença das mulheres quilombolas na marcha, reiterou a relevância da luta quilombola pela regularização fundiária e encorajou o enfrentamento dos interesses econômicos contrários aos direitos quilombolas.
“A presença das mulheres quilombolas nessa marcha é muito efetiva, porque traz outra estética para contrapor a do capital. Pautar não só a luta contra o racismo e a violência, mas o papel das mulheres negras na produção do bem viver na nossa sociedade”, reforçou.
Evaristo falou ainda na criação de um Plano Nacional de Proteção de Mulheres Quilombolas. “Acho que essa é uma pauta para a gente construir coletivamente”.
Para a ministra das Mulheres, a proteção das quilombolas não deve incluir sua retirada dos territórios, “porque quando você tira as mulheres do território, você está fazendo o que a direita e o capitalismo querem. Você salva a vida física, mas não salva a vida política. Nós temos que construir um jeito em que possamos de fato defender essas mulheres, mas sem elas saírem de seus territórios. Precisamos fazer com que essa marcha seja um terremoto no país, que balance as estruturas, que balance o cenário político na localidade, no quilombo, no município, no estado, e que faça tremer Brasília”, enfatizou.
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Lançamento do comitê quilombola da marcha das mulheres negras | Acervo da Conaq
Gonçalves apontou que a marcha acontece em um momento de avanço mundial da direita, que se coloca ostensivamente contra os direitos, corpos, vozes e falas das mulheres. “O que está acontecendo no mundo tem consequências na nossa vida cotidiana. Nós temos um desafio que é discutir a Lei da Violência Política de Gênero, porque, para mim, as nossas defensoras quilombolas que morreram defendendo o território também sofreram violência política de gênero. E essa discussão que vocês trazem sobre o papel das defensoras dos territórios é fundamental”.
Paula Balduíno também ressaltou a importância da marcha, considerando que as mulheres negras formam a maior parte da população brasileira. “Essa marcha mostra quais são as nossas fortalezas e necessidades. Promover a igualdade racial também é promover equidade de gênero”, acrescentou.
Vinólia Andrade reiterou a importância da voz das mulheres quilombolas para ecoarem suas principais necessidades. “Quando a gente fala de reparação histórica, a gente não quer listar só o que veio da escravidão, mas a gente quer reparar o hoje. A gente precisa dizer o que é bem viver para todas nós, para a população negra não só desse país, mas do mundo. Nós mulheres negras temos essa resposta para dizer para o Brasil que nós existimos”.
Coordenadora executiva da Conaq, Laura Silva pontuou a importância da marcha para a visibilidade das pautas e das necessidades das mulheres quilombolas em outros “universos”. “A gente pede por justiça, direito e garantia de sobrevivência e sustentabilidade dentro dos nossos territórios. Garantia da gente não ter nossas mulheres tombadas e que nossas lutas não sejam pagas com nossos corpos”, reforçou.
Defensores de Direitos Humanos
A ministra Macaé Evaristo destacou ainda a importância de aprimorar o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), do ministério dos Direitos Humanos, para garantir a proteção das mulheres quilombolas e evitar que situações como a do assassinato de Mãe Bernadete se repitam. “Quando a gente pensa em violação de direitos no nosso país, infelizmente, nós estamos olhando para as mulheres negras”, lamentou.
“Por mais que o programa se efetive, em muitos casos a gente chega depois que a violência aconteceu. A gente precisa se antecipar, ter indicadores, monitoramento dos territórios. Não é possível fazer isso se não tiver uma rede que atue de maneira articulada com a perspectiva da gente se proteger mutuamente, coletivamente, inclusive para saber acionar o programa antes que a tragédia aconteça”.
Bem viver quilombola
Durante o evento, uma carta com dezesseis motivos que explicam “por que as mulheres quilombolas vão marchar?” foi lida para as autoridades e parcerias presentes. O documento foi elaborado pelo Coletivo de Mulheres da Conaq, que se dividiu em grupos de trabalho para produção e sistematização do texto. Confira:
1 - Pela regularização fundiária e titulação dos territórios quilombolas;
2 - Por reparação histórica por parte do estado brasileiro pelas dores geradas pela escravização das mulheres quilombolas;
3 - Pela concretização dos direitos constitucionalmente garantidos, como acesso à água, luz, saneamento e condições de permanência no território;
4 - Pela desburocratização do acesso ao CAF Quilombola para garantia do acesso às políticas públicas do MDA e Incra;
5 - Pela ampliação e democratização do acesso ao CAR Quilombola, garantido pelo estado brasileiro nos níveis federal, estadual e municipal;
6 - Pela aplicação, cumprimento e fortalecimento do Plano Nacional de Saúde Quilombola;
7 - Pelo reconhecimento e valorização dos saberes ancestrais;
8 - Pela soberania alimentar e a garantia da participação quilombola nos conselhos de direitos humanos a nível federal, estadual e municipal;
9 - Pela garantia da justiça climática e o combate ao racismo ambiental;
10 - Pela proteção da vida e dos direitos das quilombolas defensoras de direitos humanos;
11 - Pelo combate à violência psicológica, física, patrimonial, territorial contra as mulheres quilombolas;
12 - Pela ampliação e democratização do acesso das mulheres quilombolas às políticas públicas;
13 - Pela garantia do orçamento público para as políticas de geração de renda destinadas às atividades das mulheres quilombolas;
14 - Pela ampliação e garantia do acesso às políticas públicas de saúde e pela construção de postos e unidades de saúde em nossos territórios;
15 - Pela qualificação das mulheres e fortalecimento da educação escolar quilombola, além da construção de escolas nos territórios;
16 - Pela garantia de um espaço efetivo às mulheres quilombolas enquanto protetoras de suas próprias narrativas na Marcha das Mulheres Negras em 2025.
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Comitê da política de gestão territorial quilombola toma posse com mais de um ano de atraso
Representantes do colegiado celebraram instalação, mas apontaram desafios para obter recursos orçamentários
O Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (CG ‒ PNGTAQ) foi instalado na última terça (25/2). A posse do colegiado veio com atraso de um ano e três meses após a instituição da política, em novembro de 2023.
Segundo a previsão inicial, 90 dias depois seria publicado o edital com os critérios e procedimentos para organizações quilombolas que desejassem compor a instância. Entretanto, somente em outubro de 2024 isso aconteceu. O resultado, com a lista dos nomes das entidades e dos representantes empossados agora, foi publicado no Diário Oficial só em 28 de janeiro deste ano (veja no quadro mais abaixo).
A PNGTAQ é fundamental para fortalecer e proteger os territórios quilombolas, que são espaços de resistência dessas comunidades, essenciais para sua existência e qualidade de vida, e também de grande importância para a conservação da sociobiodiversidade (saiba mais abaixo). Ao comitê compete planejar, coordenar, articular, monitorar e avaliar a execução da política, de acordo com o Decreto 11.786/2023, que a instituiu.
Essas áreas e seus moradores sofrem todo o tipo de pressão e ameaça, desde invasões de terra e roubo de madeira até a violência de pistoleiros. Por causa disso, e pelo fato da titulação dos territórios também avançar a passos de tartaruga, havia grande expectativa do movimento quilombola pela implementação da PNGTAQ.
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Posse do comitê gestor da PNGTAQ. Ao centro, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco | Thay Alves / MIR
“Existe uma dificuldade de sincronizar os tempos previstos nas normativas com as condições reais de tocar as coisas no cotidiano, até mesmo porque a equipe que cuida desse tema também cuida de tantas outras questões”, justifica Ronaldo dos Santos, secretário nacional de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial (MIR).
“Com tudo isso, quando avaliamos a implementação da política nesse seu início, entendemos que a demora na implementação do comitê gestor não comprometeu a política. Ao contrário, estamos muito satisfeitos com os resultados construídos”, ressalta.
A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, parabenizou a instituição do comitê e reforçou a importância da continuidade da PNGTAQ, que enfrentou, e ainda enfrenta, uma série de desafios em sua implementação. “São nesses momentos que a gente cresce. Como boa atleta, eu sempre digo que quando o jogo aperta a gente joga melhor. E esse comitê que está aqui tomando posse hoje faz parte disso também”, disse.
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(E-D) Ronaldo dos Santos, Mônica Borges, Anielle Franco, Édel Moraes e Biko Rodrigues | Thay Alves / MIR
Desafio orçamentário
Um dos desafios para a execução da PNGTAQ é o orçamento. Inicialmente, foram disponibilizados R$ 20 milhões, mas, desde então, os ministérios envolvidos unem esforços para obter mais recursos. “Apesar do retardo na posse dos representantes do comitê gestor, isso, em parte, não afeta a busca pelo principal, que é o financiamento da política”, comentou o coordenador geral de Políticas para Quilombolas do MIR, Rozemberg Batista, durante a posse do colegiado.
“O MIR não parou no meio desse tempo, tem conquistas muito valorosas, inclusive com parceiros que estão aqui presentes, como o BNDES. A gente já tem uma parceria considerável para anunciar, que é o financiamento de planos locais de gestão territorial e ambiental na Amazônia Legal, na ordem de cerca de R$ 33 milhões na primeira leva, e a gente certamente vai observar e lutar para que esse espaço consiga ter ainda mais recursos”, complementou.
“O meu clamor se mistura, enquanto secretária, neste momento mas como pertencente também a uma comunidade. Nossa luta é diária para ter orçamento. A gente não precisa de pouco orçamento, a gente precisa de muito orçamento”, reforçou a secretária nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Édel Moraes.
Quem compõe o comitê?
Representantes de cinco organizações quilombolas, uma de cada região do Brasil, e da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), estiveram presentes para ser empossados e dar início aos trabalhos do comitê. Também o integram, os ministérios do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS); da Educação (MEC); da Cidadania (MC); do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA); do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA); e da Igualdade Racial (MIR) – esses últimos três considerados o “núcleo duro” do governo à frente da política.
Confira abaixo o quadro com membros das organizações quilombolas do comitê gestor.
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Fonte: DOU, 28/1/2025
O que é a PNGTAQ?
Segundo o Decreto 11.786/2023, a PNGTAQ deve promover práticas de gestão territorial e ambiental desenvolvidas pelas comunidades quilombolas, atuar para garantir seus direitos territoriais e ambientais, favorecer a implementação de políticas públicas de forma integrada, proteger o patrimônio cultural material e imaterial, conservar a biodiversidade e fomentar seu uso sustentável, e ainda promover a melhoria da qualidade de vida e a justiça climática para essas populações.
De acordo com o articulador político e integrante da coordenação da Conaq, Biko Rodrigues, “quando se fala sobre uma política de gestão territorial se fala na proteção do território; na área que você vai deixar para o manejo; a área que você vai produzir; a forma que você vai produzir; como você planeja esse território olhando de cima para baixo, com a perspectiva de resguardá-lo para as futuras gerações", explica.
"O que nós queremos cada vez mais é ter uma qualidade de vida para proteger os nossos territórios. Porque nós não podemos negar para os que virão o direito de ver árvores em pé ou rios correndo livremente. Nós temos o compromisso de proteger agora”, acrescenta.
“A gestão territorial e ambiental já existe. Na prática, os territórios já fazem isso. Todo território tem práticas de gestão territorial e ambiental. Então essa política tem um único papel, que é potencializar essas práticas. Tudo que foi pensado na política reflete as práticas ancestrais e territoriais das comunidades”, afirmou a diretora de Territórios Quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Mônica Borges.
Borges também destacou a relação da PNGTAQ com a regularização fundiária dessas áreas, que é bastante demorada. “Salvaguardar o território a partir da gestão territorial e ambiental é garantir que, quando a regularização chegar, ainda exista território. A PNGTAQ é essa ferramenta que tem a função de garantir a permanência das pessoas no território, de fortalecer as comunidades. É, sobretudo, permanecer e salvaguardar as vidas daquele território”, finalizou.
A PNGTAQ é destinada a todas as comunidades quilombolas do Brasil, independente da sua situação fundiária. Pela primeira vez, a população quilombola foi identificada, enquanto grupo étnico (IBGE, 2024). O Censo identificou 8.441 localidades quilombolas em todo o país, o que reforça a importância de investimentos robustos para que essa política pública chegue onde precisa chegar, esforços conjuntos dos ministérios e parceiros são fundamentais para alcançar o compromisso pela defesa dos territórios quilombolas. Para se ter uma ideia do problema da regularização fundiária dessas áreas, basta lembrar que existem hoje mais de 3,7 mil comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), enquanto apenas 395 comunidades foram tituladas, de acordo com o Incra.
O que é a sociobiodiversidade?
A sociobiodiversidade é a diversidade biológica associada aos sistemas agrícolas tradicionais, o uso e manejo desses recursos reunidos no conhecimento e na cultura das populações tradicionais e agricultores familiares. Por sua vez, a diversidade biológica ou biodiversidade é a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, dentro das espécies, entre espécies e de ecossistemas. Ela abarca os ecossistemas terrestres, marinhos, outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Quilombolas conquistam acordo para regularizar território de Alcântara (MA)
Medida pode colocar fim a uma luta pelo direito à terra que já dura 44 anos. Governo decreta e titula áreas abrangendo 120 mil hectares, para 4,5 mil famílias, em 11 estados
O presidente Lula e representantes do movimento quilombola local e nacional na cerimônia que formalizou o acordo de Alcântara (MA) | Ricardo Stuckert / PR
O governo federal oficializou, nesta quinta (19/9), um acordo histórico com os quilombolas de Alcântara (MA), dando um passo importante para pôr fim a um conflito por território que dura 44 anos. O município tem cerca de 18 mil moradores e 84% deles são quilombolas ‒ a maior proporção do país.
Numa cerimônia na pequena cidade a 90 km da São Luís, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram assinados duas portarias e um decreto destinando às comunidades 78,1 mil hectares (um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol). Com isso, será possível desapropriar áreas privadas sobrepostas e, em seguida, titular o território, última etapa do processo de regularização.
A medida foi possível graças à assinatura de um acordo com as organizações dos moradores. De acordo com o documento, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deverá iniciar a titulação em até um ano. Além disso, os quilombolas e o Ministério da Defesa comprometem-se a aceitar os limites formalizados agora para o território tradicional e a base de lançamento de foguetes vizinha. Assim, os militares abrem mão da proposta de ampliá-la tomando 12,6 mil hectares das comunidades.
A instalação militar foi construída no início dos anos 1980. Mais de 300 famílias de 32 comunidades foram expulsas de suas casas. Ao longo de quatro décadas, o governo federal apresentou vários planos de expansão da base aeroespacial e violou sistematicamente os direitos das populações, principalmente atravancando o processo de reconhecimento oficial de suas terras. No total, são 3.350 famílias, distribuídas em 152 comunidades, vivendo sobretudo de agricultura de pequena escala e da pesca artesanal. A ocupação remonta ao século XVIII.
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Centro da cidade de Alcântara visto a partir do Porto do Jacaré | Ana Mendes / ISA
‘Passo importante’
As medidas anunciadas nesta quinta foram comemoradas pelos quilombolas. Apesar disso, escaldados pelo descumprimento de acordos e promessas ao longo dos anos, eles deixaram claro que sua luta só termina com a conclusão da regularização da área.
“Foi um passo importante, porém, não tem nada definido. Porque a definição vem com o título”, afirma Dorinete Serejo Morais, integrante das coordenações do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) e da Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (Atequila).
Ela se diz confiante com o cumprimento do acordo pelo fato da gestão Lula ser mais favorável aos direitos das minorias, mas não descarta imprevistos fruto de eventuais mudanças no contexto político. “A gente fica mais esperançoso, embora a gente saiba que governo é governo, e que alguma coisa possa mudar”, ressalva.
“Fomos procurados pela AGU [Advocacia-Geral da União] e nos disseram que havia essa possibilidade de acordo, que tinha havido conversas entre os órgãos de governo”, explica Morais. “Às vezes, a gente acreditava, às vezes a gente desconfiava, mas finalmente conseguimos chegar ao que foi assinado”, conclui.
“O acordo é um avanço histórico, uma vez que a União e a comunidade conseguiram, após mais de quarenta anos de conflito, chegar a um consenso sobre a área que deverá ser titulada. Mas ele não resolve todos os problemas. Outros passos precisam ser dados pela União”, concorda o assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA) Fernando Prioste.
Ele explica que o entendimento assinado nesta quinta tem efeito jurídico permanente, mas igualmente lembra que sempre há o risco de outra administração tentar desfazê-lo. Daí a necessidade das cláusulas serem cumpridas até 2026.
“Agora que nós conseguimos legalizar o quilombo de Alcântara, que nós conseguimos legalizar as centenas de comunidades, vocês passam a nos cobrar e nós temos a obrigação de dar sequência a essa titulação. Temos que cuidar da saúde, da educação, da água. Vamos ter que ter condições de fazer aquilo que é obrigação do Estado fazer”, prometeu Lula.
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Quilombolas de Alcântara (MA) | Ana Mendes / ISA
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Mais decretos e titulações
Na mesma cerimônia em Alcântara, foram assinados os decretos de desapropriação de mais dez territórios e entregues 21 títulos envolvendo outros oito. No total, junto com Alcântara, os atos englobam 120 mil hectares e beneficiam 4,5 mil famílias em 11 estados (veja tabelas abaixo).
Com isso, o terceiro governo Lula soma 12 decretos assinados e 32 títulos entregues. No mandato notoriamente contrário aos interesses de populações tradicionais de Jair Bolsonaro, foram expedidos apenas 1 decreto e 23 títulos ‒ todos por determinação judicial.
Prioste lembra que, desde 2003, quando o Incra passou a ser responsável pela regularização dos territórios quilombolas na esfera federal, apenas 66 foram titulados integral ou parcialmente, o que significa, mais ou menos, 3% do total de 1.881 processos abertos no órgão.
“As entregas feitas agora são fruto do que ficou paralisado nos anos dos mandatos de Temer e Bolsonaro. O governo já tinha tudo pronto ao menos desde o início do ano, mas esperou um momento político como esse para fazer os anúncios”, diz Prioste. “Há outros processos que estão praticamente prontos, mas não andam por dificuldades políticas e orçamentárias. Não haverá avanços significativos sem que o Incra conte com mais estrutura, mais equipe, orçamento adequado e efetiva vontade política de enfrentar os desafios”, avalia.
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Quantos quilombolas existem no Brasil?
De acordo com o Censo do IBGE de 2022, há no Brasil hoje 1,3 milhão de pessoas que se declaram quilombolas. O Censo apontou que os territórios oficialmente delimitados abrigam 167 mil pessoas assim autodeclaradas, o que representa 12% do total de quilombolas do país. Apenas 4,3% deles residem em territórios já titulados (considerando áreas regularizadas pelos governos federal e estaduais).
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Vista do quilombo de Cangume (SP) | Roberto Almeida / lSA
Comemoração em Cangume (SP)
Um dos quilombos agraciados com decreto de desapropriação é o de Cangume, em Itaóca, no Vale do Ribeira, sul de São Paulo. O território tem pouco mais de 854 hectares e abriga 47 famílias, que vivem da agricultura de pequena escala. O primeiro habitante, José Cangume, teria chegado à região há cerca de 200 anos.
Parte da comunidade assistiu à assinatura do decreto pelo presidente Lula via transmissão ao vivo e comemorou a conquista, aguardada há mais de 20 anos. “Para nós, é muito importante. Recebemos essa notícia, ontem à tarde, de que o presidente Lula estava assinando nosso decreto. Foi muito emocionante”, celebra o presidente da Associação do Quilombo Cangume, Odair Dias dos Santos.
Santos explica que a comunidade sofre por não conseguir ocupar todo o território e ter terras suficientes para seu sustento por causa de fazendeiros invasores. Alguns restringem o acesso da comunidade às suas áreas de cultivo. Agora, a expectativa é que o problema possa ser resolvido. “Foi muito sofrimento. Antes, os nossos agricultores [quilombolas] trabalhavam para os terceiros, chegavam tarde, não tinham pagamento, traziam alguns quilos de mandioca para se alimentar, trazer para a família”, relata.
Ele espera que a titulação saia o quanto antes, mas informa que o governo não deu nenhum prazo para viabilizá-la. O quilombola receia que alguns fazendeiros entrem com ações na justiça para impedir a conclusão da regularização fundiária. “Eu acredito que ainda vai ter um pouco de problema. Nem todos os terceiros, mas alguns ainda vão querer resistir para desocupar a área”, adverte.
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Governo decepciona movimento quilombola e não anuncia titulações
2ª edição do Aquilombar acabou reunindo a alegria dos reencontros e a frustração por causa da inação do Planalto
O Aquilombar 2024 carregou um tema de poucas palavras, mas que traduzem uma mensagem necessária e de força para os dias atuais: ancestralizar o futuro | Webert da Cruz / ISA - Conaq
“A história do Brasil não pode ser contada sem os quilombos!”, disse Givânia da Silva, integrante do Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em um discurso potente para milhares de quilombolas que estiveram na segunda edição da maior mobilização dessas comunidades do Brasil. O Aquilombar 2024 teve um tema central de poucas palavras, mas que traduzem uma mensagem necessária e de força para os dias atuais: “ancestralizar o futuro”.
A presença de mais de 3 mil quilombolas de todas as regiões do país coloriu a capital federal ao longo de quinta-feira (16). Eles viajaram centenas de quilômetros para se encontrar, celebrar sua cultura, marchar em direção ao Congresso, reafirmar sua existência, exigir a garantia de seus direitos e aquilombar a sociedade brasileira.
No Centro Cultural Ibero-Americano, no centro de Brasília, os quilombolas puderam mostrar um pouco mais de sua cultura, com apresentações de dança, como a do Grupo de Conscientização Negra Omnirá, do quilombo Cururupu (MA); feira de artesanatos e comidas.
Embora a titulação de territórios tenha sido reforçada como a principal pauta da mobilização, ponto que uniu o coro de reivindicação dos participantes e que também permeou a fala das autoridades presentes, foi justamente esta a maior frustração nesta edição do Aquilombar.
Lideranças de diferentes localidades foram convidadas pelo governo federal a ir a Brasília para receber a documentação da titulação definitiva de seus territórios. No entanto, souberam ali, enquanto a solenidade com essas autoridades se iniciava, que viajaram em vão. Os decretos não seriam assinados.
O restante dos participantes da mobilização tomou conhecimento da decisão do governo ao final da solenidade, quando o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, o último a falar, afirmou que os títulos seriam entregues em outro momento, sem indicar uma data ou local para isso.
Questionado pelo ISA a respeito da não assinatura dos decretos de titulação, o ministro só disse que haverá um evento "próximo" para que a entrega ocorra.
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Conflitos no campo aumentam e geram violência, como o assassinato de Mãe Bernadete, em agosto de 2023, no Quilombo Pitanga de Palmares, em Simões Filho (BA) | Webert da Cruz / ISA / Conaq
Titulação demorada e violência
Os processos de titulação de territórios quilombolas no Brasil são extremamente demorados. Tanto que, conforme cálculo da organização Terra de Direitos, seriam necessários 2.708 anos para o governo finalizar a titulação definitiva dos 1.857 quilombos com processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ou seja, o Brasil cumpriria com esta obrigação constitucional somente no ano de 4.732.
A última pesquisa do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que o país soma mais de 1,3 milhão de quilombolas, dos quais menos de 5% vivem em áreas tituladas. Sem a garantia desse direito, todos os outros são afetados. Além disso, conflitos no campo aumentam e geram violência, como o assassinato de Mãe Bernadete, em agosto de 2023, no Quilombo Pitanga de Palmares, em Simões Filho (BA).
“A titulação, para uma comunidade quilombola, é o principal momento de celebração, em razão de ser a consolidação do direito constitucional da garantia efetiva ao território. Era esperado que a solenidade proposta pelo governo federal no ato do Aquilombar desse passos concretos rumo a essas titulações. No entanto, o que houve foi uma grande frustração, porque o movimento aguardava por isso com enorme expectativa”, assevera a coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, Milene Maia Oberlaender.
Ela também reforça como essa decepção reverbera como inquietação no movimento quilombola. Além de ser a porta de acesso das comunidades a inúmeras políticas públicas, a regularização definitiva também traz a proteção das populações, que, muitas vezes, estão invisibilizadas, vulnerabilizadas e sem acesso a direitos básicos.
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Mais de 3 mil quilombolas de todas as regiões do Brasil ocuparam Brasília e marcharam em direção ao Congresso Nacional para demarcar sua existência e exigir a garantia de seus direitos | Webert da Cruz/ ISA / Conaq
“Isso nos traz preocupação, porque as expressivas manifestações de violência em territórios quilombolas ocorrem justamente em razão da inércia do governo em finalizar os processos de titulação”, explica Oberlaender.
Não por acaso, a violência contra quilombos no Brasil aumentou nos últimos cinco anos, conforme aponta a pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, realizada pela Conaq e Terra de Direitos. Entre 2008 e 2022, foram assassinados 70 quilombolas em suas terras, isso sem contar os inúmeros casos de violação de direitos fruto do racismo institucional e ambiental.
Havia uma grande expectativa do público da ida do presidente Lula ao evento. A ausência foi justificada por Teixeira pela situação de calamidade no Rio Grande do Sul. Segundo o ministro, Lula fará uma nova solenidade, desta vez em um território quilombola, e participará pessoalmente do ato.
Ele lembrou que o governo lançou o programa Terra da Gente, que servirá para os assentamentos e para a titulação de quilombos. “Estão sendo investidos R$ 138 milhões para comprar terra para os quilombos e para demarcação dos quilombos”, informou.
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‘Precisamos parar [de fazer com que] as pessoas morram pra ter um título.’ João Jorge, presidente da Fundação Cultural Palmares | Webert da Cruz/ ISA / Conaq
Medidas do governo
O presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), João Jorge, esteve no Aquilombar e falou sobre esse direito tão caro e importante. “Precisamos parar [de fazer com que] as pessoas morram pra ter um título. O meu papel é retomar essa política”, disse. “Temos um compromisso do novo governo do Brasil, da ministra Margareth Menezes [da Cultura], da ministra Anielle Franco [da Igualdade Racial] , de fazer uma coisa bem básica, levar a certificação das comunidades quilombolas para que o Incra possa finalmente dar a titulação dessas comunidades”, afirmou.
João Jorge relembrou nomes ancestrais, como Nego Bispo, Mãe Bernadete e Abdias do Nascimento. “O Bispo, nosso mentor intelectual contemporâneo, por acaso está aqui torcendo por um bom resultado. A senhora Bernadete, da Bahia, também está aqui neste momento e Abdias Nascimento, primeiro homem desse país a falar do quilombismo [também está presente]”.
O presidente do Incra, Cesar Aldrig, enfatizou: “Esse aqui é o maior evento da população quilombola do país. Temos muita clareza que esse país tem uma dívida enorme com o povo quilombola”.
Aldrig informou que já há 35 mil hectares de portarias publicadas para os povos quilombolas, ação que faz parte do pacote de medidas anunciadas no Aquilombar, previstas no Programa de Apoio e Fortalecimento ao Etnodesenvolvimento e Acesso à Terra e ao Território (Pafe), da Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais (Seteq), do MDA.
Medidas do Pafe anunciadas no Aquilombar
- Criação do Selo Quilombola, com a finalidade de identificar produtos de origem étnica e territorial produzidos por comunidades quilombolas. O selo foi entregue às comunidades Tapuio (PI), Mesquita(GO), Dilô Barbosa(ES), Estiva (MG) e Estrela (PE).
- Entrega dos relatórios técnicos de identificação e delimitação (RTIDs) de duas comunidades quilombolas: Negros do Osso (PE) e Vila Juazeiro (BA);
- Entrega de portarias de reconhecimento nas comunidades Olindina Cirilo Serafim (ES), Rio Andirá (AM), Serra Salitre (MG) e Quilombo Fojo (BA).
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Quilombolas recebem selo quilombola, que tem como finalidade identificar produtos de origem étnica e territorial produzidos por comunidades quilombolas | Webert da Cruz/ ISA / Conaq
A Conaq entregou uma carta contendo as principais demandas das comunidades aos ministros presentes no evento. O documento aborda sete pontos: violações dos direitos quilombolas; violações ao território; justiça climática; políticas públicas; acesso à justiça; violações aos direitos das mulheres quilombolas e requerimentos.
O secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Ronaldo dos Santos, avaliou o evento de forma positiva. “Estamos bastante felizes com o que foi o dia de hoje”. Ele continuou: “É a segunda vez que a Conaq faz o Aquilombar aqui em Brasília, então fica uma grande expectativa de que tenha um próximo que seja igualmente bonito, até mais potente. E da nossa parte, do lado do governo, que seja combustível, inspiração para que a gente possa fazer mais ainda do que temos feito até aqui e possamos corresponder às demandas que as lideranças quilombolas, de forma organizada, têm pautado o estado”.
Luta e resistência
Coordenador do Coletivo de Juventude da Conaq, Celso Araújo, reafirmou a luta quilombola por direito ao território titulado iniciada por seus ancestrais e o dever da juventude em continuá-la.
“Sem os nossos territórios livres, sem os nossos territórios titulados, vão continuar tirando a vida da nossa juventude, das nossas lideranças dentro dos nossos territórios. As nossas vidas vão continuar sendo ceifadas por aqueles que não querem que a gente acesse aquilo que é nosso por direito. A juventude quilombola, a juventude que está presente aqui hoje tem esse dever de fazer com que a luta dos nossos ancestrais continue, porque a nossa existência hoje é porque alguém resistiu por nós”, sublinhou.
“Esse Estado tem uma dívida com a população preta, com a população quilombola. Nós não viemos aqui pra ver sorrisos de ministros e ministras quando falam da pauta da titulação quilombola. Estamos aqui para reivindicar os nossos direitos. Estamos aqui para reivindicar todas as nossas políticas públicas, mas a principal delas é a titulação dos nossos territórios”, disse Araújo.
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Marcha durante Aquilombar 2024 |Webert da Cruz/ ISA/ Conaq
A coordenadora do coletivo LGBTQIAP+ da Conaq, Cristina Quilombola, destacou a liderança das mulheres quilombolas e o racismo promovido por grandes empreendimentos que invadem os territórios.
“Precisamos avançar em vários processos em nossos territórios, na nossa educação, na nossa agricultura familiar, na nossa cultura; avançarmos na garantia do direito à vida da nossa população LGBTQIAP+; garantir a vida das nossas mulheres quilombolas dentro dos nossos territórios. Nós temos territórios quilombolas que são liderados por essas mulheres que estão à frente da luta, que estão à frente da resistência, que ocupam esses espaços de direito que muitas vezes tentam nos calar”, afirmou.
“Para o avanço e o progresso dos territórios precisamos das nossas comunidades quilombolas tituladas já, para que os nossos territórios sejam livres do agronegócio, livres das minerações, livres dos parques eólicos que a todo instante adentram os nossos territórios com o racismo ambiental, o racismo institucional, o racismo estrutural”.
Emergência climática
As consequências da crise climática para as comunidades quilombolas têm sido uma preocupação presente nos debates e ações das lideranças do movimento. Para elas, a tragédia que acontece no Rio Grande do Sul é um triste exemplo de como essa pauta precisa estar no centro das discussões e mostra a urgência para que sejam apontados caminhos mais efetivos de enfrentamento.
No estado, cerca de 6 mil famílias quilombolas foram afetadas pelas enchentes, segundo a Conaq. De acordo com o levantamento, todas as 145 comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul, em 70 municípios, foram atingidas pela tragédia desde o final de abril. No total, 17.552 quilombolas sofrem diretamente os impactos das cheias. Já segundo o MIR, dez comunidades estão totalmente cercadas pela água e com dificuldades de acesso, as enchentes atingem todas as 6.828 famílias quilombolas gaúchas e dez comunidades estão ilhadas.
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Diversidade da cultura alimentar, medicina tradicional e artesanato quilombola é mostrada durante o Aquilombar 2014 | Webert da Cruz/ ISA/Conaq
Ao final da marcha, a articuladora política da Conaq, Selma Dealdina, analisou como a emergência climática atinge diretamente a vida dos povos e comunidades tradicionais. "Isso que ocorre no Rio Grande do Sul serve de alerta para que a gente consiga refletir sobre a importância de olhar para as mudanças climáticas e como elas podem ocasionar um desastre ainda maior", ressaltou.
Um dos graves problemas apontados pela dirigente da Conaq é a situação das famílias que precisam deixar suas casas e seus territórios em função das consequências da crise climática.
"Precisamos discutir a situação dos exilados do clima. Nós temos uma grande quantidade de pessoas que estão fora de seus territórios devido aos impactos dessa crise. Eu espero que, de fato, a gente comece a olhar para isso com mais atenção. E olhar para o que os povos do campo e das florestas, as comunidades tradicionais, a nossa ancestralidade e sabedoria popular nos dizem sobre isso tudo que estamos vivendo", enfatizou.
Ela lembrou, ainda, que são esses povos e comunidades os primeiros a ser atingidos pelas consequências da crise climática. "No final, somos nós que pagamos essa fatura".
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Iniciativa quilombola, Casa de Sementes Jucão recebe prêmio internacional de arquitetura
Edificação no Quilombo Nhunguara (SP) foi escolhida por combinar beleza e função ecológica, atender às necessidades locais e dar poder às pessoas de transformar realidades
Construída em estrutura de taipa de pilão, construção da Casa de Sementes Jucão valoriza conhecimento tradicional quilombola|Alain Briatte Mantchev
A premiação, além de reconhecer o valor social e ecológico da construção de 42m2 localizada no Quilombo Nhunguara, em Iporanga (SP), valoriza o conhecimento tradicional dos antepassados dos coletores e abre caminhos para novos projetos.
De acordo com a comissão avaliadora do Ammodo Architecture Award 2025, a escolha da Casa de Sementes do Jucão se deu pela forma inovadora que o projeto combina beleza e função ecológica, ao mesmo tempo em que atende às necessidades locais com potencial de transformação e amplia o poder de transformação social, transformando-se, portanto, em algo extraordinário.
Conheça a Casa de Sementes Jucão!
O espaço é seguro e saudável para sementes, e contribui para a manutenção e regeneração da floresta brasileira no futuro. O reconhecimento exalta um exemplo de como uma estrutura pode ser ao mesmo tempo bela, simples e ainda com potencial de ajudar a resolver um problema global.
Estruturada em taipa de pilão com cascalho do Rio Ribeira de Iguape, podendo armazenar toneladas de sementes coletadas da Mata Atlântica, a casa de sementes foi inaugurada em 15 de dezembro de 2021.
O espaço foi batizado como Casa de Sementes Jucão em homenagem a José Rodrigues de Almeida, liderança do Quilombo Nhunguara, um batalhador pelas roças tradicionais e sempre à frente na luta pelo reconhecimento do seu território, falecido em novembro de 2021.
Giovanna Bernardes, do Instituto Socioambiental (ISA) e responsável técnica da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, conta que o prêmio, de 10 mil euros, será revertido para melhorias na construção.
“Essas melhorias fortalecerão o papel da Casa de Sementes, potencializando seu efeito multiplicador em diversas atividades. A Casa de Sementes tornou-se um espaço acolhedor e um elo vital nos esforços contínuos da rede para restauração ecológica e engajamento comunitário”, informa.
A Rede de Sementes do Vale do Ribeira é um projeto apoiado pelo ISA e faz parte do Redário, mobilizando cerca de 60 coletoras e coletores dos quilombos André Lopes, Maria Rosa, Nhunguara, São Pedro e Bombas.
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Maria Tereza Vieira, é quilombola, agricultora, viveirista e coletora de sementes, uma das fundadoras da Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira|Cláudio Tavares/ISA
De acordo com Maria Teresa Vieira, secretária da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, a beleza e funcionalidade da Casa de Sementes faz a diferença na região, além de atrair visitantes há algum tempo.
“Esse prêmio vai nos ajudar, principalmente para nossa casa da semente, que é um local onde a gente está começando a receber o turismo também, para o pessoal que está vindo para visitar. Então, a gente tem que ter alguns reparos”, explicou. “O mais importante de tudo é ser reconhecido, sabendo que tem gente lá fora, tem pessoas que pensa positivo a nosso respeito, seja brasileiro ou estrangeiro, mas que também luta pela mesma causa de ver um planeta mais saudável, um planeta com mais verde. Por esse motivo eu agradeço esse prêmio em nome da rede toda e de todos coletores”, conclui.
Conhecimento tradicional
Alain Briatte Mantchev, arquiteto responsável pelo projeto, acredita que a aplicação da técnica tradicional dos quilombos foi o que proporcionou o resultado premiado.
“Ela já é própria dos quilombos, né? Todos os fogões de taipa que a gente vê tradicionalmente, é a mesma técnica das paredes ali. Então, na verdade, a gente se inspirou nessa técnica quilombola para construir a casa de sementes. E aí acho que cabe uma frase muito significativa para o projeto: guardar as sementes na terra para na terra a gente semear. E acho que tudo isso faz muito sentido”, afirma
Mantchev explica que o Prêmio Ammodo de Arquitetura celebra a arquitetura ecológica e social, a partir da seleção de projetos escolhidos por especialistas de vários continentes. O projeto Casa de Sementes do Jucão foi indicado pela arquiteta chilena, Amanda Riviera.
O evento de premiação aconteceu em cerimônia virtual em 13 de novembro de 2025.
O prêmio
A Ammodo Architecture promove e apoia a arquitetura social e ecologicamente responsável em todo o mundo. O Prêmio Ammodo de Arquitetura para escala local incentiva projetos com orientação social e ecológica. Na edição 2025, 26 projetos foram selecionados - 12 na categoria escala local, 12 na categoria engajamento social e dois na categoria arquitetura social.
A Ammodo é uma fundação holandesa que estimula o desenvolvimento da arte, da ciência e da arquitetura.
A Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira leva para a 13ª edição da Feira de Práticas Socioambientais Pétala por Pétala, no Sesc Interlagos, neste sábado (13/09), a vivência da “Muvuca de Sementes”, conhecida também como método de semeadura direta, com Giovanna Bernardes, engenheira agrônoma e responsável técnica da Rede, e Zélia Pupo, coletora de sementes e elo do grupo de coletores do Quilombo André Lopes.
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A Rede de Sementes do Vale do Ribeira atua desde 2017 e reúne coletores de cinco comunidades quilombolas de Eldorado e Iporanga|Andressa Cabral Botelho/ISA
A técnica consiste em misturar sementes de espécies florestais nativas, agrícolas e de adubação verde, junto a um material que auxilia na homogeneização, como areia, serragem ou terra. As espécies são escolhidas de acordo com o ecossistema local e a sucessão florestal, promovendo a formação de novas florestas e sua longevidade.
Com o tema “Pisar a Terra”, a Feira busca inspirar reflexões sobre a relação que estabelecemos com a terra a partir de diferentes perspectivas e em diálogo com as questões socioambientais contemporâneas.
Como parte da programação, o Instituto Socioambiental (ISA) e a Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira reforçam ainda o aspecto ecológico e comunitário da muvuca de sementes, que valoriza o conhecimento tradicional, incentiva a participação popular no reflorestamento e cria pontes entre o meio rural e urbano, contribuindo para a conservação da biodiversidade.
Além da atividade, Alina Morato e Omelina Santos, coletoras do Quilombo André Lopes estarão com um estande ao longo do evento no sábado e no domingo, expondo o Guia de Sementes "Do Quilombo à Floresta", além de algumas sementes e produtos quilombolas.
A oficina acontece no Hall do Viveiro de forma gratuita e tem duração de 180 minutos a partir das 13h. A Feira de Práticas Socioambientais Pétala por Pétala é uma realização do Sesc São Paulo com apoio do Consulado Geral da Alemanha em São Paulo.
Sobre a Rede de Sementes do Vale do Ribeira
A Rede de Sementes do Vale do Ribeira é uma iniciativa que atua desde 2017 na região do Vale do Ribeira, no sudeste de São Paulo. Atualmente, reúne cinco comunidades quilombolas (André Lopes, Bombas, Maria Rosa, Nhunguara e São Pedro), localizadas nos municípios de Eldorado e Iporanga. O objetivo é fornecer sementes florestais nativas com qualidade e em quantidade para a restauração ecológica do bioma Mata Atlântica.
As sementes da Rede já foram utilizadas em diversas regiões do Estado de São Paulo. Em 2024, venderam mais de 1 tonelada de sementes, contribuindo para a restauração da Mata Atlântica e gerando uma renda superior a 130 mil reais para 60 famílias quilombolas.
Serviço
Muvuca de Sementes com a Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira na Feira de Pétala por Pétala
Local: Hall do Viveiro, no Sesc Interlagos
Dia e horário: Sábado, 13/09, a partir das 13h
Duração: 180 minutos
Entrada gratuita e por ordem de chegada
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Decisão que invalida sobreposição de Unidade de Conservação a quilombo no Vale do Ribeira ganha prêmio do CNJ
Reconhecimento de sentença sobre o Quilombo Bombas valoriza luta histórica pela permanência dos quilombolas em seu território
Decisão da juíza Hallana Duarte Miranda, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), foi premiada no 2º Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na categoria Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais. A cerimônia de premiação aconteceu em 12 de agosto.
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Hallana Duarte Miranda, do TJSP, foi reconhecida na categoria Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais|YouTube do CNJ
A sentença foi proferida em dezembro de 2023 a favor do Quilombo Bombas, que historicamente vive e resiste no Vale do Ribeira, e que, desde 1958, passou a sofrer com conflitos socioambientais derivados da sobreposição de seu território pelo Parque Estadual Turístico do Alto do Ribeira (Petar), Unidade de Conservação de Proteção Integral, que não admitiria a presença humana em seu interior.
Segundo ela, o CNJ tem trabalhado na proteção e incentivo à aplicação, pelo Poder Judiciário brasileiro, dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos que asseguram direitos a diferentes segmentos da sociedade, entre eles, povos e comunidades tradicionais, que abrange os povos indígenas, comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais.
“O Brasil internalizou a Convenção 169 da OIT, que trata dos povos e comunidades tradicionais, uma das normativas que protege as comunidades quilombolas. O reconhecimento dessa decisão, na verdade, é um reconhecimento de que o sistema de justiça entende como importante a proteção territorial dessas comunidades”, afirmou.
A partir da década de 1980, a Unidade de Conservação criada no papel em 1958 começou a ter seu perímetro delimitado fisicamente pelo Governo do Estado de São Paulo. Esse processo exerceu grande pressão pela expulsão de comunidades tradicionais de suas terras, já que o Petar se sobrepõe aos territórios quilombolas e de comunidades Caboclas. Essa pressão pela expulsão das comunidades ocorreu, e ainda ocorre, apesar dos direitos constitucionais e convencionais desses povos e comunidades, da ocupação centenária dessas áreas por esses sujeitos coletivos e da constatação de que o modo de vida tradicional mantém o maior maciço de Mata Atlântica do Brasil em pé.
Suzana Pedroso, liderança do Quilombo Bombas de Cima, relata os desafios provocados pela sobreposição para a comunidade, que perdeu muitas famílias por conta das inúmeras limitações, principalmente para plantar as roças tradicionais.
"O parque quer dizer que nós não preserva. Nossas famílias nunca destruiu lá. Nunca destruiu a mata. Tem cerca de 25 famílias lá e nós preserva, nós planta e os bichos são os primeiros que comem. Nós sabe trabalhar e nós quer trabalhar livre. O parque levou nosso direito. Eu vivo na roça, eu trabalho na roça, criei meus filho na roça, meu pai me criou na roça", disse.
Na decisão inédita no país e histórica, a juíza reconheceu a invalidade da sobreposição do Petar ao território do Quilombo Bombas, situado na região do Vale do Ribeira, a sudoeste do estado, no município de Iporanga. Após mais de duas décadas de diálogos da comunidade com a Fundação Florestal e com organizações ambientalistas, o conflito derivado das sobreposições não foi resolvido no diálogo. Nesse contexto, a decisão judicial supre a inoperância do Poder Executivo do Governo de São Paulo em resolver essas questões, garantindo direitos às comunidades. Há outros conflitos judicializados que aguardam solução, como no caso das comunidades caiçaras da Juréia e no Quilombo da Fazenda, ambos em São Paulo.
Além disso, a decisão determina a apresentação do cronograma de execução e prazo para início da obra da estrada de acesso ao quilombo, que já fora determinada em decisão liminar anterior, proferida em 2015.
Suzana comemorou a decisão. "Foi muito importante e esse prêmio foi muito merecido. Ela viu o sofrimento do povo. O parque vem oprimindo muito o povo. Ele libera uma parte da roça e depois, mesmo liberado, vem a multa. E nós estamos sofrendo muito com isso. Quem somos nós no mato se a gente não puder viver da nossa roça? Eu me sinto presa, sem poder trabalhar. Era para ter nossa roça de feijão, rama e não tem essa liberação. Antes da instalação do parque, nós era livre. Hoje nós vive com medo, está difícil morar lá", desabafou.
Durante a Feira, Suzana e Hallana se conheceram. Suzana apresentou a família e a agradeceu. Emocionada, a juíza contou que o maior reconhecimento veio da própria comunidade quilombola.
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Encontro entre a juíza Hallana Duarte Miranda e Suzana Pedroso, liderança do Quilombo de Bombas de Baixo|Julio César Almeida/ISA
“Mais do que ganhar prêmio, acho que é o que mais me emocionou, e foi hoje, foi conhecer a dona Suzana, que é membro e liderança da comunidade de Bombas, e ela disse que a decisão para ele significa muito. Então, eu acho que, acima de qualquer teoria, prêmio ou academia, você ver a transformação na realidade, as pessoas sendo protegidas, é a coisa mais satisfatória, não só para mim, mas é a coisa mais satisfatória para quem tem um compromisso mesmo, que os direitos humanos se implementem.”
Trocas que germinam futuro: sementes circulam de mão em mão, fortalecendo a alma da feira|Julio César Almeida/ISA
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Cantos e batuques se somam, com os sons que também fazem florescer a resistência quilombola|Julio César Almeida/ISA
Mais de 300 pessoas se reuniram em Eldorado (SP) para viver dois dias de partilha e celebração na 16ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, encontro que reafirma a força dos quilombolas da região e celebra o Sistema Agrícola Tradicional (SAT), guardião de sementes, histórias e modos de vida.
Nem o céu nublado atrapalhou as conversas, trocas e encontros, que acontecem todos os anos em agosto. A feira recebeu comunidades quilombolas de diferentes municípios da região, estudantes do ensino fundamental ao universitário, organizações sociais, parceiros e autoridades.
A 16ª edição é uma realização Grupo de Trabalho da Roça – GT da Roça, composto por 19 Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira e parceiros como a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone) e o Instituto Socioambiental (ISA). Também apoiaram o evento o Sesc Registro e as Prefeituras de Eldorado, Iporanga e Itaoca.
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Abertura da 16ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira aconteceu em Eldorado|Júlio César Almeida/ISA
Na manhã de 15/08, a feira se inaugurou ao som da palavra quilombola. Com o tema “Educação Quilombola, transmissão de saberes e os desafios da juventude nos territórios”, o seminário de abertura trouxe as vozes dos anciãos Benedita Santos Rocha, do Quilombo Maria Rosa, e João Catá, do Quilombo Nhunguara, guiados pela mediação de Luiz Ketu, do Quilombo São Pedro, escritor e co-autor de obras como Na companhia de Dona Fartura, uma história sobre cultura alimentar quilombola.
Com a proposta de consolidar ainda mais um processo de educação que considere os saberes dos mais velhos sobre o território como conhecimento, a mesa teve falas poderosas, que evidenciaram o compromisso com a cultura quilombola, em todas as suas formas.
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Da esquerda para direita: Luiz Ketu, João Catá e Benedita Santos Rocha|Júlio César Almeida/ISA
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Segunda mesa da parte da manhã discutiu os tempos de hoje e o futuro ancestral - começo, meio e começo|Júlio César Almeida/ISA
“Como é importante a organização, convivência e união para a continuação do nosso antepassado. Eu aprendi muito com meus pais a cuidar da vida. Nós somos os guardiões do nosso território”, explicou Benedita. Segundo ela, seus pais não tinham a sabedoria do papel, mas sustentaram a família de forma abundante, ensinando o cuidado com a natureza e conceitos como sazonalidade e aproveitamento integral dos alimentos.
“Lá na Maria Rosa a gente aprendeu desde pequeno a plantar arroz, feijão, milho. Fomos nos formando na agricultura, na universidade do plantio. Os pais foram nossos professores", disse ela, que também aprendeu com os pais a fazer o plantio sem agrotóxico, cozinhar no fogão a lenha e a valorizar o lugar onde nasceu. Benedita, que aprendeu a escrever seu nome após os 30 anos, se orgulha por hoje dividir mesa com os professores.
Seu João da Mota, mestre no manejo da floresta, aproveitou o momento para relembrar sua primeira professora, Dona Zilda, em 1954, época em que as escolas ainda eram de pau a pique. E hoje eles continuam lutando para repassar aos mais jovens a importância do modo de ser quilombola, inclusive na questão de saúde, que Seu João fez questão de compartilhar: “Eu tenho 71 anos, nunca pousei num hospital, sempre remédio de ervas que eu tomo”.
Luiz Ketu, atualmente Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFScar), agradeceu pela resistência de ambos diante das dificuldades e ressaltou a importância de também abrir caminhos para outros espaços, como a universidade, que foram conquistados graças à luta das comunidades quilombolas aliadas às organizações locais, que motivaram a criação de políticas públicas de inclusão e protocolos de consulta. Para ele, a luta continua.
“A gente precisa fortalecer o território. Ter essa roda aqui envolvendo jovens, mais velhos e mais velhas, crianças faz parte de um processo de luta nosso”, disse em plenária.
Na plateia, estavam estudantes da Escola Estadual Alay Jose Correa Vereador, de Registro; Escola Estadual Nascimento Sátiro da Silva, de Iporanga; Escola Estadual Maria Chules Princesa de Eldorado, além das Escolas Municipais de Educação Infantil e Ensino Fundamental dos Quilombos Sapatu, André Lopes, Nhunguara, Ivaporunduva, Galvão, Cangume e São Pedro.
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As publicações "Roça é Vida" e "Do quilombo à floresta" valorizam conhecimento ancestral das Comunidades Quilombolas|Julio César Almeida/ISA
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Estudantes do Ensino Fundamental e Médio compareceram ao primeiro dia do evento para ouvir e falar sobre sobre seus futuros|Julio César Almeida/ISA
Haviam também estudantes de licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza da Universidade do Paraná (UFPR), e universitários da licenciatura em Educação Escolar Quilombola - Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), em turma composta por 30 estudantes quilombolas, sendo 90% delas mulheres, estavam em aula.
Benedita, ressalta a importância de que os futuros profissionais entendam cada vez mais a importância de voltar para os territórios. "É muito importante estudar. Fora da casa da gente é sofrido, mas é um sofrido compensado. Depois da formatura, ele volta com outro jeito de ver a realidade lá fora".
“A educação quilombola muda o mundo”
Na segunda mesa, “Os tempos de hoje e o futuro ancestral - começo, meio e começo”, Lorrayne Silva, do Quilombo André Lopes, fez a mediação junto com Vaniely dos Anjos Santos Dias, do Quilombo São Pedro, das falas das jovens lideranças Misael Henrique Rodrigues Dos Santos, do Quilombo Galvão; Ana Laura Donato dos Santos, do Quilombo Porto Velho; Letícia Ester França, do Quilombo São Pedro; e Niceia Santos, do Quilombo Maria Rosa.
Os participantes relataram que hoje tem o entendimento sobre o quanto a educação quilombola transforma, mas essa consciência nem sempre foi motivo de orgulho por conta da forma como as comunidades eram representadas no ambiente escolar.
"Os povos tradicionais, as comunidades quilombolas sofreram muito. Quantas pessoas deixaram de ter essa conversa nas escolas? Como alunos, era muito difícil para a gente trabalhar esses temas na sala de aula", lamentou Letícia Ester França em fala sobre racismo ambiental e a educação. Niceia Santos concorda: "Esse preconceito era sofrido também na escola. Eu não falava para os meus colegas que morava em quilombo, tinha vergonha. Mas os tênis estavam cheios de barro."
As lideranças ressaltaram que ações que exaltem a ancestralidade, os modos de ser e viver dentro dos quilombos, são estratégias para dar continuidade à cultura quilombola, e tudo isso passa pela valorização dos mais velhos.
"O conhecimento que eles [os mais velhos] têm, a gente enquanto jovem não tem dimensão disso. É um conhecimento do dia-a-dia, uma troca. No momento que a gente leva os conhecimentos ao território, a gente retorna às nossas raízes. A gente que forma o território", colaborou Misael Henrique, do Quilombo Galvão.
E formar essa consciência é lutar também por infraestrutura, por políticas públicas que cheguem e pela garantia de direitos fundamentais. Tudo isso passa pelo direito ao território. "Estamos abrindo portas, tendo a oportunidade de nos inserir cada vez mais nos espaços de discussão, de enfrentamento, de fazer política", destacou Vaniely dos Anjos Santos Dias.
Viviane Luiz, diretora de seis escolas quilombolas em Eldorado concorda. “Dentro dessa questão da educação como modalidade de ensino, perpassa questões do território, como o transporte escolar, como a merenda escolar. Então a alimentação está no cerne dessa discussão entendendo que a produção da roça, a produção da vida, ela se dá nos territórios quilombolas. E os quilombolas, tanto mulheres quanto homens, são os detentores desse conhecimento.”
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Na preparação do almoço quilombola, ingredientes tradicionais, como palmito e ostras foram utilizados|Julio César Almeida/ISA
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Time que cuidou da alimentação durante a Feira. Arroz, feijão, salada, carne de porco e sucos também fizeram parte do cardápio|Julio César Almeida/ISA
Após o almoço, foi o momento das oficinas simultâneas. Para a confluência de saberes, o evento promoveu discussões sobre comida quilombola, sementes agrícolas e florestais e manejo integrado do fogo.
Alimento é identidade
A oportunidade de partilhar histórias e exaltar a cultura quilombola em torno das comidas é algo que se cria. E esse aspecto ficou explícito durante a mesa “Comida quilombola na escola: a experiência da política Catrapovos no município de Iporanga/SP”, que teve a apresentação de Carlos Ribeiro, assessor técnico do Instituto Socioambiental (ISA), Vanilda Donato, liderança do Quilombo Porto Velho, e Mariana Camargo Relva da Silva, nutricionista da prefeitura de Iporanga.
Os resultados do primeiro ano de implementação da Catrapovos, que abrange sete comunidades, oito escolas e 179 crianças impactadas, surpreenderam o público.
Para Vanilda Donato, ter uma educação que espelha a cultura dos pais e do território é essencial e, segundo ela, esse é um dos ganhos da Catrapovos, por possibilitar um novo olhar das crianças sobre o trabalho dos pais e ainda gera economia dentro da própria comunidade.
“Eu acho que o Catrapovos se tornou um caminho onde se encontrou território e educação, que, por muito tempo, esteve muito distante”, disse. “Se o alimento que o pai e a mãe produz é saudável, se é importante que o pai e a mãe produz, então, viver no território é importante”, completou Vanilda.
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Ainda nos preparativos, legumes plantados no território em seu tratamento final|Julio César Almeida/ISA
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Palmito do Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SATQ)|Julio César Almeida/ISA
A nutricionista Mariana da Silva levantou também a questão dos alimentos industrializados. Por questões logísticas, servir alimentos frescos que chegavam de fora da comunidade era um desafio, o que abria espaço para refeições com altas adições de corantes, aromatizantes, emulsificantes e conservantes, que facilitam o aparecimento de doenças e afasta quem consome da cultura alimentar.
Com a Catrapovos, as sete escolas nos Quilombos Nhunguara, Maria Rosa, Pilões, Piririca, Bombas, Praia Grande e Porto Velho agora conseguem refeições frescas, saudáveis e cheias de histórias. Reeducação alimentar também é resgate cultural.
A implementação da política, a primeira incidência no estado de São Paulo, teve muitos desafios. Carlos Ribeiro explicou que houve um trabalho de apresentação e convencimento das lideranças das comunidades quilombolas e, em seguida, da prefeitura de Iporanga para aderir a esse projeto. Fazer um cardápio alinhado com a produção dos agricultores, fechar a logística de modo que as entregas semanais de alimentos frescos e seguros para consumo fossem garantidas esteve entre os desafios.
“Foram várias reuniões com a prefeitura, com a Secretaria de Educação para convencer sobre a importância desse projeto para o território e também para o município. A incidência começou em 2022 e a primeira chamada pública saiu em 2024. Teve um processo burocrático, desde criar o edital, o levantamento produtivo, como os alimentos seriam entregues nas escolas, então, tivemos bons resultados porque a nutricionista também abraçou isso. A nutricionista foi uma chave fundamental para esse projeto”, ressaltou.
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Roda de conversa com Carlos Ribeiro, Vanilda Donato e Mariana Camargo Relva da Silva discutiu alimentação quilombola nas escolas|Julio César Almeida/ISA
O trabalho foi feito em parceria com os agricultores e as comunidades, entendendo processos de plantio e colheita, sazonalidade e formas tradicionais de fazer. A geração de renda é um dos resultados, principalmente para as mulheres, que são a maioria nesse projeto.
Carlos explica que foram entregues 55 produtos diversos, entre eles arroz do sistema agrícola, feijão, mandioca, farinha de mandioca, frutas e ovo caipira, tudo dentro do hábito alimentar quilombola.
A alimentação no currículo escolar, além de aproximar a criança do território, pode ser usada para ensino de outras matérias, como destacou Vanilda. “Você pode estudar a história do território, você pode estudar a geografia do território, onde que produz isso, onde que é melhor produzir, qual lua que é melhor produzir, você trabalha ciência, trabalha tecnologia, biologia, dá para trabalhar.”
Para além das matérias, fomentar a participação das mulheres, é também um ganho. Vanilda comemora: “quando a gente começou a levar as mulheres para formações, para salas de aula, dentro do movimento, dentro das reuniões, elas começaram a levar com elas os filhos. Então, a gente formou as mulheres e junto com ela formamos a criança”.
Paralelo a isso, as oficinas "Sementes agrícolas e florestais: desafios de conservação e manutenção de variedades", feita em parceria com a Embrapa, e "Manejo integrado do fogo programa Prevfogo", feito em parceria com o Ibama e com a presença da brigada, compartilharam experiências e mostraram a potência das comunidades quilombolas da região.
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A discussão "Sementes agrícolas e florestais: desafios de conservação e manutenção de variedades" compôs a programação|Julio César Almeida/ISA
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Brigadista da Prevfogo participaram da conversa sobre manejo integrado, em parceria com o Ibama|Julio César Almeida/ISA
Aurico Dias, liderança do Quilombo São Pedro e integrante do GT Roça comemorou: “nós não deixamos a nossa cultura morrer, nós queremos que ela continue. E essa continuação é dos jovens, das crianças que estão na escola, então eles têm que aprender os dois lados, tanto falar na roça como sobreviver e na escola, na técnica na escola, para aprender a ler, escrever, aprender os direitos, né? Ter uma aprendizagem melhor, mas não deixa de ser lá da roça e aprender as duas coisas.”
O segundo e último dia foi um momento de pura celebração da cultura quilombola em toda sua essência. A Praça Nossa Senhora da Guia recebeu estandes com diversidade de comidas, artes, artesanatos, sementes e mudas. Na parte mais cultural, apresentações de danças, cantos, a tradicional poesia de Leonila Pontes, do Quilombo Abobral Margem Esquerda, e o puxirão, mostraram a beleza das gerações em harmonia.
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Apresentações culturais no segundo dia de evento tiraram o público para dançar|Júlio César Almeida/ISA
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Nha Maruca do Quilombo Sapatu também teve espaço na Feira de Sementes|Julio César Almeida/ISA
Ao final, o evento reforçou que a educação, a roça, a memória e a ancestralidade caminham juntas, garantindo que o conhecimento, a resistência e a identidade quilombola floresçam em cada semente e palavra trocadas.
João Santos Rosa, do Quilombo Sapatu, se apresentou ao público|Julio César Almeida/ISA
Integrantes do Quilombo Cangume fizeram apresentação de dança|Julio César Almeida/ISA
O arroz preparado nas escolas quilombolas do Vale do Ribeira (SP) pode até parecer igual a outro qualquer. Mas guarda alguns segredos especiais que começam no plantio e garantem um sabor único. As sementes do arroz encontrado nas roças tradicionais nessa região são cultivadas e repassadas por gerações entre os quilombolas, e esse alimento ancestral – assim como outros, como feijão, mandioca, farinha – estão chegando cada dia mais ao prato dos alunos e ganhando espaço em relação a alimentos ultraprocessados.
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O arroz, assim como feijão, mandioca, farinha fazem parte da alimentação tradicional. Na foto, mutirão de colheita do grão no Vale do Ribeira|Marília Garcia Senlle/ISA
Nos próximos dias 15 e 16 de agosto, acontece em Eldorado (SP) a 16ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira. O evento, organizado pelo Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça), celebra a resistência quilombola e promove a troca de sementes e mudas, e um dos temas que serão debatidos é a importância do alimento tradicional na escola.
Na sexta-feira (15/08), será realizada a oficina “Confluência de saberes: Comida quilombola na escola, a experiência da política pública Catrapovos no município de Iporanga/SP”. Na cidade, 95% da alimentação escolar vêm das roças quilombolas. Analista socioambiental do ISA, Carlos Ribeiro explica que a atividade busca informar secretarias de educação, nutricionistas, prefeitos e lideranças da região sobre a iniciativa, reforçando a importância da agricultura tradicional na escola.
A Comissão de Alimentos de Povos Tradicionais (Catrapovos), instituída pelo Ministério Público Federal (MPF), fomenta a adoção da alimentação tradicional em escolas indígenas, quilombolas e de comunidades ribeirinhas, extrativistas, caiçaras, entre outras, em todo o país.
Além disso, o grupo – composto por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil – discute os entraves, desafios e formas de viabilizar as compras públicas da produção de comunidades indígenas e tradicionais, buscando o ajuste do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) às realidades locais.
Uma das conquistas foi a implementação da nota técnica do autoconsumo, que permite que alimentos processados e de origem animal produzidos nas comunidades sejam entregues nas escolas locais. “Isso ajuda os agricultores a entregarem seus produtos de forma mais simples e segura”, explica.
Com isso, as escolas passaram a receber alimentos como pães caseiros, beiju, farinha, frango caipira, ovos, arroz, feijão, mandioca e verduras frescas. Os produtores, na maior parte das vezes, são os familiares dos estudantes.
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Almoço do dia na escola do Quilombo Praia Grande conta com arroz, feijão, salada, legumes e carne|Fellipe Abreu/ISA
No Vale do Ribeira, a Catrapovos é composta pelo ISA, lideranças quilombolas, MPF e representantes de órgãos públicos. A iniciativa do PNAE/Catrapovos está sendo executada em Iporanga, um dos municípios da região, desde 2024. A lista de alimentos fornecidos tem cerca de 50 tipos de produtos das roças tradicionais.
Liderança do Quilombo Porto Velho, mãe, agricultora e estudante de Pedagogia, Vanilda Donato, fala da importância da Catrapovos. “A Catrapovos promove o resgate da cultura alimentar das crianças. A cultura alimentar e a forma de produzir passam a fazer parte da escola. E também acho a coisa mais linda quando as crianças estão comendo aquele alimento que vem do tio, da madrinha, do padrinho, da tia, da mãe. Então a criança passa a ter um reconhecimento do quanto o pai e a mãe também são produtores, são pessoas que contribuem com a renda e para o meio ambiente”, conta.
Vanilda Donato estará na oficina falando de sua experiência, assim como a nutricionista Maryana Camargo, da Secretaria Municipal de Educação de Iporanga, que ressalta que a oficina durante a Feira de Sementes será uma oportunidade para falar sobre o sucesso do programa.
“Em Iporanga, 95% da merenda escolar vêm da produção daqui. Eu consigo abastecer bem as escolas com alimentação de qualidade, sem ultraprocessados e industrializados. É bom para as comunidades, para a identidade e a autonomia. E é importante repassar as informações para que os municípios vizinhos possam conhecer a iniciativa”, diz.
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O SAT Quilombola do Vale do Ribeira é considerado patrimônio cultural brasileiro por cultivo com roças em meio à floresta|Fellipe Abreu/ISA
Segundo ela, o acesso ao alimento melhorou muito. “Como as comunidades tradicionais são distantes da cidade, havia um problema para a entrega. Com a Catrapovos, esse problema acabou. Alimentos como verduras, frutas, pão, bolo e queijo são entregues pela própria comunidade na escola. O cardápio funcionou certinho nessas comunidades tradicionais”, afirma.
A feira também reforça o fortalecimento da agricultura tradicional na região. O Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira é considerado patrimônio cultural brasileiro. A forma de cultivo, com roças em meio à floresta, produz fartura e, ao mesmo tempo, protege o ambiente. Esse sistema de saberes promove regulação climática, cuida da água e da biodiversidade.
A programação da feira inclui seminários, mesas redondas e troca de saberes, promovendo a valorização das sementes tradicionais e das práticas agroecológicas.
Família na escola
Em julho, foi realizada em Iporanga uma oficina que uniu mães de alunos e merendeiras. Durante o encontro foi promovida uma troca de conhecimentos sobre preparo de alimentos tradicionais, possibilitando a aproximação entre quem entrega o alimento – as mães agricultoras - e quem está recebendo e vai preparar os pratos. Além da troca de saberes, houve a possibilidade de se criar um vínculo de confiança.
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Oficina com mães e merendeiras promoveu troca de saberes e aproximação dos quilombos com a comunidade escolar|Programa Vale do Ribeira/ISA
“Na hora de fazer um arroz com frango caipira, cada uma fez à sua maneira. Mas o que teve de importante foi a troca de emoção. A mãe faz a forma que aprendeu com as avós. As merendeiras, do jeito que aprenderam na escola. Mas a receita acabou ganhando mais uma ligação afetiva. Quando forem fazer, vão lembrar das histórias! Foi uma forma de aproximar os quilombos da escola”, finaliza a nutricionista Maryana Camargo.
Serviço
16ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas
Dias 15 e 16 de agosto em Eldorado, SP
Participação gratuita
Programação:
15/8 das 9h30 à 12h30
Seminário: Educação Quilombola, transmissão de saberes e os desafios da juventude quilombola nos territórios.
Mesa redonda 1: No tempo dos Avós.
Mesa redonda 2: Os tempos de hoje e o futuro ancestral - começo, meio e começo.
15/8 das 14h30 às 16h
Momento da prosa: Confluência de saberes
Comida quilombola na escola, a experiência da política pública Catrapovos no município de Iporanga/SP.
Sementes agrícolas e florestais: desafios de conservação e manutenção de variedades.
Manejo Integrado do Fogo - Programa Prevfogo.
16/08 das 9h às 14h
16ª Feira de Trocas de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira com tradicional almoço quilombola
Local: Praça Nossa Senhora da Guia/Eldorado/SP.
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