Já está no ar o painel Amazônia Quilombola, plataforma que permite visualizar informações sobre o número, a extensão, localização e a conservação dos territórios e comunidades quilombolas da Amazônia Legal. A ideia é ampliar a visibilidade e o acesso público sobre o tema e fortalecer sua presença na agenda climática, em especial na COP30, conferência internacional sobre o assunto que acontece entre 10 e 21/11, em Belém (PA).
O site disponibiliza um mapa interativo, com um sistema de pesquisa, contabilização e filtragem de dados, coletados, sistematizados e analisados de forma inédita. Traz cômputos gerais, perguntas e respostas, um tutorial de navegação e a nota técnica que subsidiou todo o trabalho, lançada na semana passada – Amazônia Quilombola: Ampliando a Cartografia sobre os Quilombos na Amazônia Legal.
O painel e a análise são fruto de uma parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e suas coordenações estaduais amazônicas.
A iniciativa consolidou, pela primeira vez, os dados de diversas fontes oficiais e comunitárias em um único mapeamento, com validação participativa de 112 representantes quilombolas, em oficinas e reuniões realizadas ao longo de dois meses em sete estados da Amazônia Legal: Amazonas, Pará, Maranhão, Amapá, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso.
A dispersão de dados e a multiplicidade de metodologias de mapeamento em vários órgãos públicos – como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o IBGE, a Fundação Cultural Palmares (FCP), o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e institutos de terras estaduais – vêm dificultando por décadas a produção de números precisos sobre essas áreas em todo país. A iniciativa promete apoiar a solução do problema.
O painel será apresentado no dia 18/11, às 16h, no pavilhão do ISA e da Rainforest Foudation (RFN) na Zona Azul da COP 30, a conferência internacional sobre mudanças climáticas que vai acontecer em Belém, de 11 a 21/11.
Números
A pesquisa identificou 632 territórios quilombolas, número 280% maior que o registrado nos bancos de dados espaciais do Incra, órgão responsável pelo reconhecimento oficial dessas áreas na esfera federal. Juntos, esses territórios somam mais de 3,6 milhões de hectares, 88% a mais que os dados espaciais do órgão fundiário e o equivalente à extensão de Alagoas ou da Bélgica.
De acordo com a pesquisa, a concentração no número de territórios está nos estados do Maranhão (64%) e Pará (25%). Em extensão, o Pará vem em primeiro lugar, com 1,4 milhão de hectares ou 40% do total; o Amazonas fica em segundo lugar, com 753,4 mil hectares ou 20% do total; e o Tocantins, em terceiro lugar, com 607,9 mil hectares, 17% do total.
O levantamento indicou ainda 2.494 “quilombos” ou comunidades quilombolas, incluindo 287 que não apareciam em nenhuma base pública.
Segundo a metodologia usada, os quilombos são indicados no mapa com um ponto, compreendendo áreas de habitação, com um número variável de famílias, de agricultura, extrativismo, pesca etc. Já o território quilombola reúne um ou mais quilombos, tem um perímetro definido por algum procedimento oficial ou mapeamento autônomo dos quilombolas e é representado por um polígono.
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Coleta de açaí no território quilombola de Alcântara (MA) | Ana Mendes / Imagens Humanas
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Coleta de açaí no território quilombola de Alcântara (MA) | Ana Mendes / Imagens Humanas
Um estudo inédito, lançado nesta quinta (30), mostra que a presença quilombola na Amazônia Legal é muito mais ampla do que os registros oficiais indicam. E que os territórios ocupados e protegidos por essas populações são fundamentais para a conservação da floresta. O trabalho é fruto de uma parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e suas coordenações estaduais.
A nota técnica Amazônia Quilombola: Ampliando a Cartografia sobre os Quilombos na Amazônia Legal identificou 632 territórios quilombolas, número 280% maior que o registrado nos bancos de dados espaciais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pelo reconhecimento oficial dessas áreas na esfera federal. Juntos, esses 632 territórios somam mais de 3,6 milhões de hectares, 88% a mais que os dados espaciais do órgão fundiário e o equivalente à extensão de Alagoas.
De acordo com a pesquisa, a concentração no número de territórios está nos estados do Maranhão (64%) e Pará (25%). Em extensão, o Pará vem em primeiro lugar, com 1,4 milhão de hectares ou 40% do total; o Amazonas fica em segundo lugar, com 753,4 mil hectares ou 20% do total; e o Tocantins, em terceiro lugar, com 607,9 mil hectares, 17% do total.
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Oficina do projeto Amazônia Quilombola em São Luís (MA) | ISA
O levantamento indicou ainda 2.494 “quilombos” ou comunidades quilombolas, incluindo 287 que não apareciam em nenhuma base pública. Segundo a metodologia usada, os quilombos são indicados no mapeamento com um ponto de localização, compreendendo diferentes tipos de ocupação, desde áreas de habitação, com um número variável de famílias, até aquelas de uso temporário para agricultura, extrativismo, caça etc. Já o território quilombola abrange um ou mais quilombos, tem um perímetro definido por algum procedimento oficial ou mapeamento autônomo dos quilombolas e são representados cartograficamente por um polígono.
O trabalho consolidou, pela primeira vez, os dados de diversas fontes oficiais e comunitárias em um único mapa, com validação participativa de 112 representantes quilombolas em oficinas e reuniões realizadas ao longo de dois meses nos estados da Amazônia Legal (exceto Acre e Roraima).
A dispersão de dados e a multiplicidade de metodologias de mapeamento em vários órgãos públicos, como o Incra, o IBGE, a Fundação Cultural Palmares (FCP) e institutos de terras estaduais, vem dificultando por décadas a produção de números precisos sobre essas áreas em todo país. A iniciativa promete apoiar a solução para o problema.
A partir da base de dados levantada, foi desenvolvido um painel com um mapa interativo que será apresentado no dia 18/11, às 16h, na Zona Azul da COP 30, a conferência internacional sobre mudanças climáticas que vai acontecer em Belém, de 10 a 21/11. A ideia é ampliar a visibilidade e o acesso público às informações sobre os os territorios quilombolas e fortalecer sua presença na agenda climática.
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Pescador no território quilombola de Alcântara (MA) | Ana Mendes / Imagens Humanas
Vulnerabilidade social e ambiental
Apesar da expressiva presença territorial, quase metade (47%) dos quilombos mapeados não têm sequer a delimitação, e apenas 160 territórios estão titulados integralmente. A falta de regularização mantém milhares de quilombolas em situação de vulnerabilidade social e ambiental. Mais de 49% das comunidades sequer passaram da primeira etapa do processo: a certificação pela FCP.
“A invisibilidade nos dados oficiais é uma das expressões mais graves do racismo ambiental. Quando o Estado não reconhece esses territórios, nega às comunidades o direito à terra e desconsidera o papel que elas cumprem na proteção da floresta”, afirma Antonio Oviedo, pesquisador do ISA. “O que o levantamento mostra é que o Brasil ainda não enxerga toda a extensão da contribuição quilombola para o equilíbrio climático e a conservação da Amazônia", avalia.
“O levantamento também mostra a importância da autodeclaração, que ocorre quando essas comunidades decidem como é a ocupação do território, inclusive informando seus limites. Isso ocorre quando a comunidade quilombola entra no sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) ou na Plataforma Territórios Tradicionais, do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), e informa ao Estado algum aspecto do seu território”, explica Oviedo.
Florestas quilombolas
A extensão dos territórios quilombolas mapeados preservada chega a 92%, considerando florestas e outras formações de vegetação nativa. Em estados como o Amazonas, o número chega a 99%. Desde 1985 até 2022, esses territórios perderam apenas 4,7% de sua cobertura florestal original, uma redução mínima quando comparada a das áreas privadas (17%).
“Os dados demonstram que os territórios quilombolas funcionam como barreiras contra o avanço do desmatamento e das queimadas”, destaca Oviedo. “Fortalecer a proteção e titular esses territórios é uma das formas mais eficazes de combater a crise climática”, defende.
Os resultados evidenciam que, à medida que o reconhecimento territorial dos quilombos avança, aumenta o nível de proteção das florestas.Territórios titulados preservam 91% de sua cobertura original, enquanto nos não titulados esse índice cai para 76%. A diferença nas taxas de desmatamento é expressiva: as áreas tituladas perderam 60% menos floresta do que as não tituladas.
Um dos resultados mais preocupantes do levantamento diz respeito aos territórios quilombolas autodeclarados ainda sem certificação. Nessas áreas, a taxa de proteção da cobertura florestal é 45% menor do que nos territórios titulados e 34% inferior em relação aos que, embora não titulados, já contam com algum reconhecimento oficial, refletindo diretamente na taxa de perda florestal.
O estudo do ISA e da Conaq também aponta um aumento de 1.248% da área ocupada por atividades agropecuárias, que implicam desmatamento, dentro dos territórios sem certificação, um indício de crescente pressão de invasores. “Os dados reforçam a urgência da titulação e do reconhecimento oficial dessas comunidades, além da necessidade de investigar ocupações irregulares que comprometem seus direitos e a integridade ambiental das áreas”, alerta Francisco das Chagas Souza, assessor técnico da Conaq.
O reconhecimento oficial ou a “regularização” fundiária dos territórios quilombolas visa garantir o direito à propriedade das terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas. Envolve a certificação, identificação, delimitação, demarcação, titulação e, eventualmente, a desapropriação de áreas privadas e a retirada de não quilombolas.
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Oficina do projeto Amazônia Quilombola em São Luís (MA) | ISA
Políticas Públicas
Além de revelar a magnitude da presença quilombola na Amazônia, a base de dados construída pelo estudo oferece um instrumento estratégico para o aprimoramento das políticas públicas de reconhecimento e planejamento territorial. O levantamento poderá, por exemplo, apoiar a atualização do Cadastro de Setores Censitários Especiais de Quilombo e a ampliação da cobertura do Censo Agropecuário sobre áreas quilombolas, ambos do IBGE.
“O reconhecimento desses territórios é mais do que uma demanda de reparação histórica: é uma estratégia de futuro para a Amazônia. Garantir os direitos quilombolas é também garantir a resiliência climática e a soberania alimentar da região”, conclui Oviedo.
Metodologia
Em uma metodologia inédita, o estudo combinou fontes de dados governamentais, como o Incra, a FCP, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e órgãos fundiários estaduais, e mapeamentos autônomos dos quilombolas. A pesquisa envolveu lideranças de vários estados, com oficinas presenciais em cidades como Cuiabá, Macapá e São Luís, além de reuniões virtuais com representantes quilombolas dos estados do Pará, Rondônia, Amazonas e Tocantins.
A validação participativa foi ponto central: 112 representantes quilombolas revisaram, confirmaram e corrigiram informações sobre a localização e o reconhecimento das áreas, analisando inclusive dados do IBGE e incorporando 287 quilombos não mapeados oficialmente. Ao final, 81% das comunidades levantadas foram validadas, produzindo um mapa estratégico, essencial para políticas públicas de reconhecimento territorial e planejamento ambiental.
“Esse mapeamento é um instrumento construído com e pelas próprias comunidades quilombolas. Ele comprova não só que existimos, mas que somos responsáveis por proteger as florestas e a biodiversidade nesses territórios”, afirma Daniele Bendelac, da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu).
Segundo ela, cada ponto e polígono do mapa reflete o conhecimento acumulado pelas pessoas que vivem e cuidam desses lugares, e demonstra que as comunidades são também guardiãs do meio ambiente. “Essas informações mostram a força dos nossos processos de autodeclaração e resistência. Mesmo diante das tentativas de invisibilização, mostramos que nossos territórios estão vivos e que seguimos contribuindo para a preservação da Amazônia e para o enfrentamento da crise climática.”.
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Indígenas entregam ao governo proposta de comissão para apurar crimes históricos
Minuta propõe criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade para investigar violações do Estado e garantir memória, reparação e justiça
Ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, recebe das mãos de Elisa Pankararu (Apoinme/Apib) a minuta de decreto que propõe a criação da CNIV | Leobark / Secom / MPF
Com o lema “Sempre estivemos aqui!”, lideranças indígenas de todas as regiões do país entregaram ao governo, nesta terça-feira (21/10), em Brasília, uma minuta de decreto que propõe a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV). O evento reuniu mais de 130 pessoas e marcou um momento histórico na luta dos povos indígenas por memória, verdade, justiça e reparação das graves violações cometidas ao longo da história do Brasil.
A proposta retoma uma recomendação feita há mais de uma década pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), que apontou a morte de ao menos 8.350 indígenas por ações e omissões do Estado entre 1946 e 1988. O número é quase vinte vezes maior que o de mortos e desaparecidos políticos reconhecidos oficialmente.
A minuta é resultado dos trabalhos do Fórum Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas, capitaneado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O texto propõe que a CNIV seja instalada na Secretaria-Geral da Presidência da República e composta por 14 membros, metade indicada pela Apib e metade pelo Fórum. Com duração de três anos, a comissão teria poderes para investigar assassinatos, remoções forçadas, genocídios, torturas e esbulhos territoriais, além de identificar responsáveis e propor medidas de reparação. O relatório final seria público e traduzido para as línguas indígenas (veja abaixo).
Paulino Montejo, articulador político da Apib, destacou a importância da medida para firmar um novo pacto do Estado com os povos indígenas. “A violência contra os povos indígenas, desde a criação do Estado brasileiro, do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), foi uma política de Estado. A justiça que queremos também precisa ser resultado de políticas de Estado, estruturantes, permanentes e baseadas no direito à terra e à vida. A sociedade civil fez sua parte; agora esperamos que o Estado se sensibilize, se posicione e dê uma resposta histórica aos nossos povos”, afirmou.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, recebeu o documento em nome do governo, ao lado de representantes do Ministério Público Federal (MPF), da Defensoria Pública da União (DPU) e dos ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC).
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Lideranças indígenas, representantes do governo e integrantes do Fórum Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas durante a entrega da minuta de criação da CNIV, em Brasília | Leobark / Secom / MPF
Sonia afirmou que receber o documento significa “um compromisso com a reparação pelo passado e pelo presente”, lembrando que as violências contra os povos indígenas seguem acontecendo. “Temos uma história difícil, sangrenta, muitas vezes cometida pelo próprio Estado. Ainda hoje há indígenas com cabeça decepada, corpos esquartejados e queimados dentro de suas casas”, disse.
A cerimônia de entrega da proposta homenageou o pesquisador Marcelo Zelic, que dedicou sua vida à documentação das violações contra os povos indígenas e foi um dos primeiros a defender a criação da comissão. Zelic faleceu em 2023.
Elisa Pankararu, da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), emocionou o público: “Falar em uma Comissão Nacional Indígena da Verdade é dizer que a nossa verdade é uma verdade que dói, porque é uma violência contra os corpos-território: os corpos das pessoas, das árvores, dos rios, das águas, dos animais, do ar, da terra. Não somos apenas pessoas, nós somos parte. Nós não somos usuários desse sistema, como está na cultura de vocês. Nós somos parte dele.”
Para ela, a criação da CNIV é mais do que um instrumento institucional: é o reconhecimento de uma verdade histórica que persiste como ferida aberta.“A história desse país é banhada pelo sangue indígena. É uma história construída sobre o sangue indígena, negro, camponês, das periferias, das mulheres e meninas, e é uma história que oficialmente não se conta, mas que os nossos nos contam.”. Elisa evocou os anciãos indígenas para falar da persistência da memória e da dor: “Os meus mais velhos dizem que quem bate esquece, e quem apanha lembra. Essa é a filosofia de quem sofre, de quem carrega a dor e a memória”.
Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, definiu a entrega como um marco histórico. “O dia de hoje marca um passo importantíssimo para o futuro dos povos indígenas do Brasil na garantia de direitos, na proteção dos nossos povos e na construção de políticas públicas alinhadas aos territórios. Há 525 anos enfrentamos uma história de muita violência e violações de direitos. A criação da CNIV representa um passo na reparação contra todos os crimes cometidos e um compromisso para que essas violações não se repitam.”
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Paulino Montejo, da Apib, fala durante a entrega da proposta de criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), ao lado de Marlon Weichert (MPF), Deborah Duprat (Fórum), Eliane Moreira (Obind/UnB) e Daniela Greeb (IPR) | Leobark / Secom / MPF
Reconhecimento da CNV
Em 2014, a CNV reconheceu pela primeira vez as violações de direitos humanos dos povos indígenas, mas também que seu trabalho foi insuficiente para abranger esses casos e recomendou a criação de uma comissão específica para aprofundar essas investigações. Já em 2024, a Comissão de Anistia reconheceu e pediu perdão pelas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro contra dois povos: os Guarani Kaiowá, da Terra Indígena Guyraroká, e os Krenak, vítimas de perseguição, tortura, trabalho forçado, prisões e deslocamentos compulsórios.
“Esses gestos do Estado brasileiro são importantes, mas incipientes”, avalia a antropóloga Tatiane Klein, do Instituto Socioambiental (ISA), que participou da construção da proposta. Segundo ela, as violações contra indígenas apenas começaram a ser reconhecidas e a criação da comissão seria o passo seguinte. “A criação da CNIV tem estado na pauta do movimento indígena há anos, inclusive porque muitas dessas violações continuam no presente, como é o caso do povo Guarani Kaiowá. É urgente tirar essa instância do papel, não só para avançar nas investigações, mas assegurar o direito indígena à memória, verdade, justiça e reparação”.
A ex-subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, que é integra o Fórum, destacou que a proposta tem base constitucional: “O artigo 16 da Constituição de 1988 determina que é dever do Estado garantir aos povos que compõem a sociedade brasileira os seus espaços de memória.” Segundo Duprat, a CNIV deve considerar uma temporalidade ampla, “desde a conquista até os dias atuais”, e adotar a oralidade como metodologia central, reconhecendo o direito dos povos indígenas de contarem suas próprias histórias.
O coordenador-Geral de Memória e Verdade e de Apoio à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Hamilton Pereira da Silva, destacou a importância de recordar e honrar lideranças indígenas que marcaram a história da resistência. Ele evocou nomes como Marçal de Souza, que em 1980 levou a palavra dos povos indígenas a João Paulo II em Manaus; Ângelo Pankararu, Ângelo Kretã e a memória do povo Tapirapé, que nos anos 1950 quase desapareceu, mas ressurgiu pela reconquista de suas terras, língua e cultura. Pereira da Silva também lembrou tragédias como o assassinato na Terra Indígena Bororo, em 1976, do padre Rodolfo Lunkenbein e do indígena Bororo Simão. “Em nome deles, em nome dessa história, que de alguma maneira eu pude testemunhar ao longo da minha própria trajetória, eu queria receber [a minuta] em nome do ministério e assumir aqui o compromisso com essa causa”, afirmou.
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Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, durante a entrega da proposta de criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV) | Leobark / Secom / MPF
Investigação enraizada nos territórios
Além dos trabalhos do fórum, que sistematizou informações de mais de 80 casos de violação de direitos, a Apib vem desenvolvendo uma metodologia própria de escuta para investigar as violações – liderada por pesquisadores indígenas. Relembre.
Braulina Baniwa, coordenadora da iniciativa, explicou que a metodologia combina conhecimento acadêmico e vivência territorial, priorizando diálogo direto com lideranças. A pesquisa segue modelo flexível, adaptado a cada realidade local, evitando a coleta de informações sem retorno às comunidades. “Produzimos uma metodologia de caminho sem violência, que respeita o tempo e o espaço das comunidades, e garante que a pesquisa não seja apenas uma retirada de informação do território.”
A psicóloga e pesquisadora Rafaela Andrade, do povo Kambeba (AM), elogiou a abordagem: “Estamos trabalhando só com pessoas indígenas, de diversas áreas, como psicólogos, jornalistas, antropólogos, para que a pesquisa seja de indígena para indígena. Isso fortalece a autonomia e a confiança nos territórios.” Andrade destacou que, diferentemente de estudos anteriores conduzidos por pesquisadores não indígenas, essa metodologia promove conexão direta com as comunidades e valoriza saberes e experiências próprias. A pesquisa já foi apresentada em seminários nos territórios, como com a Comissão Guarani Yvyrupa em Piraquara (PR), no Tekoha Ywy Djú. “Eles foram muito receptivos, porque esses seminários foram desenvolvidos para eles, para debater sobre seu próprio povo e as violências que sofreram no Brasil”, disse.
Objetivos da CNIV
Investigação e elucidação dos fatos
• Elucidar os fatos e as circunstâncias de casos de graves violações aos direitos dos povos indígenas. • Incluir no escopo da investigação os casos referidos pela Comissão Nacional da Verdade que tenham relação com a questão indígena. • Investigar especificamente violações como assassinatos, genocídios, remoções forçadas, torturas, mortes, desaparecimentos forçados, sequestros, ocultações de cadáveres, esbulhos de suas terras e discriminações. • Localizar e identificar corpos e restos mortais de pessoas desaparecidas.
Identificação de responsáveis e danos
• Identificar locais, estruturas, instituições públicas e privadas (militares, civis, inclusive empresariais ou sem finalidades lucrativas), e pessoas, que sejam responsáveis direta ou indiretamente pelas violações. • Identificar danos aos bens, direitos, valores, culturas e costumes indígenas.
Cooperação e reparação
• Revelar a verdade histórica. • Colaborar com todas as instâncias dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para a apuração e responsabilização dos autores das violações. • Colaborar para que seja prestada assistência às vítimas remanescentes das graves violações. • Recomendar medidas para a reparação integral dos povos indígenas lesados, o que inclui restituição de direitos, compensações e reabilitações. • Recomendar providências de caráter suficiente e políticas públicas para prevenir a violação de direitos indígenas e assegurar sua não repetição.
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Senado começa a discutir mineração em Terras Indígenas
Expectativa de relator de Grupo de Trabalho, senador Rogério Carvalho (PT-SE), é votar uma proposta de legislação até março
Atualização: informamos inicialmente que o prazo final do Grupo de Trabalho (GT) de Mineração em Terras Indígenas do Senado seria o final de março de 2026; na página oficial do colegiado, no entanto, o prazo que consta é de 30/5/2026. O relator do GT, Rogério Carvalho (PT-SE), também admitiu que, dependendo do ritmo do trabalho, a proposta de legislação pode ser votada até o final de março ou ainda este ano.
Texto atualizado em 27/10/2025 às 11:15.
O Grupo de Trabalho (GT) sobre Mineração em Terras Indígenas criado pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), foi instalado na tarde desta terça (21). Foram referendadas as indicações de Rogério Carvalho (PT-SE), como relator, e de Marcos Rogério (PL-RO), como vice-presidente. Também foi aprovado o regulamento interno.
Em seguida, a presidente do colegiado, Tereza Cristina (PP-MS), finalizou os trabalhos. Ela foi igualmente escolhida por Alcolumbre. A próxima reunião está marcada para o dia 4/11.
Carvalho informou que seu objetivo inicial seria fechar uma proposta de legislação até o final do ano e votá-la no final de março. Ele admite, no entanto, que a votação pode acontecer ainda este ano. "A ideia é conseguir terminar o trabalho este ano e poder votar no começo do próximo ano ou ainda este ano", afirmou em entrevista à reportagem do ISA.
“Vai depender do andar dos trabalhos, se tiver muita demanda, muita discussão, isso pode requerer um pouco mais de tempo. É o trabalho que vai definir se vai prorrogar um pouquinho ou se vai antecipar”, disse.
Questionado sobre a oposição do movimento indígena à mineração nas TIs, Carvalho lembrou que a Constituição prevê a regulamentação do assunto pelo Congresso. “Vamos ver como é que a gente contempla todas as posições, a essência de cada posição, para que não haja nenhum tipo de violação aos direitos dos povos originários do Brasil”, defendeu.
O GT é um tipo de colegiado que não está previsto nas normas internas do Congresso. Por causa disso, não tem as mesmas restrições e controles das comissões temáticas e temporárias convencionais. Nos últimos anos, vêm sendo usado pelas cúpulas das duas casas legislativas para evitar o aprofundamento de debates legislativos e uma maior transparência sobre eles.
A instalação do GT acontece pouco mais de sete meses depois de uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino que exige que o Legislativo regulamente em até dois anos os dispositivos da Constituição que mencionam a exploração econômica dos recursos das TIs.
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Sessão esvaziada em que foi instalado o Grupo de Trabalho de Mineração em Terras Indígenas no Senado | Saulo Cruz / Agência Senado
Plano de trabalho
De acordo com a assessoria da liderança do governo, o plano de trabalho que deverá ser apresentado por Carvalho na próxima sessão vai indicar uma lista de, pelo menos, oito projetos já em tramitação que servirão como base para a discussão. A ideia é ter reuniões semanais, além de seis audiências públicas para ouvir os atores envolvidos e que deverão acontecer quinzenalmente. Carvalho não descarta visitas a comunidades indígenas impactadas pela mineração.
Além do relator, de Cristina e Marcos Rogério, apenas o senador Zequinha Marinho (PL-PA), conhecido como um defensor do garimpo em TIs, esteve na sessão desta terça. Os três parlamentares da oposição sinalizaram qual deve ser o discurso ruralista ao longo dos trabalhos: a legalização da atividade minerária supostamente tiraria as comunidades indígenas da pobreza por meio das compensações pagas pelas empresas.
A justificativa ignora, porém, todos os impactos socioambientais graves que a mineração e o garimpo trazem para essas populações, além dos seus conhecimentos e práticas tradicionais de produção de alimentos e manejo da paisagem, por exemplo, que são capazes de garantir boas condições de vida.
“Por falta de regulamentação, muitos povos originários são hoje impedidos de beneficiar-se de uma riqueza presente no subsolo de suas terras, dentro de um marco legal comprometido com seus direitos e com a proteção ambiental”, afirmou Tereza Cristina, considerada a principal defensora da mineração de grande escala no colegiado e uma das ruralistas mais influentes do Congresso.
“Esse argumento já existe há mais de 525 anos. Há mais de 525 anos eles vêm dizendo que a gente vai ter nossas terras, que vamos receber uma compensação [pelos impactos que sofremos]. Mas há mais de 500 anos a gente vê morte, doença, violência contra nosso povo”, contrapôs Alessandra Korap Munduruku, presidente da Associação Pariri do Povo Munduruku do Médio Tapajós. Ela acompanhou a sessão de abertura do GT.
“Não vai ser agora que vai resolver a mineração nas nossas terras”, complementou. “A gente é contra a mineração”, ressaltou. Alessandra também faz parte da Aliança em Defesa dos Territórios, formada pelos povos Yanomami, Munduruku e Kayapó para lutar contra a atividade mineradora em suas terras.
Os outros integrantes do GT são: Eduardo Braga (MDB-AM), Plínio Valério (PSDB-AM), Mecias de Jesus (Republicanos-RR), Rodrigo Pacheco (PSD-MG), Efraim Filho (União-PB), Weverton (PDT-MA) e Cid Gomes (PSB-CE).
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Garimpo registrado em 2021 na Terra Indígena Yanomami (RR) | Divulgação
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O melhor das COPs é o lado de fora
O sócio-fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, fala sobre a força e potencial das mobilizações da sociedade civil nas COPs em geral e na conferência de Belém, no mês que vem
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
COP quer dizer “Conferência das Partes” e é a reunião entre os países, membros da ONU, que participam de um determinado tratado ou convenção. São reuniões periódicas, em que os diplomatas negociam acordos e ações conjuntas, atualizam dados e avaliam a evolução da implementação desses tratados.
COP costuma ser assunto de especialistas, de pouco interesse para os comuns mortais. Mas, no Brasil, nunca se falou tanto de COP como agora, quando se aproxima a realização, em Belém (PA), no mês que vem, da COP-30, a trigésima conferência sobre a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, assinada pelos chefes de estado em 1992, no Rio de Janeiro. O evento chega à Amazônia 33 anos depois.
Quase todo mundo quer ir a Belém. Para os de fora, é uma oportunidade especial para estar na Amazônia, numa encantadora capital cheia de mangueiras e de manguezais, além, claro, de milhões de paraenses. Para os de dentro, é hora de atrair, da multidão visitante, apoiadores para projetos mais perenes.
Zona Azul
Zona Azul é como se chama a área em que ocorrerá a reunião oficial. Espaço nobre, auditórios, restaurantes. Uma cidadela dentro da cidade. É lá que circularão as delegações e as personalidades, é onde se farão as reuniões formais e se chegará, ou não, a novos acordos sobre o clima. É o foco da badalação.
Os representantes oficiais dos governos têm presença garantida. Mas, para os da sociedade civil e do movimento social, exige-se um crachá específico, que está sendo disponibilizado a conta-gotas e, no momento, é o objeto de desejo de meio mundo. Afinal, deslocar-se até Belém e não pisar na Zona Azul, pode soar bem mal.
Significa que apenas algumas centenas ou poucos milhares de pessoas, entre as centenas de milhares que estarão em Belém, vão poder, de fato, acompanhar ou participar diretamente das negociações. Sem esquecer que há muitas cartas marcadas nesse jogo e quem o decide já deve ter decidido antes dele começar.
Nem tudo estará azul nessa zona. Os Estados Unidos, maior emissor histórico de gases do efeito estufa e segundo maior emissor atual, estão, sob a presidência de Donald Trump, retirando-se outra vez das negociações internacionais. O confronto entre a Rússia e a Ucrânia continua e a paranóia da guerra espalha-se pela Europa, que está investindo pesado em armas em vez de combater a fome, a violência e o efeito estufa.
Até agora, a maioria dos países ainda não apresentou as suas NDCs, que são as propostas em que definem as medidas que pretendem tomar e as metas de redução de emissões que se dispõem a cumprir nos próximos anos. Apesar do agravamento da situação climática, dos prejuízos e sofrimentos que ela acarreta, poucos países aumentarão os seus esforços e as perspectivas, principalmente para os povos mais vulneráveis, são sombrias.
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Obras preparatórias em Belém para a COP 30 | Alexandre Costa / Agência Pará
Lado de fora
Não valerá a pena ficar muito tempo de bobeira na Zona Azul. Belém estará repleta de espaços alternativos, com muitos eventos políticos e culturais, com informações e debates essenciais, produtos da floresta, festas e gentes de todas as cores e amores. O Museu Emílio Goeldi estará aberto ao público, que terá acesso a um pouco do melhor conhecimento científico disponível sobre a Amazônia.
Estarão em Belém milhares de representantes indígenas, quilombolas, afrodescendentes, extrativistas e agricultores familiares de todas as partes da Pan-amazônia, e só alguns terão acesso à Zona Azul. Mas eles estarão relatando as suas experiências em enfrentar os impactos da mudança climática nos seus territórios. Haverá manifestações massivas pelas ruas e praças da cidade.
Todo mundo estará torcendo para que a COP-30 seja um sucesso, que mais países apresentem suas NDCs e que haja acordo em torno de metas mais ousadas de redução de emissões. Também se espera que mais recursos sejam disponibilizados para bancar a adaptação dos países e povos mais vulneráveis à mudança do clima. Tomara que a China, maior emissora atual, e o Brasil, como anfitrião, anunciem novas providências e ocupem os espaços vazios nas negociações.
Os processos multilaterais são complexos, penosos e lentos ao extremo. São as pressões de fora para dentro que podem movê-los. Tragédias climáticas instigam as consciências, mas só o clamor das ruas pode mover as montanhas. Em todas as COPs, o melhor sempre esteve do lado de fora. Em Belém, não será diferente.
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Histórico e inédito: quilombolas lançam NDC para a COP30 em Belém
Documento propõe metas de reparação racial e justiça climática, reforçando o protagonismo quilombola nas negociações internacionais
O movimento quilombola apresentou, pela primeira vez, nesta quarta (15), uma Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) própria, elaborada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) – principal organização representante dos quilombolas no Brasil – com apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA).
As NDCs são compromissos que cada país define de forma voluntária para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e se adaptar aos impactos das mudanças climáticas. Eles devem ser apresentados no âmbito das negociações internacionais sobre mudanças climáticas.
O documento foi proposto como um anexo estratégico à NDC oficial do Brasil e busca garantir o protagonismo quilombola nas negociações da COP30, a conferência internacional sobre mudanças climáticas que acontece em novembro, em Belém (PA).
A iniciativa da Conaq é considerada histórica por buscar colocar no centro da agenda climática comunidades vitais para a conservação das florestas, mas historicamente excluídas das políticas ambientais. A NDC Quilombola lembra que ignorar os quilombos no debate climático perpetua uma lacuna grave e representa uma ineficiência estrutural na política climática do país.
Para Biko Rodrigues, articulador político da Conaq, a entrega de uma NDC própria prova que os saberes ancestrais e o modo de vida quilombola são fundamentais para enfrentar a crise climática. “Mais do que um documento, é um chamado para que o país e o mundo reconheçam o protagonismo dos povos quilombolas e afrodescendentes”.
“Com essa NDC própria, afirmamos nosso lugar de sujeito político, mostramos que nossos modos de vida protegem. Nossos quilombos são muito mais que resistentes a antigos regimes escravocratas, somos também a resposta do futuro. Não há justiça climática, sem território titulado”, afirma.
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NDC quilombola foi lançada em evento em Brasília com participação de representantes da Conaq, do governo e de organizações da sociedade civil | Ana Flávia Barbosa / Instituto de Referência Negra Peregum
Metas da NDC Quilombola
Diante desse cenário, a NDC Quilombola apresenta propostas estratégicas e metas concretas até 2035. Entre elas, estão a titulação integral de 44 territórios até 2026 e de 536 até 2030, alcançando 2 milhões de hectares e a suspensão imediata dos Cadastros Ambientais Rurais (CARs) sobrepostos a territórios quilombolas.
Também propõe a criação de uma força-tarefa judicial para agilizar 300 ações contra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pela titulação desses territórios na esfera federal. A proposta inclui ainda a destinação prioritária de florestas públicas a 55 comunidades quilombolas da Amazônia.
Além disso, a NDC prevê a implementação de políticas de pagamento por serviços ambientais (PSA) e de manejo tradicional em 300 territórios, com potencial de contribuir com até 160 milhões de toneladas de carbono.
“Esperamos que o Estado brasileiro compreenda que não existe transição ecológica justa sem a presença dos quilombos. Queremos que esse documento seja levado em consideração nas políticas climáticas e que gere compromissos concretos de parceria, respeito e investimento. Nossa expectativa é que o Brasil e o mundo entendam que proteger os quilombos é também proteger o futuro do planeta. Titulação já!”, enfatiza Rodrigues.
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Selma Dealdina e Xifroneze Santos (Conaq), Milene Maia (ISA), Aurélio Vianna (Tenure Facility) e Douglas Belchior (Peregum) no lançamento da NDC Quilombola em Brasília | Ana Flávia Barbosa / Instituto de Referência Negra Peregum
Quilombos e mudança climática
Os dados reunidos no documento revelam o potencial climático dos territórios quilombolas. Entre 1985 e 2022, a perda de vegetação nativa nessas áreas foi de apenas 4,7%, contra 17% em áreas privadas, segundo dados do MapBiomas. Já os estoques de carbono chegam a 1 bilhão de toneladas, somente nos territórios já mapeados ou delimitados, com densidade 48,7% maior do que em áreas vizinhas, de acordo com pesquisa publicada na revista Science.
A titulação aparece como um fator decisivo para a conservação: territórios titulados perderam apenas 3,2% de sua vegetação nativa, contra 5,5% nos que ainda não possuem título.
“Entendemos que o futuro do clima passa pela defesa da vida dos nossos territórios. Nós, quilombolas, há séculos preservamos a biodiversidade, os rios, as florestas e o clima, mas quase nunca somos ouvidos nas decisões que atingem o nosso chão”, aponta Rodrigues.
A questão fundiária segue como o maior obstáculo. Atualmente, 87% dos quilombos no país não têm titulação definitiva. Existem 1.937 processos abertos no Incra, mas apenas 23 territórios foram titulados integralmente pelo órgão e outros 34 territórios possuem a titulação parcial. Os institutos de terras estaduais, prefeituras e outros órgãos federais também titularam integralmente 178 territórios e outros 10 territórios possuem apenas a titulação parcial. No ritmo atual, seriam necessários 2 mil anos para concluir a regularização.
Essa morosidade abre espaço para diversas ameaças, como os 15.339 registros de imóveis rurais (CARs) irregulares sobrepostos a 465 territórios, que colocam em risco 1,1 milhão de hectares e 327 milhões de toneladas de carbono.
Além disso, obras de infraestrutura incidem sobre quase metade (48%) da área total dos territórios quilombolas e 1.385 requerimentos minerários atingem 261 territórios, ameaçando 223 milhões de toneladas de carbono – quase metade deles relacionados a minerais da chamada transição energética.
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Selma Dealdina (Conaq), Francinete Cruz (Ministério da Igualdade Racial), Sheila de Carvalho (Ministério da Justiça), Juarez Ferreira (Secretaria-Geral da Presidência) e Mônica Borges (Incra) durante o lançamento da NDC Quilombola em Brasília | Ana Flávia Barbosa / Instituto de Referência Negra Peregum
Lançamento em Brasília
O lançamento oficial da NDC Quilombola ocorreu em Brasília, nesta quarta-feira (15), em um evento que reuniu representantes do governo e da sociedade civil. Estiveram presentes autoridades como Juarez Ferreira, da Secretaria-Geral da Presidência; Sheila de Carvalho, secretária de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça; Francinete Cruz, do Ministério da Igualdade Racial (MIR); e Mônica Borges, diretora de Territórios Quilombolas do Incra.
O evento também contou com a participação de Selma Dealdina e Xifroneze Santos, da Conaq; Milene Maia, do ISA; Aurélio Vianna, da Tenure Facility; e Douglas Belchior, do Instituto de Referência Negra Peregum.
Durante o evento, Juarez Ferreira afirmou que o documento será internalizado na Secretaria-Geral da Presidência, reforçando o compromisso do governo federal com os movimentos sociais. “A gente deve reconhecer os atrasos e a lentidão que foram pontuadas aqui, mas posso afirmar que serão tomados os devidos encaminhamentos”, disse, destacando que a proposta representa uma oportunidade de avançar na titulação e proteção dos territórios quilombolas.
Mônica Borges, do Incra, lembrou que o órgão atuará para transformar a NDC Quilombola em um anexo à contribuição oficial do Brasil. Segundo ela, “sabemos o quanto será desafiador, mas também o quanto será impactante se essa NDC for incorporada oficialmente. Temos pouco tempo até a COP30, e é fundamental que esse trabalho seja feito de forma conjunta e articulada com os ministérios.”.
Francinete Cruz, representando o MIR, reforçou que a pauta climática exige cooperação. “Esse é um espaço de pactuação com outros ministérios, porque dentro do governo nada é feito sozinho. A pauta climática é ampla, competitiva e exige diálogo e cooperação nacional e internacional”, afirmou.
Pelas lideranças quilombolas, Selma Dealdina destacou que o documento reforça a necessidade de reconhecer o protagonismo dos quilombos nas políticas públicas. “Esse é um chamado para que o Estado brasileiro incorpore a realidade e o protagonismo quilombola em suas ações, garantindo o reconhecimento de que não há solução climática justa sem territórios quilombolas reconhecidos”, afirmou.
Milene Maia, do ISA, destacou que a NDC Quilombola não é apenas um instrumento técnico, mas um mecanismo de transformação social e política. “Essa NDC materializa informações concretas e objetivas para que o poder público possa agir de maneira efetiva e para que a sociedade também possa cobrar do Estado o que ele não tem feito há séculos. Mais do que isso, ela desperta um processo de consciência sobre o que significa esse patrimônio para o país.”
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Moraes vota pela constitucionalidade de MP que reduziu parque para viabilizar Ferrogrão
Julgamento é suspenso por pedido de “vistas” do ministro Flávio Dino, que tem 90 dias para devolver o caso ao plenário do STF
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes votou, na quarta-feira (8), pela constitucionalidade da Medida Provisória (MP) que reduziu o Parque Nacional do Jamanxim, no sudoeste do Pará, para que possa ser construída a ferrovia “Ferrogrão”, entre Sinop (MT) e Itaituba (PA). O projeto tem cerca de 977 km de extensão.
O ministro Luís Roberto Barroso acompanhou o voto de Moraes, mas sugeriu que a Corte autorize o governo federal a ampliar a unidade de conservação (UC) por meio de um decreto como uma compensação. Moraes disse que vai incorporar a sugestão. Os outros nove ministros ainda precisam votar.
Depois do voto de Barroso, o julgamento foi suspenso por um pedido de “vistas” (mais tempo para análise do processo) do ministro Flávio Dino. Ele tem 90 dias para devolver a ação ao plenário, mas cabe ao presidente do STF, Edson Fachin, marcar a data da retomada da análise do caso.
O julgamento começou na semana passada, com a leitura do relatório e as sustentações orais das partes. O ISA é amicus curiae – quem pede para participar do processo para fornecer informações e fazer esclarecimentos técnicos ou jurídicos.
Moraes é relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6553, apresentada pelo PSOL em 2020, contra a MP 758/2016, que propôs desafetar, ou seja, retirar a proteção legal de um corredor de 862 hectares do parque do Jamanxim. A medida previu ainda alterar o perímetro de mais duas UCs e criar outra na mesma região. No final das contas, havia um ganho de pouco mais de 51 mil hectares em áreas protegidas.
Acontece que, ao analisar a MP, convertendo-a na Lei 13.452/2017, o Congresso excluiu essa compensação. E de acordo com a própria jurisprudência da Corte, não é possível alterar UCs via MP.
Moraes argumentou que o texto original da medida não reduzia o parque e que uma lei aprovada pelo Congresso pode fazê-lo, segundo a Constituição. “Não havia vício de inconstitucionalidade formal na MP”, disse. “A lei, sim, retirou essa área de compensação. Só que a lei, do ponto de vista da inconstitucionalidade formal, nós admitimos que ela pode fazer isso, desde que de forma justificada”, prosseguiu.
Barroso defendeu que a ampliação do parque do Jamanxim pelo governo poderia ficar entre 862 hectares e no máximo os pouco mais de 51 mil hectares previstos inicialmente na MP.
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Kretã Kaigang e Kokoró Mekragnotire acompanham primeiro dia de julgamento sobre a Ferrogrão | Antonio Augusto / STF
‘Prejuízo ambiental’
Apesar de insistir que o julgamento trata apenas da desafetação, Moraes reproduziu os argumentos de organizações de grandes proprietários rurais e dos governos estaduais, centrados nos supostos benefícios da ferrovia, como a geração de empregos e a atração de investimentos. Ele defendeu que a obra trará impactos socioambientais insignificantes, repetindo que a área desafetada é ínfima – em torno de 0,054% do parque.
“Não se visualiza prejuízo ambiental relevante nessa área”, afirmou. “Todos os estudos demonstram que o empreendimento vai de fato gerar um desenvolvimento sustentável na região”, complementou.
Ele ressaltou que a aprovação da legislação não implicou o fim das exigências do licenciamento ambiental do projeto. E admitiu que, se a licença não aprovar a proposta de traçado atual previsto na desafetação, seria necessária outra lei para autorizar uma nova desafetação.
O ministro justificou ainda que a construção da ferrovia teria impacto positivo na redução das emissões de gases de efeito estufa em função da redução da demanda de transporte por caminhões.
O magistrado ignorou, porém, o efeito indutor desse tipo de empreendimento sobre o desmatamento, a grilagem de terras e outras atividades predatórias, sobretudo na Amazônia. Na mesma direção, minimizou as possíveis consequências negativas para as terras indígenas (TIs), sob a justificativa de que o traçado da Ferrogrão não corta nenhuma delas.
É consenso entre pesquisadores, no entanto, que os impactos de obras dessa magnitude têm alcance muito maior do que sua área de abrangência imediata. Eles podem, portanto, alcançar regiões não tão próximas.
O traçado da ferrovia atravessa a região de interflúvio dos rios Xingu e Tapajós, entre o norte de Mato Grosso e o sudoeste do Pará, onde há grande quantidade de UCs e TIs. Chega a passar a apenas quatro quilômetros da TI Praia do Mangue, em Itaituba, como lembrou o próprio Moraes.
Um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) de fevereiro apontou falhas na Análise Socioeconômica de Custo e Benefício (ACB) da obra, como desvios metodológicos, que comprometem o suposto resultado positivo do projeto. O levantamento lista omissões de externalidades importantes, ausência das análises de risco, erros nos cálculos de custos e benefícios e na definição do escopo da análise.
Um parecer técnico assinado pelo ISA, o Observatório do Clima (OC) e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também aponta falhas na avaliação dos impactos cumulativos e na projeção de desmatamento presentes no Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) da Ferrogrão.
“Um dos principais argumentos do parecer é de que existe uma lacuna na avaliação de impactos relacionados ao projeto Ferrogrão que não será suprida no licenciamento ambiental”, informa a assessora técnica do ISA Mariel Nakane.
“Essa avaliação é imprescindível para a identificação das terras indígenas afetadas pelos impactos cumulativos das obras previstas para a região, como a hidrovia do Rio Tapajós e a expansão dos portos e rodovias acessórias que ocorrerão com a Ferrogrão”, conclui.
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Queimada provocada por invasores no Parque Nacional de Jamanxim (PA) | Marizilda Cruppe / Amazônia Real
'Solução heterodoxa'
O advogado Melillo Dinis do Nascimento, que representa o Instituto Kabu no caso, criticou o voto de Moraes após a sessão, classificando-o de uma “solução heterodoxa”. O Instituto Kabu é uma organização do povo indígena Kayapó, das TIs Baú e Menkragnoti, já impactadas pela BR-163, e que também serão afetadas pela Ferrogrão.
“Eu avalio que há um desconhecimento da realidade, porque [a obra] não precisa passar dentro de uma aldeia, não precisa deslocar a aldeia de um povo indígena [para que os impactos sejam sentidos]”, explicou Nascimento.
“Na verdade, o que se discute é o aumento da pressão que já é muito grande em todo o corredor logístico, que se sobrepõe indevidamente a um corredor de sociobiodiversidade do interflúvio Xingu-Tapajós. E que acaba afetando diretamente a vida desses povos. Não só dos povos indígenas mas de outras comunidades que estão ali, de extrativistas, de cooperativas, de ribeirinhos”, complementou.
Ao justificar o pedido de “vistas”, Dino mencionou que os estudos da hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, na mesma região do Pará, indicaram inicialmente que os impactos socioambientais seriam pouco significativos, mas que a realidade mostrou-se bem diferente.
“A Volta Grande do Xingu secou. Não passa canoa, não passa ninguém”, mencionou. “Não tem peixe, não tem caça”, explicou. Ele é o relator de uma ação que determinou que os povos indígenas afetados pela usina recebam uma participação financeira do empreendimento como compensação por seus impactos.
Dino disse que o voto de Moraes vai numa “direção profundamente razoável”, mas ressalvou que se sentia “inseguro” diante dessas questões para proferir o seu. Daí o pedido de vistas.
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Terra Indígena Baú, uma das áreas protegidas ameaçada pelos possíveis impactos da construção da Ferrogrão | Alberto César Araújo / Amazônia Real
Unidades de conservação em risco
“Se o voto do ministro Alexandre de Moraes prevalecer, todas as unidades de conservação estarão sob maior risco de ter seus territórios diminuídos ou de ser integralmente suprimidas", alerta o advogado do ISA Fernando Prioste.
Em 2018, o STF decidiu que não seria possível alterar áreas protegidas, a exemplo de UCs, por meio de MP. A decisão se baseou no texto expresso da Constituição, que exige que isso só pode ocorrer por meio de lei.
“Naquela oportunidade, o STF entendeu ser impossível alterar UCs via MP, mesmo que seja convertida em lei, pois a Constituição exige que se observe todo o processo de tramitação de uma lei, e que o rito de tramitação de medida provisória não bastaria”, acrescenta.
Há significativas diferenças entre a tramitação de um projeto de lei e uma MP, que tem um rito simplificado, com prazo curto e determinado para sua aprovação pelo Congresso.
“Apenas pela tramitação regular de um projeto de lei seria possível viabilizar meios e tempo necessários para o amplo debate que deve ser feito para alteração de UCs”, prossegue Prioste.
Para ele, caso prevaleça o entendimento de Alexandre de Moraes, qualquer UC poderia ser alterada por MP, bastando que ela proponha algum tipo de compensação. O advogado adverte, no entanto, que, como o voto do ministro não obriga que a lei de conversão de MP preveja algum mecanismo de compensação pela desafetação da UC, na prática elas acabariam por ser alteradas sem essa compensação.
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Autores do ‘PL da Devastação’ serão responsáveis por novas propostas sobre licenciamento ambiental
Ex-ministra da Agricultura do governo Bolsonaro vai presidir comissão e relator da nova lei do licenciamento será responsável por mais dois pareceres sobre o assunto. Entenda a tramitação dos projetos
A senadora Tereza Cristina (PP-MS) foi eleita relatora da comissão mista da MP da Licença Ambiental Especial (LAE) | Bruno Spada | Câmara dos Deputados
A comissão mista que vai analisar a Medida Provisória (MP) 1.308/2025, que trata da Licença Ambiental Especial (LAE), uma nova modalidade de licenciamento simplificado e acelerado, foi instalada na tarde desta terça-feira (23) no Senado.
Por um acordo entre governo e oposição, a senadora Tereza Cristina (PP-MS) foi eleita presidente e o deputado Zé Vitor (PL-MG), o relator. Após a escolha dos dois cargos, Cristina encerrou a sessão.
Nessas funções, os dois parlamentares terão controle quase total sobre a tramitação e o conteúdo da MP, a exemplo do ritmo e tempo de discussão, alterações no texto e interlocutores privilegiados. Além disso, embora possa haver ainda mudanças pontuais, a composição do colegiado ficou francamente favorável aos ruralistas.
Vítor e Cristina estão entre principais responsáveis pelo teor da nova lei sobre o licenciamento ambiental (15.190/2025). Ele foi o relator do projeto de lei (PL) 2.159/2021 em sua última passagem pela Câmara, em julho. Ela foi a autora da versão final aprovada no Senado, em maio.
A senadora é uma das mais influentes e radicais ruralistas do Congresso. Foi ministra da Agricultura do governo Bolsonaro e ficou conhecida como “menina veneno” por sua defesa do uso indiscriminado dos agrotóxicos no debate da lei aprovada pelo Congresso sobre o assunto em 2023. Ela não quis falar com a reportagem do Instituto Socioambiental (ISA) na saída da sessão.
O PL 2.159 ficou conhecido como “PL da Devastação” por prever o desmonte do sistema de licenciamento ambiental no país, e em função das possíveis consequências de sua aprovação. A indicação dos dois parlamentares sinaliza para a defesa da retomada do texto da proposta.
Na avaliação dos ambientalistas, Lula vetou retrocessos importantes da nova lei. De quase 400 dispositivos, 63 foram vetados completa ou parcialmente. Desse total, 26 itens foram simplesmente excluídos.
Apesar disso, ainda segundo as organizações da sociedade civil que acompanham o assunto, a legislação e a MP mantêm problemas. Para elas, o maior retrocesso do pacote é a LAE, tema específico da medida.
Ela permite simplificar e acelerar o licenciamento de obras e atividades econômicas complexas, de grande impacto ambiental, como a extração de petróleo, a construção de hidrelétricas ou a pavimentação da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), numa das regiões mais preservadas da Amazônia.
Além disso, conforme a MP, poderiam ser alvo desse tipo de licença empreendimentos considerados “estratégicos” por um conselho do governo, o que abre caminho para que pressões políticas e econômicas prevaleçam no processo em detrimento da análise técnica. Especialistas também apontam o aumento do risco de corrupção.
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O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), é considerado o padrinho da LAE | Andressa Anholete / Agência Senado
De acordo com uma análise do Observatório do Clima (OC), foram apresentadas mais de 830 emendas à medida e quase três quartos do total pretendem reintroduzir itens vetados por Lula. Cerca de 80% das propostas representam retrocessos ambientais.
“A Licença Ambiental Especial dificilmente será aperfeiçoada. Ela não deveria existir. Pode-se aceitar a priorização dos processos pelo governo, o que já ocorre na prática. Mas agilizar empreendimentos com alto potencial de impacto é inverter a lógica estabelecida pela Constituição, que prevê tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental”, avaliou Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do OC.
A proposta foi incluída no "PL da Devastação" no Senado pelo presidente da casa, Davi Alcolumbre (União- AP). Ele estaria interessado em acelerar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, o que beneficiaria seu estado. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) permitiu o avanço da licença para um dos empreendimentos da Petrobras na região na véspera da votação no plenário, depois de meses de pressão de Alcolumbre e do próprio presidente Lula.
A própria publicação da MP, que tem vigência imediata, foi vista como uma deferência ao parlamentar, considerado um aliado pelo Palácio do Planalto. Entre assessores parlamentares, a expectativa é que a medida seja aprovada com certa facilidade por causa do interesse do senador, dos ruralistas e do próprio governo.
Embora passe a valer desde sua publicação, a medida precisa ser analisada em até 120 dias. Depois de passar pelo colegiado formado por deputados e senadores, precisa ser apreciada nos plenários das duas casas legislativas. O prazo vence em 5 de dezembro.
PL e vetos
Depois dos vetos, o governo também enviou um PL (3.834/2025) com urgência constitucional para suprir lacunas na nova legislação. Por acordo entre governo e oposição, Zé Vítor também foi escolhido o relator na Câmara.
O projeto foi enviado há 45 dias ao Congresso e passou a trancar a pauta do plenário da Câmara nesta terça. Depois de votado, segue para o Senado.
Como se não bastassem essas ameaças ao licenciamento (considerando a correlação de forças desfavorável aos ambientalistas no Legislativo), os vetos de Lula também precisarão ser analisados numa sessão do Congresso (composta por deputados e senadores). Ainda não há data marcada para isso acontecer, no entanto
“O acordo de entrega das duas relatorias para um mesmo deputado, que foi responsável pelo texto que hoje é lei e contém mais de 63 vetos, significa mais um passo para que a disputa sobre o licenciamento não se encerre tão rapidamente e siga para o Judiciário”, analisa Alice Dandara de Assis Correia, advogada do ISA.
“Não temos dúvidas de que retrocessos vetados serão retomados no PL ou na MP. Isso significa que teremos um feito inédito: o veto do que já foi vetado em uma mesma sessão legislativa” disse.
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A pavimentação da BR-319 (Manaus-Porto Velho) pode ser uma das obras que será beneficiada com a Licença Ambiental Especial (LAE). Pesquisas comprovam que esse tipo de empreendimento induz o desmatamento na Amazônia | Alberto Araújo / Amazônia Real
Imbróglio e anistia
Na verdade, o que pode transformar a MP numa questão é sua negociação combinada com a de outras pautas. Ela acabou entrando no maior imbróglio político do Congresso dos últimos meses: a disputa em torno do projeto bolsonarista de anistia aos golpistas de 2022 e 2023.
O PL 3.834 converteu-se num dos obstáculos para a votação da proposta ao começar a trancar a pauta do plenário da Câmara. Como já se tornou tradicional com a agenda ambiental, a prerrogativa de retirar ou não o regime de urgência constitucional do projeto tornou-se então uma moeda de troca. No caso, o objetivo do governo seria impedir a análise do perdão aos golpistas e, de quebra, votar a isenção do Imposto de Renda (IR), tema de interesse direto do Planalto.
Para tentar liberar o caminho para a votação da anistia, apoiados pelos bolsonaristas, os ruralistas ameaçaram com a possibilidade de votar o PL 3.834 ainda nesta terça, com uma redação que retoma a maior parte do texto original do “PL da Devastação”. Zé Vítor chegou a dizer que os governistas estavam se negando a discutir o assunto.
Durante o dia, a pergunta entre organizações da sociedade civil era o que o governo faria, sob o risco de mais um desastre no tema do licenciamento. “Temos de trabalhar com a hipótese de que o projeto seja votado hoje”, chegou a dizer um deputado petista.
Se a urgência fosse retirada, as atenções se voltariam à MP, com um pouco mais de tempo para negociações, conforme a avaliação original dos ambientalistas. Já à noite, veio a informação de que o governo pediria a retirada da urgência e que a anistia não seria votada nesta terça.
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Com mais de 800 emendas, Congresso tenta driblar vetos ao 'PL da Devastação'
MP do Licenciamento Especial editada pelo governo junto com vetos ao PL 2.159 recebeu 833 propostas; 74% ressuscitam dispositivos vetados por Lula e 80% são retrocessos
Do Observatório do Clima (OC) - Nota técnica divulgada hoje (18/9) pelo Observatório do Clima (OC) revela que deputados e senadores tentam retomar retrocessos vetados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no projeto de lei (PL) que tentou destroçar o licenciamento ambiental do país. Das 833 emendas apresentadas à Medida Provisória 1.308/2025, que Lula mandou ao Congresso para regulamentar parte da legislação vetada, 616 (74%) reintroduzem itens excluídos no mês passado por Lula na sanção da Lei 15.190. Essa lei resultou da aprovação do PL 2.159, que tramitou por mais de 20 anos no Legislativo e ficou conhecido como "PL da Devastação". Do total de propostas, 80% representam recuos em relação ao que o Executivo procurou corrigir.
Assinada por Lula no mesmo dia do anúncio dos vetos ao PL da Devastação, a MP 1.308 valida uma licença acelerada (a Licença Ambiental Especial, ou LAE) para empreendimentos considerados “estratégicos”. Idealizada pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, a modalidade cria atalhos para empreendimentos como a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, a pavimentação de estradas e a liberação de outros projetos de grande impacto ambiental, que passariam a ser aprovados em modalidade fast track, por decisão meramente política.
O OC recomenda a rejeição integral da MP ou a aprovação de substitutivo com salvaguardas socioambientais. Segundo a nota do OC, ao instituir a modalidade monofásica de licenciamento (em substituição ao processo atual, em três fases e proporcional ao impacto do empreendimento), a MP pode significar o maior retrocesso ambiental recente do Brasil.
Na prática, LAE cria um licenciamento por pressão política, violando os princípios de prevenção, precaução, publicidade e transparência, previstos no artigo 225 da Constituição Federal, fragiliza o controle social e amplia a insegurança jurídica.
A Nota Técnica divulgada hoje mostra que, com as emendas do Congresso, os retrocessos podem ser ainda mais graves. Além das 616 propostas que ressuscitam dispositivos vetados na Lei Geral do Licenciamento, há 31 “jabutis”, temas estranhos ao objeto da MP, e 23 novos retrocessos ambientais, totalizando 670 emendas de ataque à legislação ambiental brasileira. Apenas 11,4% das propostas (95 emendas) trazem avanços.
As emendas de retrocessos cortam caminho no licenciamento com dispensas ou extensão da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), o “autolicenciamento” que Lula tentou disciplinar em seu veto; esvaziam órgãos técnicos e a participação social; pioram a Licença Ambiental Especial ao encurtar etapas e prazos; enfraquecem a Lei da Mata Atlântica; excluem terras indígenas não homologadas, territórios quilombolas não titulados e comunidades tradicionais do processo de licenciamento, entre outros.
O Partido Liberal (PL), do ex-presidente e agora condenado por tentativa de golpe de Estado, Jair Bolsonaro, responde por 25% das emendas totais e por 30,4% de retrocesso, seguido do Progressistas (PP), com 18,2% dos retrocessos.
Com as emendas à MP, o Congresso nem sequer precisa examinar os vetos de Lula em sessão conjunta: pode simplesmente usar a MP, que já está em vigor, como cavalo-de-troia para reconstruir o PL da Devastação inteirinho e ir além dele com os jabutis. E tudo isso do jeito que a pior legislatura da história mais gosta: na surdina, sem debate e sem controle social.
“Não há segurança jurídica sem licenciamentos proporcionais ao impacto, com técnica forte, transparência e controle social. Reabrir vetos e acelerar um atalho monofásico é reeditar o PL da Devastação. O país precisa de previsibilidade e salvaguardas socioambientais”, diz Adriana Pinheiro, assessora de incidência política do Observatório do Clima.
“A Licença Ambiental Especial dificilmente será aperfeiçoada. Ela não deveria existir. Pode-se aceitar a priorização dos processos considerados pelo governo, o que já ocorre na prática. Mas agilizar empreendimentos com alto potencial de impacto é inverter a lógica estabelecida pela própria Constituição, que nos princípios da ordem econômica prevê tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental”, avalia Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.
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Plenário da Câmara | Bruno Spada / Câmara dos Deputados
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Projeto inviabiliza demarcação de Terras Indígenas, apontam Apib e ISA
Organizações denunciam que PL 6093 viola a Constituição, desmonta sistema de demarcação e torna impossível a regularização de quase 100% das áreas com processos ainda em andamento
Uma nota técnica publicada, na sexta (12/9), pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pelo Instituto Socioambiental (ISA) alerta sobre os riscos do Projeto de Lei nº 6093/2023, de autoria da deputada federal Coronel Fernanda (PL-MT). De acordo com as duas organizações, ao propôr novas regras para as demarcações de Terras Indígenas no país, na prática a proposta inviabiliza quase 98% dos territórios cujos processos ainda não foram concluídos.
Segundo o ISA e a Apib, trata-se de uma tentativa de esvaziar direitos que já foram reconhecidos constitucional e judicialmente, colocando em risco a vida, a cultura e o território dos povos indígenas.
O projeto foi aprovado na Comissão de Agricultura da Câmara (CAPADR), no dia 3/9, seguindo para a Comissão da Amazônia e Povos Originários (CPOVOS). Depois, precisa passar pela de Finanças e Tributação e a de Constituição e Justiça.
De acordo com a análise, a proposta viola a Constituição e ignora tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Embora o texto do PL afirme buscar maior eficiência e imparcialidade no rito demarcatório, suas disposições apontam para o efeito contrário: cria entraves burocráticos, amplia a interferência política no processo e inviabiliza demarcações já em curso, ainda segundo a nota.
Um dos principais pontos de crítica é a tentativa de instituir a tese do “marco temporal” como critério legal, exigindo que os povos indígenas comprovem a ocupação tradicional de seus territórios na data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. A nota ressalta que essa tese já foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao reconhecer que os direitos territoriais indígenas são originários, anteriores à formação do próprio Estado brasileiro, e não podem ser limitados por marcos arbitrários.
A proposta também modifica profundamente a estrutura do processo administrativo de demarcação, retirando a coordenação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) — órgão técnico especializado — e transferindo-a para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, com a participação dos Ministérios da Agricultura e Pecuária, do Desenvolvimento Agrário e dos Povos Indígenas. Para Apib e ISA, a mudança "acaba por gerar a interferência de setores historicamente contrários aos direitos indígenas, transformando um procedimento eminentemente técnico em um processo político sujeito a pressões"
Outro aspecto considerado preocupante é a composição do Grupo Técnico responsável pelos estudos de identificação das terras, que passaria a incluir representantes de estados, municípios e até proprietários ou posseiros das áreas reivindicadas. Segundo a nota, essa configuração cria um ambiente de confronto, desvaloriza o trabalho técnico e favorece a judicialização, além de permitir a atuação direta de setores interessados em barrar as demarcações. "A inclusão de proprietários/possuidores permite que os próprios interessados em impedir a demarcação atuem formalmente dentro do grupo técnico com alimentação de falsas informações e criando obstáculos desnecessários", afirma a nota.
Congresso, consulta e clima
O projeto também submete a decisão final sobre a homologação das terras ao Congresso, por meio de um Projeto de Lei de Conversão, o que, na prática, condiciona um direito constitucional a disputas políticas e interesses econômicos. "O PL representa uma mudança drástica que sujeita os direitos territoriais indígenas à vontade política de uma decisão majoritária do Poder Legislativo, que pode ser influenciado por interesses contrários à demarcação. Ao assim estabelecer, a proposta desconsidera o direito originário dos povos indígenas sobre suas terras e resulta em grave violação ao disposto no art. 231 da Constituição”.
A análise aponta ainda que o texto impõe uma série de barreiras que podem paralisar ou protelar indefinidamente os processos de demarcação. Entre elas estão a exigência de dotação orçamentária prévia, a realização de audiências públicas em todos os municípios envolvidos, prazos prorrogáveis e a possibilidade de suspensão do processo em caso de conflitos ou invasões por não indígenas. A proposta também veda a ampliação de terras já demarcadas e impõe uma série de restrições ao redimensionamento das áreas ainda em demarcação, podendo inviabilizar o reconhecimento de cerca de 98% desses territórios.
A ausência de Consulta Livre, Prévia e Informada aos povos indígenas durante a tramitação do projeto também é apontada como uma grave violação. Garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), esse direito exige que os povos sejam consultados sobre qualquer medida legislativa que os afete diretamente — o que não ocorreu no caso do PL 6093/2023.
A nota técnica destaca ainda que as terras indígenas, com cerca de 98% de cobertura vegetal preservada, são essenciais para a regulação do clima, a segurança hídrica e alimentar e a proteção da biodiversidade, sendo aliadas fundamentais para o cumprimento de compromissos ambientais assumidos pelo Brasil. Ao enfraquecer os mecanismos de reconhecimento e proteção desses territórios, o projeto compromete não apenas os direitos dos povos originários, mas também o futuro socioambiental do país.
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Protesto de indígenas durante Acampamento Terra Livre, em frente ao Congresso, em Brasília, em 2019 | Mídia Ninja
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