Área de floresta amazônica preservada na região do Rio Ayari, afluente do Rio Içana, Alto Rio Negro (AM). Nos últimos 39 anos, os países amazônicos perderam mais de 88 milhões de hectares de florestas, segundo relatório do MapBiomas|Fellipe Abreu/ISA
A Amazônia, um ecossistema vital para a humanidade e o planeta, enfrenta um de seus momentos mais críticos. Nos últimos 39 anos – entre 1985 e 2023 – os países amazônicos perderam mais de 88 milhões de hectares de florestas (12,5% de sua cobertura), uma área quase equivalente ao tamanho da Colômbia, segundo dados do MapBiomas Amazônia, uma iniciativa da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG). Diante desse cenário, nunca foi tão urgente fortalecer as políticas de conservação e restauração, assim como o papel protetor dos Territórios Indígenas e das Áreas Naturais Protegidas no combate ao desmatamento.
Especialistas da RAISG alertam que a região amazônica está passando por uma transformação acelerada. A análise de imagens de satélite revela que, entre 1985 e 2023, nas áreas onde a floresta foi reduzida, o uso do solo para mineração legal e ilegal cresceu 1.063%, para a agricultura 598% e para a pastagens 297%. Como resultado, muitos ecossistemas desapareceram, sendo substituídos por vastas áreas de pastagens, plantações de soja, palma de óleo e outros monocultivos, ou transformados em grandes crateras de água para a extração de ouro. No caso da mineração, a erosão do solo afeta não apenas a cobertura florestal, mas também o solo fértil, comprometendo sua capacidade de regeneração e aumentando o risco de deslizamentos, além de introduzir poluentes no ambiente.
Acompanhe o lançamento do relatório às 17h de Brasília:
Um panorama regional alarmante
A análise abrange os oito biomas da Região Amazônica. Do total de perda florestal, 71% ocorreram no bioma de Florestas Amazônicas ou Tropicais, o maior da região, presente nos nove países amazônicos (Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa). Aproximadamente 23% das perdas ocorreram na savana tropical do Cerrado (Brasil), 4% na floresta seca tropical Chiquitano (Bolívia), e os 2% restantes foram divididos entre os biomas da floresta seca do Chaco (Bolívia-Paraguai), Pantanal (Brasil-Bolívia), Tucumano-boliviano, além dos Andes e Vales no Peru e Bolívia.
2023: O ano mais devastador
Ao longo dos 39 anos do estudo, as florestas da região recuaram a uma média de mais de 2,3 milhões de hectares por ano. Contudo, 2023 se destacou como o ano mais devastador das últimas duas décadas, com uma perda superior a 3,8 milhões de hectares — o equivalente a 190 vezes o tamanho da cidade de Buenos Aires. Esse recorde lamentável foi causado pelo aumento das atividades econômicas, desenvolvidas sem levar em conta o cenário de mudanças climáticas, marcado por eventos cada vez mais extremos e frequentes. Essa situação continua a afetar uma Amazônia já debilitada, tanto em sua capacidade de regeneração quanto em seu papel na regulação do clima global.
Nessa mesma linha, as secas extremas do ano passado agravaram o impacto da mineração na Amazônia, provocando um retrocesso significativo das florestas alagáveis — ecossistemas altamente produtivos que dependem diretamente das chuvas para se formarem nas margens de rios e áreas úmidas. Nos últimos 39 anos, as florestas alagáveis perderam 4,4 milhões de hectares, sendo 3.500 hectares apenas em 2023, a maior perda dos últimos seis anos. Esse retrocesso ameaça gravemente a abundância e a diversidade biológica da Amazônia — especialmente de peixes — e, por consequência, a disponibilidade de alimentos para as populações locais.
O papel crucial dos territórios indígenas e das áreas naturais protegidas
Às vésperas da COP16 de Biodiversidade na Colômbia (outubro de 2024) e com vistas à COP30 sobre Mudanças Climáticas no Brasil (novembro de 2025), a RAISG considera esses dois anos decisivos para que líderes governamentais e entidades de incidência implementem políticas mais rigorosas de conservação e restauração, focadas nas áreas de maior perda. “Os principais desafios são preservar as áreas ainda intocadas e aquelas com baixo nível de degradação, antes de atingirmos o chamado ‘ponto de não retorno’ da Amazônia; e substituir as atividades atuais por outras que causem menos impacto à floresta. O mais importante: proteger as Áreas Naturais Protegidas e Territórios Indígenas, que atuam como barreiras contra o desmatamento e a degradação”, ressalta Karen Huertas, especialista do MapBiomas Amazônia.
O papel crucial desses dois espaços na conservação da diversidade biológica é evidente nos números: apenas 5,8% dos 88 milhões de hectares de florestas perdidos na Amazônia ocorreram em Áreas Naturais Protegidas (ANP) e territórios indígenas, enquanto os 94,2% restantes aconteceram fora desses territórios. Por milênios, os povos indígenas têm sido os melhores guardiões da floresta, graças aos seus conhecimentos e práticas ancestrais, que permitem o uso sustentável dos recursos e dão ao solo o tempo necessário para regeneração. Da mesma forma, nas ANP, a estabilidade da floresta é priorizada, preservando os serviços essenciais que a Amazônia oferece à humanidade: fornecimento de oxigênio, água potável, alimentos, biodiversidade e medicamentos tradicionais.
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Ducila Álvares, do povo Baniwa, carrega cesto de pimentas recém-colhidas na Comunidade Boa Vista, no Rio Negro (AM). Modos de vida e conhecimentos de povos indígenas e tradicionais são fundamentais para o futuro da floresta amazônica|Fellipe Abreu/ISA
Apesar de seu valor inestimável na luta contra as mudanças climáticas, os povos indígenas continuam sob constante ameaça. Entre 1985 e 2023, seus territórios perderam 3,6 milhões de hectares de florestas, devido ao avanço da mineração de ouro, à extração ilegal de madeira e ao cultivo ligado ao narcotráfico. Essa situação não só coloca em risco a segurança e a vida dos líderes ambientais, como também fragiliza a diversidade cultural dos países. No mesmo período, as Áreas Naturais Protegidas (ANPs) perderam mais de 1,4 milhão de hectares, principalmente nas suas margens, devido à invasão por atividades agropecuárias realizadas por civis e empresas.
Se essa tendência continuar, a Amazônia estará em breve rumo a um processo irreversível de savanização e formação de pastagens. A contínua perda de florestas liberará grandes quantidades de CO2, acelerando ainda mais o aquecimento global e reduzindo o habitat de milhares de espécies. Por muitos anos, os governos negligenciaram as comunidades indígenas, tradicionais e locais, que souberam preservar as florestas melhor do que qualquer outro grupo humano. Agora é hora de mudar essa realidade, fortalecendo seus direitos territoriais, sua participação nas decisões e valorizando sua rica herança cultural, para frear a devastação da Amazônia.
“Os governos dos países amazônicos precisam agir de forma coordenada para conter as pressões e ameaças, como o desmatamento, a mineração e o narcotráfico, além de avançar em alternativas econômicas sustentáveis e promover a restauração ambiental em nível regional. A Declaração de Belém e a XIV Reunião de Ministros das Relações Exteriores da OTCA definiram caminhos importantes para a cooperação regional, como a Rede Amazônica de Autoridades Florestais e a Rede Amazônica de Manejo Integrado do Fogo, que devem ser implementados com a participação ativa dos povos indígenas, afrodescendentes e comunidades tradicionais”, concluiu Angélica García, secretária executiva da RAISG.
Evento MapBiomas Amazônia
Para mais informações sobre a situação atual da Amazônia e as ações necessárias para protegê-la, a RAISG está organizando o evento “Por uma visão integral da Amazônia: 39 anos de perdas florestais e propostas de conservação”, no qual serão discutidos os achados do relatório e as possíveis soluções.
Data
Quinta-feira, 26 de setembro de 2024
Horário
15h00 (Equador, Colômbia e Peru), 16h00 (Venezuela e Bolívia) e 17h00 (Brasil)
Presencial
Hotel Dann Carlton, Avenida República de El Salvador, Quito - Equador
Presidente Lula fala durante reunião com cúpula dos três poderes para anunciar medidas contra a crise climática | Ricardo Stuckert
Texto atualizado às 16:42 de 18/9/2024
Em reunião com as cúpulas dos três poderes no Palácio do Planalto, o governo federal anunciou, na tarde desta terça (17/9), algumas ações contra a emergência climática, com cerca de 60% do país coberto pela fumaça das queimadas descontroladas e a pior seca em 75 anos.
Nos próximos dias, o presidente Luíz Inácio Lula da Silva deve enviar ao Congresso uma Medida Provisória (MP), liberando um crédito extraordinário de R$ 514,4 milhões, principalmente para o combate, monitoramento e investigação dos incêndios criminosos.
Ainda não foi desta vez que o novo marco legal da crise climática foi oficializado, incluindo a criação da “Autoridade Climática” e de um comitê técnico-científico para apoiá-la, além da possibilidade de reconhecimento oficial da emergência climática. A medida foi comunicada por Lula na semana passada, .
Não foram fornecidos maiores detalhes sobre o assunto no evento no Planalto. Não se sabe, por exemplo, a que pasta o novo órgão ficará vinculado. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, informou apenas que há “um conjunto de propostas de reestruturação do Ministério do Meio Ambiente que vamos estar analisando, enfim, vamos estar publicando nos próximos dias”.
A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse que também está sendo estudada a sugestão do presidente de instituir um Conselho Nacional de Segurança Climática, com participação de representantes dos três poderes, sociedade civil e empresariado.
Uso dos recursos
Segundo nota da Casa Civil, os recursos da MP serão usados na mobilização de 180 novos agentes da Força Nacional de Segurança e no atendimento de famílias diretamente afetadas, com ações emergenciais de saúde e segurança alimentar, inclusive para populações indígenas.
A exemplo do Fundo Amazônia, deve ser criado um novo mecanismo de financiamento para a proteção dos outros biomas do país por meio de doações internacionais. Ainda conforme a nota, outra MP pretende facilitar a liberação de recursos do BNDES para a proteção ambiental.
O presidente Lula também irá assinar um despacho para reestruturar a Defesa Civil em todo o país. O governo ainda pretende ampliar as sanções por crimes ambientais e infrações administrativas, com aumento de penas de reclusão e de valores de multas, além de novas modalidades de sanções (veja a lista completa de ações ao final da reportagem).
Parte das mudanças deve ocorrer por meio de projetos de lei e outra, por atos da própria administração federal. Conforme apurou a CNN Brasil, o Planalto pretende tentar aprovar um pacote de seis projetos no Congresso que aumentam penas para incêndios criminosos.
"As medidas do governo federal para enfrentar os incêndios florestais e outros problemas ambientais são relevantes, mas não produzirão efeitos imediatos. Leva-se tempo para o treinamento e contratação de mais brigadistas e aquisição de equipamentos, por exemplo", ressalva a coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC), Suely Araújo.
Ela defende que a gestão federal assuma uma coordenação mais efetiva no combate à crise. "Há necessidade, também, de a Presidência da República articular e até mesmo liderar a intensificação do trabalho dos governos estaduais. São eles que controlam a emissão das autorizações para uso do fogo, que na seca sequer deveriam ser emitidas", completa.
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Brasília coberta de fumaça em virtude dos incêndios descontrolados | Marcelo Camargo / Agência Brasil
Os anúncios também acontecem em meio ao agravamento da crise, enquanto o início da temporada de chuvas, em várias regiões, só deve começar em meados de outubro, segundo as previsões meteorológicas (saiba mais no quadro ao final da reportagem).
Na reunião no Planalto, Marina Silva informou que o país registra, neste momento, quase 690 incêndios, sendo que os esforços combinados dos governos federal e estaduais conseguiram extinguir 290 e controlar 179. Há ainda 108 incêndios sendo combatidos e outros 106 ativos sem combate. Dino também já havia cobrado do governo a adoção de medidas urgentes para atacar os focos de incêndio sem combate.
No Planalto, integrantes do governo insistiram que, por um lado, desde o início da atual gestão, estão sendo tomadas as medidas adequadas para combater a emergência climática e que, por outro, ela tem dimensões inéditas e planetárias.
“Nós fizemos todos os esforços necessários do ponto de vista de ter uma ação preventiva”, reforçou a ministra do Meio Ambiente. Ela lembrou que os índices de desmatamento na Amazônia caíram 50% e 45%, respectivamente, em 2023 e 2024.
Entre ambientalistas e pesquisadores, não há dúvida de que existe um esforço para conter os efeitos da seca e dos incêndios. Por outro lado, também há a percepção de que o Planalto poderia ter agido antes, com medidas de prevenção adequadas, e de maneira mais firme.
Uma reportagem de O Estado de São Paulo reuniu documentos que apontam que, desde o início do ano, a cúpula do governo foi alertada e instada a agir diante do que poderia vir a ser uma crise de grandes proporções. O jornal lista ofícios, decisões, ações e comunicados de órgãos como o próprio Ministério do Meio Ambiente (MMA), o STF, o Ministério Público e o governo do Amazonas.
O próprio Lula reconheceu parte do problema. "O dado concreto é que hoje, no Brasil, a gente não estava 100% preparado para cuidar dessas coisas. As cidades não estão cuidadas. Até 90% das cidades estão despreparadas para cuidar disso. Os estados são poucos os que estão com preparação, que têm Defesa Civil, bombeiro, brigadistas" disse.
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Parque Nacional de Brasília é atingido por incêndio | Ricardo Stuckert / PR
Fogo criminoso
Apesar de admitir que a seca histórica criou as condições para o alastramento do fogo, o presidente insinuou que a onda de incêndios é orquestrada por grupos da oposição interessados em desgastar sua gestão.
Embora as investigações ainda estejam em curso, integrantes dos Três Poderes que participaram do evento em Brasília concordaram que há ação criminosa coordenada em várias regiões. “Os indicadores de que é um crime aparecem a cada dia aos milhares”, reforçou o secretário-executivo do MMA, João Paulo Capobianco. Em sua apresentação, ele mostrou dados oficiais e manchetes de órgãos de imprensa local da Amazônia indicando ações deliberadas para queimar a floresta.
Os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também foram na mesma direção. Eles se mostraram abertos a priorizar a tramitação de propostas que ampliem as penas para crimes ambientais e liberem recursos para combater o fogo. Em contrapartida, sinalizaram que o Planalto terá dificuldades para aprovar projetos no Congresso e tentaram se isentar da responsabilidade pela crise. Ambos alegaram que têm facilitado a aprovação de propostas benéficas ao meio ambiente, o que não é verdade. Ao contrário, têm feito vista grossa ou mesmo pautado projetos do chamado “pacote da destruição”, conjunto de propostas contrárias à conservação e aos direitos de populações indígenas e tradicionais.
Pacheco disse que o problema da crise não está no Congresso e chamou de "populismo legislativo" projetos de endurecimento de penas contra crimes ambientais. “Um aumento excessivo de penas, inclusão desses crimes como crimes hediondos… Temos de conter e buscar um equilíbrio na formatação de leis, sob pena de descambarmos para um populismo legislativo que não solucionará o problema”, defendeu.
O consultor jurídico do ISA Mauricio Guetta afirma que, atualmente, a legislação prevê penas tão pequenas para incêndio florestal e desmatamento ilegais que esses crimes compensam.
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Presidente Lula sobrevoa áreas incendiadas em Corumbá (MS), no final de julho | Ricardo Stuckert / PR
“Em geral, propostas sobre aumento de penas são consideradas como ‘populismo penal’, mas este definitivamente não é o caso. O endurecimento penal ambiental é urgente, pois, com penas tão baixas, os processos sequer chegam ao final e, quando chegam, resultam em medidas como o pagamento de cestas básicas”. Ainda segundo Guetta, não é razoável que crimes tão graves, com danos tão agudos à saúde e à vida da população, continue sendo tolerados.
“Não faltará vontade política da Câmara dos Deputados, e eu penso que do Senado, mas alguns temas, eu penso, tenham de vir bem explicados para que a gente não tenha uma reação adversa a uma tratativa que fuja de alguns pensamentos mais ou menos ideológicos sobre o cerne da questão”, comentou Lira.
“Há anos, a Câmara é a maior ameaça ao meio ambiente e aos povos e comunidades tradicionais. Mesmo com toda a sociedade mobilizada contra o ‘pacote da destruição’, Lira e lideranças ruralistas decidiram aprovar retrocessos inaceitáveis à legislação socioambiental. Isso também serve como sinal verde para os danos ambientais que estamos vendo hoje”, contrapõe Guetta.
"É preciso que todos os poderes participem desse processo. O Congresso, por exemplo, tem aprovado projetos que fragilizam o arcabouço legal de proteção ao Meio Ambiente. Juízes de instâncias inferiores estão liberando do cumprimento de pena de prisão desmatadores confessos", reforça o presidente da Frente Parlamentar Ambientalista, deputado Nilto Tatto (PT-SP).
"A catástrofe do Rio Grande do Sul e esse cenário das queimadas e da seca sem precedentes abrem oportunidades para a Câmara e o Senado debaterem com mais seriedade e atenção o tema. É hora de nos debruçarmos sobre projetos para aumento de pena para crimes ambientais e estruturação do poder público no enfrentamento à crise climática", complementa.
O tamanho da crise climática
Segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Brasil enfrenta sua pior estiagem em 75 anos. A seca na Bacia Amazônica é a pior em 45 anos. Todos os estados, com exceção do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, têm registro de algum nível de falta de chuva recorrente. Aproximadamente 60% do território nacional é afetado pelo problema. Em cerca de um terço do país, o cenário é de seca severa.
De acordo com o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, coordenado pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, há hoje 1.418 atos de diferentes esferas de governo reconhecendo situação de emergência ou calamidade pública.
Segundo o Monitor do Fogo do MapBiomas, vinculado ao Observatório do Clima (OC), entre janeiro e agosto, a área destruída pelo fogo no país chegou a 11,3 milhões de hectares, o equivalente a cerca de metade do território de São Paulo. São 6 milhões de hectares a mais do que no mesmo período do ano passado ou um crescimento de 116%.
O mês de agosto responde por quase metade (49%) da área queimada desde janeiro (5,6 milhões de hectares). Foram destruídos 3,3 milhões de hectares a mais do que no mesmo mês de 2023, um salto de 149%. Foi o pior agosto da série do Monitor de Fogo, iniciada em 2019.
Entre o dia 7 e o dia 12, o sudoeste da Amazônia, epicentro da crise, tornou-se o maior emissor de gases de efeito estufa do planeta, segundo o Copernicus, o programa de observação da Terra da União Europeia, segundo informou O Globo.
Só entre o início de agosto e a semana passada, cerca de 10,1 milhões de pessoas, em 531 municípios, foram afetadas diretamente pela crise. Em comparação com o mesmo período do ano passado, a população afetada era de 3,8 mil pessoas, em 23 municípios. Um aumento de 2,5 mil vezes em relação ao contingente populacional impactado. Os números são da Confederação Nacional de Municípios (CNM) e foram divulgados pela Folha de São Paulo. Os dados são conservadores porque referem-se apenas às pessoas diretamente afetadas pelo fogo e aos municípios que decretaram situação de emergência por causa do problema. A CNM calcula em R$ 41,4 bilhões os prejuízos decorrentes só da seca desde o início do ano.
Lista completa de medidas do Palácio do Planalto
Medida Provisória destinando R$ 514,4 milhões em créditos extraordinários, principalmente para o combate, monitoramento e investigação dos incêndios na Amazônia Legal. Os recursos deverão ser usados em: compra de materiais e equipamentos, contratação de brigadistas, locação de viaturas e aeronaves; manutenção e transporte de equipes de fiscais ambientais, agentes das polícias e militares; mobilização de mais 180 agentes da Força Nacional.
Compra de 300 mil cestas básicas e 7 mil toneladas de alimentos de 2,6 mil agricultores familiares.
Medidas emergenciais de proteção e saúde às populações indígenas, incluindo ações de combate à insegurança alimentar e proteção social.
Reestruturação e fortalecimento da Defesa Civil em todo o país.
Flexibilização das regras para contratações do BNDES.
Instituição de fundo, facilitando doações internacionais, para gestão de recursos específicos para os demais biomas – Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal.
Compra de novas aeronaves e kits de combate aos incêndios florestais, além de recursos para os Corpos de Bombeiros estaduais.
Ampliação das sanções administrativas aplicadas por infrações ambientais. O objetivo é garantir a revisão dos valores e a introdução de novas modalidades de multas.
Criação do Comitê Interinstitucional de Gestão e do Comitê Executivo, no âmbito do Pacto pela Transformação Ecológica entre os três Poderes.
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Fórum liderado por Apib e MPF tratará de crimes e violações históricas contra a população indígena no Brasil
Espaço discutirá a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade para investigar e reparar violações de direitos humanos contra povos indígenas, com foco em reparação e prevenção
“Nunca foi esbulho renitente, sempre foi remoção forçada. Sempre. Nunca foi um crime do Código Penal, mas um crime contra a humanidade”. Assim o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida definiu a perspectiva dos trabalhos do Fórum “Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça”, um espaço de diálogo e articulação para investigar, resgatar a memória e garantir que o Estado brasileiro faça a reparação integral às violações cometidas contra os povos indígenas no país, especialmente durante a ditadura militar. O Fórum também vai elaborar uma proposta para a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), que deve ser instituída pelo Estado brasileiro.
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Lançamento do Fórum "Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça", em Brasília. Espaço tem foco em reparação e não repetição|Leobark Rodrigues|Secom/MPF
A iniciativa é coordenada conjuntamente pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pelo Ministério Público Federal (MPF), pelo Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (Obind) da Universidade de Brasília (UnB) e pelo Instituto de Políticas Relacionais (IPR).
Ele será composto por organizações indígenas, entidades da sociedade civil, como o Instituto Socioambiental (ISA), representantes de órgãos públicos e instituições acadêmicas. Especialistas em direitos humanos e outras instituições envolvidas ou interessadas no tema também farão parte do fórum. A adesão é voluntária e aberta a entidades que aceitarem os termos da Carta de Princípios. As solicitações de participação serão avaliadas pelos coordenadores da iniciativa e podem ser enviadas via e-mail para forum-memoria-lista@mpf.mp.br.
Veja como foi a cerimônia:
Violências históricas
O relatório final da CNV, divulgado em 2014, apontou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos entre 1946 e 1988, sendo essa contagem feita apenas entre 10 dos 278 povos indígenas existentes no Brasil. Além das mortes, as violências incluíam remoções forçadas de comunidades de seus territórios tradicionais e a destruição de suas culturas. Apesar dessas evidências, o Estado brasileiro ainda não implementou de forma ampla as recomendações da CNV, o que torna o trabalho do Fórum uma etapa crucial na busca por justiça.
Ana Borges, subprocuradora-geral da República, ressaltou que os crimes contra os povos indígenas no Brasil não começaram na ditadura militar, mas desde a chegada dos invasores. Ela lembrou que o processo de genocídio, remoções forçadas e violação de direitos faz parte de uma longa trajetória de violências. “Desde o momento em que os invasores aqui chegaram, tragédias e genocídios marcaram a história deste país”, destacou. Mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe um viés de pacificação nacional, o esquecimento não pode ser a solução, afirmou Borges. “Conhecer a verdade é essencial para garantir reparação e evitar que os erros do passado se repitam."
Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, destacou a importância de abordar as violações cometidas contra os povos indígenas não apenas durante a ditadura militar, mas também antes e após esse período. Segundo ele, “a expectativa é muito positiva em relação ao Fórum, por reunir várias entidades, tanto associações civis quanto acadêmicos e especialistas no debate sobre justiça de transição, além de órgãos do governo, com o objetivo de aprofundar esses debates sobre os crimes e violações cometidos contra os povos indígenas, não apenas na ditadura”.
Karipuna sublinhou a relevância de trazer para o centro do debate a violência que continua a atingir os povos indígenas, muitas vezes ligada à questão fundiária. “O Fórum pode se debruçar sobre essa discussão, que gira em torno das violações, violências e assassinatos que continuam a ocorrer hoje, relacionados ao contexto de demarcação de Terras Indígenas e às disputas territoriais com invasores.”
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Kleber Karipuna discursa durante lançamento: "expectativa é muito positiva em relação ao Fórum"|Leobark Rodrigues|Secom/MPF
Ele ainda mencionou a importância de o Fórum orientar o Estado brasileiro e seus três poderes, além da sociedade civil, na adoção de mecanismos e medidas que garantam a não repetição desses crimes. Em relação à criação da CNIV, Kleber destacou a frustração com a lentidão do governo. “É uma morosidade do governo atual, um governo muito mais próximo da pauta de direitos humanos e dos direitos territoriais dos povos indígenas, que ainda não criou a Comissão Nacional da Verdade Indígena”, afirmou. Ele lembrou que, em 2023, houve uma pressão significativa junto ao governo e aos Ministérios de Direitos Humanos e Justiça para avançar nessa questão, mas não foi suficiente.
“O que esperamos é que o Fórum também contribua para dar essa pressão política e técnica, com insumos da sociedade civil e dos órgãos de controle e justiça, para que a criação da comissão aconteça o quanto antes. Isso é fundamental para que possamos avançar com a reparação e garantir que essas atrocidades não se repitam”, sublinhou Karipuna.
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Tatiane Klein, antropóloga e uma das pesquisadoras do ISA que colaborou com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV)|Leobark Rodrigues/Secom/MPF
Tatiane Klein, antropóloga e uma das pesquisadoras do ISA que colaborou com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), ressalta a importância da iniciativa para dar seguimento às investigações iniciadas em 2014. "Faz dez anos que o relatório da CNV foi publicado, reconhecendo que as pesquisas de violações dos direitos humanos dos povos indígenas feitas ali eram parciais e insuficientes - e que deviam ser continuadas por uma comissão específica. Com o Fórum, teremos condições de articular forças para construir uma proposta de funcionamento para a comissão, de forma que o Estado brasileiro não possa mais se esquivar desse compromisso."
Comissão Nacional Indígena da Verdade
O procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, um dos idealizadores do Fórum, destacou que a Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV) será fruto de uma construção coletiva, o que garantirá sua legitimidade e capacidade de articulação. No entanto, lembrou que cabe ao Estado brasileiro a responsabilidade de investigar e revelar a verdade, além de adotar medidas concretas de reparação e garantir que as violações não se repitam.
Paulino Montejo, assessor político da Apib, alertou que não adianta apenas discutir as violências e os crimes cometidos no passado sem que o Estado se responsabilize e tome medidas estruturais. “A correção de rumos deve ocorrer por meio de políticas governamentais”, afirmou. Marco Antônio Delfino de Almeida, procurador da República e coordenador do Grupo de Trabalho Prevenção contra Atrocidades contra Povos Indígenas e Formas de Reparação do MPF, reforçou a necessidade de acabar com a "guerra silenciosa" contra os povos indígenas. Para Delfino, é fundamental tornar visível essa luta, permitindo que o Brasil reescreva sua história com justiça.
Papel das instituições parceiras
Durante o evento, representantes de diversas instituições como a Funai, o Ministério dos Povos Indígenas, a Defensoria Pública da União, além de organizações da sociedade civil como o ISA, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) manifestaram apoio ao Fórum. Além dessas organizações, o processo conta com a participação de especialistas em direitos indígenas, como Carlos Marés e Ela Wiecko, além do acompanhamento de observadores internacionais, como o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (ACNUDH) e embaixadas de diferentes países.
Daniela Greeb, diretora do IPR, e Elaine Moreira, coordenadora do Obind, lembraram o papel fundamental do Armazém Memória e do pesquisador Marcelo Zelic, falecido no ano passado, que foi uma das principais figuras nos estudos sobre as violências contra os povos indígenas realizados pela CNV. Elas destacaram que o trabalho coletivo é essencial para garantir que o Fórum atinja seus objetivos.
Desafios e próximos passos
Além de discutir os aspectos legais, administrativos, políticos e metodológicos para a criação da CNIV, o Fórum tem como meta sensibilizar a sociedade brasileira e internacional para a importância da revelação da verdade e da reparação integral. A demarcação de territórios indígenas será um ponto central do debate, conforme recomendação da Comissão Nacional da Verdade como uma das formas de reparação.
A primeira reunião do grupo está marcada para 5 de novembro, e o prazo para a apresentação de uma proposta inicial para a criação da CNIV é de 12 meses. Durante esse período, o Fórum apoiará iniciativas que promovam a memória, verdade, justiça e garantias de não-repetição, além de incentivar o intercâmbio de experiências com povos indígenas de outros países que enfrentam desafios semelhantes.
O Fórum "Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça" marca um passo crucial na luta pelos direitos indígenas no Brasil, com a expectativa de promover mudanças estruturais que assegurem justiça, reconhecimento e respeito pleno aos direitos dos povos indígenas.
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Legado de Mãe Bernadete cresce como raiz de luta no Quilombo Pitanga dos Palmares (BA)
Movimento quilombola exige justiça e direito à terra no aniversário de assassinato da liderança; estudo da Conaq revela aumento nas execuções de quilombolas
Um ano após o assassinato de Mãe Bernadete, a casa onde ela viveu, no Quilombo Pitanga dos Palmares (BA), grita por justiça|Ester Cezar/ISA
No Quilombo de Pitanga dos Palmares (BA), o primeiro aniversário do assassinato de Mãe Bernadete Pacífico foi marcado por saudade e emoção, mas sobretudo pelo grito coletivo por justiça e pela garantia do direito à titulação dos territórios quilombolas.
Na terra sagrada que deu origem à liderança, no município de Simões Filho, sua memória se tornou raiz da luta ancestral quilombola, que orienta e acompanha as sementes da resistência a seguirem firmes na defesa de seus direitos.
“Nós não vamos associar o assassinato de Dona Bernadete ao tráfico, porque a morte de Dona Bernadete foi por terra nesse país!”.
Em discurso no 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola – Fé, Cultura e Resistência, que organizou uma série de homenagens pelo aniversário de falecimento da liderança quilombola, a articuladora política da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Selma Dealdina, falou que a família, amigos, filhos de santo e o movimento nacional quilombola não irão aceitar a versão da Polícia Civil do Estado da Bahia, que aponta o tráfico de drogas como mandante da morte de Mãe Bernadete.
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Selma Dealdina: “Nós não vamos associar o assassinato de Dona Bernadete ao tráfico, porque a morte de Dona Bernadete foi por terra nesse país!"|Ester Cezar/ISA
Na noite de 17 de agosto de 2023, Maria Bernadete Pacífico Moreira foi assassinada em sua casa, no Quilombo Pitanga dos Palmares, aos 72 anos. Apesar de estar no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), ela foi alvejada por 22 tiros, em um caso que chocou o país e evidenciou a vulnerabilidade das lideranças quilombolas no Brasil.
Após Mãe Bernadete, 12 pessoas quilombolas foram assassinadas no país no período de um ano. Um levantamento inédito feito pela Conaq mostrou aumento exponencial dos crimes nos últimos cinco anos.
Foram 46 execuções registradas de janeiro de 2019 a julho de 2024, uma média anual de 8 assassinatos. A cada um mês e meio, uma vida quilombola foi eliminada violentamente. Destacam-se 2021 e 2023 como anos com número de assassinatos superior à média anual.
Há décadas, o Quilombo de Pitanga dos Palmares enfrenta graves conflitos fundiários, agravados pela especulação imobiliária desenfreada e pela instalação de empreendimentos públicos e privados que põem em risco sua sobrevivência.
“O tráfico não pode levar os créditos de uma luta que Dona Bernadete travou enquanto denunciava desmatamento, enquanto denunciava a não titulação de terras e enquanto cobrava pela morte do Binho [seu filho, também assassinado]. É preciso que o sangue derramado pela luta por terra nesse país seja respeitado! Não vão desonrar o sangue de Dona Bernadete”, afirmou Selma Dealdina.
“Mãe Bernadete era mãe, mãe do quilombo, a griô que dava conta do estado dentro do quilombo", lembra Mãe Jaciara, amiga e moradora de Pitanga dos Palmares. "Mas não era ialorixá", apesar de iniciada no candomblé, explica. Por isso, a acusação de racismo religioso para o crime não pode ser considerada. “Quando [a mídia] fala ‘a ialorixá foi assassinada no terreiro', isso também deixa a gente de candomblé vulnerável. Então pode chegar em qualquer terreiro e matar?”, questionou.
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Mãe Jaciara: “Mãe Bernadete era mãe, mãe do quilombo, a griô que dava conta do estado dentro do quilombo”|Ester Cezar/ISA
Legado continua
O 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola foi realizado entre os dias 16 e 18 de agosto pelo Quilombo Pitanga dos Palmares e pela Associação de Etnodesenvolvimento Muzanzu. Sete comunidades quilombolas da região e lideranças de todo o país se reuniram para celebrar o legado de Mãe Bernadete com visitas guiadas, apresentações musicais, danças tradicionais, oficinas culturais e feira de produtos artesanais e gastronômicos.
“Esse festival retrata a história de luta, resistência e ancestralidade de Mãe Bernadete. Era tudo que ela fazia quando estava aqui entre nós e eu tô dando continuidade a esse legado tão corajoso e maravilhoso”, contou Jurandir Pacífico, filho da matriarca.
Atuante em várias frentes de luta, Mãe Bernadete defendia o empoderamento feminino, a criação e aplicação de políticas públicas e uma educação de qualidade – um de seus sonhos era colocar universidades dentro dos quilombos.
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Grupo capoeirista do Quilombo Pitanga dos Palmares|Ester Cezar/ISA
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Oficina de produção de acarajé durante o festival|Ester Cezar/ISA
Além disso, fez parte da coordenação e do coletivo de mulheres da Conaq, atuou como Secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho (BA), foi mestra de cultura popular, artesã e uma referência também como sambadeira, sendo da primeira coordenação da Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba).
“O desejo da minha mãe é esse, ver os irmãos quilombolas juntos. Essa troca de saberes e fazeres de sete comunidades quilombolas envolvidas nesse Festival é de suma importância”, completou Jurandir Pacífico.
Durante o festival, foi inaugurado o Museu Rústico Mãe Bernadete. Criado para homenagear a liderança e seu filho Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, mais conhecido como Binho do Quilombo, assassinado em 2017. O espaço é uma tradicional casa de pau a pique e foi construído em uma semana, com barro, bambu, ripas, pau-brasil e muitas mãos.
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Museu Rústico de Mãe Bernadete lembra um santuário, com objetos, roupas, fotos e artigos religiosos|Ester Cezar/ISA
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Ao som de tambores, Jurandir Pacífico anunciou a inauguração do museu, mas se permitiu ficar do lado de fora. “Eu não tenho condição de entrar hoje. Eu vou abrir, mas não vou entrar. Não estou preparado para entrar agora”, desabafou.
“O museu traz a preservação da memória e da história das pessoas que lutam. Ali tem a memória do Binho, tem a memória da Mãe Bernadete e a perspectiva de que a gente não perca essas histórias”, exaltou a ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves.
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Jurandir e Wellington Pacífico, filho e neto de Mãe Bernadete|Ester Cezar/ISA
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Antes da inauguração, Jurandir pediu um minuto de silêncio|Ester Cezar/ISA
Fé e ancestralidade
“No candomblé, quando uma mulher de candomblé morre, ela se torna uma ancestral. Então Mãe Bernadete aqui é uma força que está com nós”, relembrou Mãe Jaciara.
O Quilombo Pitanga dos Palmares é o único do Brasil que possui uma rua de terreiros, e é nesse cenário que Mãe Bernadete cultuava sua fé. Apesar de não ter o título de ialorixá, ela era uma mulher de terreiro, filha de Oxumarê, iniciada na década de 1970 no terreiro Ilê Axé Kalé Bokum, em Salvador.
“A espiritualidade acaba sendo a tecnologia que mais protege a gente”, comentou Wellington Pacífico, neto de Mãe Bernadete e que estava com ela quando foi assassinada.
“É o búzio que vai orientar, é o Exú, é o Caboclo que vai orientar para quais caminhos seguirmos e quais pessoas confiarmos. Acaba sendo importante para nós, porque quando a gente escuta, a gente acaba tendo resultado. No final das contas, tem um avanço nas lutas em relação à defesa do território e também tem a nossa proteção enquanto pessoa, a integridade física da gente”, explicou.
Mulheridade quilombola
O II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas foi uma das últimas agendas públicas da Conaq à qual Mãe Bernadete esteve presente, em junho de 2023. O tema era “Quando uma mulher quilombola tomba, o quilombo se levanta com ela”.
“Mãe Bernadete é fundadora, é integrante, porque ela não deixa de existir porque não está mais aqui no plano carnal. Ela continua entre nós. Uma das fundadoras do coletivo de mulheres da Conaq”, recordou Selma Dealdina, que juntamente com outras mulheres da instituição e do coletivo, promoveu uma oficina de mulheres quilombolas no festival para honrar também essa parte da luta de Mãe Bernadete.
“A dor que doeu aqui doeu em todas nós. Então esse é um momento único, em que a gente pode vivenciar pelo menos um pouco de justiça. É uma reafirmação de direito, de luta, de resistência e de dizer que o legado dela não morreu. Pelo contrário: o legado dela continua. Ela não lutava só pelo território dela, ela lutava por todos os territórios”, reforçou a coordenadora executiva da Conaq e membro do Coletivo de Mulheres, Laura Silva.
O coletivo se uniu a mulheres do Quilombo Pitanga dos Palmares e de Salvador para uma oficina de reflexões políticas, onde foram abordados temas como racismo, regularização fundiária, abandono, feminicídio e adoecimento psicológico. As mulheres também escreveram sobre Mãe Bernadete. "Um legado de luta, fé e resistência. Uma revolução ancestral e visceral. Eternamente presente!”, dizia uma das mensagens.
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Coletivo de Mulheres da Conaq somou-se às mulheres do quilombo Pitanga dos Palmares e outras aliadas de Salvador para promover uma oficina de reflexões políticas sobre suas vivências e que foi marcada por emoção e afeto entre as participantes|Ester Cezar/ISA
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Laura destacou que o coletivo de mulheres trabalha de forma conjunta na luta por políticas públicas adequadas à realidade quilombola, debatendo pautas a nível nacional e principalmente fazendo incidências nos ministérios, “para que a gente possa ter uma política pública que venha de encontro com a nossa realidade”, comentou.
“Tem um ódio instituído no país, que acirra a violência contra as mulheres. Mãe Bernadete, com os três primeiros tiros, já estava morta. Mesmo assim, deram mais 19. Isso não é um crime que caracteriza o tráfico, como estão querendo dizer. Não. Isso é um crime de ódio”, ressaltou a ministra.
Segundo ela, o governo está implementando um protocolo nacional para proteger as mulheres quilombolas, com políticas públicas voltadas à sua segurança, autonomia e combate à violência. No âmbito do ministério, foi instituído o Fórum Permanente das Mulheres Quilombolas – uma demanda do último Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas –, onde debates bimestrais são realizados para definir as linhas dessas políticas a serem investidas nos quilombos.
“Talvez eu não tenha elementos para dizer todos [os motivos], mas eu digo preponderantemente: sim, a questão fundiária é adjacente a toda essa violência que as comunidades tradicionais têm sofrido, especialmente as comunidades quilombolas”, disse o promotor de justiça e coordenador da área de direitos humanos do Ministério Público da Bahia, Rogério de Queiroz.
O avanço do agronegócio, das instalações eólicas e das fazendas de energia solar, juntamente com suas linhas de transmissão, está pressionando os territórios quilombolas. Além disso, o interesse do setor imobiliário em áreas valorizadas pelo turismo e por empreendimentos litorâneos intensifica a pressão. O mais preocupante, no entanto, é o avanço do crime organizado sobre os territórios quilombolas, dos geraizeiros e de outras comunidades tradicionais.
“O estado da Bahia não pode vivenciar outra situação como a que aconteceu com Binho, com Mãe Bernadete. Nós não podemos vivenciar nova situação de agressão, de violência contra defensores dos direitos humanos e nós precisamos aprimorar esses mecanismos de proteção e de prevenção”, alertou.
Segundo o promotor de justiça, o Ministério Público é responsável por apontar quais são os erros identificados nesses casos. “O MP atua quase como uma atuação subsidiária à omissão dos entes públicos. Por isso, que a gente é chamado. A rigor, nós não deveríamos nem mesmo estar diante de situações como essas. Acaba havendo esse destaque da atuação do MP por conta do vazio que é criado nesse cenário dessa política pública de proteção a essas pessoas.”
Titulação de Pitanga dos Palmares
Chefe de gabinete da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi-BA), Alexandro Reis destacou a importância da titulação dos territórios quilombolas para o fim dos conflitos. “Primeiro, porque dá segurança às comunidades em relação a ter o seu território e a sua terra garantidos para produzir, para preservar sua cultura, para se reproduzir.”
Em segundo lugar, a preservação do meio ambiente. “As comunidades quilombolas têm esse papel importante de preservar o meio ambiente. Sua produção não degrada os biomas, além de história, memórias afetivas e culturais, e de funcionamento da comunidade. Além disso, é uma determinação da nossa Constituição Federal, é uma questão de direito fundamental que é responsabilidade do Estado garantir isso”, pontuou.
A Sepromi atua junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para fazer o reconhecimento dos territórios quilombolas. O Quilombo Pitanga dos Palmares foi certificado em 2004 pela Fundação Cultural Palmares.
Alexandro Reis explica que há uma força tarefa junto com Incra, Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Advocacia Geral da União (AGU) e Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE-BA) para fazer a desintrusão da área, que tem 854 hectares. Os imóveis de pessoas não quilombolas foram identificados e notificados. Agora, o governo federal deve negociar as indenizações para a saída das famílias.
Novas estratégias de proteção
De acordo com o último Censo do IBGE, a Bahia é o estado que tem o maior número de quilombolas do Brasil. São 397.059 e apenas 5% vivem em territórios demarcados.
O estado lidera com Maranhão e Pará o ranking de mortes por conflitos de terra. Só na Bahia, foram pelo menos 11 quilombolas assassinados em dez anos.
Apesar de uma luta firme e sólida pela titulação de territórios quilombolas, inclusive o seu, Mãe Bernadete temia pela própria vida. Entrou para o PPDDH e estava inserida no programa desde 2017. Entretanto, não foi o suficiente.
“Cada vez que se avança no direito dessas comunidades, a resposta vem mais violenta por parte de quem não tem interesse que essas comunidades tenham a posse do seu território. São territórios ricos, que têm água, que têm minérios, e os poderes, as forças econômicas questionam.”, afirmou a Superintendente de Direitos Humanos no Estado da Bahia, Trícia Calmon.
Ela defende a revisão das estratégias de proteção para pessoas que lutam por territórios, destacando a necessidade de organizar processos que acelerem a regularização fundiária. Segundo Trícia Calmon, é crucial identificar e eliminar as ameaças originadas pela insegurança na posse da terra.
“É necessário chegar com políticas públicas fortemente nos territórios, porque passa uma mensagem que aquele território existe e está no mapa de ações dos governos. Outra via é o fortalecimento das próprias comunidades e dos movimentos sociais, para que eles construam também suas soluções de proteção. Todas as esferas de governo precisam dialogar permanentemente.”, alertou.
Vou fazer minha oração pra que?
Comi fogo quem me deu
Se a minha oração terminou, meu Zumbi,
Os inimigos não me venceram
Se a nossa oração terminou, meu Zumbi
Os inimigos não nos venceram.
Composição de Ananias Viana, amigo de Mãe Bernadete
O encontro-homenagem chega ao fim, mas a vida em Quilombo Pitanga de Palmares continua, não se interrompe. A luta pela terra, direitos e memória persiste, invencível, como Mãe Bernadete, que se eternizou em raiz e agora se eleva como tronco forte entre os ancestrais, zelando por aqueles que caminham sob sua proteção.
Em cada quilombola, Mãe Bernadete segue viva.
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|Walisson Braga/Conaq
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|Ester Cezar/ISA
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Organizações alertam sobre risco de retrocesso em direitos indígenas no STF
Organizações “amigas da corte” em ações contra Lei do Marco Temporal criticam “conciliação” da Suprema Corte e apoiam decisão da Apib de abandonar negociações
Em protesto, movimento indígena abandonou a segunda audiência de conciliação sobre o Marco Temporal no STF|Joédson Alves/Agência Brasil
Doze organizações e representações que atuam como amici curiae – “amigas da Corte” nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) contra a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023), emitiram uma nota pública expressando profunda preocupação com a condução da mesa de conciliação estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A mesa, liderada pelo ministro Gilmar Mendes, tem sido alvo de críticas crescentes devido à falta de transparência e ao risco de retrocesso nos direitos indígenas.
As organizações se solidarizam com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que decidiu se retirar das negociações na última quarta-feira (28/08), após considerar que "negociar direitos fundamentais é inadmissível". O principal foco das críticas é a forma como as discussões têm sido conduzidas, sem que questões cruciais levantadas pela Apib tenham sido devidamente respondidas, como o pedido de reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei 14.701 (Lei do Marco Temporal), especialmente em relação aos dispositivos já julgados inconstitucionais pela Suprema Corte no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que teve repercussão geral e foi concluído em setembro de 2023.
Esse julgamento do STF foi considerado um marco na defesa dos direitos constitucionais indígenas. A posição do STF foi diametralmente oposta a diversos pontos que, depois, foram incluídos pelo Congresso Nacional na Lei 14.701. A norma está em vigor desde sua promulgação, em dezembro de 2023.
As organizações apontam que a falta de clareza sobre o objeto da discussão nas audiências de conciliação levam a crer que os direitos territoriais indígenas, reconhecidos como direitos fundamentais pelo próprio STF no julgamento de repercussão geral, podem acabar sendo “negociados e mesmo sofrer retrocesso”.
A nota também denuncia a postura intransigente do juiz auxiliar Diego Viegas Veras, que na primeira audiência chegou a exibir um áudio protagonizado pelo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, em que ameaçava colocar em votação no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 48, que institui o Marco Temporal, caso não houvesse resultado da conciliação. Tal atitude, segundo as organizações, gerou um sentimento de "indignação e humilhação" entre as representações indígenas.
As entidades apoiam a saída da Apib, sublinhando que “a própria ideia de conciliação como autocomposição de conflitos parece supor que todas as partes concordaram com essa forma de solução da controvérsia. Quando uma das partes a recusa, o tema necessariamente volta ao julgador para a decisão. Do contrário, a parte recusante terá negado o seu acesso à justiça. A Apib, e não outra entidade indígena, convém lembrar, é uma das autoras da ADI 7.582”.
Apesar das críticas, as organizações reafirmam sua confiança no STF, citando o julgamento do RE 1.017.365 como um exemplo de interpretação que deve ser mantida para garantir o respeito aos direitos indígenas consagrados na Constituição Federal.
Leia a nota na íntegra:
Nota dos amici curiae sobre a condução da mesa de conciliação que discute a constitucionalidade da Lei 14.701/2023
As entidades abaixo relacionadas, todas admitidas como amici curiae nos autos da ADC 87, onde se encontram reunidas as ADI 7.582, 7.583 e 7.586, bem como a ADO 86, vêm externar a sua posição a respeito da condução dos trabalhos, pelo juiz auxiliar Diego Viegas Veras, no âmbito da Comissão Especial instituída pelo Ministro Gilmar Mendes com o propósito de buscar a resolução de problemas “no que se refere ao tema dos direitos da população indígena e não indígena que envolvem o art. 231 da CF e a Lei 14.701/2023”.
A Comissão Especial começou a funcionar sem que questões prejudiciais, suscitadas reiteradamente pela Apib, fossem respondidas, em especial a necessidade de afirmar a inconstitucionalidade da Lei 14.701, ao menos de seus dispositivos em completo desacordo com o julgamento do STF no RE 1.017.365. Há jurisprudência tranquila no sentido de que uma lei que surge em oposição direta ao entendimento do STF nasce com a presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, recaindo sobre o legislador ônus argumentativo que justifique a razão de superação de julgado da Corte, o que não ocorreu.
A audiência inaugural da Comissão Especial, sob o comando do juiz Diego Viegas Veras, começou com a ameaça de que, caso não houvesse a conciliação, uma PEC para instituir o Marco Temporal de 5 de outubro de 1988 seria posta em votação. Um áudio protagonizado pelo presidente do Senado Federal foi colocado em alto volume, para que não houvesse dúvidas a respeito. O mesmo ocorreu na segunda audiência, onde a postura da condução da mesa foi demasiado intransigente com os apontamentos feitos pelos povos indígenas, reduzindo os questionamentos constitucionais a “questões laterais”.
Na sequência, vários incidentes demonstraram o absoluto desconhecimento do juiz instrutor com a temática posta sob conciliação, ora sugerindo que a Funai teria algum papel de representação dos povos indígenas, ora afirmando que a conciliação seguiria mesmo sem a presença da representação indígena.
Tampouco houve clareza sobre os limites do que seria passível de conciliação, tudo levando a crer que direitos cuja fundamentalidade foi afirmada pelo próprio STF no julgamento do RE 1.017.365 poderiam ser negociados e mesmo sofrer retrocesso.
O sentimento coletivo, tanto das representações indígenas como das entidades que há décadas trabalham com a matéria, foi de indignação e humilhação, dado o aviltamento a que foi submetida questão constitucional.
A decisão tomada no dia de hoje, de saída da APIB enquanto movimento de representação nacional e que agrega organizações de todas as regiões do Brasil, é referendada pelas entidades signatárias por duas razões muito básicas. A primeira é que a própria ideia de conciliação como autocomposição de conflitos parece supor que todas as partes concordaram com essa forma de solução da controvérsia. Quando uma das partes a recusa, o tema necessariamente volta ao julgador para a decisão. Do contrário, a parte recusante terá negado o seu acesso à justiça. A APIB, e não outra entidade indígena, convém lembrar, é uma das autoras da ADI 7.582. E a segunda é a própria centralidade que os povos indígenas têm nas questões que lhes concernem diretamente, nos termos da Convenção 169 da OIT. É inconcebível que se discutam seus direitos territoriais sem a presença de povos indígenas.
As entidades signatárias reafirmam a sua confiança no Supremo Tribunal Federal, que soube bem compreender o sentido do artigo 231 da Constituição Federal por ocasião do julgamento do RE 1.017.365.
Brasília, 28 de agosto de 2024
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
Comissão Arns
Associação Juízes para a Democracia – AJD
WWF-Brasil
Centro de Trabalho Indigenista – CTI
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
Comissão Guarani Yvyrupa – CGY
Conectas Direitos Humanos
Povo Xokleng da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ
Alternativa Terrazul
Instituto Socioambiental (ISA)
Instituto Alana
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Tito Vilhalva: a voz centenária da resistência indígena guarani kaiowá
O ISA conversou com o rezador e liderança de 106 anos da Terra Indígena Guyraroká (MS). Ele nos lembra que a luta dos Guarani Kaiowá é, acima de tudo, uma luta pelo futuro da humanidade
Tito Vilhalva, 106 anos, é rezador, liderança da Terra Indígena (TI) Guyraroká e dedica sua vida ao reconhecimento do território|Tatiane Klein/ISA
Historicamente marcada por perseguições, torturas, trabalhos forçados, prisões e deslocamentos compulsórios, a Terra Indígena (TI) Guyraroká, localizada em Mato Grosso do Sul, é um símbolo da resistência e luta pelos direitos territoriais indígenas. Desde o início do século XX, a comunidade vive as consequências da colonização, com ações violentas do Estado Brasileiro que resultaram em massacres e na contínua determinação dos povos indígenas em permanecerem ou retornarem aos territórios de que foram expulsos.
Em abril deste ano, a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos reconheceu e pediu perdão pelas graves violações de direitos humanos cometidas contra o povo Guarani Kaiowá na TI Guyraroká. O pedido de desculpas, no entanto, não resultou na homologação da área – declarada há mais de 15 anos, perpetuando uma situação de constante insegurança às famílias guarani kaiowá que ali vivem.
Aos 106 anos, Tito Vilhalva é rezador, liderança da comunidade e tem dedicado toda a sua vida ao reconhecimento desse território. Ele é um dos grandes guardiões de rezas como as que garantem as chuvas e, nas suas palavras, a proteção dos povos indígenas e de todo o Brasil. É apenas nos tekoha, territórios tradicionais de seu povo como Guyraroká, que esses saberes podem ser perpetuados. Com a força de sua voz, Tito nos lembra que a luta indígena é, acima de tudo, uma luta pelo futuro da humanidade.
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Tito Vilhalva compartilhou a história de violências e deslocamentos dos Guarani Kaiowá|Tatiane Klein/ISA
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Ele é um dos grandes guardiões de rezas, como as que garantem as chuvas|Tatiane Klein/ISA
Nos últimos anos, o cenário político em torno das Terras Indígenas no Brasil tem sido marcado por retrocessos. Em 2014, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a portaria declaratória da TI Guyraroká, baseada na tese do Marco Temporal. A decisão ignorou mais de um século de esbulho e a violência sofrida pelos povos indígenas, deixando Tito e sua comunidade em um limbo jurídico que persiste até hoje.
Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a tese ruralista, trazendo uma nova esperança para os povos indígenas e o nosso futuro – as Terras Indígenas são as áreas mais ambientalmente preservadas do país. No entanto, logo após a decisão da Suprema Corte, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/2023, reincorporando o Marco Temporal e outros retrocessos aos direitos indígenas na legislação.
Mesmo após ser declarado inconstitucional, o Marco Temporal e os dispositivos da lei 14.701 voltaram ao STF este ano, por iniciativa do ministro Gilmar Mendes, que propôs uma “conciliação” sobre os dispositivos da lei, colocando mais uma vez os direitos indígenas em xeque. Nesta quarta-feira (28/08) acontece a segunda audiência de conciliação. A mesa de 24 representantes titulares tem apenas seis representantes dos povos indígenas.
Em um momento crítico de retrocessos aos direitos indígenas, a incerteza quanto ao futuro de Guyraroká é uma preocupação constante para Tito. “Sempre eu fico pensando, porque se vai demorar a demarcação de Guyraroká, daqui dez, 15, 20 anos, aí eu já não vou participar mais, porque minha idade está avançando, estou com 106 anos que estou vivendo aqui”, lamenta. Tito não só expressa a angústia de quem viu sua terra e existência ser desrespeitada por décadas, mas também a dor de um povo que luta para preservar seus territórios e identidade cultural em um país carregado de racismo contra os povos indígenas.
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Casa de rezas na Terra Indígena Guyraroká, território de luta e resistência do povo Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul|Tatiane Klein/ISA
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Fogão a lenha na casa de Tito, na Terra Indígena Guyraroká|Tatiane Klein/ISA
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Miguela Vilhalva, esposa de Tito e anciã do povo Guarani Kaiowá|Mariana Soares/ISA
Nesta entrevista, Tito Vilhalva compartilha a história de violências e deslocamentos que Guyraroká e outras tantas comunidades guarani kaiowá enfrentaram ao longo do século XX, e também suas memórias sobre a ditadura civil-militar, o retorno aos territórios tradicionais de seu povo e a luta constante contra a imposição do Marco Temporal, que ele acredita ser uma ameaça não só para os indígenas, mas para todo o Brasil.
Suas palavras refletem a luta por justiça, a conexão existencial com a terra para os Guarani Kaiowá e a esperança de que um dia Guyraroká seja plenamente reconhecida como o lar legítimo de seu povo. Leia trechos da entrevista concedida ao ISA em 7 de agosto de 2024:
A Terra e o tekoha
Desde muito tempo, muitos anos, milhões de anos, nós andamos no mato pelado, Ñanderu, aquele que é rezador, eles já marcaram a aldeia dele. “Aquele que vai ser aldeia mesmo, aquele vai ser”. Então por isso que nós não pode trocar, porque já tem sangue muito dentro daquela aldeia, então, por isso que nós não pode resolver. A terra é a mesma, tudo igual, tem areia, tem tudo, mas os índios escolheram aquele pedacinho deles. Então aquele pedacinho é deles.
Aqui no Guyraroká desde 1905 já é aldeia mesmo, essa aqui já é aldeia antiga. Eu nasci aqui no Guyraroká, minha esposa também nasceu no Guyraroká. Nós nascemos aqui e nós saímos expulsos por causa da Ditadura. Wilson Galvão, dizia que era Tenente lá em São Paulo. Ele chegou e falou que comprou isso aqui, que era dele. Um dia, à noite, chegou Wilson Galvão com Antônio Albuquerque e deram tiros na nossa roça até meia-noite. Matou sete mulheres e um rapaz. Nós saímos expulsos da nossa aldeia. Nós nos juntamos e fomos para Teý’ikue [Reserva Indígena Caarapó] para nos proteger.
E aí então nós se juntamos e entramos de novo, novamente foi avisado para nós, o Chico Gedro: “é porque a guerra vem aí então esta ditadura é o dono da Guerra”, então tirou expulso. Ele falou “Quantos índio que tem aqui?” Nós falamos que tinha dois mil índios. Porque esse aí ele matava também, então saímos tudo e fomos lá se aguardar lá no Teý’ikue e aí entramos de novo aqui no Guyraroká.
Aí o que que aconteceu, nós voltamos, ficamos na beira da Aldeia Guyraroká, perto do córrego Passo Fundo, e tinha muito peixe, muita coisa também, muita caça. Aí chegou também o Jorge, de São Paulo também, disse que era sargento de São Paulo e ele comprou. Aí o que que aconteceu, aí nós saímos ficamos numa fazenda deram um pedacinho pra nós morar, mas a turma que tinha no Guyraroká já não voltou mais porque tinha medo do tiro, então ele matou muita coisa aí, matou muita gente, né?
Nós acabamos de sair daqui em 1988, muita gente, meu avô, tudo saiu daqui do Guyraroká em 88 acabamos de sair. Minha avó já faleceu naquela época, tá aí o cemitério dela, tudo aí. E eu fiquei também aí trabalhando de peão arrendando terra para plantar milho, arroz feijão para criar um porquinho para manter a minha família, né? E então entrei novamente aqui em 2008, entrei novamente em Guyraroká, fui lá onde tá o cemitério do meu pai, minha mãe, minha sogra, tudo aí… Então o fazendeiro foi lá e falou pra mim: “Quem mandou você entrar, quem mandou entrar aqui, quem que trouxe você” e eu falei “não, estamos aqui na aldeia, essa aldeia há muitos anos” E então levaram nós outra vez expulsos, levaram cheio o caminhão, levaram e soltaram e chegamos lá no Teý’ikue de novo.
O tempo da ditadura, da guerra, não tinha dó para matar, e até agora tá matando. Você vê que aqui no Guyraroká, o fazendeiro mesmo, três dos meus filhos mandou matar. Tá aí o cemitério dele. O Ambrósio, o Beto, a Irene. Tá aí o cemitério deles. Se alguém quiser provar pode vir, tranquilo, vou mostrar para ele o que que aconteceu.
Demarcação e Marco Temporal
Por que colocaram o Marco Temporal? Já ocuparam muito, muito, muito patrimônio. Eles criaram o boi, derrubaram muita madeira, acabou a mata. Acabou. Acabou tudo, tudo tudo. Não tem mais nada. Só a gente olhar. O que que nós vamos fazer?
Será que nós não é não é ser humano? Será que só o fazendeiro rico? O dinheiro, ele defende a gente, mas ele não defende na hora da nossa despedida. Ninguém leva o dinheiro. Terra ninguém leva. Já ocuparam muito, muito.
Quando o ruralismo nasceu? Ele que fez a terra? Quem que fez a terra? Porque a terra quem fez foi o Deus. Ele que fez a terra. Não é nós não. Todos nós pensamos que a terra já está feita. E a terra não é para vender. A terra é nosso corpo. A terra é nossa vida. A nossa alimentação. Porque daí que sai arroz, feijão, milho, cria gado, cria tudo.
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Tito e Miguela Vilhalva, anciões que dedicam suas vidas ao reconhecimento do território|Carolina Fasolo/ISA
E o que que tá fazendo o ruralismo pelo povo indígena, saído expulso, matando, gritando, dando tiro por cima. Então quer dizer que tem a história também que eu falo: o Brasil fez a fábrica, armamento, não é pra caça, é para matar os povos. Pode ser brasileiro, pode ser pobre, pode ser o que for ele vai matar.
Por que é que colocaram o Marco Temporal? Esse Marco Temporal prejudicou todo o país, o brasileiro. Vai acabar a água, já secou a água, não vai levantar mais arroz, não vai criar mais nem milho, nem soja, não vai chover mais. Por que que colocaram o nome esse Marco Temporal? Esse ‘tempo’, o nome é Ñanduá, que é “O Deus que anda”. O Deus que tá olhando, o Deus que tá aí. Esse Deus ficou triste porque colocaram o nome ‘Marco Temporal’. Eu conheço. Então por que que colocaram esse nome de Ñandejara rera [nome do Nosso Dono] ‘Marco Temporal’? Então tinha que ver outro para pôr, mas agora já colocaram, o que que vai fazer? Já não vai voltar mais.
E mataram muito rezador, mandou matar, o fazendeiro. Então por isso essa terra não vai chover e vai vir ainda mais grave. E outra coisa, se não entregar a terra vai ficar pior ainda. Tem que entregar essa terra, tem que entregar a aldeia kue [aldeia antiga]. Tekoha kue então ele tem que entregar, pro dono outra vez, pra ele rezar de novo. Se não entregar, o tempo vai continuar desse jeito. Esse Temporal que não pode falar “tempo”, esse “apyka” [assento], Ñandejara apyka. Esse aí vai prejudicar o Brasil e todo mundo e vai prejudicar mais ainda, daqui uns dias vai ter um terremoto, vai ter muita coisa porque acabou o rezador.
Demarcação acabou. Ninguém resolve. Só fica matando o cacique, só tá matando índio. Então tinha que sentar e conversar. Sempre eu fico pensando, porque eu daqui um dia… se vai demorar Guyraroká, a demarcação, daqui 10, 15, 20 anos, eu já não vou participar mais. Porque a minha idade está avançando demais. Estou com 106 anos. Essa demarcação, quando que vai acontecer?
Já veio antropólogo, engenheiro. Já medimos tudo. Fez o papel também. O relatório tá na mão do Gilmar Mendes, parece que o Gilmar Mendes jogou no lixo. Será que a minha proposta não tá valendo nada? Já usaram muito essa terra. Eu não estou roubando a terra. Eu não quero objeto. Não quero gado. Não quero cerca. Eu não quero casa. Eu quero a terra limpa. Leva tudo. Então, essa é a minha proposta. A minha palavra. Eu quero morar sossegado e criar também animal, trabalhar na roça. Para não vir dizer que índio é ladrão, que o fazendeiro que tá dando a comida. Não. Eu sou trabalhador.
Terra envenenada
Agora chegou agrotóxico também. Aí tudo envenenado, até a terra tá envenenada, tudo. A comida tá envenenada, por isso o brasileiro não dura mais nem 70, 80 anos e nós, índios, nós não come veneno. Por isso eu tô aqui hoje com 106 anos, conheço muita história para mim falar: está envenenado o Brasil, tá envenenada a terra. Então não sei da onde saiu esse veneno esse agrotóxico, vem aí judiou, coitado a terra e o Deus tá olhando, [o homem] tá fumaçando de veneno, então isso tá estragando para todo o Brasil. Com esse agrotóxico não tá dando mais nem batata, nem milho, nada. Mandioca tudo embolorada, não cozinha mais... Então aí a gente fica triste. Por isso fico pensando nessa luta que tá acontecendo para nós aí. Muita gente reclama e não resolve nada, então é isso: ou vai ficar assim mesmo ou vai matar envenenado os povos do Brasil. Não é só o índio: todos, tanto branco, tanto karaí [não indígena], tanto que for tá comendo veneno.
Minha roça aqui, eu estava plantando aqui feijão, nunca tinha visto: aí o feijão tava baixando, tava tudo no jeito, eu tava arrancando um pezinho lá para cozinhar feijão novo no outro dia quando eu passei lá também pertinho, aí passou a lavoura do arrendatário, né? Então aí ele passou veneno aí de avião e no outro dia queimou tudo, tudo... ficou preto o feijão. Igual o milho que tá acontecendo agora. Eu tô vendo aí olhando o milho: a espiguinha desse tamanhinho. Tem lugar que queima tudo então é assim que tá passando a lavoura do indígena também. E o que é que eu vou fazer? Quem vai resolver, parece que não tem justiça, parece que não tem ninguém resolve nada. Então isso aí que eu fico pensando também.
A reza é a nossa arma
Tem que andar, plantar essa terra aí para poder todos nós viver, porque por isso que a fome está demais. A fome tá demais. Ninguém planta mais. Se planta a mandioca, você planta arroz, você planta feijão e não dá mais, porque o Deus, como dizem vocês, para entender o que eu falo, ele fechou a torneira. Então a torneira para abrir de novo tem que rezar.
Eu sei plantar arroz, toda coisa, cereais também. A Terra é a mãe da gente, é o pai da gente, sai tudo pela terra. Não vem do céu não. Céu o que vem é só a chuva para poder criar a plantação. A água vem lá do céu e por isso que nós rezador, se não rezar, não dá nada. Você pode lembrar que em 1960, 1970 a chuva era direto. Era uma saúde para gente. Hoje não. Tá vendo você do jeito que vem a seca. Vai secar tudo porque tá contra a proposta do índio.
Então nós temos a nossa arma: é a reza e a flecha, que é para caça, então nós não tem a fábrica de armamento. Pra nós a reza é a nossa arma. Não tá na Bíblia, não tá no escrito, ninguém escreve a nossa reza, do Ñandejara, então isso tá gravado, os cacique rezador, tá gravado a palavra do Deus para contar a história, para rezar.
Eu rezo, eu sempre rezo no Guyraroká, mas se eu chamar eu sei que ele vem, mas depois eu levo prejuízo que a gente, a pessoa, sozinho, você vem para manter essa saúde muita coisa sozinho, depois já o Deus já fala. 'Ah, por que que você vem sozinho se tem tanta gente ficar olhando ninguém ajuda'. Agora se tiver bastante gente, não. Deus resolve logo.
Eu não tenho tudo, mas tudo que eu tenho é só essa reza. Então, por isso que eu tô passando aqui para contar essa história. Essa história da demarcação... Eu fico triste há muitos anos. Muitos anos. E não quer demarcar até agora.
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Tributação sobre sementes nativas pode inviabilizar metas de restauração do Brasil, revela estudo
Nota Técnica propõe flexibilização tributária para impulsionar a cadeia da restauração no Plano de Transformação Ecológica e Planaveg
A produção de sementes nativas, essencial para a restauração de ecossistemas em grande escala no Brasil, enfrenta um grande desafio: a elevada carga tributária que incide sobre sua produção e comercialização. É o que aborda a Nota Técnica "Tributação da cadeia produtiva de sementes nativas para a restauração de ecossistemas no Brasil", elaborada pelo Redário, uma articulação composta por 26 grupos e redes de coletores de sementes de base comunitária, compostos por agricultores familiares, comunidades tradicionais, indígenas e assentados.
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Nota técnica fez recomendações para a cadeia produtiva de sementes nativas para restauração de ecossistemas|Rodrigo Carvalho Gonçalves/Redário/ISA
Liderada pelo Instituto Socioambiental (ISA), a Rede de Sementes do Cerrado (RSC) e outras organizações do setor, a NT explica as dificuldades enfrentadas e destaca recomendações, como a implementação de benefícios fiscais e isenção de impostos para produtores de sementes nativas e outros elos da cadeia da restauração. Estas propostas são muito pertinentes no âmbito do Plano de Transformação Ecológica (PTE) e do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), para habilitar o Brasil a cumprir suas metas de restauração já assumidas, na velocidade e na escala necessárias.
Diogo Santos, da Casa Civil, recebe de Rodrigo Junqueira, do Redário, exemplar da Nota Técnica|Anabele Gomes/Rede de Sementes do Cerrado
Apesar dos compromissos do governo brasileiro com relação a políticas públicas para alavancar o setor, a pesada tributação retarda o crescimento da produção de sementes para essa finalidade. São necessários incentivos fiscais para as sementes produzidas por povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares, que são atualmente os maiores fornecedores de sementes para restauração ecológica no país.O cenário tributário do Brasil tem favorecido a agropecuária e ameaçado o cumprimento da meta nacional de restaurar 12 milhões de hectares até 2030.
Ao apresentar em detalhes os impostos que incidem sobre o comércio de sementes nativas, a Nota Técnica chama a atenção para a realidade tributária brasileira, que concede renúncias fiscais, subsídios e isenções para toda a cadeia da soja, inclusive suas sementes, mas onera produtores de sementes nativas.
De acordo com o documento, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) é o tributo que mais impacta sobre o preço de sementes nativas. As alíquotas variam entre 7% e 22%, dependendo do estado brasileiro e da natureza da operação. Apesar do Convênio ICMS 100/1997, que prevê isenções e reduções para insumos agropecuários, incluindo sementes nativas, poucos produtores conseguem acessar esses benefícios, devido à burocracia envolvida.
Entre as principais justificativas para a flexibilização tributária está o fato que, embora existam sinalizações de que a reforma tributária em discussão neste momento trará regras mais favoráveis para a cadeia de sementes nativas produzidas por associações e cooperativas, estas entrarão em vigor apenas em 2033, quando a Década da Restauração de Ecossistema da ONU e o prazo das metas de restauração assumidas pelo Brasil já terão terminado há 3 anos.
“Considerando a importância social e ambiental desta atividade, esperamos que durante a transição entre os sistemas tributários, todos os governos criem mecanismos de flexibilização das regras atuais para desonerar a cadeia produtiva da restauração e apoiar o Brasil a atingir a meta de restaurar 12 milhões de hectares até 2030”, diz a Nota.
Recomendações
Resultado de estudos detalhados de custos e tributações para o empreendedorismo na cadeia produtiva de sementes nativas para a restauração de ecossistemas no Brasil, a Nota Técnica propõe recomendações para melhorar esta situação no país.
Entre elas está a flexibilização das regras para a obtenção de isenções fiscais por organizações sem fins lucrativos e para adesão dos produtores ao Convênio ICMS 100/1997, que prevê isenção e redução do ICMS para insumos agropecuários. Além disso, sugere que os estados sigam o exemplo de Mato Grosso, que possui uma legislação específica para isenção de ICMS na comercialização interna de sementes nativas.
A Nota Técnica recomenda também que, durante a transição para o novo sistema tributário, os governos estaduais e federal adotem medidas urgentes para flexibilizar as regras atuais e desonerar a cadeia produtiva de sementes nativas.
“É crucial promover uma articulação eficaz entre governo federal, estadual e municipal. Essa colaboração deve focar na implementação de ações de fomento e incentivos econômicos, como isenções fiscais e tributárias, especialmente voltadas para produtores de sementes de base comunitária, incluindo povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares (PIPCTAF). A concessão dessas isenções fiscais beneficiará o alcance das metas brasileiras de clima e biodiversidade e terá um impacto econômico reduzido nas receitas públicas, uma vez que se trata ainda de uma atividade econômica de menor escala”, pontua o documento.
Nesse contexto, o ideal para os produtores de sementes com a finalidade de restauração seria a aprovação de mecanismos específicos de isenção desses impostos pelo legislativo brasileiro, a exemplo da cadeia produtiva da soja.
Planaveg
A Conaveg é responsável por coordenar as ações do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), que tem como objetivo restaurar 12 milhões de hectares até 2030. A apreciação do texto do Planaveg que irá a consulta pública e a definição do cronograma de tramitação aconteceram durante a reunião desta terça-feira. Sendo assim, a apresentação desta Nota Técnica na reunião é um passo importante para alinhar as políticas tributárias com as metas de restauração ambiental do país.
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Meses após desastre no RS, Câmara aprova projeto que agrava crise climática e hídrica
Projeto permite destruir matas de beira de nascentes e rios, priorizando irrigação e criação de gado também em detrimento do abastecimento humano de água
Deputada Coronel Fernanda, relatora do PL 2.168 na CCJ | Bruno Spada / Câmara dos Deputados
Texto atualizado em 15/8/2024, às 12:50
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou, na tarde de hoje (14), por 37 votos contra 13, um projeto de lei (PL) que permite o desmatamento sem controle na beira de nascentes e rios em todo país, abrindo caminho para o agravamento das crises de falta de água e climática (veja como votaram os deputados). A proposta passou pela Comissão de Meio Ambiente, no final de 2022, e deve seguir agora diretamente ao Senado.
De autoria do deputado ruralista José Mário Schreiner (MDB-GO), o PL 2.168/2021 enfraquece as restrições à destruição da vegetação nativa, previstas no Código Florestal (Lei 12.651/2012), ao considerar como de “interesse público” barragens e outras obras destinadas à irrigação e ao abastecimento de água para o gado, em Áreas de Preservação Permanente (APPs) (saiba mais no quadro ao final da notícia).
A votação na CCJ foi concluída após uma batalha de mais de quatro horas de requerimentos e questões regimentais apresentados pelos parlamentares de esquerda para tentar impedi-la. Em nome da liderança do governo, o deputado João Carlos Bacelar (PV-BA) avisou que será apresentado um recurso à Mesa da Câmara para que a proposta seja analisada pelo plenário.
A aprovação do projeto ocorre meses depois do desastre climático que devastou o Rio Grande do Sul, e enquanto suas consequências ainda são sentidas pelos gaúchos. Cientistas e ambientalistas apontam que a reforma da legislação ambiental promovida pelo governo de Eduardo Leite (PSDB), incluindo a redução da proteção das APPs, pode ter ampliado a intensidade da catástrofe.
Por outro lado, nos últimos anos, várias regiões do país têm enfrentado as consequências da irregularidade ou falta de chuvas. Pesquisadores registram a redução generalizada das superfícies de água. No primeiro semestre deste ano, quase 70% dos municípios da Amazônia Legal foram afetados pela seca. Na última década, São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal, por exemplo, enfrentaram crises hídricas que custaram bilhões de reais e afetaram milhões de pessoas.
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Resultado final da votação do PL 2.168 na CCJ da Câmara
“Em tempos de eventos extremos climáticos, o PL piora o cenário das tragédias ambientais e coloca sob risco a segurança alimentar, hídrica e também a segurança climática da população brasileira”, alerta Marcelo Elvira, secretário executivo do Observatório do Código Florestal (OCF).
“As APPs são reconhecidas pela legislação brasileira há cerca de cem anos como fundamentais para a preservação de nascentes e por manter o equilíbrio do meio ambiente”, continua. “Quanto mais o Código Florestal estiver implementado e essas áreas protegidas, maior a capacidade do ecossistema reagir positivamente a eventos extremos, como os que temos presenciado cada ano mais no país”, completa.
De acordo com os pesquisadores, a preservação das APPs é essencial para a manutenção das nascentes de água, o controle da erosão, das enchentes e de seus impactos. As matas de beira de rio moderam o fluxo de água gerado pela chuva, impedindo ou reduzindo o carreamento da terra para dentro dos corpos de água e, assim, o seu assoreamento. Quanto mais assoreados, mais suscetíveis a provocar enxurradas e inundações.
“A falta de avaliações e estudos técnicos relevantes e necessários para as devidas licenças e autorizações de barramentos ou represamentos em cursos d 'água trará efeitos graves à disponibilidade hídrica, à qualidade da água e aos ecossistemas, além de potencializar conflitos entre os usuários dos recursos hídricos”, diz ainda uma nota técnica do OCF.
Projeto é inconstitucional, dizem deputados
Parlamentares aliados aos ambientalistas insistiram que o projeto vai causar mais desmatamento, esvazia o Código Florestal, privatiza o acesso a água, contraria a ciência e a Constituição. No último caso, em especial por afrontar o princípio da proibição do retrocesso ambiental e o direito ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado”.
“Querer enfrentar o desafio de ampliar a irrigação alterando a legislação para permitir mais supressão e desmatamento vai reduzir o fornecimento de água para todos. É um tiro no pé”, disse Elton Carlos Welter (PT-PR).
Os deputados de esquerda voltaram a criticar a presidenta da CCJ, a bolsonarista Caroline de Toni (PL-SC), que tem atuado para facilitar a votação de projetos antiambientais no colegiado. De acordo com eles, ela têm sido autoritária na condução dos trabalhos, decidindo a pauta de forma unilateral.
Contra as evidências científicas e usando do expediente retórico de inversão de narrativa, típico da comunicação de extrema direita, parlamentares ruralistas e bolsonaristas que defenderam o PL afirmaram que ele visaria justamente preservar o fornecimento de água diante das ameaças de escassez produzidas pelas mudanças climáticas.
A relatora, Coronel Fernanda (PL-MT), negou que a aprovação do projeto vai provocar desmatamento, mas admitiu que seu objetivo é “acabar com a burocracia” para os produtores rurais. “Ninguém vai desbarrancar rios, ninguém vai acabar com as APPs, ninguém vai destruir o meio ambiente. Vai se preservar mais ainda e garantir a possibilidade da irrigação”, justificou.
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Porto Alegre inundada em maio de 2024, no maior desastre climático já registrado no Rio Grande do Sul | Ricardo Stuckert | PR
O que é o Código Florestal?
A Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012)
O antigo Código Florestal de 1965 foi reformado depois de mais de 10 anos de debates e pressões para sua alteração no Congresso. Ele obrigava o reflorestamento integral das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs) desmatadas ilegalmente (saiba mais abaixo). A nova lei, porém, isentou parte da recuperação dessas “áreas consolidadas” (desmatadas e em uso agropecuário) até 22 de julho de 2008, enquanto as áreas conservadas até aí devem ser mantidas assim, conforme os parâmetros da antiga legislação.
No caso das APPs, a norma anterior determinava metragens específicas que deveriam ser mantidas em todos os casos. A nova lei prevê a manutenção ou recomposição de faixas significativamente reduzidas em relação às APPs desmatadas, de acordo com o tamanho do imóvel. Em relação à RL, o novo Código apresenta duas diferenças significativas: a primeira é que o cálculo dessa área deve incorporar as APPs; a segunda é que os imóveis menores que quatro módulos fiscais não terão obrigação de recompor os desmatamentos realizados até 2008.
Área de Preservação Permanente (APP)
De acordo com a lei, é a área cuja vegetação nativa deve ser protegida às margens de nascentes e outros corpos de água, em topos de morros, encostas e outras áreas sensíveis. Elas têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade e riqueza do solo, garantir a diversidade de fauna e flora e assegurar o bem-estar das populações humanas. São fundamentais para a manutenção e a qualidade dos mananciais de água, prevenir e atenuar a erosão, o assoreamento, inundações, enxurradas e deslizamentos de terra.
Reserva Legal (RL)
Segundo a legislação, é a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural que deve ser obrigatoriamente preservada. O percentual da RL em relação à extensão do imóvel varia de acordo com a região: 80% na Amazônia; 35% em trechos de Cerrado dentro da Amazônia; 20% no restante do país. Essas áreas têm a função de assegurar o uso econômico sustentável dos recursos naturais, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e preservar a biodiversidade, abrigar e proteger a fauna silvestre e a flora nativa.
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Seminário em Brasília debate mecanismos de salvaguardas em projetos e programas de REDD+
Organizações que compõem a Conaredd+ destacaram a importância da participação popular na defesa dos direitos de povos e comunidades tradicionais
A garantia de mecanismos de salvaguardas em programas de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, Manejo Sustentável e Aumento do Estoque de Carbono (REDD+) foi o tema central do Seminário Salvaguardas de REDD+ no Brasil, realizado em Brasília, nos dias 24 e 25 de julho pelo Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com o Instituto Centro de Vida (ICV) e com o apoio do Environmental Defense Fund (EDF).
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Representantes de organizações da sociedade civil e movimentos sociais debatem formas de garantir as salvaguardas de REDD+|Leonor Costa/ISA
O evento contou com a participação de organizações da sociedade civil que atuam na pauta socioambiental e que compõem a Comissão Nacional para REDD+ (Conaredd+), criada no âmbito do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Além do ISA e do ICV, participaram representantes da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), do Fundo Mundial para a Natureza (WWF), do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), da The Nature Conservancy Brasil (TNC), da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Na abertura do seminário, as organizações construíram uma linha do tempo que resgatou a participação de cada uma nas discussões sobre mercado de carbono e projetos e programas de REDD+ no Brasil, até chegar ao início dos trabalhos da Conaredd+.
Instituída, oficialmente, em junho de 2023 pelo Decreto nº 11.548, de 5 de junho 2023, a Comissão Nacional para REDD+ é responsável por coordenar, acompanhar, monitorar e revisar a Estratégia Nacional para REDD+ do Brasil e por coordenar a elaboração dos requisitos para o acesso a pagamentos por resultados de políticas e ações de REDD+ no Brasil, reconhecidos pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC - sigla em inglês).
Uma das funções do colegiado é estabelecer mecanismos para o cumprimento de salvaguardas dos projetos e programas de REDD+, visando a integridade territorial e a observação dos direitos de povos e comunidades tradicionais.
Além dos trabalhos da Conaredd+, as organizações presentes no seminário também acompanham as ações dos Grupos de Trabalho Técnico sobre Salvaguardas de REDD+; Repartição de Benefícios; e Monitoramento, Relato e Verificação. Ao longo dos dois dias, os representantes das organizações debateram a atuação da sociedade civil nesses espaços e formas de incidência que garantam a escuta e o respeito a povos e comunidades tradicionais.
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Ciro Brito e Juliana Maia, analistas de políticas climáticas do ISA, apresentam linha do tempo da participação do ISA nos debates sobre REDD+|Leonor Costa/ISA
O analista de políticas climáticas do ISA, Ciro Brito, destacou a importância do seminário para pensar o papel da sociedade civil e dos movimentos sociais nas instâncias que pensam as políticas de redução de emissão de gases de efeito estufa e a preservação no Brasil.
"Quando a Conaredd+ foi instituída e o ISA se tornou um dos dois representantes da sociedade civil, nossos esforços se concentraram em trabalhar pela ampliação da participação da sociedade civil e de povos indígenas, quilombolas, extrativistas e comunidades tradicionais nos grupos de trabalho técnico (GTT), que visam assessorar a Conaredd+. Nesse segundo momento, quando os GTTs iniciam suas atividades, nosso trabalho efetivamente passa a ser discutir a política de REDD+ no Brasil e propor alternativas para torná-la mais efetiva e justa", enfatizou.
Entre os encaminhamentos definidos ao final do seminário, se destacam a criação de um repositório para alocar documentos e artigos sobre o tema e a reivindicação para que o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA) sistematize, de forma mais nítida e objetiva, as informações públicas sobre os trabalhos da Conaredd+ visando maior compreensão dos movimentos sociais e dos povos e comunidades tradicionais que representam.
O seminário preparou a sociedade civil para a primeira reunião do GTT de Salvaguardas, convocada pelo governo para 30 de julho, cuja pauta foi a definição do plano de trabalho desta instância. Nesta reunião, as organizações apresentaram as reivindicações definidas nos dois dias de debates.
"O seminário foi fundamental para alinhar visões da sociedade civil sobre o tema das salvaguardas, diagnosticarmos pontos de atenção em relação à política de REDD+ e pensarmos saídas para buscar avançar nesses pontos de atenção. O grupo trouxe contribuições muito qualificadas, que subsidiaram nossa participação na reunião do dia 30, a primeira reunião do GTT Salvaguardas, que foi bem produtiva", contou Ciro Brito.
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Grupo de Trabalho Técnico de salvaguardas em reunião no dia 30 de julho, quando foi definido o plano de trabalho desta instância|Ciro Brito/ISA
O que são as Salvaguardas de Cancún?
As salvaguardas de REDD+, conhecidas como Salvaguardas de Cancún, devem ser entendidas como diretrizes que visam potencializar os impactos positivos e reduzir os impactos negativos relacionados a programas de REDD+.
Nesse sentido, pretendem garantir que as iniciativas de REDD+ abordem de maneira adequada questões sensíveis como os direitos de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, a participação social, a preservação de ecossistemas naturais, a permanência dos resultados de REDD+ alcançados e o risco de deslocamento da pressão por desmatamento e degradação florestal para outras áreas.
Assim, foram definidas na 16ª Conferência das Partes em Cancún, um conjunto de sete salvaguardas socioambientais. Com isso, os países, quando implementam as atividades de REDD+, devem promover e apoiar:
a) Ações complementares ou consistentes com os objetivos dos programas florestais nacionais e outras convenções e acordos internacionais relevantes;
b) estruturas de governança florestais nacionais transparentes e eficazes, tendo em vista a soberania nacional e a legislação nacional;
c) respeito pelo conhecimento e direitos dos povos indígenas e membros de comunidades locais, levando-se em consideração as obrigações internacionais relevantes, circunstâncias e leis nacionais e observando que a Assembleia Geral da ONU adotou na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas;
d) participação plena e efetiva das partes interessadas, em particular povos indígenas e comunidades locais, nas ações referidas nos parágrafos 70 e 72 desta decisão;
e) que as ações sejam consistentes com a conservação das florestas naturais e diversidade biológica, garantindo que as ações referidas no parágrafo 70 desta decisão não sejam utilizadas para a conversão de florestas naturais, mas sim para incentivar a proteção e conservação das florestas naturais e seus serviços ecossistêmicos, e para melhorar outros benefícios sociais e ambientais;
f) ações para tratar os riscos de reversões em resultados de REDD+;
g) ações para reduzir o deslocamento de emissões de carbono para outras áreas.
No Brasil, as Salvaguardas de Cancún devem adotar a interpretação da Resolução n. 15, de 2018, da Conaredd+.
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Violações e ameaças aos direitos indígenas marcam a primeira audiência de conciliação sobre o Marco Temporal
Juiz condutor da mediação ignorou pedidos de indígenas e abandonou sessão antes do fim
Marcada por uma série de violações aos povos indígenas, aconteceu nesta segunda-feira (05/08), no Supremo Tribunal Federal (STF), a primeira audiência pública de conciliação sobre a Lei 14.701/2023, aprovada em dezembro do ano passado. Participaram representantes do Congresso Nacional, dos partidos políticos que questionam a Lei no STF, do governo, dos povos indígenas, dos estados e dos municípios. O ministro Luís Roberto Barroso, e o relator, ministro Gilmar Mendes, estiveram na abertura da sessão, que depois passou a ser conduzida pelos juízes auxiliares do gabinete de Mendes, Diego Viegas Vera e Lucas Faber.
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Primeira audiência da conciliação sobre o marco temporal no STF foi marcada por violações aos direitos indígenas|Adriano Machado/Greenpeace
A proposta de conciliação vem após a proposição de cinco ações que questionam a constitucionalidade da “lei do genocídio dos povos originários”, conforme definição do movimento indígena. Em abril, Gilmar proferiu uma decisão instituindo o grupo de trabalho para a conciliação. Além disso, suspendeu todos os processos de instâncias inferiores relacionados à Lei 14.701/2023 – durante o Acampamento Terra Livre (ATL), maior mobilização indígena do país.
Aprovada em setembro de 2023, com 43 votos a favor e 21 contra, a lei determina que só têm direito ao território tradicional os indígenas que comprovem sua presença no local na data da promulgação da Constituição Federal, em 1988. Além disso, a lei dificulta os processos de demarcação; possibilita a realização de obras em Terras Indígenas sem consulta livre, prévia e informada e admite a abertura das terras indígenas para o arrendamento. A matéria já havia sido julgada inconstitucional pelo STF em setembro de 2023 e a lei recebeu diversos vetos do presidente da república.
O prazo para finalização das sessões de conciliação está previsto para 18 de dezembro de 2024, mas pode ser prorrogado. Na abertura, o ministro Barroso disse que é importante “esperar algumas semanas para vermos se há avanço ou perspectiva real de se chegar a um acordo. Se não houver essa possibilidade, nós vamos retomar a votação pura e simplesmente.”.
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Os ministros do STF, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, na primeira audiência de conciliação sobre o marco temporal|Adriano Machado/Greenpeace
Violações aos direitos indígenas
Alguns representantes indígenas, como o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Maurício Terena, antes mesmo do início da audiência, foram impedidos pela segurança do STF de entrar no local. Em vídeo publicado nas redes sociais, Terena pede para que Barroso abra a porta da Corte para os povos indígenas.
“A presidência acaba de dar a ordem de liberação e seguimos sendo barrados. Esse é o cenário conciliatório da Suprema Corte brasileira. Estamos sendo obrigados a estar aqui hoje e essa é a situação”.
Assista ao vídeo:
Olha, pra gnt começar uma mesa de conciliação com igualdade material, inclusive com letramento dos principais condutores, talvez falte mais 500 anos.
Aqui está quase encerrando. Mas a imagem que traduz o dia de hoje é essa: os indígenas e seus advogados sendo barrados no STF. pic.twitter.com/yid0RPIetn
— Juliana de Paula Batista 🌳 (@jusuindara) August 5, 2024
Na abertura da sessão, o ministro Barroso fez um pedido de desculpas público para o grupo. “Eu queria pedir desculpas às pessoas que foram indevidamente barradas na porta, representantes das comunidades indígenas. Foi um erro grave da segurança, com as pessoas já devidamente repreendidas e peço desculpas porque é o que a gente pode fazer quando existe um erro”.
Era apenas o começo de uma série de outras violações pelas quais passaram os representantes indígenas naquele dia.
Maurício Terena solicitou, ainda no início da sessão, a suspensão da Lei 14.701/2023. “A gente entende que a não suspensão da lei tem trazido uma situação de grave violência de direitos humanos dos povos indígenas. Eu cito aqui o caso do Mato Grosso do Sul*, que tá uma situação de extremo confronto, dada a vigência da lei.”
Confira o box ao final da matéria
Para o coordenador executivo da Apib Kleber Karipuna, a suspensão da lei seria uma garantia mínima de continuação do diálogo. “A gente entende que a lei precisa ser suspensa sim para poder, em pé de igualdade, conseguir seguir minimamente nesse processo. Não havendo a suspensão da lei, a gente continua com a insegurança jurídica nos territórios, os povos indígenas continuam sendo atacados”.
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Judite Guajajara, advogada da Coiab, Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib e Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib|Adriano Machado/Greenpeace
Tutela e barganha
Presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana reiterou que o momento era uma oportunidade para propostas e soluções, mas que elas “não venham colocar como retrocessos direitos já reafirmados na nossa Constituição, direitos que são fundamentais, direitos indisponíveis que dão a garantia que os povos indígenas tenham sua vida pro futuro também. É justamente nesse espírito de não retroceder no que o Supremo já avançou, que é importante que esses princípios e esse espírito estejam presentes nessas discussões sem precisar invisibilizar ou negar a existência dos povos indígenas.”
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Joênia Wapichana: “não venham colocar como retrocessos direitos já reafirmados na nossa Constituição"|Adriano Machado/Apib
A advogada da Apib, Eloísa Machado, questionou Diego Viegas, juiz auxiliar que conduziu a sessão depois da ausência de Gilmar Mendes, sobre o que aconteceria caso a entidade decidisse se retirar do processo. “Não há problema algum, só que a mesa de negociação continuará”, respondeu. O juiz explicou que, na falta de uma representação dos povos indígenas, a Funai estaria apta para suprir esse espaço.
“Se aqui os povos indígenas se manifestarem contrariamente a qualquer tipo de solução, evidentemente creio que a representação da Funai, do poder executivo, que também representa os interesses dos indígenas, saberá acolher esse intento. Afinal de contas, a Funai, nesse sentido, está para assistir os interesses dos representantes indígenas.”, falou Diego Viegas.
Emocionado, Alberto Terena, liderança do povo Terena e coordenador executivo da Apib, criticou o posicionamento. “Nós estamos aqui como representantes indígenas do nosso povo. Sou considerado perigoso pelo estado brasileiro por ir em busca do meu direito. Aí estar aqui diante do Supremo Tribunal [Federal] como uma representação e dizer que ainda somos representados por um órgão indigenista? O órgão indigenista está em busca de efetuar os direitos nossos dentro do nosso país, não tutelar novamente, não o Supremo dizer que nós somos tutelados. O nosso direito constitucional originário nós não vamos negociar e não é o órgão indigenista que vai nos representar diante disso. Jamais. Jamais. Mais uma vez o estado brasileiro vai estar negando o direito ao nosso povo”, desabafou.
De acordo com Viegas, houve um entendimento errado de sua fala, que não insinuava tutela dos indígenas por parte da Funai, mas que o órgão indigenista estaria apto para colher impressões do movimento na ausência da Apib. A fala foi novamente questionada.
“Nos sentimos muito violados em relação à questão da tutela do estado. Entendendo que pode ter sido um posicionamento errôneo do juiz que estava ajudando a conduzir a conciliação, mas afirmar que qualquer posicionamento do movimento indígena, retirando-se do processo da câmara de conciliação, a Funai estaria colhendo a posição do movimento. Pra gente é um posicionamento que remete novamente ao processo da tutela que os povos indígenas passaram por algum tempo e que foi superado pela Constituição de 88, principalmente. Mas isso só revela o quanto o preconceito e o racismo institucional estão enraizados nas esferas de poder”, afirmou Karipuna.
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"Apib é a representação máxima e legítima dos povos indígenas", disse Eloy Terena, do MPI|Adriano Machado/Greenpeace
Secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Eloy Terena destacou a importância da presença das lideranças indígenas na mesa de conciliação. “A Apib é a representação máxima e legítima dos povos indígenas. Não tem como a gente discutir aqui o direito dos povos indígenas sem levar em consideração essa autodeterminação que os povos indígenas têm”.
Em meio à audiência, o Juiz auxiliar Diego Viegas apresentou um áudio do senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, afirmando que “existe um acordo entre poderes de que enquanto vocês estiverem aqui, não haverá andamento da PEC 48 no Congresso”.
A PEC 48 é uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende incluir a tese do marco temporal na Constituição Federal. O senador Hiran Gonçalves (PP-RO) apresentou a PEC no Senado uma semana após o STF decidir que a tese do marco temporal é inconstitucional.
Sem concessões para indígenas
Investido em definir as datas das próximas audiências, o juiz Diego Viegas fez uma rápida consulta aos membros da comissão especial e ignorou o pedido dos representantes indígenas de um prazo de 48 horas para informar se teriam disponibilidade e se pretendem permanecer no processo de conciliação.
Eloy Terena fez um apelo para que o juiz desse “um passo atrás" e juntos pensassem uma metodologia para atender aos indígenas. “Imagina, são 305 povos, falantes de 274 línguas. Imagina a dificuldade dessas 5 lideranças explicarem tudo isso que a gente tá debatendo aqui, lá na base. Então pedir pro Supremo ser mais plural, no sentido de compreender essa angústia que os povos indígenas estão trazendo aqui. Nós temos aqui lideranças que viajaram para estarem aqui, nem dormiram inclusive. Tem lideranças que ontem à noite, há menos de 24 horas, nesse exato momento estavam sendo atacadas. Para a gente começar a falar em conciliação é necessário criar um ambiente jurídico seguro e saudável”.
Diego Viegas só cedeu após muitos argumentos de que esse tempo era necessário para que os representantes consultassem suas bases e após uma representante não indígena do MPI também fazer o pedido. Mesmo assim, as datas ficaram pré-determinadas para os dias 28 de agosto, 9 e 23 de setembro.
Próximo às 19h, Diego Viegas informou que precisaria se ausentar da sessão para comparecer à uma audiência de custódia. Advogada da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Judite Guajajara pediu várias vezes para que o juiz permanecesse e a escutasse, mas isso não aconteceu.
“A sensação que eu tenho aqui há cinco horas que eu tô aqui é a sensação de que toda vez que nós indígenas falamos alguma coisa é refutada. Qual o valor da voz indígena nessa mesa? Eu acho que um dos propósitos da mediação da conciliação é você ouvir e a sensação que eu tenho é que desde o início que nós chegamos aqui ninguém ouve o que os povos indígenas estão dizendo. Nós pedimos 48 horas, mas precisou ouvir uma não indígena reforçar isso para poder ser aceito. Nós queremos diálogo. Eu acho que os povos indígenas têm muita experiência sobre estratégia de diálogo. Há muito tempo nós ensinamos como é que se faz diálogo e estar sentado nessa mesa é uma demonstração dessa disposição, mesmo nossos parentes sendo atacados, mesmo a maioria dos povos indígenas já dizendo ‘não queremos conciliação’. Nós abrimos o coração, nós estamos aqui e nós temos tudo a perder. Por isso que a gente tá resistindo aqui até o último segundo. Mas mais uma vez o que demonstra esse cenário é que não é um debate jurídico, mas um debate político, a partir do momento que nós povos indígenas não somos respeitados. Isso aqui tem sim a potencialidade de ser um experimento extremamente novo e que tem a potencialidade de ser muito positivo. Mas se nós continuarmos nesse atropelamento, isso aqui vai ser marcado na história como uma das maiores violências aos povos indígenas do Brasil. É difícil você pensar em pacificar o país, porque não fomos nós que criamos conflitos, pelo contrário, nós estávamos aqui e quem chegou foi que criou conflitos e agora querem que os povos indígenas paguem a conta sem nos dar o mínimo de condições de dialogar”.
Durante coletiva de imprensa ao final da sessão, Kleber Karipuna avaliou o primeiro dia de audiência e reforçou que o movimento ainda dará sua resposta se está de acordo com as datas apresentadas e se permanecerá no processo de conciliação até o final.
“Trazemos uma impressão muito ruim desse processo como um todo. As regras que não estavam ainda postas, que foram colocadas agora, não são regras muito favoráveis aos povos indígenas. Apesar de se ter relatado que vão buscar ter a decisão pelo consenso da maioria, há um processo também de votação e que os povos indígenas, nesses processos de disputa, nesse sentido, saem perdedores. Tivemos longas horas de debates desgastantes, até mesmo desentendimentos por parte da condução da conciliação. O que a gente quer trazer aqui nesse momento pros povos indígenas, pro movimento indígena brasileiro, é que a Apib e as nossas organizações regionais, as lideranças que estão nesse processo só iremos dar continuidade se o movimento indígena definir que é pra estarmos dando continuidade nesse processo de diálogo e que não iremos em momento algum negociar nenhum direito dos povos indígenas”.
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A ministra do MPI, Sonia Guajajara e a deputada Célia Xacriabá em visita à Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, do povo Guarani Kaiowá|Mariana Soares/ISA
Situação no Mato Grosso do Sul
Em meio à situação de violência de fazendeiros contra indígenas Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, uma comitiva com a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, a presidente da Funai, Joenia Wapichana, a deputada federal Célia Xakriabá, o secretário-executivo do MPI, Eloy Terena e outros representantes do governo, partiu de Brasília na manhã do dia 6 de agosto.
O grupo foi visitar uma das retomadas da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina (MS), onde dez indígenas ficaram feridos depois de um ataque a tiros.
De acordo com relatos dos indígenas, mesmo com a presença da Força Nacional no local, na noite de 5 de agosto, novos ataques a tiros de borracha e rojões foram feitos contra a retomada.
A ministra Sonia Guajajara falou que a Lei do Marco Temporal não afeta a retomada e que, junto às outras autoridades, vai levar a situação para o governo federal e para o judiciário dar celeridade aos processos “porque não dá mais pra manter essa situação de insegurança permanente”.
Segundo dados publicados pelo último Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Mato Grosso do Sul é o segundo estado mais violento para indígenas no Brasil. Foram 43 casos de assassinatos contra indígenas registrados em 2023; 93 casos de violência contra a pessoa; 37 casos de suicídio e 190 casos de violência contra o patrimônio.
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