A Bacia do Rio Negro se estende pelos estados do Amazonas e de Roraima, no Brasil, e também avança pelos territórios vizinhos da Colômbia, Venezuela e Guiana. Na sua porção no Amazonas, a bacia é uma das regiões mais preservadas de todo o bioma amazônico, com biodiversidade incalculável. Por outro lado, a parte da bacia localizada em Roraima vem sofrendo grande degradação ambiental causada pelo garimpo ilegal de ouro, desmatamento e roubo de terra, ou "grilagem de terra".
Aproximadamente 68% da Bacia do Rio Negro no Brasil está formalmente protegida por um conjunto de unidades de conservação e terras indígenas legalmente reconhecidas. A diversidade cultural da região é enorme: ali vivem 45 povos indígenas e estão localizados dois patrimônios culturais do Brasil – a Cachoeira de Iauaretê e o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro – além do ponto mais alto do Brasil, o Pico da Neblina, lugar sagrado do povo Yanomami.
No Rio Negro, o ISA mantém trabalho de longo prazo e parceria institucional - que nos enche de orgulho - com associações indígenas e suas lideranças, entre elas a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), a Hutukara Associação Yanomami (HAY) e o Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Mantemos escritório e equipe na cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM), considerado o município mais indígena do Brasil, localizado no Alto Rio Negro. De São Gabriel, também descemos com as águas do Negro para apoiar comunidades e associações indígenas dos municípios de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, ambos no Amazonas. Em 2009, o ISA incorporou a organização Comissão Pró-Yanomami (CCPY), sua equipe e legado, abrindo escritório em Boa Vista (RR) e passando a atuar diretamente com o povo Yanomami e outros povos de Roraima.
Atualmente, o ISA atua na Bacia do Rio Negro com a promoção de processos formativos, articulando parcerias para a proteção dos territórios indígenas, valorização da diversidade socioambiental, segurança alimentar das comunidades, desenvolvimento de cadeias de valor da economia da floresta para geração de renda e produção de pesquisas interculturais que dêem visibilidade aos conhecimentos tradicionais e modos de vida das populações que, há muitos anos, mantém as florestas da região preservadas.
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Defensoria e organizações questionam no STF legislação que facilita comércio ilegal de ouro no Brasil
Crise Yanomami expõe as consequências da aplicação da presunção de boa-fé na autodeclaração de origem do minério
A repercussão da crise humanitária imposta aos Yanomami pela ação do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami colocou em evidência aspectos problemáticos da regulamentação do comércio de ouro no Brasil e que facilitam a ilegalidade nessa cadeia. Um dos principais é a aplicação da chamada “presunção de boa-fé” na autodeclaração de origem do minério quando proveniente de lavras garimpeiras, procedimento que acaba sendo aproveitado para "limpar" o ouro obtido de forma ilegal. Na prática, para atestar que o minério foi extraído de forma legal, basta uma declaração de quem está fazendo a venda, sem qualquer tipo de checagem da informação.
A DPU (Defensoria Pública da União), o WWF-Brasil, o Instituto Alana e o Instituto Socioambiental (ISA) solicitaram, no Supremo Tribunal Federal (STF), o ingresso como amicus curiae (amigo da corte) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7273, de autoria do PSB e da Rede Sustentabilidade, que questiona a presunção da boa-fé na comercialização de ouro.
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Garimpo na região do Rio Mucajaí, Terra Indígena Yanomami. Operadores "esquentam" ouro adquirido de forma ilegal para ser vendido no mercado|Daniel Marenco
A ação reivindica, com pedido de medida cautelar, a inconstitucionalidade do parágrafo 4º, do artigo 39, da Lei n. 12.844/2013, que instituiu a presunção de legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente.
A ADI pretende tornar obrigatório que as DTVMs (Distribuidora de Títulos e Valores Imobiliários) – “únicas instituições autorizadas a comprar e revender ouro de garimpo” – estabeleçam mecanismos que certifiquem que o ouro comprado tem origem legal e que o processo de aquisição está livre de violações aos direitos humanos.
De acordo com Juliana de Paula Batista, advogada do ISA, “é urgente que o STF analise a questão, pois a rastreabilidade do ouro é uma das medidas necessárias para coibir o garimpo ilegal”. Hoje, no Brasil, qualquer peça de ouro, comprado em qualquer joalheria ou loja pode ter saído de um garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.
Atualmente, o ouro só pode ser comprado por Postos de Compra de Ouro (PCO), que são os braços das DTVMs nos municípios brasileiros. Neles, os vendedores apresentam documentação pessoal e número do processo minerário de origem, que corresponde à área autorizada de onde o ouro teria sido extraído.
Como esse procedimento não tem rastreabilidade, frequentemente são apresentados processos que não correspondem à verdadeira origem do minério. É assim que o ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Yanomami e de outras áreas protegidas chega ao mercado.
Segundo o MapBiomas, mais de 90% da área garimpada no Brasil está na Amazônia, sendo o ouro o principal minério buscado, representando 83% desse total (162.659 hectares). Proibido pela Constituição Federal, o garimpo em Terras Indígenas aumentou 625% nos últimos 10 anos, ressalta o pedido das entidades.
Dados inéditos levantados pelo WWF sobre o garimpo ilegal na Bacia do Tapajós apontam que, somente nos municípios paraenses de Itaituba e Jacareacanga – detentores de mais de 35% da área garimpada no Brasil –, os índices de ilegalidade chegam a 90% e 98%, respectivamente.
Mercúrio e malária
O pedido ainda alerta para as graves consequências socioambientais da falta de controle da cadeia do ouro, com a “contaminação da água, do solo, das pessoas e dos animais a níveis alarmantes”. Um dos principais problemas é a contaminação provocada pelo mercúrio, substância utilizada na garimpagem do ouro.
Estudo da Fiocruz em parceria com o ISA, de 2016, comprovou que, em algumas aldeias Yanomami, 92% das pessoas examinadas apresentavam altos índices de contaminação. Mais recentemente, levantamento feito com apoio do ISA revelou índices de contaminação por mercúrio acima dos estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em peixes coletados em rios de Roraima.
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Contaminação por mercúrio, substância usada pelo garimpo ilegal de ouro na Terra Indígena Yanomami, afeta a saúde dos indígenas|Daniel Marenco
O mercúrio liberado de forma indiscriminada no meio ambiente pode permanecer por até cem anos em diferentes compartimentos ambientais e provocar doenças, como alterações neurológicas e psicológicas em adultos e atrasos no desenvolvimento de crianças.
Outro grave desdobramento da invasão garimpeira em Terras Indígenas é a malária, que encontra terreno fértil para sua proliferação nas zonas de garimpo, devido às poças d' água formadas pelas máquinas e que estimulam a reprodução dos mosquitos transmissores. Depoimento de um indígena Yanomami à DPU, incluído no pedido de amici curiae das entidades, relata o impacto da atividade em sua comunidade.
“Os olhos de vocês não são tão compridos para enxergar o que está acontecendo. (...) Nesses últimos 6 meses, passamos o pior período, fome, malária, você olha para as moças elas estão só o couro e osso. O que vocês acham que aconteceu para que chegássemos até aqui? A causa é a presença do garimpo. Eles trazem a malária e a escassez de tudo. (...) As pessoas com fome e doente não conseguem fazer a roça. Sem a roça não haverá comida no futuro”, narrou.
Instâncias internacionais
Os autores também destacam que medidas para proteger a vida, integridade e saúde dos Yanomami e Ye´Kwana também já foram deferidas pela a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), de julho de 2022, que determinou medidas provisórias ao Estado brasileiro para proteção integral da saúde, alimentação e segurança dos povos indígenas Yanomami, Ye’kwana e Munduruku.
“A não adoção das medidas necessárias para fazer cessar o garimpo ilegal, especialmente em Terras Indígenas e em áreas protegidas, reforça a posição do Estado brasileiro de não cumprir a decisão emanada pela Corte Interamericana. Por outro lado, a presente ADI tem o condão de tornar a legislação nacional menos permissiva ao ouro extraído ilegalmente, com severas repercussões à vida, à saúde e à segurança dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Importa sublinhar que o ouro que sai da Terra Indígena Yanomami é extraído ilegalmente em sua totalidade, vez que se trata de Terra Indígena e, portanto, não tem origem em lavras garimpeiras com autorização para a extração do minério.”, escreveram os autores.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
ISA apoia pedido de Hutukara e Foirn para reformular comissão yanomami no Senado
Organização reforça pedido da Hutukara Associação Yanomami e da Foirn pela retirada de parlamentares pró-garimpo do grupo
O Instituto Socioambiental (ISA) vem manifestar apoio ao posicionamento público da Hutukara Associação Yanomami (HAY) e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) pela reformulação da Comissão Temporária Externa do Senado para acompanhar a situação dos Yanomami e Ye’kwana, notadamente de membros historicamente contrários à defesa dos direitos indígenas.
A Comissão especial sequer teve um plano de trabalho aprovado e consensuado, o que levanta dúvidas sobre a legalidade de ações que já estão sendo implementadas.
Conforme ressaltou a organização em comunicado, os três representantes de Roraima – Chico Rodrigues (PSB), Hiran Gonçalves (PP) e Mecias de Jesus (Republicanos) – são figuras conhecidas por apoiar o garimpo ilegal em Terras Indígenas.
“Há anos a Hutukara vem denunciando a invasão do garimpo na Terra Indígena Yanomami e suas consequências com a devastação e contaminação do meio ambiente, doenças como malária e desnutrição, violências como estupros e aliciamento, levando muitas mortes aos nossos parentes, enquanto esses senadores nunca apoiaram as causas dos povos indígenas em Roraima”, escreveu a Hutukara Associação Yanomami em 17 de fevereiro.
“Nós, povos Yanomami e Ye’kwana, não queremos que o Chico Rodrigues e demais senadores de Roraima façam parte dessa comissão que vai acompanhar a situação da crise humanitária e sanitária Yanomami. Eles que deveriam responder por essa crise. Foram 570 crianças mortas durante o governo Bolsonaro com o apoio desses senadores. Nós temos o nosso protocolo de consulta da Terra Yanomami, deveríamos ser consultados, temos o direito de receber e de negar a presença de qualquer autoridade na nossa Terra. Não queremos esses políticos sujos acompanhando as atividades humanitárias e nem de desintrusão do garimpo ilegal no nosso território, que é um território sagrado para o nosso povo.”
A Foirn também manifestou repúdio à escolha dos três senadores para a comissão yanomami no Senado. Em nota, publicada também no dia 17 de fevereiro, a organização representante dos 23 povos indígena habitantes nos três municípios, São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos disse não aceitar que “que grupos políticos usem o Senado para atender interesses escusos”.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Indígenas Hupda e Yuhupdëh estão expostos a graves riscos em acampamentos insalubres de São Gabriel da Cachoeira (AM)
Considerados de recente contato, povos ficam vulneráveis à fome e a doenças enquanto aguardam para retirar documentos e receber benefícios
A indígena Cristina Isabel da Silva, do povo Yuhupdëh, vive com sua família na comunidade Santa Rosa, no Rio Tiquié, região do Alto Rio Negro (AM), mas está em São Gabriel da Cachoeira (AM) há cerca de um mês. Ela viajou até a cidade para retirar documentos de familiares e, ainda, tentar conseguir sua aposentadoria, e está desde então em um acampamento improvisado próximo da área urbana do município, exposta a uma série de riscos. Já foi a diversos órgãos públicos, mas ainda não resolveu suas questões.
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Acampamentos improvisados abrigam indígenas Hupda e Yuhupdëh em São Gabriel da Cachoeira (AM) |Raquel Uendi/ISA
Sentada sob uma barraca com lona azul, no acampamento improvisado no sítio chamado Parawary, ela conta sobre as dificuldades que vem passando e da sua preocupação com a família, que está sem se alimentar direito e sujeita a doenças. No total, 11 pessoas, sendo cinco crianças, fizeram juntas uma viagem que durou cerca de duas semanas pelos rios Tiquié, Uaupés e Negro, em canoa com motor rabeta – isso é, de baixa potência.
A situação da família de dona Cristina atinge muitos outros indígenas Hupda e Yuhupdëh – povos da família linguística Naduhupy considerados de recente contato e grandes conhecedores dos caminhos da floresta. Ao menos 800 pessoas estão no sítio Parawary, em condições insalubres, em situação de insegurança hídrica e alimentar. Um emaranhado burocrático acaba alongando o período que os indígenas precisam ficar na cidade para resolver pendências com documentação e benefícios.
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Cristina Isabel da Silva (à esquerda), do povo Yuhupdëh, está no acampamento improvisado com 11 pessoas de sua família, entre elas cinco crianças |Ana Amélia Hamdan/ISA
Em ação emergencial, a Funai e órgãos como FOIRN, ISA, Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (Dsei-ARN), Cartório e Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira e Exército realizaram um mutirão de atendimento a esses povos para tentar acelerar a resolução de pendências que acabam segurando os indígenas na cidade, além da retirada do lixo no entorno dos acampamentos. A mobilização iniciou no sábado, 4 de fevereiro, no Parawary, e será mantida até que a situação seja controlada.
“Estamos mobilizando as instituições para um atendimento emergencial amplo. Há o receio de ocorrerem mortes se não atuarmos”, informa o diretor-presidente da FOIRN, Marivelton Barroso, do povo Baré.
A Federação vem apontando problemas no atendimento oferecido pelas instituições públicas, como falta de pessoal, estrutura e de tradutores de línguas da região. Muitos dos indígenas, inclusive os jovens, não falam o português, dificultando a relação com as instituições.
Além disso, falta material para a emissão de documentos, como cédulas de identidade, que vêm de Manaus. O Estado fornece 400 cédulas por mês para o município, o que não é suficiente para atender a população, principalmente nos momentos de maior demanda.
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Indígenas aguardam para serem atendidos durante a ação no Parawary carregando pastas de papéis: excesso de burocracia está colocando pessoas em risco |Ana Amélia Hamdan/ISA
A questão que envolve a saída dos Hupda e Yuhupdëh de suas comunidades com destino à cidade é recorrente, acentua-se no período de férias escolares e vem se agravando ano a ano, desde 2012, quando passaram a acessar as políticas públicas como o Bolsa-Família. Conforme dados da Funai, houve período em que foram registrados até cinco óbitos de indígenas nessa situação, e com causas violentas, como afogamentos.
Advogada do Programa Rio Negro do ISA, Renata Vieira integra a equipe de ação emergencial para os povos Hupda e Yuhupdëh. Ela explica que as políticas públicas que são pensadas a nível federal muitas vezes não levam em conta a realidade dos povos indígenas, o que acaba contribuindo com a situação de vulnerabilidade.
“É exigida uma série de burocracias, como emissão de documentos de RG, CPF, Título de Eleitor, certidão de nascimento, além de realização de operações bancárias com manuseio de cartões magnéticos para dar entrada ao registro no CadÚnico para acessar o Bolsa-Família ou dar entrada num pedido de salário-maternidade”, detalha. “Como essa burocracia não faz parte da cultura desses povos, os indígenas ficam andando de instituição em instituição com várias limitações para compreender e obter a documentação necessária para resolver as suas pendências. Desse modo, a motivação de vinda à cidade que inicialmente é acessar direitos sociais básicos passa a configurar uma série de violações de direitos humanos”.
Relatório do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN) aponta que essa população indígena acampada nos arredores da cidade fica em condições precárias, com crianças e idosos mais suscetíveis ao consumo de bebidas alcoólicas, acidentes fluviais, negligência, abandono, escassez de alimentação, moradia (acampamento) inadequada, falta de água potável e de saneamento básico.
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Barracas são armadas principalmente no período de férias, quando as famílias aproveitam o recesso para resolver pendências na cidade 📷Raquel Uendi/ISA e Ana Amélia Hamdan/ISA
A equipe de saúde removeu seis pessoas para a Casa de Apoio Indígena e ao Hospital de Guarnição (HGU), sendo duas crianças, uma mulher que havia acabado de dar à luz a um bebê que já nasceu morto e três idosos com sintomas de tuberculose. Foi registrada a morte de uma adolescente de 16 anos, sendo que a causa está sendo averiguada.
Há ainda registros de desidratação e diarreia. Já foram identificados pelo menos 53 casos de malária. Para evitar que os indígenas retornem às suas casas com a doença – o que poderia levar ao aumento de casos no território indígena – será montada uma barreira sanitária para realização de testes.
O risco se agrava com as famílias circulando em instituições públicas na tentativa de tirar documentos. A indígena Cristina Isabel conta que saiu do Parawary, foi até o centro de São Gabriel e acabou sendo assaltada: os poucos documentos de uma das pessoas da família foram roubados. Ela tentou acionar a polícia, mas não conseguiu, pois tem dificuldades em falar o português.
Conversando na língua Tukano, ela fala da fartura de sua comunidade. “Lá tem farinha, quinhapira, beiju, tapioca, maçoca, manicuera, mingau”, relata, referindo-se a alimentos à base de mandioca e peixe. A farinha que trouxe na viagem para alimentar a família foi trocada por combustível ainda no trajeto.
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Januário Araújo Costa, do povo Hupda, e Maria Conceição Fernandes, Yuhupdëh, saíram da comunidade em 14 de janeiro e tentam resolver pendências de documentos |Ana Amélia Hamdan/ISA
A família de Maria Conceição Fernandes, Yuhupdëh, e de Januário Araújo Costa, do povo Hupda, moradores de Cunuri, também foi assaltada. Eles viajaram com toda a família para resolver pendências de documentos, usando duas canoas para transportar 11 pessoas. Mas uma das embarcações foi roubada no porto da cidade. Agora, o grupo, que também está vivendo no acampamento improvisado, conta com a ajuda de parentes no retorno a Cunuri, de onde saiu em 14 de janeiro.
Maria Conceição conta que sua família está passando fome. “Se acaba o dinheiro, não há o que fazer, aqui na cidade é o que manda. Na comunidade é diferente, sempre tem algo para a gente se alimentar”, diz.
Casa de apoio
Uma alternativa apresentada durante as reuniões do grupo de emergência foi a construção de casas de apoio em São Gabriel, com estrutura para que essas famílias fiquem instaladas, respeitando suas características culturais.
Outras ações estão em andamento para atender os povos Naduhupy – Hupda, Yuhupdëh e Dâw –, como o Plano de Contingência de Surtos e Epidemias em Povos Isolados e de Recente Contato (PIIRC). Em fase de formulação, este é um importante documento para o planejamento de ações de urgência e enfrentamento conjunto a epidemias e determinantes sociais que impactam negativamente na mortalidade desses indígenas. O PIIRC está previsto na portaria conjunta 4.094/2018 do Ministério da Saúde e Funai e vem sendo construído conjuntamente por órgãos públicos e sociedade civil organizada, em conjunto com a FOIRN e lideranças dos povos Naduhupy.
Conforme o documento, os povos Hupda e Yuhupdëh, bem como os Dâw, sofrem com situações de extrema vulnerabilidade social e epidemiológica, estando expostos ao contágio de Covid-19, malária, tuberculose, dengue, gripe, e aumento no número de morte por suicídio e riscos associados ao consumo de bebida alcoólica no meio urbano.
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Lonas azuis dão abrigo a 800 indígenas dos povos Hupda e Yuhupdëh, considerados de recente contato |Raquel Uendi/ISA
Também está em elaboração, em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o curso de Licenciatura Intercultural Indígena voltado para esses grupos.
Povos que tradicionalmente ocupavam áreas de interflúvio, os indígenas das etnias Hupda e Yuhupdëh vêm, ao longo dos anos, se fixando em comunidades ribeirinhas e mais próximas à distritos (vilarejos) urbanos, entre elas Santo Atanásio, Boca de Traíra e Vila Fátima. Esse movimento vem sendo acompanhado pelas lideranças dos povos Naduhupy, por antropólogos e órgãos como Funai e FOIRN.
Esses povos são detentores de conhecimentos de como viver, conhecer, caçar e andar na floresta Amazônica. Sabedoria cada vez mais rara e preciosa, principalmente em tempos de emergência climática, quando as ciências dos moradores da floresta sobre como sobreviver dela e, ao mesmo tempo, preservá-la, ganham cada vez mais destaque.
Os indígenas Hupda e Yuhupdëh entrevistados nessa matéria falaram principalmente na língua Tukano e foram traduzidos pelos comunicadores da Rede Wayuri Deise Alencar e Euclides Azevedo, ambos do povo Tukano
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Justiça manda deputado apagar vídeos que difamam o ISA
Gabinete de Gustavo Gayer (PL-GO) foi informado sobre decisão no dia 16 de fevereiro, e os vídeos foram excluídos das plataformas
O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, nesta segunda-feira (13/2), que o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro, apague de suas redes sociais uma publicação com informações falsas sobre organizações da sociedade civil, e que difama o Instituto Socioambiental (ISA).
A decisão, em segunda instância, determina que o deputado retire do ar as publicações em seu perfil do Instagram e na plataforma COS.TV em um prazo de cinco dias, sob pena de multa diária de R$ 1 mil.
O vídeo, intitulado “Denúncia grave – ONG pode estar por trás da fome dos índios Yanomami”, acusa mentirosamente o ISA de ser responsável pela “miséria” e a tragédia humanitária dos indígenas, numa tentativa de desviar o foco das responsabilidades do governo Bolsonaro sobre o caso.
Segundo a decisão do TJ-SP, “os conteúdos das publicações feitas nas redes sociais possuem insinuações maliciosas e de cunho criminal, o que foi demonstrado com as fotos anexadas ao recurso e em pesquisas aos sites mencionados”.
“(...) há perfeita caracterização de excesso ou violação ao direito de livre expressão do pensamento, uma vez que o que foi dito configura ofensa grave e injusta à honra e boa fama da instituição envolvidas”, sublinha a corte.
O vídeo sugere que o projeto Cogumelo Yanomami, uma iniciativa da Hutukara Associação Yanomami com apoio técnico do ISA, seria um dos responsáveis pela crise de saúde e desnutrição no território Yanomami. Muito longe disso, a fome e a desnutrição na área são resultado da falta de atenção à saúde na Terra Indígena Yanomami e dos impactos do garimpo ilegal, como a disseminação de doenças e a desestruturação da produção de alimentos realizada pelos próprios Yanomami (saiba mais abaixo).
O objetivo da ação é compensar o dano moral sofrido pelo ISA e impedir seu agravamento pela continuidade da disseminação do vídeo nas redes sociais.
“A garantia constitucional dessas liberdades [de expressão e crítica] não permite que possa ser divulgado todo tipo de mentira e absurdo, sem qualquer preocupação com a comprovação mínima de verossimilhança dos supostos fatos alegados, afetando a imagem, reputação e credibilidade de terceiros”, diz o texto da ação.
A ação pede também uma indenização por dano moral de R$ 50 mil, a ser totalmente revertida para os Yanomami.
Sobre o projeto Cogumelo Yanomami
O projeto Cogumelo Yanomami fomenta a aquisição de bens essenciais para a reprodução social dos Yanomami, tais como ferramentas e utensílios,e o aprofundamento do conhecimento tradicional sobre as espécies manejadas, sendo uma possibilidade de geração de renda criada pelas próprias comunidades (saiba mais no livro Ana Amopö: Cogumelos, publicado pela Hutukara Associação Yanomami, vencedor do Prêmio Jabuti em 2017).
Toda a receita obtida com a comercialização dos cogumelos é da Hutukara Associação Yanomami, que a reverte para seu povo. A marca Cogumelo Yanomami é de propriedade do povo Yanomami e está registrada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) em nome da Hutukara Associação Yanomami. O ISA não obtém qualquer lucro com a atividade.
O ISA, em parceria com a Hutukara Associação Yanomami, realizou nos últimos anos diversas ações de monitoramento remoto da Terra Indígena Yanomami, de apoio a denúncias ao Poder Público, de campanhas prevenção à Covid-19, de combate à malária e de combate à insegurança alimentar. Os dados estão compilados em relatórios que podem ser facilmente acessados no acervo do Instituto Socioambiental.
"Nós, povos e comunidades indígenas do Rio Negro, guardiões da natureza, donos da terra, devemos ser consultados sobre todo projeto que possa nos afetar. Toda e qualquer medida legislativa, executiva e administrativa que possa afetar nossas vidas e territórios da área de abrangência da FOIRN precisa ser consultada, seja de um órgão federal, estadual ou municipal, ou mesmo de empresas privadas. Tudo que ameaça a vida dos animais, o meio ambiente, os patrimônios culturais, como lugares sagrados para as gerações presentes e futuras, deve ter consulta".
É assim, sublinhando o patrimônio do qual cuidam - um território de aproximadamente 13 milhões de hectares, em uma das regiões mais preservadas da Amazônia - que os 23 povos que habitam a bacia do Rio Negro apresentam seu Protocolo de Consulta, aprovado em novembro último, durante a XVIII Assembleia Geral Ordinária da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), na comunidade de Cartucho, em Santa Isabel do Rio Negro (AM).
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Marivelton Baré, diretor-presidente da FOIRN, dá início a XVIII Assembleia Geral Ordinária da FOIRN, com a presença de comunitários, parceiros e convidados | Ana Amélia Hamdan/ISA
O Protocolo é um instrumento de defesa do território indígena e da diversidade cultural e modos de vida originários. Através do documento, povos indígenas informam ao Estado e a empresas privadas quem são, como se organizam e como devem ser consultados em caso de projetos que possam impactar seus territórios e modos de vida. A consulta deve ser livre, prévia, de boa fé e culturalmente adequada, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
“[Agora] não vai ter um líder só falando pela terra indígena. Nosso território é de ocupação coletiva e o Protocolo de Consulta vem para ouvir a todos. Vem para garantir direitos coletivos, direito à terra, políticas públicas de acordo com nossos modos de vida e vivência”, diz Marivelton Barroso, do povo Baré, diretor-presidente da FOIRN.
Para dar conta da dimensão geográfica e da diversidade étnica desse território, foram aprovados seis documentos, um geral e outro para cada coordenadoria regional da FOIRN, respeitando as especificidades de cada povo, como a língua falada e o contexto local. São elas: Nadzoeri (Organização Baniwa e Koripako), Diawii (Coordenadoria das Organizações Indígenas do Tiquié, Uaupés e Afluentes), Caimbrn (Coordenadoria das Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro), Caibarnx (Coordenadoria das Associações Indígenas do Balaio, Alto Rio Negro e Xié) e Coidi (Coordenadoria das Associações Indígenas de Iauaretê).
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XVIII Assembleia Geral da FOIRN teve representação de 20 delegados de cada uma das cinco coordenadorias regionais da FOIRN: Caiarnx, Coidi, Caimbrn, Nadzoeri e Diawii | Mauro Pedrosa Tukano/Rede Wayuri
Os povos do Rio Negro escolheram ser consultados em suas comunidades, com respeito às suas línguas. A consulta deve ser feita considerando os calendários tradicionais e épocas das roças e festas, bem como a forma de organização política do território. Os conhecedores indígenas, os Kumuã – como os pajés são chamados na região – também devem ser consultados em determinadas regiões. Atualmente, as pressões e ameaças sobre os territórios indígenas na região vêm principalmente do garimpo ilegal, do turismo ilegal e do narcotráfico.
Diálogos e processos
A construção do Protocolo de Consulta dos Povos Indígenas do Rio Negro demandou grande esforço para envolver 750 comunidades e sítios em três municípios, São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, no Amazonas.
Esse processo foi iniciado em 2019, porém foi suspenso devido à pandemia de Covid-19. Em 2022, foram realizadas assembleias regionais em todas as coordenadorias, com oficinas sobre o direito à consulta prévia, a importância do protocolo de consulta e a metodologia utilizada para a construção dos documentos. Os debates também envolveram a participação e suporte técnico de advogadas e advogados do Instituto Socioambiental (ISA), Observatório de Protocolos Comunitários e Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
“Houve uma grande mobilização na Assembleia Geral para validar e consolidar esse processo dos protocolos regionais, já estabelecidos, e [também] o protocolo geral”, diz Marivelton Baré. Ao menos 17 povos participaram deste momento, entre eles os Baré, Baniwa, Tukano, Yanomami, Desano e Tariano. Marivelton compara o processo de construção do Protocolo de Consulta a um ajuri ou Wayuri, que, na língua indígena nheengatu, significa “trabalho conjunto”.
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Maior parte dos povos indígenas do Rio Negro participaram das assembleias regionais e da Assembleia Geral, entre eles Baniwa, Baré, Yanomami, Tukano e Desano | Ana Amélia Hamdan/ISA
Na abertura da Assembleia, a diretora da FOIRN de referência da Coidi, Janete Alves, do povo Desana, reforçou a importância do diálogo e incentivou os povos a falarem em suas línguas. “Não tenham medo. Enfrentamos cachoeiras, banzeiros para estarmos aqui reunidos em coletividade nesse momento histórico”, disse.
A aprovação aconteceu na tarde de 26 de novembro de 2022, em Cartucho, após dois dias de debates e esclarecimentos sobre o protocolo de consulta. O encontro reuniu cerca de 150 pessoas, sendo 100 delegados – 20 de cada uma das regionais – para garantir a representatividade.
“A consolidação desse documento é um marco para nós, os povos do Rio Negro. É uma grande emoção. Essa é uma ferramenta [para] a nossa defesa, a nossa governança. É um instrumento para manter a floresta em pé. Já tivemos experiência de garimpo em terra indígena. Muitas vezes entram sem consultar, desmatam, poluem o rio. E os povos indígenas? Onde vai fazer roça, onde vai pescar?”, questiona Janete Alves.
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Janete Alves (ao centro) conversa com delegados da Coidi: “É um documento histórico”, disse durante XVIII Assembleia Geral Ordinária da FOIRN | Ana Amélia Hamdan/ISA
Ao fortalecer a proteção do território, o protocolo de consulta também protege os modos de vida indígenas. “Sempre tivemos nossas formas de organização, mas agora estamos colocando no papel, aprovando um instrumento de governança para o nosso bem viver, defendendo nossos territórios para nossos filhos, nossos netos”, diz Dário Casimiro, do povo Baniwa, diretor de referência da Nadzoeri.
“Os povos Baniwa e Koripako dominam as técnicas de manejo voltadas para o bem viver, que é estar bem com o próximo, com os parentes, ter convívio social sem conflito. Estar bem de saúde, respeitando um ao outro, fazendo troca de produtos, de conhecimento. Isso é fundamental. O protocolo [vem] para a defesa do território e para continuar o manejo, a reciprocidade, a consideração de parentesco e respeito às lideranças que representam o povo”, completa.
A Coordenadoria Diawii trouxe para o seu protocolo a necessidade da participação dos conhecedores indígenas. “Os especialistas são fundamentais, pois eles vão apontar os perigos de se colocar em risco os lugares sagrados”, explica o vice-presidente da FOIRN e diretor de referência da Diawii, Nildo Fontes. “As pessoas que detêm esse conhecimento passaram longos anos se preparando. Por isso é preciso ter um momento específico de consulta a eles, que são os Yaí, os Kumuã“.
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Indígenas de todas as regiões da área de abrangência da FOIRN levantam seus crachás em sinal de aprovação do protocolo de consulta | Ana Amélia Hamdan/ISA
Ronaldo Ambrosio Melgueiro, do povo Baré, participou da Assembleia representando a Caibarnx. A região vem sofrendo com a pressão da mineração e do turismo ilegal. “Qualquer projeto em nossa área vai ter que funcionar de jeito que a gente possa acompanhar. O nosso protocolo de consulta vai chegar até as nossas bases. A gente não quer mineradoras na nossa área”, diz.
Relatos de impactos da mineração também foram compartilhados pelos convidados Dário Kopenawa e Milene Mura, representantes de povos que já aprovaram seus protocolos de consulta.
“Sabemos que tem parentes que defendem a mineração, mas é uma minoria. Garimpo ilegal não é brincadeira, é morte. Derrama sangue e assassina pessoas”, apontou Dário. “Nenhuma liderança pode negociar por vocês. Vocês têm que assumir a responsabilidade sobre o território e para isso têm que ser consultados”, aconselhou. O povo Yanomami vive hoje uma catástrofe sanitária e socioambiental causada pela invasão garimpeira em massa ao território, em especial em Roraima.
Milena Mura comparou o protocolo de consulta a uma trincheira para defender os povos originários dos não-indígenas. “Sempre tivemos táticas para nos defender dos invasores. O protocolo agora é uma delas”, disse. Vivendo em áreas de Autazes e Careiro da Várzea (AM), o povo Mura vem sendo pressionado por empresas interessadas no mineral silvinita, utilizado em fertilizantes.
Contextos rio-negrinos
Advogada e assessora jurídica do Cimi, Chantelle da Silva Teixeira participou de quatro assembleias regionais para construção dos protocolos de consulta no Rio Negro e do encontro geral. Ela destaca algumas especificidades da região que influenciaram na construção do protocolo.
“O primeiro aspecto é a diversidade de povos, línguas, culturas e organizações sociais. Sem contar o tamanho do território que esse protocolo abrange. Foi necessária muita escuta porque a ideia é que as normas que vêm para o papel reflitam a realidade”, explica.
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Durante o encontro, advogados e assessores ajudaram a esclarecer dúvidas sobre a construção do protocolo e o direito à consulta | Ana Amélia Hamdan/ISA
Ela ressalta que o protocolo não cria uma regra nova, mas registra no papel práticas das quais os povos indígenas já se utilizam. “É uma forma de trazer para o mundo jurídico ocidental normas indígenas ancestrais e tradicionais”, avalia.
No caso do Rio Negro, o processo deve respeitar a forma de organização política já estabelecida nesse território. Isso significa que, além da FOIRN, devem ser consultadas as coordenações regionais, as associações de base e as lideranças das comunidades. “Essa é nossa governança”, diz Marivelton Baré.
Há ainda a riqueza linguística da região. Só em São Gabriel da Cachoeira, considerado o município mais indígena do país, são quatro línguas cooficiais: nheengatu, tukano, baniwa e yanomami. Dessa forma, a consulta deve ser feita com o apoio de intérpretes, para que o diálogo seja feito de forma clara, levando em conta inclusive as devidas explicações sobre termos técnicos. O processo deve ser acompanhado por órgãos públicos como a Funai e o Ministério Público.
“A consulta deve ser sem pressão, sendo respeitados os tempos, os calendários tradicionais. Num território de grande diversidade étnica, onde são faladas ao menos 18 línguas, é necessário tomar o devido cuidado com as traduções, para que não haja dúvidas sobre os projetos e seus impactos”, diz Renata Vieira, advogada do ISA.
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Durante a assembleia, grupos de trabalho discutiram pontos pendentes sobre os protocolos de consulta | Mauro Pedrosa Tukano/Rede Wayuri
Antropólogo e assessor do ISA, Renato Martelli adiciona que o Protocolo de Consulta é também um importante instrumento para a implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) do Rio Negro, que têm propostas em áreas como saúde, educação e economia da floresta.
“É um contexto amazônico, com muitas comunidades longínquas e com dificuldades de comunicação. Ainda assim os indígenas são muito articulados e organizados,” complementa a advogada Gisele Jabour, do Observatório de Protocolos Comunitários. “Já têm a vanguarda na construção dos PGTAs e agora consolidaram os protocolos de consulta”.
Mobilização
Teve indígena que saiu de longe para participar da validação do protocolo. Foi o caso de Tuli Melício da Silva, do povo Koripako, um dos delegados da coordenadoria Nadzoeri, que levou uma semana para se deslocar da comunidade Wainambi, no Alto Rio Içana, até São Gabriel da Cachoeira e, depois, até a comunidade de Cartucho.
“Esse é um instrumento que deve ser usado por nós em diálogo com instituições governamentais, respeitando as características de cada povo. A gente vai entender com eles e eles vão entender com a gente: são dois conhecimentos. Se concordar, pronto: pode trabalhar”, disse. “Antes a comunidade ficava isolada, ficava chato um pouquinho. Agora é uma consulta coletiva”.
No total, foram mobilizados uma média de mil representantes indígenas para discutirem e aprovarem os protocolos de consulta de cada regional, bem como o protocolo geral dos povos do Rio Negro. Isso imprimiu legitimidade institucional ao documento como instrumento de defesa e governança interna das Coordenadorias e da própria Federação dos Povos Indígenas do Rio Negro.
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Karollyne Gonçalves, de 16 anos, fez parte da comitiva da Caiarnx e ajudou na representatividade dos jovens na assembleia | Ana Amélia Hamdan/ISA
Karollyne Gonçalves, de 16 anos, fez parte da comitiva da Caibarnx e ajudou na representatividade dos jovens. Ela mora em Cucuí e viajou cerca de dez horas até São Gabriel da Cachoeira, como integrante da Associação de Desenvolvimento Indígena Comunitário de Cucuí (Adicc). “Eu acompanhei na minha região as discussões sobre o protocolo de consulta. Para trabalharem nos nossos territórios é necessário que nos consultem. Somos os donos do território indígena”, disse.
Ela reforçou a importância da participação dos jovens nos processos de consulta. “Às vezes a gente não entende muitas coisas como os adultos entendem. Temos outro olhar”, disse.
Articuladora do Departamento de Mulheres Indígenas da FOIRN, Belmira Melgueiro, do povo Baré, participou do encontro como uma das delegadas da Caiarnx e ressaltou a necessidade de as mulheres também serem consultadas.
“Temos uma visão diferente do que nos afeta como mulheres. O desenvolvimento educacional dos filhos e dificuldades na geração de renda são questões que nos preocupam. É mais difícil para os homens entenderem certas realidades. A mulher traz um olhar complementar”, disse.
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Lucas Matos, do povo Tariano, e integrantes da delegação da Caimbrn, uma das cinco coordenadorias da Foirn: trabalho conjunto para estabelecer processos de consulta livres, prévios e informados | Ana Amélia Hamdan/ISA
Ela destacou, porém, que é preciso um cuidado diferenciado para garantir a participação das mulheres. “Ainda é difícil mobilizar as mulheres das bases, pois estão sempre envolvidas com os filhos, o marido, as roças”, disse.
Morador de Iauaretê e delegado da Coidi, Lucas Matos da Silva, do povo Tariano, resumiu de maneira bem objetiva o momento. “É importante os indígenas entenderem que o ponto inicial do protocolo é o conhecimento sobre o projeto proposto. Depois podemos ou não aprovar o que pode se realizar.”
Novo governo
O debate sobre a consulta aos povos vem à tona sempre que ocorre mudança de governo, quando há trocas de de cargos e, as pastas passam a ser comandadas por pessoas mais alinhadas aos novos representantes eleitos.
No caso das trocas de órgãos relacionados à políticas para os povos indígenas, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), é obrigação do Estado consultá-los, respeitando as suas instituições representativas, suas línguas e costumes. O Ministério dos Povos Indígenas, por exemplo, contou com ampla participação dos movimentos sociais para a indicação ao comando do órgão, que ficou com Sonia Guajajara, eleita deputada federal pelo estado de São Paulo em 2022. Da mesma forma, a ex-deputada federal Joenia Wapichana foi a indicada pelo movimento indígena a ocupar a Presidência da Funai e o advogado Weibe Tapeba, ao cargo de Secretário da Sesai.
É comum, portanto, que cada organização de base e cada povo passe a se organizar internamente para realizar as indicações para as nomeações de cargos que sejam importantes para a gestão da política pública indígena e indigenista. Nesse sentido, o protocolo de consulta dos povos do Rio Negro também orienta o Estado e facilita que comunidades exerçam e exijam seu direito à consulta prévia diante de todo e qualquer ato administrativo que afete suas vidas nesta mudança de governo e outras futuras.
Confira abaixo os principais temas que demandam consulta, de acordo com os povos do Rio Negro
Devemos ser consultados sobre quaisquer medidas e projetos que interfiram e afetem nosso território e/ou no modo de viver dos povos da região, todas as políticas públicas que afetem os povos indígenas da região, sobretudo:
1. Projetos de pesquisa e lavra minerária;
2. Obras de infraestrutura: estradas, hidrovias, hidrelétricas, termelétricas, comunicação etc.;
3. Projetos econômicos que gerem impactos sociais e ambientais: pesca comercial, atividades agropecuárias em larga escala, turismo, extração de madeira, piaçava, etc.;
4. Operações militares e obras do Exército nas comunidades indígenas;
5. Políticas de segurança pública;
6. Instalação de instituições de ensino superior dentro dos territórios indígenas;
7. Atuação e/ou instalação de missões religiosas;
8. Pesquisas, acesso e uso do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, patrimônio material e imaterial com ou sem fins lucrativos;
9. Registros e produção audiovisual;
10. Pesquisas acadêmico-científicas;
11. Quaisquer medidas legislativas municipais, estaduais e federal que afetem nossas vidas e nossos territórios;
12. Criação de municípios nos territórios indígenas;
13. Nomeação do Coordenador da Coordenação Regional da FUNAI Alto Rio Negro e do DSEI Alto Rio Negro;
14. Projetos relacionados a serviços socioambientais e mercado de carbono.
Colaborou Renata Vieira, advogada do Instituto Socioambiental na bacia do Rio Negro
Decisões são acordadas em votações durante a assembleia 📷 Ana Amélia Hamdan/ISA
Comunidade de Cartucho, às margens do Rio Negro, em Santa Isabel do Rio Negro 📷 Ana Amélia Hamdan/ISA
Comunicador da Rede Wayuri, Moisés Baniwa filma o encontro. Ao fundo, mural da indígena Mirtes Sanches, do povo Baré, a moradora mais antiga de Cartucho 📷 Ana Amélia Hamdan/ISA
Danças tradicionais encerram o encontro 📷 Ana Amélia Hamdan/ISA
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Precisamos falar sobre a beleza dos Yanomami
Cenas de horror dizem mais sobre os napë, os não indígenas, que sobre esse povo
Dário Kopenawa
- Vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami
Neste momento em que muito se fala sobre a tragédia yanomami, há quem atribua as causas do sofrimento desse povo ao seu modo de vida. Sugerem que a fome e a doença são produtos da suposta ineficiência do sistema produtivo indígena, não da economia predatória que há anos vem devorando povos e territórios planeta afora. Ignoram que esse mesmo modo de vida garantiu uma existência abundante por séculos, enquanto o extrativismo não indígena é o verdadeiro produtor da escassez — algo que se vê, por exemplo, nos grandes centros urbanos que se pretendem monumentos da civilização ocidental. Como diria Davi Kopenawa, "o povo da mercadoria" está condenado.
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Indígena no encontro de Lideranças Yanomami e Ye'kwana, onde os indígenas se manifestaram contra o garimpo em suas terras |Victor Moriyama/ISA
Não é difícil notar a contradição no discurso que imputa aos indígenas a culpa por esta tragédia. Basta observar o que acontece nos lugares cotidianamente consumidos pelo garimpo. Onde há garimpo não há prosperidade. Há pobreza e violência, nada mais. Nesses lugares, enquanto a maioria padece de moléstias como a malária ou é envenenada pelo mercúrio, apenas alguns poucos acumulam riquezas, que são ostentadas bem longe das crateras de onde são extraídas.
Em meio à tragédia, é urgente não perder de vista a beleza desse povo. A beleza das festas reahu, das danças de apresentação. Céu azul, corpos pintados de vermelho, o balé das palhas amarelas. Tampouco perder de vista a beleza da floresta e do conhecimento milenar que ajudou a construí-la e torná-la ainda mais bela. Abelhas comendo no jatobá-roxo, os perfumes do fundo da mata, a majestade das sumaúmas e as fantásticas ilhas de pupunheiras e cacauais. Não podemos perder de vista a beleza dos xamãs e de seus espíritos auxiliares, que contribuem para o equilíbrio cósmico. A beleza da língua yanomami e dos seus cantos, que têm a sutileza de haicais e o ritmo dos cantos dos bichos.
Para os inimigos dos povos indígenas, uma forma de extermínio é a destruição dessa beleza. Pois é por meio da beleza que os yanomamis afirmam a sua humanidade no mundo.
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"Em meio à tragédia, é urgente não perder de vista a beleza desse povo" | Victor Moriyama/ISA
Viver com a floresta é uma arte e requer uma sabedoria que não pode ser fabricada em laboratório. Os yanomamis manejam mais de 160 espécies vegetais silvestres comestíveis, conhecem minuciosamente o comportamento de mais de 80 animais de caça, pescam cerca de 50 tipos de peixes, coletam 30 variedades diferentes de mel silvestre, 11 espécies de cogumelos, dezenas de invertebrados e cultivam mais de uma centena de alimentos, com destaque para a banana, a mandioca, a batata-doce, a taioba, o cará, a cana e o milho.
Davi Kopenawa, com sua perspicácia e inteligência fora do comum, há anos vem nos alertando sobre isso, assim como vem lutando para que os napë (os não indígenas) reconheçam a beleza do seu povo, a sua humanidade.
Leiam as suas palavras em "A Queda do Céu". Assistam à poesia dos moradores da serra do vento em "A Última Floresta". Deixem-se apaixonar por esse povo e por sua maneira própria de criar mundos. A aposta de Davi é que o respeito pelo seu povo só pode nascer da admiração, não da pena ou da comiseração.
Um povo cujas crianças podem nomear mais de duzentos tipos de flores durante uma brincadeira é um tesouro. E é desse tipo de tesouro de que o Brasil e a humanidade precisam.
As cenas de horror que circulam hoje, seguramente, dizem mais sobre quem são os napë do que sobre os yanomamis.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Hutukara Associação Yanomami repudia fala preconceituosa de governador de Roraima
Em entrevista à Folha de São Paulo, Antonio Denarium (PP) equiparou os modos de vida dos indígenas aos de “bichos”
A Hutukara Associação Yanomami (HAY) emitiu nota de repúdio às falas do governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), ao jornal Folha de S. Paulo. Nesta segunda-feira (30/01), o veículo publicou uma matéria em que o parlamentar faz afirmações discriminatórias contra o povo Yanomami.
Em meio à exposição da crise sanitária ao qual os Yanomami foram submetidos pelo crescimento desenfreado do garimpo, Denarium negou a grave desnutrição vivenciada por comunidades yanomami e afirmou que os indígenas têm que “se aculturar [e] não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”.
Diante da fala carregada de preconceitos, a HAY afirma que é preciso repudiar com veemência a visão colonizadora sobre os povos indígenas do país. Além disso, defendeu o direito dos Yanomami de existir na floresta viva, seguindo seus costumes.
Leia a nota na íntegra:
Nota de Repúdio da Hutukara Associação Yanomami sobre a fala do governador Denarium à Folha de São Paulo
É com enorme indignação que lemos a entrevista do governador Antonio Denarium à Folha de São Paulo publicada no dia de hoje, 30 de janeiro de 2023. Enquanto o povo Yanomami vive uma das maiores crises de sua história, que vem sendo denunciada nos últimos anos pela Hutukara Associação Yanomami, o governador Denarium não só nega a realidade, como defende que os povos indígenas “têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”.
Falas desse tom denunciam o grau de discriminação e preconceitos a que o povo Yanomami estão sujeitos. Nossos modos de vida nos são negados como se fossemos primitivos, incapazes, inumanos. Longe de limitar-se ao discurso políticos, esse pensamento se refletiu em políticas de tendência genocida que foram implementadas sistematicamente nos últimos anos para inviabilizar a manutenção da vida dos Yanomami. Facilitar a entrada de milhares de garimpeiros em nossas Terras Indígenas e desorganizar a assistência à saúde básica são a consequência direta desta noção preconceituosa que o governador Denarium compartilha. Este tem sido cúmplice da tragédia, inclusive ao sancionar leis que, inconstitucionais, tinham a intenção de promover a atividade garimpeira e fragilizar a fiscalização da atividade em Terras Indígenas em Roraima.
É preciso repudiar com veemência a visão colonizadora sobre os povos indígenas do país que os reduz a animais, incapazes, ou qualquer subcategoria de sujeitos excluídos de direitos que devam se submeter aos modos de vida da cidade. Políticas assimilacionistas sobre os povos indígenas não são compatíveis com um Estado Democrático de Direito. Somos sujeitos plenos de direitos, e queremos viver bem com a floresta como viviam nossos antigos como garante o Artigo 231 da Constituição Federal.
O povo Yanomami é um dos mais populosos povos indígenas de recente contato no mundo, e detentores de grande conhecimento ancestral sobre a floresta onde vivem. É nosso direito viver na floresta viva segundo nossos costumes, com saúde e vida.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Garimpo ilegal na Terra Yanomami cresceu 54% em 2022, aponta Hutukara
Área devastada explodiu 309% desde 2018, quando a associação Yanomami começou a monitorar os efeitos do garimpo
O garimpo ilegal cresceu 54% em 2022 e devastou novos 1.782 hectares da Terra Indígena Yanomami (TIY), conforme levantamento feito por imagens de satélite. O monitoramento da Hutukara Associação Yanomami (HAY) aponta crescimento acumulado de 309% do desmatamento associado ao garimpo entre outubro de 2018 e dezembro de 2022.
Nesse período, foram mais 3.817 hectares destruídos na maior terra indígena do país, atingindo um total de 5.053 hectares. Quando os indígenas começaram a monitorar os efeitos do garimpo, em outubro de 2018, havia 1.236 hectares devastados. Em 2021, o desmatamento chegou a 3.272 hectares, conforme apontou o relatório Yanomami Sob Ataque: garimpo na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo.
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Crescimento do desmatamento associado ao garimpo na Terra Indígena Yanomami entre 2018 e 2022 |Hutukara Associação Yanomami
O Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal na TIY é feito com imagens da Constelação Planet, satélites de alta resolução espacial capazes de detectar com precisão e mais frequência de vigilância áreas muitas vezes não capturadas por outros satélites. Com o monitoramento manual, as atualizações são registradas duas vezes por mês.
As maiores concentrações de destruição estão nos rios Uraricoera, ao Norte da Terra Indígena Yanomami, e Mucajaí, região central. A região de Waikás, no Uraricoera, concentra 40% do impacto, com cerca de 2 mil hectares devastados. Enquanto isso o Rio Couto Magalhães, afluente do Mucajaí, tem 20% do impacto, com cerca de mil hectares.
A terceira região mais afetada é a de Homoxi, na cabeceira do Mucajaí, com 15% da devastação, o que corresponde a cerca de 760 hectares.
“Os impactos do garimpo vão além destes observados no satélite, que é focado no desmatamento. Eles também afetam as disseminações de doenças, deterioração no quadro de saúde das comunidades, produção de conflitos intercomunitários, aumento de casos de violência e diminuição da qualidade de água da população com destruição dos corpos hídricos. Tudo isso somado compromete a capacidade de viver nas comunidades”, explicou o geógrafo Estêvão Benfica, assessor do Instituto Socioambiental (ISA).
Ainda segundo Benfica, a mobilidade dos garimpeiros de uma área para outra é um fator que resulta na proliferação de doenças. Os invasores chegam a levar novas cepas de malária de uma região para outra, por exemplo.
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Na coluna da esquerda, número de casos de malária; na coluna da direita, desmatamento em hectares, segundo monitoramento do Mapbiomas. |Mapbiomas e Sivep Malária
De acordo com o Sivep Malária, sistema de monitoramento do Ministério da Saúde, entre 2020 e 2021, mais de 40 mil casos de malária foram registrados na Terra Indígena Yanomami. Em 2021, foram 21.883, o maior registro desde 2003. A explosão dos casos da doença no território indígena coincide com o aumento da área devastada pelo garimpo. O monitoramento do Mapbiomas, que utiliza o satélite Landsat, mostra saltos sucessivos no desmatamento pelo garimpo desde 2016.
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Casos de malária aumentaram exponencialmente na Terra Yanomami entre 2012 e 2021; foram mais de 40 mil casos nos últimos dois anos |Sivep Malária
Malária na Terra Indígena Yanomami
Em 2020, houve 19.828 registros e em 2019, 18.187. Nestes anos também houve recorde de registros da doença. Os anos de 2003 e 2004 tiveram os registros mais baixos, com 246 e 783 casos, respectivamente.
Ainda conforme o monitoramento, em 2007 houve 5.460 registros da doença. Nos anos seguintes, 2008 e 2009, houve queda nos novos casos: 4.966 e 4.188. Em 2010 são registrados 6.745 e nos anos seguintes os casos voltam a cair até atingir um novo recorde em 2017 com 7.891. Nos anos seguintes, a doença seguiu atingindo novos picos.
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Vídeo traz informações falsas sobre Cogumelo Yanomami; leia a nota do ISA
O governo Bolsonaro estimulou a invasão das Terras Indígenas e omitiu-se no atendimento à saúde e na proteção do povo Yanomami, verdadeiras causas da atual crise humanitária
Circula em algumas redes sociais um vídeo com informações falsas e descontextualizadas sobre o projeto Cogumelo Yanomami, iniciativa da Hutukara Associação Yanomami, organização representativa do povo Yanomami, apoiada pelo ISA. O autor é um dos principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, alvo de inquéritos policiais nos tribunais superiores pela disseminação de fake news e teve perfis suspensos por decisão judicial.
O vídeo sugere, sem apresentar nenhum indício ou prova, que a comercialização de cogumelos seria uma das responsáveis pela crise de saúde no território Yanomami. Muito longe disso, a fome e a desnutrição na área são resultado da falta de atenção à saúde na Terra Indígena Yanomami e dos impactos do garimpo ilegal, como a disseminação de doenças e a desestruturação da produção de alimentos realizada pelos próprios Yanomami.
Em 28 anos de existência, o ISA vem construindo um legado de projetos e iniciativas, sempre em parceria, lado a lado, com os povos da floresta (para saber mais sobre nossas missões institucionais acesse aqui o nosso estatuto: isa.to/estatuto).
Apoiamos os povos da floresta na proteção de seus territórios, no fortalecimento de suas culturas e direitos e no desenvolvimento de suas economias, que valorizam o conhecimento tradicional e o manejo sustentável dos recursos naturais.
Uma de nossas frentes de trabalho é o apoio à economia local das comunidades, e entre elas está o projeto Cogumelo Yanomami. A iniciativa fomenta o consumo interno, o aprofundamento do conhecimento tradicional sobre as espécies manejadas e a comercialização apenas dos excedentes de cogumelos, sendo uma possibilidade de geração de renda criada pelas próprias comunidades (saiba mais no livro Ana Amopö: Cogumelos, publicado pela Hutukara Associação Yanomami, vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 2017).
Toda a receita obtida é da Hutukara Associação Yanomami, que a reverte para seu povo. A marca Cogumelo Yanomami é de propriedade do povo Yanomami e está registrada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) em nome da Hutukara Associação Yanomami. O ISA não obtém qualquer lucro com a atividade.
Portanto, é absolutamente falso afirmar que o ISA, uma organização sem fins lucrativos, beneficia-se da comercialização do Cogumelo Yanomami. Não há correlação entre essa atividade e os casos de desnutrição na Terra Indígena Yanomami.
Desde 2017, quando teve início, 20 comunidades fazem parte do projeto, envolvendo cerca de 170 famílias. A forma como a Hutukara Associação Yanomami promove as iniciativas de geração de renda junto às comunidades baseia-se no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Yanomami, que pode ser acessado aqui. O planejamento e organização de coleta, beneficiamento e comercialização dos cogumelos é gerenciado pelos próprios indígenas.
Além disso, o Cogumelo Yanomami é comercializado pela Hutukara Associação Yanomami conforme os princípios do comércio ético, justo e transparente da rede Origens Brasil®. O sistema de garantia da rede consiste em quatro princípios: rastreabilidade, indicadores de impacto, avaliações de parceria e governança. Os dados de produção e comercialização são registrados na plataforma digital da Rede. Saiba mais no site da rede Origens Brasil®: https://origensbrasil.org.br/
A loja online do ISA não objetiva lucros, mas sim promove produtos dos povos da floresta a fim de fortalecer as comunidades e seus territórios. A precificação dos produtos à venda na loja é realizada pelas próprias organizações indígenas, ribeirinhas e quilombolas, acrescida de impostos, custos logísticos e operacionais.
O relatório ‘Yanomami sob ataque’, produzido pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana com apoio técnico do ISA, sustenta as afirmações acima com fatos, dados objetivos comprovados e a profundidade de quem vive a situação. Você pode acessá-lo clicando no link abaixo:
Por fim, prezamos pela transparência e todos os nossos relatórios financeiros estão acessíveis para qualquer um que queira acessá-los (isa.to/transparencia). Sobre os impactos do nosso trabalho, nossos parceiros indígenas falam por nós, confira aqui.
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Bolsonaro ignorou decisões judiciais e ampliou crise Yanomami
Ex-presidente desestruturou órgãos de prevenção e controle e sinalizou aos invasores que regularizaria atividades criminosas
A crise humanitária que se abate sobre os Yanomami e Ye’Kwana que vivem na Terra Indígena Yanomami, em Roraima e no Amazonas, não é nova, mas só agora foi revelada. Com a chegada da pandemia, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) propôs, em julho de 2020, a ADPF nº 709 no STF (íntegra - 3MB).
Na ação, pediu que a União colocasse barreiras sanitárias para conter e controlar o acesso de pessoas nas terras indígenas que tinham indígenas isolados e de recente contato, caso das terras Yanomami. Além de solicitar a retirada de invasores em 7 terras indígenas onde o desmatamento e as invasões atingiram patamares críticos.
Em 8 de julho de 2020, a corte deferiu a maioria dos pedidos, mas não a retirada dos invasores. Como providência intermediária, a União deveria isolá-los e contê-los, tomando medidas para estrangular a logística que abastece o garimpo ilegal na área. Se as medidas tivessem sido providenciadas, os garimpeiros teriam ficado sem acesso a insumos básicos, sendo forçados a sair da terra indígena. Com mecanismos adequados de fiscalização, poderiam ser impedidos de voltar, iniciando-se um processo efetivo de controle da invasão e de proteção do território.
Em 3 de julho de 2020, a partir de ação do MPF (Ministério Público Federal), o TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) determinou que a União apresentasse, “no prazo de 5 dias, plano emergencial de ações, e respectivo cronograma, para monitoramento territorial efetivo da Terra Indígena Yanomami, combate a ilícitos ambientais e extrusão de infratores ambientais (mormente garimpeiros)”.
Apesar da determinação para a retirada de invasores das terras Yanomami, até hoje muito pouco foi feito. A União realizou operações pontuais e insuficientes, ações para “inglês ver”, para tentar sinalizar ao Judiciário que estava fazendo alguma coisa, enquanto, na verdade, o garimpo crescia desordenadamente.
O Relatório "Yanomami Sob Ataque” registra um crescimento de 46% em 2021 em relação a 2020, e um incremento anual de cerca de 1.000 hectares, atingindo um total acumulado de 3.200 hectares de novos desmatamentos. Esses números representam o maior crescimento anual da área degradada pela atividade ilegal do garimpo na terra indígena, desde 2018, quando a Hutukara Associação Yanomami, organização representativa dos Yanomami, iniciou seu monitoramento por imagens de satélite. Muito provavelmente, é o maior dado desde a demarcação da área, em 1992. O monitoramento do desmatamento até os dias atuais deve ser lançado nos próximos dias.
Todo esse crescimento do garimpo ocorreu na vigência de decisões do STF e do TRF-1 que determinavam o controle dos invasores ou a sua retirada. Como disse a ministra Cármen Lúcia durante o julgamento do "pacote verde" na Suprema Corte, as medidas ambientais não devem ser apenas suficientes, elas também precisam ser eficientes! Pela expansão do garimpo, podemos ver que as medidas adotadas pela União não foram nada disso.
A Hutukara Associação Yanomami não se restringiu a fazer denúncias em esfera nacional. Em 20 de julho de 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos outorgou medidas cautelares de proteção a favor dos Yanomami e Ye’kwana (Resolução n° 35/2020 – íntegra/879KB). Elas foram convertidas em medidas provisórias pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em julho de 2022. Ainda assim, Jair Bolsonaro (PL) não se constrangeu.
A invasão de garimpeiros ilegais nas terras Yanomami tem relação direta com a crise humanitária que ganhou os jornais nos últimos dias. O garimpo promove impactos negativos tanto no meio ambiente ‒ desmatamento, a contaminação e destruição de corpos hídricos ‒ quanto na saúde da população, com danos sobre o sistema produtivo indígena.
Apenas entre 2020 e 2021, as terras Yanomami registraram mais de 40.000 casos de malária ‒ isso para uma população total de cerca de 30.000 pessoas.
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Garimpo no Rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami |Bruno Kelly/HAY
Da mesma forma, também há os impactos associados ao aumento de conflitos e à violência. Áreas exploradas pelo garimpo impedem a abertura e manutenção das roças. Alguns indígenas são cooptados ou intimidados para trabalhar para os invasores. Uma das estratégias de aliciamento, por exemplo, é a introdução de armas de fogo no território, eventualmente disponibilizadas para adolescentes, mais vulneráveis a falsas promessas de prosperidade.
Como a economia indígena é dependente da mão de obra familiar, com as pessoas permanentemente adoecidas, prestando serviços para o garimpo e com as áreas de caça e pesca ocupadas por invasores, é praticamente impossível assegurar a subsistência. Tudo isso impacta negativamente na organização social indígena. Os moradores da área estão sitiados em suas próprias casas.
O aumento do garimpo está diretamente relacionado à gestão Bolsonaro, que desestruturou a Funai e os órgãos ambientais e sinalizou aos invasores que buscaria regularizar atividades ilegais e criminosas. O então presidente chegou a visitar um garimpo ilegal na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, quando já existiam denúncias sobre a violência e a desnutrição que assola os Yanomami.
As constantes crises institucionais criadas por Bolsonaro, principalmente com o STF, inviabilizaram medidas mais eficazes para combater os ilícitos e a catástrofe humanitária nas terras Yanomami. A Funai, o Ibama, o Ministério da Justiça e, principalmente, o Exército –que tem a expertise e logística adequadas para operações na floresta– omitiram-se em seus deveres constitucionais e foram coniventes com a violência garimpeira autorizada por Bolsonaro.
Nessa tragédia, os únicos inocentes são os indígenas. É preciso investigar e responsabilizar os culpados para fortalecer as estruturas estatais contra governantes de ocasião e fisiologismos que não devem mais ser tolerados.
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