O Vale do Ribeira, entre São Paulo e Paraná, é uma região de Mata Atlântica, com forte presença de povos indígenas, comunidades quilombolas, caboclas e caiçaras. São estas populações tradicionais que, com suas culturas e modos de vida, mantém as florestas da região em pé, resistindo à atividades predatórias e à exploração descontrolada dos recursos naturais. A presença quilombola, indígena, cabocla e caiçara faz do Vale do Ribeira um patrimônio socioambiental do Brasil e uma região fundamental para o equilíbrio climático, proteção da biodiversidade e produção de chuva entre duas grandes metrópoles do País: Curitiba e São Paulo.
O ISA atua no Vale do Ribeira desde o final da década de 1990 em parceria com associações e organizações locais da sociedade civil para garantir os direitos territoriais das comunidades quilombolas, bem como a proteção das florestas, rios, estuários e demais ecossistemas da região. Somos gratos pelo aprendizado de luta que as comunidades e suas lideranças transmitem há tantos séculos e ensinam às novas gerações.
O trabalho do ISA no Vale do Ribeira segue atualmente três linhas estratégicas: articulação política para defesa de direitos, fortalecimento do manejo de recursos em territórios quilombolas, com destaque para a estruturação da Rede de Sementes do Vale do Ribeira e valorização do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira, e fomento à produtos da mata, com destaque para o apoio à produção e comercialização, pelas comunidades, da produção orgânica da agrobiodiversidade local para a geração de renda.
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Quilombolas do Vale do Ribeira (SP) anunciam nova edição de feira de troca de sementes e mudas
Encontro acontece dias 11 e 12 de agosto em Eldorado e conta com seminário, oficinas, venda de produtos da roça, apresentações culturais e almoço tradicional
São Paulo também é quilombola! A força e diversidade dos quilombos do Vale do Ribeira (SP) vão ocupar a Praça Nossa Senhora da Guia, em Eldorado, nos dias 11 e 12 de agosto, na 14ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas.
Trata-se de um espaço para debater temas importantes, como a cultura e o manejo das roças tradicionais quilombolas, além promover as trocas de sementes e mudas e complementar a renda das comunidades pela venda de produtos agroecológicos dos quilombos do Vale do Ribeira.
Atualmente, os quilombolas do Vale do Ribeira manejam cerca de 83 espécies florestais e mais de 70 variedades agrícolas em meio ao maior maciço de Mata Atlântica do país.
A Feira se tornou a principal atividade de preservação do Sistema Agrícola Tradicional (SAT) Quilombola do Vale do Ribeira, um conjunto de práticas e conhecimentos ancestrais das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, transmitidos através das gerações por meio da oralidade e observação em vivências práticas.
Em 2018, o SAT Quilombola foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como patrimônio cultural brasileiro.
O encontro é organizado há 13 anos pelo Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça), composto por dezenove Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira e parceiros.
Em 2022, na primeira edição presencial após dois anos de pandemia, a Feira recebeu cerca de 250 pessoas, no primeiro dia, e 450 pessoas no segundo, entre quilombolas, estudantes, parceiros e visitantes.
Confira a programação completa!
14ª Feira de Trocas de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira
Sexta-feira, dia 11/08 Local: Salão Paroquial na Praça Nossa Senhora da Guia, Centro - Eldorado/SP
Horário: das 9h30 às 12h00
Seminário “Culturas perenes e a sustentabilidade dos manejos nos territórios quilombolas” e mesa redonda: Aquilombando os manejos
Horário: das 14h00 às 16h30
Oficinas temáticas
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14ª Feira de Trocas de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira
- Trocas de sementes e mudas, venda de produtos da roça, apresentações culturais e almoço tradicional quilombola
Local: Praça Nossa Senhora da Guia, Centro - Eldorado/SP Horário: das 9h00 às 14h00
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**Essa notícia faz parte da série 'O Caminho pro Quilombo', que traz reportagens sobre os desafios e as belezas da vida no Quilombo Bombas.
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Edmilson Furquim, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas, acompanha trecho inicial da trilha até a comunidade|Júlio César Almeida/ISA
O caminho até o Quilombo Bombas, no Vale do Ribeira (SP), começa em uma viagem ao coração da Mata Atlântica. A partir da cidade de Iporanga (SP), a jornada é feita por uma estrada de faixa única, que contorna o relevo montanhoso e faz o carro dançar pelas curvas.
Aos poucos, um bananal de proporções gigantescas, que se estende por longos trechos do Vale do Ribeira, vai dando lugar, à direita do asfalto, ao longo e caudaloso Rio Ribeira de Iguape, que nomeia a região.
Dirigindo na contramão do fluxo das águas, passamos por diversas comunidades quilombolas, que tecem nosso caminho acompanhando o rio, como as miçangas e o fio em um colar de contas.
Nesses momentos, o melhor é deixar o ar condicionado desligado e abrir as janelas do carro para deixar entrar o ar puro da Mata Atlântica, que preenche com facilidade os pulmões e convida a conhecer as belezas do Vale do Ribeira.
Nosso destino é o Território Quilombola de Bombas, a 5 km de Iporanga, que se divide em duas áreas: Bombas de Baixo e Bombas de Cima. O acesso ao quilombo parte da Reserva Betary, espaço destinado à educação ambiental e pesquisa científica.
Do início da trilha até a comunidade Bombas de Baixo são 6 km de caminhada, e a travessia para Bombas de Cima segue por mais 4 km em mata fechada.
Aqui, a natureza exuberante do maior maciço de Mata Atlântica do país, com abundância de espécies vegetais valorizadas pelo mercado de plantas das grandes cidades e tantas outras pouco conhecidas nos centros urbanos, divide espaço com uma dura realidade.
Em alguns trechos, a trilha contorna desfiladeiros, e em outros, como no chamado ‘barro preto’, o chão de terra batida dá lugar a um atoleiro, que persiste mesmo em dias mais secos.
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O caminho para o quilombo é íngreme, sinuoso e esburacado|Júlio César Almeida/ISA
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A movimentação dos animais pela trilha forma degraus no solo|Júlio César Almeida/ISA
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Na região chamada de Barro Preto, o solo não seca, mesmo em períodos sem chuva|Júlio César Almeida/ISA
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Em alguns trechos, os moradores precisam colocar pedaços de madeira para atravessar os atoleiros|Júlio César Almeida/ISA
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Para atravessar trechos de rio, a comunidade precisa se equilibrar por entre as pedras|Júlio César Almeida/ISA
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Em muitos momentos, a trilha para o Quilombo Bombas se estreita contornando a montanha|Júlio César Almeida/ISA
“Teve uma melhoria quando a comunidade fez umas mudancinhas no caminho, mas com o tempo vai ficando cada vez pior. Lá no Barro Preto, ela ia por dentro da vala e o caminho mudou também. Agora, pega um pouco de sol, porque ela é úmida, né? Ela nunca seca”, relembra João Fortes, liderança comunitária.
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Aos 69 anos, João Fortes divide sua rotina entre a cidade de Iporanga (SP) e o Quilombo Bombas|Júlio César de Almeida/ISA
Além de prejudicar as condições da trilha, a chuva também causa um aumento do nível do rio que atravessa o caminho, dificultando ainda mais a passagem.
Edmilson Furquim, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas, conta que acidentes envolvendo animais de carga e transporte também são comuns na trilha.
“Pra aprender a andar de bicicleta eu levei dois tombos, mas de burro já cai mais de 30. É um tombo atrás do outro”.
Além de comprometer o direito básico de livre circulação de quilombolas, a ausência da estrada impossibilita o acesso a serviços básicos e a execução de melhorias na infraestrutura da comunidade.
No quilombo, a coleta de lixo é inexistente e os recursos hídricos utilizados nas casas são provenientes de cursos d'água próximos. Não há linhas de transmissão de energia elétrica e os moradores contam com geradores e sistemas fotovoltaicos para abastecer temporariamente as residências.
Até 2014, os agentes de saúde faziam atendimentos no quilombo, mas um acordo feito entre o Conselho Municipal de Saúde e o Ministério da Saúde e o Departamento Regional de Saúde suspendeu a atuação dos profissionais de saúde no território e determinou um atendimento mensal à comunidade na UBS Dr Thomaz Antonio Cunha Cardoso de Almeida, em Iporanga.
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Registro do antigo posto de saúde, hoje desativado, no Quilombo Bombas, Vale do Ribeira (SP)|Raquel Pasinato/ISA
“Para nós fazermos um trabalho de excelência em Bombas tem que ter o acesso. Aquilo lá pra nós é um caminho, não é um acesso. [...] Eu não posso colocar a equipe em risco”, diz Hélio Rodrigues Lopes, secretário de saúde do município de Iporanga.
“Antigamente os médicos vinham, mas agora já não vêm mais. Daí eu pergunto ‘será que nós não tem o perigo de se machucar também? De uma cobra picar a gente?’”, questiona Edilaine Ursulino, da Comunidade de Bombas.
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“Antigamente os médicos vinham, mas agora já não vêm mais", diz Edilaine Ursulino com o filho Bruno, de dois anos|Júlio César de Almeida/ISA
A jovem quilombola, que ainda era adolescente quando a luta pela construção da estrada teve início, também pede pelo retorno dos atendimentos à saúde na comunidade.
“Já mudaria bastante o futuro dos que estão vindo, né? Eu quero que eles tenham um futuro a mais do que eu”.
Quase uma década sem estrada
Em 1958, o Governo de São Paulo instituiu o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR), sobreposto ao território tradicional, mas foi na década de 1980 que ocorreu a demarcação física do perímetro.
A sobreposição do parque limita a autonomia da comunidade no manejo sustentável da vegetação para as práticas tradicionais, em especial para as roças, e dificulta a permanência no quilombo.
“Os parques, a exemplo do PETAR, são criados com fundamento na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Segundo essa lei, não poderia haver ocupação humana, com residências, nos parques. Mas o direito constitucional quilombola ao território se sobrepõe ao SNUC, garantindo a permanência de quilombolas”, conta Fernando Prioste, advogado popular no Instituto Socioambiental (ISA).
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Sobreposição do PETAR ao território escancara racismo ambiental
Em 2015, uma determinação [link] do Poder Judiciário obrigou o Estado, na figura da Fundação para a Conservação e a Produção Florestal, a construir uma estrada conectando o Quilombo Bombas à Rodovia Antonio Honório da Silva, o que ainda não aconteceu.
Há três anos, a Fundação Florestal realiza tímidas ações para viabilizar a construção da obra. Em 2022, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) disse serem necessários estudos mais aprofundados, uma vez que a Lei da Mata Atlântica determina a realização de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para construção do traçado da estrada proposto pela Fundação Florestal.
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“É muita coisa que eles ficam jogando em cima de nós. Fica parado, daí depois volta de novo dizendo que vai fazer outro estudo para poder liberar e nada. Ficamos aqui feito bobo, esperando”, reclama Laíde Ursulino, moradora do Quilombo Bombas.
Para Edmilson Furquim de Andrade, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas, a sensação que fica é de descaso do poder público com o bem viver da comunidade.
“É uma dificuldade imensa. Há quanto tempo nós estamos correndo atrás disso? O que eu aprendi, de 2014 para cá, o que eu vivenciei, se não fosse meu antepassado que lá atrás passou essa segurança para nós, eu acho que não aguentaria”.
O traçado aprovado para construção da estrada vai apenas até a comunidade de Bombas de Baixo, deixando os moradores e a escola de Bombas de Cima a parte desse direito.
“Isso não tá certo. Deus mandou o sol pra todos. A maioria do povo mora lá em cima. Se a estrada chega até aqui embaixo, porque não pode chegar até lá em cima?”, questiona Suzana Pedroso do Carmo, moradora do quilombo.
Esta não é a primeira vez que a comunidade quilombola de Bombas precisa lutar durante longos períodos para fazer cumprir os seus direitos.
Em 2002, a Associação dos Remanescentes do quilombo de Bombas, solicitou ao Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) seu reconhecimento como quilombo, o que só aconteceu 12 anos depois.
Foi em novembro de 2014, nove meses após a Defensoria Pública do Estado entrar com outra ação judicial, esta pedindo reconhecimento imediato do território, que esse direito foi assegurado à comunidade.
Agora, os quilombolas de Bombas buscam a titulação definitiva do território, direito exercido a apenas seis das 36 comunidades quilombolas do Vale do Ribeira.
Fernando Prioste explica que a lentidão no cumprimento das ações judiciais também é uma manifestação do racismo arraigado no aparato estatal e na sociedade brasileira.
“A ausência da estrada, a demora em cumprir a decisão judicial e todas as demais dificuldades vivenciadas pela comunidade quilombola de Bombas estão estruturadas a partir do racismo. As estruturas de poder do Estado de São Paulo não estão direcionadas, minimamente, para viabilizar a quilombolas condições de vida que o Estado oferece à parcela branca da população. Nas lutas pelo combate ao racismo, as comunidades quilombolas já obtiveram muitas conquistas, inclusive o direito de serem tratadas e vistas pelo Estado como quilombolas, assim como o direito constitucional à titulação definitiva de suas terras. Mas ainda há muito a ser feito para efetivamente garantir direitos e superar o racismo”.
O futuro pede passagem
Os quilombolas também denunciam que a dificuldade em acessar serviços básicos, como educação, saúde e emissão de documentos, têm contribuído para uma mudança na ocupação do território tradicional.
O Quilombo de Bombas já contou com 90 famílias no território. Hoje, 24 núcleos familiares residem na comunidade e muitas construções ficaram vazias.
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Casa de pau a pique abandonada no Quilombo Bombas há quase quatro décadas|Júlio César de Almeida/ISA
“Nós vemos pessoas crescerem, pessoas irem embora. A sensação é ruim porque você sabe que a pessoa tá numa esperança de ver aquilo acontecer. Você fala ‘Pô, fulano tava tão animado, será que vai acontecer o mesmo comigo?’. E tem aquele que morre e não viu cumprir, é pior ainda. Aí dói um pouco”, lamenta Edmilson.
Apesar da luta, ele tem confiança de que a construção da estrada permitirá o retorno de muitas famílias quilombolas que hoje vivem na cidade, e com isso o crescimento da população e a preservação de sua cultura e tradição ancestral.
“Mesmo com as dificuldades, pra nós é um orgulho ser quilombola. [...] Com a construção da estrada muitos vão permanecer aqui, o desejo deles é de permanecer”.
Sem quilombo, não tem quilombola
Rodrigo Marinho Rodrigues da Silva, da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EAACONE), lembra que o processo histórico de colonização no Brasil levou a uma simplificação do olhar da sociedade sobre as comunidades quilombolas, o que desconsidera suas tradições.
“É fácil ver essas coisas num bate-pronto ‘não tá dando certo, tira a pessoa de lá’, mas isso desconsidera toda a memória e identidade de um povo. A questão quilombola foi reconstruída no Brasil a partir do espaço territorial, porque é nesses espaços que essas comunidades conseguem desenvolver todo o bojo de diversidade cultural que a ancestralidade nos deixou.”
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Rafaela Miranda, do Quilombo Porto Velho, e Rodrigo Marinho, do Quilombo Ivaporunduva, na sede da EAACONE em Eldorado (SP)|Júlio César de Almeida/ISA
Rafaela Miranda, advogada popular da EAACONE, destaca que a vivência quilombola e a preservação dessa cultura ancestral depende da relação dos moradores entre si e com seu território tradicional.
“A gente tá buscando isso, que a gente possa ser respeitado, possa estar permanecendo naquilo que nos faz bem, que é estar no território. O quilombo não existe sem o território e a gente também não existe sem as pessoas que estão ali”.
Ela também lembra que os moradores do Quilombo Bombas, assim como os de tantas outras comunidades quilombolas que se encontram no caminho até Iporanga, tem uma relação com o território que ultrapassa os limites estabelecidos durante os processos de reconhecimento dos quilombos.
A divisão dos territórios e o estabelecimento de regras para uso e ocupação destas áreas não é uma invenção quilombola, povo marcado pela forte presença da tradição oral, mas uma herança dos processos de colonização ocorridos em África.
“Antigamente, nossa dinâmica comunitária era diferente. Eu não vivi isso, mas meus pais viveram. O nosso povo sempre foi muito itinerante, era uma troca entre os territórios. A instituição do PETAR deixou vários passivos para as comunidades, dentre eles, que acabaram separando os territórios, o que também gerou distanciamento entre as comunidades. Hoje, a articulação é via estrada, e quando não tem esse acesso, (isso) fica muito prejudicado”.
Rafaela ainda ressalta que a resistência da população quilombola passa pela permanência no território, preservação das dinâmicas sociais existentes e garantia de autodeterminação das comunidades quilombolas enquanto povo.
“A (construção da) estrada de Bombas é uma luta de todos nós. [...] O povo quilombola é um dos primeiros povos contra-coloniais do Brasil. É um grupo histórico, e de futuro, porque a gente continua aqui, reafirmando e continuando isso”.
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Desde a infância, Suzana Pedroso do Carmo vive no Território Quilombola de Bombas, no município de Iporanga (SP), com o pai, João Fortes do Carmo, a mãe e três irmãos e ali se criou rodeada por um dos maiores maciços de Mata Atlântica do país. “Aqui cê não tem barulho, é só sossego, tudo natural. O jeito de você levantar de manhã e ver as coisas é completamente diferente. Aqui a gente se sente longe de perigo”.
A partir do convívio com os mais velhos e com os outros moradores do quilombo, colecionou saberes ancestrais sobre o manejo do solo, além de práticas culturais centenárias, que hoje ajudam no sustento da família e na preservação do bioma. “A gente vai aprendendo aos poucos, o dia a dia ensina a fazer bastante coisa. Fazer fogão, fazer pilão, essas coisas que a gente usa aqui no sítio”.
Há tempos, o trabalho na roça divide espaço com a criação de animais, o cuidado com os filhos e a coleta de sementes. “Sempre gostei de catar semente, catava pra guardar e para as crianças brincar com elas, principalmente o Guapuruvu, que a criançada jogava pra cima”.
Há cerca de três anos, uma oportunidade permitiu transformar seu conhecimento sobre as árvores da região em alternativa de renda. Hoje, Suzana é uma dos cerca de 60 coletores quilombolas da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, uma iniciativa que contribui com a proteção da Mata Atlântica e o trabalho das comunidades tradicionais.
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As mulheres representam mais da metade dos coletores e coletoras quilombolas da Rede de Sementes do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
“Eu sei onde tem pé de árvore e cada um tem a época certa de coletar. Se eu tô no caminho [de casa], eu tô coletando. Se eu vou passando o caminho da roça e acho uma semente interessante, já vou coletando”.
Nas andanças pelo território em busca das sementes, tem a companhia do filho caçula, que aprende, desde cedo, sobre o cuidado com a floresta. “Ele também, desde pequenininho já cata semente. Se você for no mato com ele, já vai achando semente no chão. Às vezes nem é de coletar, mas eu incentivo, a criançada gosta”.
Após a coleta, as sementes são separadas e passam por um processo de limpeza. O transporte até a cidade mais próxima é feito por burro, porque a trilha de 10km que dá acesso ao quilombo é precária e estreita.
Em 2015, uma ação judicial determinou que o Estado de São Paulo construísse uma estrada alternativa de acesso ao Quilombo Bombas, porém, oito anos depois, a obra ainda não saiu do papel.
“Tem que levar no animal, porque nas costas não tem como. A gente sabe também que judia dele, porque cansa, mas a gente não tem outro recurso”.
Em 2022, a comunidade de Bombas entregou mais de 220 Kg de sementes para a Rede de Sementes do Vale do Ribeira. Somente em uma única entrega, feita em março deste ano, 40 kg de sementes foram transportados por burros na trilha.
“Precisa de qualquer coisa na cidade, tem que levar o animal. Se tivesse essa estrada, [ele] não precisava sofrer”.
Além de cansar os animais, a trilha existente coloca em risco a vida dos moradores, sobretudo de grávidas, idosos e crianças. Durante a gravidez, Suzana chegou a levar oito horas para atravessar o caminho. Ao final, percorria ainda outros 5 km a pé para chegar ao posto de saúde da cidade.
Após o parto, precisou ficar hospedada na casa de parentes, porque o esforço excessivo para voltar para casa poderia prejudicar a recuperação no pós-operatório. “Chegava até uma meia altura, as pernas não aguentavam mais. Eu andava um pouquinho e parava. A criança começava a endurecer na barriga, tinha que sentar para descansar”.
Ela também conta que, sem apoio do poder público, os moradores precisam contar uns com os outros para fazer a retirada das gestantes em macas improvisadas com lençóis pela trilha precária. “A minha mãe perdeu a criança faltando 15 dias pra completar oito meses. Deu hemorragia e até ir de casa em casa chamar o povo... quase que ela morreu também”.
Ao relembrar do dia em que uma cobra picou seu filho, disse sentir medo. Para ela, sobreviver no quilombo em situações de emergência é questão de sorte. "A prefeitura não ajuda, é totalmente isolado. Não dá tempo de chegar, sorte que Deus é bom. [...] Quando a cobra mordeu meu filho, liguei pra ambulância e nada. Sorte que minha irmã ficou sabendo e veio buscar".
Educação e titulação territorial quilombola
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Território Quilombola de Bombas tem duas escolas multisseriadas: uma em Bombas de Baixo (foto) e a outra em Bombas de Cima|Júlio César Almeida/ISA
Na luta pela construção da estrada e na defesa de outros tantos direitos, Suzana é movida pelo cuidado com o futuro das crianças. Em 2018, atuou ativamente na mobilização da comunidade por uma educação quilombola, ancestral e diferenciada, exercida dentro do território tradicional, conforme orientação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.
“Foi uma luta pra nós. Fomos partir pra justiça pra vir essa aula aqui, do estadual, para as crianças. Eles queriam parar até mesmo o municipal. Daí eu falei ‘a escola aqui, jamais vai ser fechada, porque nós não vamos deixar. Os nossos não vão sair daqui pra estudar na cidade’.”.
Atualmente o Território Quilombola de Bombas possui duas escolas multisseriadas: uma na comunidade Bombas de Baixo e a outra na comunidade Bombas de Cima, separadas por cerca de uma hora e meia de caminhada em trilha íngreme e com atoleiros, o que dificulta o acesso dos professores e alunos, bem como a chegada dos materiais didáticos.
“Conseguimos (a escola) aqui para baixo e só depois lá pra cima. As coisas é feito meio de qualquer jeito. Eu até fiz uma escrita, mandei lá para São Paulo, porque no ano passado, tava chegando no meio do ano e as crianças não tinha livros. Nem do municipal, nem do estadual”.
Aos 37 anos, Suzana percebe a luta por direitos para além de uma conquista única. Para ela, a construção da estrada proporciona muito mais do que um acesso pras pessoas: abre caminho para tantos outros sonhos de uma vida melhor. “Imagina uma estrada aqui, melhorava a escola, [criava] um postinho de saúde no bairro. [...] Tô defendendo o meu direito, o direito dos meus filhos e dos filhos dos outros também”.
Além da construção da estrada, Suzana pede pela titulação definitiva do território e pela desafetação do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR), a ele sobreposto. “Eu acredito que se fosse para beneficiar o parque, ou sei lá, até mesmo uma mineradora, eles fazia estrada até por cima das árvores, por debaixo da terra. Eles estão cada vez mais oprimindo nós, para que nós venha a desistir. Só que nós não vai desistir”.
Com uma postura corajosa, reconhece que ainda há muita luta pela frente e diz que não pensa em abrir mão do território tradicional. “Eu gosto daqui, não consigo viver em outro lugar. Aqui a gente se sente livre. Aqui a gente planta nosso feijão, nosso arroz, a rama de mandioca. Aqui posso ter minha horta. O nosso lugar é aqui”.
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Suzana do Carmo, do Quilombo Bombas de Cima, prepara almoço no fogão à lenha|Júlio César Almeida/ISA
Criação de animais no Quilombo Bombas de Cima, no Vale do Ribeira (SP)|Júlio César Almeida/ISA
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Maria Tereza Vieira: semeando o futuro de territórios ancestrais
#ElasQueLutam! Liderança atuante na Cooperquivale e na Rede de Sementes do Vale do Ribeira luta pela preservação da Mata Atlântica e pela garantia dos direitos quilombolas
Coletora Maria Tereza Vieira, do quilombo Nhunguara, durante Encontro de Governança dos Coletores do Vale do Ribeira, em 2019|Claudio Tavares/ISA
Desde a primeira infância, Maria Tereza Vieira semeia o futuro do seu povo. Na comunidade em que nasceu, o Quilombo Sapatu, no município de Eldorado (SP), as crianças acompanhavam os pais no plantio das roças tradicionais. Semente por semente, ela contribuiu com o trabalho da mãe, que criou e sustentou a família por conta própria.
Depois de colhidos os alimentos, ela e os irmãos ajudavam no preparo da refeição. Ela recorda do que aprendeu debulhando feijão e socando arroz no pilão com a família.
“É diferente de agora. Agora tá tudo ali pros nossos filhos, é só pegar e fazer. [...] Tudo isso fez a gente crescer mais forte, todo esse aprendizado lá atrás colaborou para eu, hoje em dia, dar conta de muitas coisas”, diz.
Quando se casou, mudou-se para o Quilombo Nhunguara, onde vive a família do ex-marido. Os conhecimentos transmitidos pelas gerações anteriores se tornaram inspiração quando, alguns anos após o nascimento da filha caçula, passou por uma separação.
“Essa imagem da minha mãe, de como ela fazia, ficou na minha cabeça. [...] Eu consegui cumprir meu papel [de mãe], mas foi por tudo isso que eu aprendi lá atrás. Eu não me apavorei e pensei ‘se a situação ficar um pouco mais difícil por aqui, eu sei como fazer’.”
Ser quilombola no Século XXI
Ainda carregada de uma nostalgia da infância no quilombo, Maria Tereza destaca que muita coisa mudou na rotina dos quilombos do Vale do Ribeira, sobretudo pela chegada de novas tecnologias. “Muitas vezes eu saía para trabalhar e deixava o feijão lá cozinhando no fogão a lenha, cuidando daquela panela para não queimar, controlando com a lenha e não com o gás. Hoje em dia todo mundo tem fogão”.
Esse novo cenário permite que seja destinado mais tempo para o cuidado com a floresta e para a articulação política, de modo que a cultura e o conhecimento ancestral das populações quilombolas no Brasil fortaleçam a luta por direitos também fora das comunidades.
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Maria Tereza Vieira faz o beneficiamento de sementes nativas|Bianca Lanu
A agricultora lembra que já foi questionada sobre seus olhos claros, a partir do olhar de quem julga haver um padrão estético comum para a população quilombola. “Teve pessoas que me fez essa pergunta, se eu realmente sou quilombola. Eu respondo para eles que eu tenho certeza que sou quilombola, porque tudo é quilombola. Meus parentes, bisavós, é tudo família do quilombo, tudo residiu nessa região nossa e são quilombolas. Em momento algum eu não me considerei quilombola por isso”.
Esses espaços, inicialmente ocupados enquanto resistência frente à escravidão e à colonização, são hoje o lugar da liberdade e da justiça, marcado por saberes ancestrais no cuidado com as pessoas e com a terra. “Geralmente quem não conhece aquele mundo, imagina que o quilombo é aquela coisa de cem anos atrás”, afirma.
A luta é coletiva
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Coletores de sementes Maria Tereza Vieira e João da Mota, em lançamento do livro 'Do Quilombo à Floresta', em São Paulo|Claudio Tavares / ISA
Conforme os filhos foram crescendo, Maria Tereza Vieira despertou para a luta por direitos das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira.
A agricultora decidiu terminar os estudos no colegial e passou a participar ativamente das reuniões da associação de moradores da comunidade em que mora e da Rede de Sementes do Vale do Ribeira.
A vida em meio a um dos maiores maciços preservados de Mata Atlântica do país é marcada pela diversidade do bioma. No Vale do Ribeira, Maria Tereza realiza a coleta e beneficia sementes florestais nativas junto a outras famílias quilombolas.
“Por onde a gente anda tem muita semente. Todo local que a gente olha, a gente vê as sementes. Têm facilidade para coletar as sementes, então isso está chamando muito a atenção das mulheres”.
“Nós temos como viver com a mata em pé e é isso que nós queremos. O povo quilombola sabe muito bem como fazer isso, temos muitas sabedorias e com esse guia queremos que todos entendam isso: como saber respeitar cada espécie”, comentou na ocasião.
O trabalho de 60 coletores e coletoras quilombolas contribui para a preservação de áreas degradadas na Mata Atlântica, geração de renda para as comunidades e maior autonomia financeira das mulheres, que hoje representam 60% dos membros da Rede de Sementes do Vale do Ribeira.
“A gente vê que isso tá fazendo muita diferença na vida delas, porque vendendo essas sementes, [elas] têm um dinheiro extra”.
Em 2023, a liderança do quilombo Nhunguara se tornou coordenadora-adjunta da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), que dá assistência ao escoamento e comercialização dos alimentos produzidos pelos agricultores quilombolas do Vale do Ribeira (SP).
Essa articulação em rede e nas associações fortalece a luta política das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira pelo direito às roças, ao território e pelo combate ao racismo ambiental.
“Um trabalho, para dar certo, envolve outras pessoas junto com a gente, para o trabalho progredir, caminhar, expandir. E é isso que a gente quer. A gente tem que lutar, tem que desafiar, tem que se unir. E é isso que a gente faz quando vê que a coisa vai complicar, a gente se reúne com as outras comunidades, em movimento no local e se precisar até em Brasília”.
A resistência continua
Ao relembrar a infância no Quilombo Sapatu, Maria Tereza Vieira ressalta que hoje os jovens têm acesso a tecnologias e oportunidades de estudo que contribuem para a proteção territorial, para a organização das comunidades e para a garantia dos direitos assegurados pela Constituição Federal.
“A faculdade tá voltada mesmo pros descendentes do quilombo. Então, eles voltam pro território e começam a valorizar o nosso local, a nossa convivência: ‘foi através do quilombo que eu consegui estudar. Então, tenho que fazer alguma coisa por esse povo’”.
Ainda há muito a ser trilhado para que a juventude se engaje, de fato, na luta das comunidades, mas a participação dessa população já contribui no cotidiano dos quilombos do Vale do Ribeira.
Maria Tereza toma como exemplo a filha, Liliane, que se formou em Biologia e hoje trabalha na Cooperquivale. “Eu tenho certeza que vão aparecer vários outros como ela daqui para frente e a coisa só vai se multiplicar. Eu acho que vai fortalecer muito as comunidades por causa disso”.
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Comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP) cobram titulação dos territórios
Em reunião com representantes do Estado de São Paulo, lideranças pediram a elaboração de um Plano Estadual de Regularização Fundiária para os territórios quilombolas
Moradores de 30 territórios quilombolas oficialmente reconhecidos aguardam titulação pelo Estado de São Paulo | Leticia Ester de França / EAACONE
**Texto alterado às 12:10 do dia 21/06/2023, atualizando a data da nova reunião com o ITESP
Em reunião na semana passada na sede da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), 30 lideranças quilombolas de 18 comunidades do Vale do Ribeira (SP) questionaram a demora na conclusão dos processos de titulação dos territórios e a frequente paralisação desses procedimentos mediante a renovação de cargos de gestão da instituição.
“Tem muita demora. Nós precisamos de um trabalho que dê realmente continuidade, não pode parar”, defendeu Edvina Silva (Dona Diva), do Quilombo Pedro Cubas de Cima.
Em São Paulo, o ITESP é responsável pela identificação e titulação das terras quilombolas sobrepostas a terras públicas estaduais para fins de regularização fundiária, assim como pela assistência técnica e apoio ao desenvolvimento socioeconômico das comunidades.
Com a reorganização administrativa do governo estadual após a eleição de Tarcísio de Freitas (Republicanos), o instituto foi retirado da Secretaria de Justiça e realocado junto à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (SAA).
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Da esquerda para a direita, Edson Fernandes, Andrea João, Guilherme Piai e Thiago Francisco Gobbo | Leticia Ester de França / EAACONE
A reunião contou com a participação de representantes do ITESP, na figura do Diretor Executivo, Guilherme Piai Filizzola, da Assessora de Quilombos, Andrea Aparecida Prestes João, do Diretor Adjunto de Políticas de Desenvolvimento, Edson Alvez Fernandes, e do Diretor Adjunto Recursos Fundiários, Thiago Francisco Neves Gobbo, além do Coordenador de Políticas para a População Negra da Secretaria Estadual de Justiça, Robson Silva Ferreira e de representantes do Instituto Socioambiental (ISA) e da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EEACONE).
A ausência não justificada do Secretário de Agricultura e Abastecimento do ITESP, que havia confirmado presença, foi considerada desrepeitosa pelas representações quilombolas, assim como a do Diretor do ITESP, que deixou a reunião antes do término para conceder uma entrevista.
O Estado de São Paulo possui uma legislação própria para a titulação de territórios quilombolas desde 1999 mas, até o momento, apenas seis comunidades quilombolas foram parcialmente tituladas e outras 36 comunidades oficialmente reconhecidas lutam pela garantia final de seus direitos territoriais. Nesse ritmo de trabalho, o governo de São Paulo levaria 144 anos para titular parcialmente todos os territórios quilombolas do estado.
“Quanto tempo o ITESP levará para titular todos os nossos territórios? Quantas gerações de quilombolas passarão até que tenhamos nossos territórios titulados integralmente? A luta pela conclusão dos processos administrativos para titulação desses territórios tradicionais já se estende por mais de 20 anos e, até o momento, não foi adotada nenhuma medida administrativa significativamente apta a dar andamento a esses processos”, questiona a EEACONE em nota nas redes sociais.
“Já se passaram 135 anos da abolição formal e inconclusa da escravidão, assim como mais 35 anos da promulgação da Constituição Federal que reconheceu o direito das comunidades quilombolas à titulação de seus territórios. Esse estado inconstitucional de coisas viola frontalmente o direito à duração razoável do processo previsto no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal”, ressalta Fernando Prioste, advogado popular no ISA.
As lideranças lembraram que, uma vez titulados, os territórios que têm áreas ocupadas por terceiros precisam passar pelo processo de desintrusão. Com todos os documentos referentes ao território em mãos, quilombolas do Vale do Ribeira têm um instrumento de combate ao racismo ambiental.
Os quilombolas também cobraram a elaboração de um Plano Estadual de Regularização Fundiária de todos os territórios quilombolas do estado, com metas de atuação e prazos definidos, e o estabelecimento de estabelecimento de reuniões periódicas com as representações quilombolas para a continuidade do diálogo sobre a titulação dos territórios.
Os representantes do ITESP também foram alertados sobre o dever de consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas, como o estabelecido pelo Protocolo de Consulta Prévia dos Territórios Quilombolas do Vale do Ribeira.
A Consulta prévia é direito fundamental de povos e comunidades tradicionais, segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e fundamenta a garantia de outros direitos, como a autodeterminação dos povos e o território tradicional.
Ao final da reunião, Guilherme Piai se comprometeu a trabalhar pela recomposição da equipe técnica e do orçamento do ITESP, e pela retomada da conversa em um novo encontro, que ficou marcado para o dia 16 de agosto, desta vez, no Vale do Ribeira.
“Os representantes do ITESP presentes deram respostas vagas, afirmando que já solicitaram o aumento de orçamento de maneira geral e que estão para fazer parceria com a iniciativa privada, sem detalhar como isso se daria, mas se comprometeram a retomar as discussões do Conselho Gestor para dar andamento ao solicitado”, registra a EEACONE na publicação.
No mesmo dia, os representantes das associações quilombolas do Vale do Ribeira se encontraram com representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Reunião produtiva com o INCRA
**Nota publicada pela EAACONE em 07/06/2023
Fomos bem recebidas no INCRA pela Superintendente Sabrina Diniz, assim como por Mauro Baldijão, chefe da Divisão Fundiária do INCRA, Elvio Motta, da Coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em São Paulo e Luciano Delmondes de Alencar, chefe de divisão do Escritório Estadual MDA.
Expusemos ao INCRA nossas demandas, apontando a pauta da titulação dos territórios tradicionais como prioritária. Destacamos que as ações de regularização fundiária não estão avançando e contam com retrocessos. Nos últimos seis anos quase nada foi feito.
Como prioridade, demandamos a retomada das mesas de diálogo entre as comunidades e o INCRA, que são espaços onde o instituto e as comunidades se reúnem, periodicamente, para tratar do andamento dos processos de titulação. Também pleiteamos a realização de um Plano Estadual de Titulação dos Territórios Quilombolas, onde se aponte a demanda existente e quais seriam as ações necessárias para que todos os territórios quilombolas sejam titulados em um prazo razoável, como determina a Constituição Federal. Também demandamos o acesso à políticas públicas que auxiliem na produção agrícola, como acesso à crédito e à assistência técnica rural.
O INCRA sinalizou de forma positiva quanto às demandas apresentadas, afirmando que entende ser necessária e adequada a retomada das mesas de diálogo, e que a elaboração de um plano estadual de titulações, com objetivos, metas e indicadores auxilia a organizar a atuação do Estado e o monitoramento do andamento das políticas públicas pelas comunidades.
A Superintendente do INCRA afirmou que a instituição passa por grandes dificuldades, que vão da ausência de recursos financeiros para as ações à desestruturação da organização administrativa da instituição. Mas essas dificuldades devem ser superadas em breve, e que a transparência, o diálogo e o compromisso com a pauta quilombola serão eixos estruturantes das ações.
As representações do MDA presente na reunião afirmaram que o Ministério está em processo de estruturação, e que deverá ser aberto um escritório do MDA no Vale do Ribeira, para viabilizar diálogos e a realizações de ações através da retomada dos territórios da cidadania.
Avaliamos que essa primeira conversa com o INCRA e o MDA foi produtiva, mas que de agora em diante as ações precisam ser retomadas para que os direitos possam ser implementados na prática.
Reunião na sede do ITESP, em São Paulo, reuniu 30 lideranças de quilombos do Vale do Ribeira | Leticia Ester de França / EAACONE
Fernando Prioste fala sobre o direito constitucional das comunidades quilombolas | Misael Henrique Rodrigues Dos Santos / Rede de Comunicadores do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira
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Museu Afro Brasil Emanoel Araujo e Quilombo São Pedro inauguram exposição em parceria
Inspirada nos livros “Roça é Vida” (2020) e “Na companhia de Dona Fartura: uma história sobre cultura alimentar quilombola” (2022), mostra acontece de 24 de junho a 24 de setembro de 2023, em São Paulo
No dia 24 de junho, o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, instituição da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, inaugura a exposição “Roça é Vida”, resultado de um processo de curadoria compartilhada com a Associação dos Remanescentes de Quilombo de São Pedro que, partindo do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ), reconhecido como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), apresenta destaques da vida dos quilombolas da comunidade Quilombo São Pedro, do município de Eldorado – SP, no Vale do Ribeira, região considerada Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO.
Inspirada nos livros Roça é Vida (2020) e Na companhia de Dona Fartura: uma história sobre cultura alimentar quilombola (2022), propostos, escritos e ilustrados por pesquisadores e educadores quilombolas e aquilombados do território, a exposição é composta pelos originais e ampliações das aquarelas que ilustram os livros, fotografias, objetos de uso cotidiano, objetos da coleção da Associação, poesia, sementes crioulas e um vídeo produzido especialmente para a mostra.
Iniciada em 2017, a parceria entre a Associação Museu Afro Brasil e a Associação dos Remanescentes de Quilombo de São Pedro integra as ações do Programa Conexões Museus SP, do Sistema Estadual de Museus de São Paulo – SISEM-SP, e visa contribuir com a preservação e a extroversão do patrimônio, da memória e da cultura do Quilombo São Pedro, a partir da oferta de conteúdos e experiências com procedimentos museológicos e de produção cultural.
O Museu Afro Brasil Emanoel Araujo é uma instituição da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo administrada pela Associação Museu Afro Brasil – Organização Social de Cultura. Inaugurado em 2004, a partir da coleção particular do seu diretor curador, Emanoel Araujo (1940-2022), o museu é um espaço de história, memória e arte.
Localizado no Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, dentro do mais famoso parque de São Paulo, o Parque Ibirapuera, o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo conserva, em cerca de 12 mil m2, um acervo museológico com mais de 9 mil obras, apresentando diversos aspectos dos universos culturais africanos e afro-brasileiro e abordando temas como religiosidade, arte e história, a partir das contribuições da população negra para a construção da sociedade brasileira e da cultura nacional.
O museu exibe parte deste acervo na exposição de longa duração e realiza exposições temporárias, atividades educativas, além de uma ampla programação cultural.
Sobre o Quilombo São Pedro
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Livro 'Na companhia de Dona Fartura' retrata dia a dia das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira
O Quilombo São Pedro compreende uma área de 4.692 hectares do município de Eldorado, no Vale do Ribeira, região paulista que possui a maior concentração de Mata Atlântica do Brasil e que desde 1999 é considerada Patrimônio Natural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
O território abriga 56 famílias e uma diversa biodiversidade, e possui residências em alvenaria, sede da Associação Quilombo São Pedro, roças de coivara, horta comunitária, rios e nascentes, casas de taipa, casa de farinha em taipa, campo de futebol de várzea, capela, bar e coleção de objetos.
É vizinho aos quilombos Ivaporunduva, Galvão, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima e ao Parque Estadual Intervales.
Para além da preservação do Sistema Agrícola Tradicional Quilomboa (SATQ), reconhecido em 2018 como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), os quilombolas organizam festividades, rodas de memórias sobre as lutas e a conquista do direito às terras.
Também se destacam pela formação universitária, de seus jovens e adultos, e pelo engajamento em instituições, movimentos, projetos e eventos como o Coletivo Mulheres Quilombolas na Luta, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EAACONE), o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira, o Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim, o Movimento dos Ameaçados por Barragem (MOAB), o GT da Roça, a Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, em Eldorado (SP), e o projeto “Do quilombo para a favela”.
Este último, nascido na pandemia de covid-19, foi alternativa para o escoamento dos produtos agrícolas orgânicos objetivando menor impacto na economia das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, diante o fim da venda dos produtos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do Ministério da Educação.
A feira de produtos orgânicos Quilombo&Quebrada nasceu em 2022 para mostrar a necessidade de políticas públicas alimentares adequadas que valorizem a produção das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, no sudeste de São Paulo.
Em confluência, as Mulheres de Orì, consultoria de inovação ligada ao empreendimento de impacto social Kitanda das Minas, estabeleceu uma parceria com a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) para comercializar os alimentos das comunidades quilombolas. A cooperativa recebe apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA) para organizar e escoar sua produção.
A conexão que propõe o Quilombo&Quebrada contribui com o combate a desigualdades alimentares ligadas pelo racismo estrutural, que existem tanto nos quilombos quanto nas periferias urbanas.
Conheça em 8 imagens a iniciativa e participe das feiras:
1- Os alimentos comercializados na feira Quilombo&Quebrada são alimentos ancestrais livres de veneno produzidos pelos quilombolas do Vale do Ribeira (SP) | Júlio Cézar/ISA
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2- Desde 2018, o Sistema Agrícola Quilombola é reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial brasileiro | Júlio Cézar/ISA
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3- A produção de alimento quilombola faz parte de um conjunto de saberes e técnicas que compõem esse sistema de produção em convivência com a Mata Atlântica | Júlio Cézar/ISA
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4- O Quilombo&Quebrada é uma construção de protagonismo na encruzilhada entre a comunidade negra rural e urbana | Júlio Cézar/ISA
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5- Os alimentos vendidos na feira são totalmente orgânicos e com preços acessíveis para o bolso da população periférica | Júlio Cézar/ISA
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6- Os alimentos comercializados na feira incluem variedades da Mata Atlântica tradicionalmente consumidas nos quilombos do Vale do Ribeira (SP) | Júlio Cézar/ISA
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7- Em 2023, a feira acontecerá quinzenalmente entre Jardim Lapena e Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo | Júlio Cézar/ISA
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8- A segunda edição da feira Quilombo&Quebrada de 2023 está marcada para o dia 3/6, um sábado, no Jardim Lapena, zona leste de SP. Siga as redes sociais da @kitandadasminas, @cooperquivale e @socioambiental e acompanhe as próximas edições |Júlio Cézar/ISA
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STF impede que São Paulo conceda territórios tradicionais à iniciativa privada
Decisão foi tomada nos autos da ADI nº 7008, fruto de articulação do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira (FPCTVR)
No dia 22 de maio, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que concessões de Unidades de Conservação à iniciativa privada, pelo Estado de São Paulo, não podem incidir sobre territórios indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais. O STF também decidiu que povos indígenas e comunidades tradicionais devem, obrigatoriamente, serem consultadas quando diretamente atingidas por ocuparem regiões próximas a Unidades de Conservação que possam ser concedidas à iniciativa privada.
A decisão foi tomada nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7008, ação essa fruto de articulação do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira (FPCTVR) que, em 2016, apresentou representação à Procuradoria Geral da República (PGR) ante ao quadro de violações de direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais por ocasião da edição da Lei Estadual nº 16.260/2016.
A referida lei autorizou o Estado de São Paulo a conceder à iniciativa privada serviços de ecoturismo e a exploração comercial madeireira e de subprodutos florestais, em 25 Unidades de Conservação ambientais estaduais. A representação elaborada pelo Fórum e endereçada à PGR noticiou que a edição da Lei Estadual nº 16.260/2016 se deu em desrespeito ao direito de consulta livre, prévia e informada, previsto no art. 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Na representação, o Fórum também indicou haver sobreposições entre Unidades de Conservação e territórios indígenas e de povos e comunidades tradicionais, pedindo à PGR que adotasse providências junto ao STF para garantir seus direitos coletivos.
Segundo o Fórum, a área de sete das 25 Unidades de Conservação listadas na Lei nº 16.260/2016 estão, parcial ou totalmente, sobrepostas a 18 territórios tradicionais de indígenas, quilombolas, caboclas e caiçaras.
O Parque Estadual Intervales e o Parque Estadual Carlos Botelho estão sobrepostos à Terra Indígena Peguaoty. O Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira está sobreposto aos territórios da comunidade quilombola de Bombas e das comunidades caboclas de Ribeirão dos Camargos e Sítio Novo.
Já o Parque Estadual Caverna do Diabo está sobreposto aos territórios das comunidades quilombolas de Piririca e de Praia Grande. Por sua vez, o Parque Estadual Serra do Mar está sobreposto à Terra Indígena Tenondé Porã, à Terra Indígena Rio Branco de Itanhaém, à Terra Indígena Aguapeú, bem como ao território do quilombo da Fazenda.
O Parque Estadual do Jaraguá está sobreposto à Terra Indígena Jaraguá, e o Parque Estadual da Ilha do Cardoso está sobreposto à Terra Indígena Pakurity, bem como aos territórios das comunidades caiçaras do Pereirinha/Perequê, Cambriú, Foles, Marujá, Nova Enseada da Baleia, e Pontal do Leste.
Com a decisão do STF, o Estado de São Paulo fica proibido de realizar concessões que incidam sobre os territórios dessas comunidades, uma vez que estão sobrepostos a Unidades de Conservação listadas na Lei nº 16.260/2016. Ao mesmo tempo, se o Estado de São Paulo construir projetos de concessões nessas Unidades de Conservação, mesmo que os projetos não estejam sobrepostos aos territórios tradicionais, devem ser realizadas consultas prévias às comunidades tradicionais do entorno.
Do ponto de vista prático, a decisão do STF impede, por exemplo, que o Estado de São Paulo conceda à iniciativa privada atrativos turísticos localizados no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR) e que estão localizados no território da comunidade tradicional Cabocla de Ribeirão dos Camargos.
Em 2021, o Estado de São Paulo lançou consulta pública a respeito da proposta de concessão do PETAR à iniciativa privada. Após pressões da população local, das comunidades tradicionais, da troca de comando no Governo e em função de decisões judiciais, o projeto encontra-se paralisado.
O mesmo e entendimento se aplica a outras situações em que há conflitos fundiários entre o Estado de São Paulo e as comunidades tradicionais, em especial nas situações em que o Estado resiste a reconhecer a existência e os direitos de populações, como nos casos do Parque Estadual do Jaraguá, no Parque Estadual da Ilha do Cardoso e no Parque Estadual da Serra do Mar.
Apesar da decisão de referir a uma lei paulista, não há dúvidas de que a decisão do STF impacta situações semelhantes por todo o país. Isto, uma vez que a decisão unânime do STF impedindo a concessão de Unidades de Conservação à iniciativa privada nas porções sobrepostas a territórios tradicionais se aplicará em qualquer caso semelhante, a não ser que o STF mude seu entendimento.
No entanto, mais do que vedar ao Estado que conceda o que não é dele à iniciativa privada, as comunidades tradicionais ainda têm muitos desafios, e a prioridade é a regularização fundiária dos territórios tradicionais. As comunidades tradicionais deverão ir ao STF cobrar avanço no estado inconstitucional de morosidade na regularização fundiária, ou o Estado sairá do estado de hibernação no reconhecimento de direitos para cumprir a lei e, enfim, titular os territórios tradicionais?
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Feira de produtos quilombolas volta para politizar paladares contra o racismo alimentar nas periferias de SP
Primeira edição de 2023 da Quilombo&Quebrada vai levar alimentos tradicionais dos quilombos do Vale do Ribeira (SP) a preços acessíveis em Cidade Tiradentes, zona leste da cidade
Osvaldo dos Santos, agricultor do Quilombo Porto Velho, entrega rapaduras e taiadas para Priscila Novaes, do Kitanda das Minas, em 2022|Roberto Almeida / ISA
O abismo entre a produção do alimento e a refeição no prato pode ser gigante, mas a solução está mais próxima do que se imagina: ela é ancestral e deve ser fortalecida enquanto política pública. Esse é o cerne da iniciativa Quilombo&Quebrada, que promove a articulação entre o movimento negro urbano e quilombola para criar pontes entre o alimento cultivado nos quilombos do Vale do Ribeira para soberania alimentar das periferias de São Paulo.
Na encruzilhada entre Quilombo&Quebrada, a insegurança alimentar não tem vez. Por isso, em 2023 o ciclo de feiras irá acontecer quinzenalmente entre Jardim Lapena, em São Miguel Paulista, e em Cidade Tiradentes, ambos na zona leste da cidade de São Paulo.
A primeira edição da feira de 2023 acontece sábado, dia 20/05 no Centro Cultural Arte em Construção, do coletivo Pombas Urbanas, em Cidade Tiradentes.
Em 2022 foram realizadas 10 feiras, que alcançaram aproximadamente 6 mil pessoas. Para Priscila Novaes, uma das idealizadores do Quilombo&Quebrada e é chef proprietária do Kitanda das Minas, o resultado da iniciativa colabora com o fomento de saúde e bem-viver da comunidade negra.
“Quando esses alimentos quilombolas orgânicos chegam pras periferias de São Paulo, promovem a saúde e bem-estar a partir do momento que aquelas famílias conseguem ter acesso a esse alimento sem veneno e realmente acessível.”
Priscila explica que os alimentos não são acessíveis para as periferias, ainda mais os orgânicos, por isso a importância dessa iniciativa.
“Hoje, os alimentos estão muito encarecidos e, por incrível que pareça, os comércios locais são aqueles que têm os altos preços. O Quilombo&Quebrada faz essa junção entre as famílias agricultoras quilombolas com a gente, - comunidade negra urbana - e nós nos sentimos privilegiadas por estar ali consumindo e comercializando aquele alimento cheio da sabedoria ancestral. E, sabemos: isso não deveria ser um privilégio mas um direito”, explica Priscila.
A iniciativa nasceu no período de enfrentamento à pandemia de COVID-19, pela necessidade de suprir a dependência de vendas fomentadas via políticas públicas fragilizadas no governo Bolsonaro, em que contratos foram rompidos, ocasionando falta de locais para escoar a produção quilombola do Vale do Ribeira.
Em confluência, as Mulheres de Orì, consultoria de inovação ligada ao empreendimento de impacto social Kitanda das Minas, estabeleceu uma parceria com a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), para comercializar os produtos alimentícios das comunidades quilombolas. A cooperativa recebe apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA) para organizar e escoar sua produção.
Desde 2018, o Sistema Agrícola Quilombola é reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como patrimônio imaterial brasileiro. A produção de alimento quilombola faz parte de um conjunto de saberes e técnicas que compõem esse sistema. Nesse sentido, além da comercialização contribuir para o fortalecimento da manutenção das florestas, das técnicas sustentáveis, agroecológicas responsáveis pelo manejo dos remanescentes da Mata Atlântica no Vale do Ribeira, também salvaguarda do patrimônio imaterial por meio da geração de renda.
Alimento para a resistência negra
A conexão que propõe o Quilombo&Quebrada contribui com o combate a desigualdades alimentares ligadas pelo racismo estrutural, que existem tanto nos quilombos quanto nas periferias urbanas. Mas o combate precisa ser efetivado também como política pública, como explica Adriana Rodrigues, assessora para sociobiodiversidade do ISA.
“A valorização das manifestações e saberes quilombolas é uma ação determinante para as identidades que constituem o país, além de prática importante para a preservação de manifestações ligadas aos povos e comunidades tradicionais”, enfatiza.
Serviço:
Feira Quilombo&Quebrada de 2023 acontecerá no 20/05 na Cidade Tiradentes (SP)
Local: Centro Cultural Arte em Construção (Pombas Urbanas)
Avenida dos Metalúrgicos 2100 - Cohab Cidade Tiradentes
Horário: 9h às 15h
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Guia de plantas da Mata Atlântica, ‘Do Quilombo à Floresta’ é lançado no Sesc Registro (SP)
Livro da Rede de Sementes do Vale do Ribeira compartilha conhecimentos tradicionais quilombolas; baixe a publicação gratuitamente
Guia de plantas da Mata Atlântica é lançando no Sesc Registro pelos coletores da Rede de Sementes do Ribeira, os agricultores João da Mota e Maria Tereza Vieira, do Quilombo Nhunguara (ambos de blusa branca), e pelos autores, Bianca Magdalena e Juliano do Nascimento|Sesc Registro / Livia Badur
A atividade reuniu coletores de sementes e técnicos do ISA em uma mesa de debates sobre restauração florestal. O Sesc Registro fica no município de Registro (SP), no Vale do Ribeira.
Organizado por Bianca Cruz Magdalena, pesquisadora em etnobotânica e mestranda em antropologia, a obra contém informações técnicas e relatos histórico-culturais quilombolas sobre os conhecimentos da plantas nativas da região.
O objetivo da publicação é apoiar o trabalho de coletores e coletoras da Rede de Sementes do Vale do Ribeira e traçar estratégias de defesa da Mata Atlântica, além de valorizar os conhecimentos de convivência com o bioma.
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João da Mota, do Quilombo Nhunguara, fala no Sesc Registro sobre seu trabalho como coletor de sementes|Giovanna Bernardes/ISA
A coletora quilombola Maria Tereza Vieira, do Quilombo Nhunguara, esteve na mesa de lançamento do guia no Sesc Registro e fez uma síntese do que ele representa para a proteção da Mata Atlântica e como os saberes tradicionais convivem com a sabedoria de viver com a floresta em pé.
“Nós temos como viver com a mata em pé e é isso que nós queremos. O povo quilombola sabe muito bem como fazer isso, temos muitas sabedorias e com esse guia queremos que todos entendam isso: como saber respeitar cada espécie”.
O livro nasceu da necessidade de registrar a experiência prática do manejo da paisagem, além de capacitar futuros coletores. Desde 2017, os integrantes da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, juntamente com moradores dos quilombos André Lopes, Bombas, Maria Rosa, Nhunguara e São Pedro, estão fazendo a diferença na preservação da Mata Atlântica.
As comunidades tradicionais quilombolas que fazem parte da Rede têm coletado sementes de espécies nativas, que são destinadas à restauração ecológica de áreas degradadas. Atualmente, a Rede conta com 60 coletores e em 2022, foram mais de duas toneladas de sementes de 98 espécies florestais, gerando uma receita de 242 mil reais em comercialização.
O guia faz a catalogação de 52 espécies vegetais da Mata Atlântica, com informações sobre as formas de coleta, beneficiamento, armazenamento e plantio das sementes florestais e os usos associados nos quilombos do Vale do Ribeira.
Para João da Mota, do Quilombo Nhunguara e coletor da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, o lançamento do guia é um marco que registra a relação dos quilombolas com a manutenção da floresta viva e a convivência com a Mata Atlântica, conhecimento ancestral que é transferido por gerações.
“Para mim é um dia muito importante no lançamento do livro porque é um conhecimento que a gente não aprendeu em nenhuma faculdade, que nenhuma faculdade ensina, mas só aqueles que recebem o conhecimento de pai pra filho. Então, esse guia ajuda, né? Tanto na parte do que a gente pode retirar de cada árvore para poder nos beneficiar, mas também a maneira que ela continue ... A floresta viva, a floresta em pé”, enfatizou João da Mota.
A publicação também destaca a importância do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ), reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), além de ser um excelente guia para conhecer e se aproximar das espécies vegetais nativas da Mata Atlântica.
O bioma tem poucas áreas contínuas conservadas. Atualmente, a Mata Atlântica está reduzida a 7% de sua área original, ou a aproximadamente 100 mil quilômetros quadrados. Desse total, 23% se situam no Vale do Ribeira.
Segundo Juliano Silva do Nascimento, um dos autores do livro e engenheiro agrônomo do ISA, a publicação terá um uso prático e irá auxiliar os futuros coletores.
“O livro registra o conhecimento praticado pela Rede de sementes no manejo das sementes, mas também registra o conhecimento de uso por essas comunidades quilombolas que praticam o manejo da mata há séculos, valorizando esse conhecimento e garantindo o repasse do conhecimento aos demais coletores, jovens e outras comunidades”, disse.