Manchetes Socioambientais
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“O encontro entre índios e brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o desequilíbrio perpétuo do mundo um pouco mais para frente, adiando assim o seu fim.”
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos fundadores do ISA
O tema "Povos Indígenas" está na origem da existência do Instituto Socioambiental. Lá se vão pelo menos quatro décadas de comprometimento e trabalho com o tema, produzindo informações para a sociedade brasileira conhecer melhor seus povos originários. Desde sua fundação, em 1994, o ISA dá continuidade ao trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que havia sido iniciado em 1980 e que, por sua vez, remonta ao começo dos anos 1970, quando o então governo da ditadura militar lançava o Plano de Integração Nacional, com forte componente de obras de infraestrutura na Amazônia, região que era então descrita pelo discurso oficial como um "vazio demográfico".
Por meio dos relatos coletados, dados produzidos e pesquisas empreendidas por uma rede de colaboradores espalhada pelas diversas regiões do País, o Cedi ajudou a derrubar essa tese. Ao dar publicidade às informações levantadas por essa rede social do tempo do telex, o Cedi colocou, definitivamente, os povos indígenas e suas terras no mapa do Brasil. Seus integrantes ainda participaram ativamente no movimento de inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e, juntamente com integrantes do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) e ativistas ambientais, fundaram o ISA em 1994.
De lá para cá, ampliando sua rede de colaboradores em todo o País, o ISA se consolidou como referência nacional e internacional na produção, análise e difusão de informações qualificadas sobre os povos indígenas no Brasil. O site "Povos Indígenas no Brasil", lançado em 1997, é a maior enciclopédia publicada sobre as etnias indígenas no Brasil, com suas línguas, modos de vida, expressões artísticas etc. O site é uma das principais referências sobre o tema para pesquisadores, jornalistas, estudantes e acadêmicos.
A atuação hoje é transversal aos territórios onde atuamos, especialmente na Bacia do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e Bacia do Rio Negro, no Amazonas e Roraima, e também envolve povos indígenas de todo o Brasil, por meio da atualização permanente do site e de seus mais de 200 verbetes, inclusão de novos textos sobre etnias emergentes e indígenas recém-contatados, além do monitoramento e cobertura jornalística sobre situações de violência e perda de direitos contra estas populações. O tema "Povos Indígenas" ainda é tratado no site "PIB Mirim", voltado ao público infanto juvenil e de educadores.
O monitoramento de Terras Indígenas também é um eixo central do nosso trabalho com o tema, e remonta à sistematização de dados e divulgação de informações iniciada pelo Cedi em 1986, e se dá por meio da produção de livros impressos e mapas temáticos sobre pressões e ameaças, como desmatamento, mineração, garimpo, obras de infraestrutura, entre outras, além do site "Terras Indígenas no Brasil".
Confira os conteúdos produzidos sobre este tema:
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Site especial voltado ao público infanto-juvenil e de educadores |
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Painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
Ministério e movimento social já avisaram que vão entrar com ações contra nova lei. Diferentemente da questão indígena, governo consegue manter maioria dos vetos sobre Lei da Mata Atlântica
O Congresso derrubou, na tarde desta quinta (14), a imensa maioria dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Lei n° 14.701/2023, o maior ataque aos direitos indígenas em décadas. Dos 47 vetos analisados pelos parlamentares, 41 foram rejeitados, por 321 votos a 137 e uma abstenção, na Câmara, e 53 votos a 19, no Senado.
Entre os retrocessos do texto da nova lei, que será agora promulgada, está o chamado “marco temporal” das demarcações das Terras Indígenas (TIs). De acordo com a tese ruralista, só teriam direito às suas terras as comunidades indígenas que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
A interpretação ignora as expulsões e violências cometidas contra essas populações, em especial nas últimas décadas. Na prática, pode inviabilizar grande parte das demarcações, por questionamentos administrativos ou judiciais.
A votação foi adiada por várias semanas. Diante de uma correlação de forças desfavorável e das promessas feitas por Lula de defender os direitos dos povos originários, o governo vinha tentando evitar uma derrota que expõe mais uma vez a fragilidade de sua articulação política e de sua base parlamentar.
Apesar dos líderes governistas terem defendido os vetos, parte da base posicionou-se contra eles, garantindo sua derrubada (veja como votou cada deputado e cada senador). O caso mais notório é o do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD-MT), que se licenciou do cargo, reassumiu o mandato de senador e votou contra o veto.
Integrantes do movimento indígena e de organizações da sociedade civil tem acusado a articulação política do Planalto de usar as pautas socioambientais, como o "marco temporal", como moeda de troca para aprovar outros projetos, que seriam mais prioritários, em especial da agenda econômica.
A votação também desafia decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou inconstitucional a tese ruralista, por 9 votos contra 2, em setembro. Na mesma decisão, os ministros da Corte também fixaram teses complementares sobre a demarcação, a exemplo da indenização pela terra nua para ocupantes não indígenas.
No mesmo dia em que o julgamento foi concluído, o Senado aprovou o PL 2.903, agora Lei 14.701, numa reação conservadora ao que oposição e ruralistas consideram ser uma usurpação pelo STF da competência dos parlamentares de decidir sobre esse e outros temas, como a descriminalização do aborto e do porte de drogas. Duas semanas depois, o presidente Lula vetou cerca de dois terços do projeto, inclusive justificando parte dos vetos com a decisão do Supremo.
Votação não é ponto final
O resultado da votação pode ser considerado uma derrota para os povos originários, os movimentos sociais e as organizações de defesa dos seus direitos, mas não é o ponto final dessa história. Pouco depois do final da votação no Congresso, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) informaram que devem entrar com ações contra o texto final da lei no STF. A referência para a análise dessas possíveis ações será o julgamento encerrado em setembro.
"A decisão do Congresso Nacional desrespeita a Constituição, os povos indígenas e o futuro do Brasil. Vamos acionar a Advocacia Geral da União para dar entrada no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, para garantirmos o cumprimento da decisão já tomada pela alta corte", disse a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.
“É um absurdo que, enquanto o mundo reconhece os povos indígenas e seus territórios como uma das alternativas para conter a crise climática [por barrarem o desmatamento], o Congresso Nacional age totalmente na contramão daquilo que precisa ser feito para conter essa crise global”, reforçou a ministra.
“A Apib reforça que direitos não se negociam e que a aprovação do Marco Temporal é ilegal”, apontou a entidade, em nota nas redes sociais. “A principal Conferência, que trata sobre mudanças climáticas, a COP 28, foi encerrada nesta semana e o Congresso Nacional mais uma vez reforça seu compromisso com a morte”, completou.
Ao longo do dia, cerca de 300 indígenas, de diferentes regiões do país, protestaram em defesa dos vetos do lado de fora da Câmara. Deputados da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Indígenas e de partidos de esquerda discursaram na manifestação. Após a votação, os manifestantes foram para a frente do Supremo Tribunal Federal (STF). Lideranças da Apib também prometeram uma onda de mobilizações contra a nova lei.
'Visão reacionária'
“O Congresso acaba de aprovar o maior retrocesso aos direitos indígenas desde a Constituinte. É lamentável que o parlamento esteja dominado por uma visão reacionária e equivocada, que quer eliminar os direitos territoriais indígenas por meio de leis inconstitucionais”, critica a advogada do ISA Juliana de Paula Batista. “Agora, a questão volta para o STF, que deve reiterar o seu compromisso com a defesa dos direitos das minorias”, pontua.
Líderes ruralistas, como o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Pedro Lupion (PP-PR), sinalizaram que pretendem reagir a uma nova decisão do STF contra o “marco temporal” por meio da aprovação de uma proposta que incorpore a tese à Constituição. O placar da votação desta quinta indica que seria possível alcançar os votos necessários: três quintos dos votos dos deputados (308) e dos senadores (49).
Respondendo ao alerta de alguns governistas de que o tema deve ir parar mais uma vez no STF, o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), reforçou o discurso de confronto com a Corte. “Nós somos um Parlamento livre e não devemos aceitar e tolerar amarras e mordaças”, disse. “Ou nós nos afirmamos e nos damos ao respeito ou ninguém nos respeitará”, completou.
“Os parlamentares ruralistas parecem não compreender que os poderes organizam-se em um sistema de freios e contrapesos. É papel do STF fazer a defesa dos direitos das minorias, mesmo quando as maiorias não gostam”, contrapõe Juliana Batista.
Pontos mantidos na lei
Além do “marco temporal”, na votação foram derrubados os vetos e, portanto, incorporados na nova lei: a possibilidade de que qualquer interessado, a qualquer momento, possa questionar o procedimento demarcatório; a garantia à indenização pela “terra nua” a posseiros invasores de territórios indígenas; a garantia de que eles não sejam retirados da área enquanto não for realizado o pagamento da indenização; a permissão para implantação de intervenções militares e alguns empreendimentos e projeto econômicos, como estradas, sem consulta prévia às comunidades indígenas envolvidas.
Por outro lado, mediante um acordo entre governo e oposição, foram mantidos os vetos a dispositivos que permitiam o contato forçado com comunidades indígenas isoladas; a anulação de “reservas indígenas”, sob o argumento da “descaracterização cultural” da comunidade indígena; o cultivo de transgênicos nas TIs.
Lei da Mata Atlântica
A sessão do Congresso teve resultado só um pouco menos infeliz para a proteção ao bioma mais ameaçado do país: a Mata Atlântica. Também mediante um acordo entre governo e ruralistas, com apenas uma única exceção foram mantidos os vetos sobre artigos da Lei nº 14.595/2023, antiga Medida Provisória (MP) 1.150/2022, aprovada pelo Congresso em maio.
O texto original da MP alterava o novo Código Florestal (nº 12.651/2012) para que os produtores rurais pudessem ter até um ano após a “notificação” (individual) do órgão ambiental estadual para ingressar no chamado Programa de Regularização Ambiental (PRA). O problema é que, segundo a nova legislação, não há um limite de tempo para que essa notificação seja feita pelo governo.
A Câmara dos Deputados incorporou na MP uma série de outras alterações no Código Florestal e também na Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006) para retirar restrições ao desmatamento, beneficiar quem cometeu crimes ambientais e enfraquecer áreas protegidas. Várias dessas propostas foram consideradas “jabutis”, ou seja, dispositivos que não têm nenhuma relação com a redação original da MP. O presidente Lula vetou a imensa maioria das modificações.
Na votação desta quinta, foi derrubado apenas o veto ao dispositivo que afirmava que, a partir da assinatura do termo de compromisso do PRA e durante sua vigência, o produtor rural não poderá ter financiamentos negados por causa das infrações ambientais objeto desse termo. Portanto, a proposta será incorporada à legislação.
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Comunicadores indígenas e parceiros inauguram rádio web em São Gabriel da Cachoeira (AM) e ampliam alcance das vozes dos 23 povos do Rio Negro
Fios, microfones, mesa de som, computador, celular, correria, ajustes no som! Após muito trabalho e sonho, a Rádio Online Wayuri – A voz dos 23 Povos Indígenas do Rio Negro foi inaugurada em São Gabriel da Cachoeira (AM). Essa é a primeira rádio web da região, que inclui também os municípios de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos .
A primeira transmissão oficial foi feita pela comunicadora Juliana Albuquerque, do povo Baré, e pelo comunicador José Paulo, Piratapuya, durante o evento de lançamento, na sede da Rede Wayuri, em 24 de novembro.
E o retorno das comunidades já vem chegando: os comunicadores estão recebendo recados de ouvintes desde Iauaretê, no Alto Rio Uaupés, até Campinas (SP), onde estudantes indígenas cursam a universidade.
O projeto é da Rede Wayuri, em parceria com o projeto Escolas de Redes Comunitárias da Amazônia do Projeto Saúde e Alegria e apoio da Diálogo Brasil, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e Instituto Socioambiental (ISA).
A rádio online reforça a vocação da Rede Wayuri, que desde sua criação vem trabalhando com boletins de áudio. Atualmente, o principal produto do coletivo de comunicação é o podcast Wayuri.
O grupo também produz o Papo da Maloca, que vai ao ar às quartas-feiras, das 10h às 12h, na FM O Dia, em São Gabriel da Cachoeira.
Com a inauguração da rádio online, o trabalho inovador da Rede Wayuri – referência na comunicação de indígena para indígena – terá maior alcance, chegando a mais pessoas dentro do território indígena do Rio Negro e em regiões para além da Amazônia.
Em outubro, os comunicadores participaram de uma oficina com o técnico Márcio Santos, sobre a montagem dos equipamentos e práticas para a rádio web.
Durante a inauguração, a comunicadora indígena Cláudia Ferraz, do povo Wanano, que faz parte da Wayuri desde a criação da rede, trouxe um panorama dos trabalhos do coletivo de comunicação. Ela comemorou a conquista, que acontece quando a rede de comunicadores do Alto Rio Negro está completando seis anos.
Pesquisadora da Escola de Redes, Adriane Gama viajou do Pará até São Gabriel da Cachoeira e participou da inauguração. “Aqui em São Gabriel a gente percebe esse ativismo, esse engajamento desses jovens, como eles conseguem avançar com esses sonhos. Que eles possam seguir com autonomia, sustentabilidade e que possam garantir e fortalecer a comunicação comunitária indígena na região”, disse.
A entrada em atividade da Wayuri Online coincide com a expansão da conectividade no território indígena do Rio Negro, com a instalação pela Foirn de antenas da Starlink nas comunidades. Os programas levarão adiante informação de qualidade e confiável, de interesse dos povos indígenas. Além disso, poderão ser transmitidos nas línguas da região.
Confira vídeo do lançamento produzido pelos comunicadores indígenas:
Grade de programação
Na grade de programação da Wayuri Online, já há três programas, sempre das 10h às 12h. Às terças-feiras, o comunicador José Paulo apresenta o Alô, Parente, com informações da sede São Gabriel da Cachoeira e também das comunidades, fornecidas pelos comunicadores que estão nos territórios indígena.
“O Alô, Parente vai abordar notícias locais de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, buscando informações em organizações como Foirn, Funai, instituições públicas. As pessoas que escutarem o programa poderão se informar sobre vários assuntos. Também vamos conversar com os mais velhos para contar histórias sobre a cultura indígena. A Wayuri online vem para melhorar o diálogo entre as instituições e os indígenas da cidade e das comunidades. E vem também para dar voz às pessoas que conhecem a cultura dos povos do rio Negro”, explica o indígena José Paulo, do povo Piratapuya, que está à frente do Alô, Parente!
O Papo da Maloca será retransmitido às quartas-feiras, a partir do ano que vem. Na quinta-feira, Juliana Albuquerque traz para os ouvintes o programa Kacuri Online!
O comunicador e designer Ray Baniwa, que também está na Rede Wayuri desde o início, esteve presente no lançamento. Logo em seguida ele viajou para participar da COP 28 e já está em Dubai. De lá enviará informes de áudio que serão veiculados no Papo da Maloca e na Wayuri Online. Outras novidades virão em 2024!
Inauguração
A liderança indígena Luiz Laureano, do povo Baniwa, que acompanha os trabalhos da Rede Wayuri, fez um benzimento tradicional.
Bispo de São Gabriel da Cachoeira, Dom Edson Damian esteve na inauguração da rádio e trouxe uma reflexão sobre a importância da comunicação indígena.
“Wayuri quer dizer mutirão. É o trabalho feito em mutirão. E é uma característica dos povos dessa região, pela tradição dos casamentos interétnicos, que todos sejam parentes, próximos uns dos outros. Essa rádio traz essa característica da convivência pacífica entre os povos”, disse.
Coordenadora-adjunta do Programa Rio Negro (PRN) do ISA no Amazonas, Natalia Pimenta lembrou em sua fala que a Rede Wayuri vem promovendo diálogos importantes, ouvindo e reunindo diversos segmentos. Também esteve presente o diretor-presidente da Foirn, Marivelton Barroso, povo Baré.
A diretora da Foirn, Janete Alves, do povo Desana, que acompanha a Wayuri desde a sua criação, falou da importância do coletivo, que leva informação ao território e aos indígenas que vivem nas áreas urbanas na região do Médio e Alto Rio Negro.
“Fico emocionada de ver a Rede crescendo mais e mais. De uma bem menorzinha, que fazia áudios mensais, ela vai avançado. E agora temos a oportunidade de ter essa rádio web. Muitas vezes não chega informação nas comunidades. Vamos abraçar essa causa de fortalecer os comunicadores indígenas, que podem levar informações confiáveis e combater as fake news”, disse Janete.
Também participaram da inauguração a coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN-FOIRN), Cleocimara Reis; o coordenador do Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas do Rio Negro (DAJIRN-FOIRN), Elson Kene, povo Baniwa; a coordenadora do Departamento de Comunicação (Decom-FOIRN), Gicely Ambrósio, povo Baré; o comunicador José Baltazar, povo Baré; o coordenador do projeto de turismo Serras Guerreiras, Marcos Baltazar, povo Baré.
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Comunicadores indígenas do Rio Negro estiveram em atividades na USP, Unicamp e em intercâmbio de 3 dias com professores e alunos Guarani
Integrantes da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro viajaram de São Gabriel da Cachoeira (AM), uma das cidades mais indígenas do Brasil, para uma das maiores aglomerações urbanas do mundo, São Paulo. Com uma intensa agenda em outubro, eles viveram experiências marcantes e puderam trocar conhecimentos e estreitar laços com parentes de longe.
A Rede Wayuri é um coletivo de mídia popular formado por mais de 40 comunicadores de, pelo menos, 15 povos diferentes. Vinculada à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e com a parceria do Instituto Socioambiental (ISA), a Rede tem como um dos principais objetivos levar informações para as 750 comunidades indígenas e, assim, defender os direitos territoriais e culturais dos 23 povos da região.
Com articulação do ISA e a convite do Laboratório de Inovação, Desenvolvimento e Pesquisa em Educomunicação da ECA-USP (LABIDECOM), a Rede Wayuri participou do encontro Educação e (R)existência: Vozes das Amazônias e das Periferias que aconteceu no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc/SP, dia 20 de outubro.
De acordo com Thaís Brianezi, organizadora do evento e professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), “Educomunicação é o direito à comunicação", “a educomunicação traz a perspectiva que a liberdade de expressão é para todo cidadão e cidadã, todos os povos, todas as comunidades que têm voz e tem que ter escuta, tem que ter meio de produção.”
Durante a tarde deste primeiro dia de atividades, a Rede colaborou com a oficina de troca de experiências sobre produção de podcasts e boletins sonoros, na qual participaram também os coletivos e organizações: Viração, ÉNóis, Imprensa Kunumingue, Vozes das Juventudes na Amazônia (Universidade Estadual do Amapá – UEAP), Escola Família Agroextrativista do Carvão, Metareciclagem e A.R.E.I.A (Ação Replicadora Educomunicativa Insurgente de Articulação).
À noite, aconteceu o lançamento oficial em São Paulo do documentário Wayuri, dirigido por Diana Gandra, seguido de uma roda de conversa com a participação das comunicadoras Cláudia Ferraz, do povo Wanano, e Elizângela da Silva, do povo Baré.
O documentário, que foi produzido com apoio do Instituto de Democracia e Mídia da Alemanha (IDEM), conta a história dos 5 anos de existência da Rede e já foi exibido em mais de 15 festivais pelo mundo.
Também foram exibidos outros trabalhos audiovisuais dos coletivos de comunicação presentes, de forma a ampliar a reflexão e a troca de conhecimentos. Além da programação ser aberta ao público, ela foi exibida ao vivo através dos canais do LABIDECOM.
“E é isso que as experiências que estavam aqui reunidas hoje fazem. Fazem as suas vozes ecoarem, conversarem, fortalecendo movimentos e furando bolhas, ecoando as suas falas. É isso que ensina a Rede Wayuri”, acrescenta a professora Thaís Brianezi.
“Então, com todas essas experiências, a academia só tem a aprender. Aprender como fazer comunicação de uma maneira que não seja mecânica, que não seja mera transmissão, que não seja linear. E assim, nesse desconstruir de uma visão linear da comunicação, também estamos ajudando a desconstruir essa visão progressista de desenvolvimento”, conclui.
Intercâmbio interaldeias
Entre os dias 21 e 23 de outubro, em parceria com o Comitê Interaldeias e o Intervozes (Projetos Amazônia Livre de Fake e LabTaco), a Rede Wayuri realizou um intercâmbio na TI Tenondé Porã com professores e alunos Guarani.
O primeiro momento foi marcado pela exibição do filme Wayuri e alguns registros do “I Encontro de Comunicadores Guarani no Tekoha Oco´y (PR)”, promovido pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) em 2021.
O momento foi seguido de uma roda de conversa, na casa de reza. Ao longo dos dois dias subsequentes, a comunicadora Cláudia Ferraz, do povo Wanano, mediou uma oficina de podcast com cerca de 15 participantes, que resultou na produção de dois episódios em língua Guarani.
Paulo Sérgio, professor e uma das lideranças da Terra Indígena Tenondé Porã, refletiu sobre a importância das oficinas. “ “É muito importante a gente fazer essas trocas de conhecimentos. Na escola, estamos trabalhando bastante com as oficinas. E o que seriam essas oficinas? Não só da cultura, mas também com esse material não indígena que a gente pode usar para contribuir com a nossa comunidade. Nosso território tem 15 mil hectares, são 14 aldeias. Então, seria importante que os nossos jovens, que sabem manusear a tecnologia, usem para que a gente possa passar informações para outros parentes de outras aldeias”.
“Eu agradeço aos povos indígenas do Rio Negro, lá do Amazonas, pela importância do trabalho de vocês e que vai espelhar bastante o nosso trabalho. Para que a gente possa iniciar, também com os povos Guarani, o que já está sendo realizado pela Rede Wayuri. A mesma luta que vocês têm na Amazônia nós temos aqui em São Paulo, na região Sudeste do Brasil. Aguyjevete, obrigado!”
A comunicadora Cláudia Wanano acrescentou: “Eu fiquei muito alegre com a acolhida de vocês e de ver que vocês mantêm suas tradições e falam sua própria língua. Eu vou voltar lá para o meu território muito feliz e vou compartilhar essa experiência incrível que eu tive aqui.”
Assista ao vídeo realizado em colaboração com o Intervozes:
De parente para parente
Após três dias intensos de atividades na TI Tenondé Porã, a Rede Wayuri seguiu para Campinas, no evento “Encontro de Parente com Parente” promovido em articulação com o Coletivo Acadêmicos Indígenas da Unicamp e Comissão Assessora para a Inclusão Acadêmica e Participação dos Povos Indígenas (CAIAPI).
A atividade aconteceu durante a disciplina de “Encontros interculturais: povos indígenas e a Universidade II”, ministrada pelas professoras Malu Arruda, Alik Wunder e Chantal Medaets e que está inserida em um Curso Básico – política adotada pela universidade para a permanência dos estudantes indígenas.
Os comunicadores se sentaram em uma sala de aula lotada de estudantes indígenas de todo o Brasil, sendo cerca de 70% da região do Rio Negro. O número expressivo de estudantes do Amazonas fez das exibições do filme Wayuri e do documentário Entre Utopias e Realidades, dirigido por Jeovane Tariano, também de São Gabriel da Cachoeira e recém-formado do curso de Midialogia, um momento muito especial e emocionante.
Verinha Tukano, estudante de História, comentou o quanto foi importante ver na tela as vivências, as memórias, seus costumes, ouvir a sua língua, rever as lideranças e, assim, fortalecer a sua identidade em um contexto tão distante da sua realidade.
A professora Alik Wunder complementou: "Precisamos de mais momentos como esse, e precisamos incluir mais Institutos, professores e alunos nas rodas de conversa. A Universidade ainda está muito distante da realidade. É preciso que eles ouçam, vejam e conheçam. Só assim vamos trabalhar por uma universidade verdadeiramente antirracista, livre de preconceitos, discriminações e estereótipos.”
Finalizando a agenda em São Paulo, o filme Wayuri fez parte da programação do Cineclube TAVA, no Museu das Culturas Indígenas, no dia 26 de outubro. Também foi exibido o documentário As Bicicletas de Nhanderú, que mostra uma jornada espiritual na vida dos Mbya Guarani da aldeia Koenju, no Rio Grande do Sul. Após a exibição do filme, foi realizada uma roda de conversa com Cláudia e grande presença do público indígena.
"Essa agenda da Rede Wayuri em São Paulo, nas principais universidades do Brasil, demonstra a força do jornalismo local indígena na Amazônia e a importância deste trabalho para o mundo, que enfrenta o maior desafio que temos como espécie: lutar contra a emergência climática. Dar voz aos povos indígenas que moram na floresta amazônica integra essa luta para mudar os padrões de consumo, descarbonizar a economia e fortalecer valores coletivos, menos individualistas e narcisistas. Somente um pensamento coletivo e intercultural pode nos salvar como espécie", conclui Juliana Radler, articuladora de políticas socioambientais do ISA e uma das co-fundadoras da Rede Wayuri.
Veja também a publicação da Rede Wayuri no Instagram:
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“Por isso você, Lula, mande remédios. Os garimpeiros estragaram [a terra e os rios] e nos deixaram fracas”, denunciaram as indígenas
Na região da Missão Catrimani, na Terra Indígena Yanomami, 55 jovens e idosas estiveram reunidas para o XIV Encontro das Mulheres Yanomami durante a segunda semana de novembro. Nesta edição do evento, elas puderam falar sobre órgãos genitais, gestação, relações sexuais, meio ambiente e como estes temas impactam na saúde da mulher na floresta.
Uma das preocupações recorrentes relatadas pelas mulheres foi a saúde das crianças. Elas citaram como exemplos a desnutrição infantil, os casos de malária e sobretudo outras doenças também levadas pelos garimpeiros ilegais ao território indígena.
As Yanomami contaram que, no início deste ano, os garimpeiros ilegais estavam sendo retirados, mas agora já percebem que os invasores começaram a retornar à maior Terra Indígena do Brasil antes mesmo que os rios pudessem se recuperar.
Em janeiro, o governo estabeleceu uma Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), combinada com a desintrusão do território, mas, após seis meses, um relatório apontou a falta de coordenação nas ações. Desta forma, as mulheres afirmam que atividade ilegal seguirá adoecendo e matando seus filhos.
“As mães quando estão grávidas bebem água com doença. Por isso você, Lula, mande remédios. Os garimpeiros estragaram [a terra e os rios] e nos deixaram fracas. A doença trazida pelos garimpeiros nos estragaram e, por causa disso, as crianças nascem podres”, registraram as mulheres da Missão Catrimani durante as discussões em grupos divididos por regiões.
Médicas e enfermeiras participaram do encontro para dialogar, entender o contexto que as Yanomami vivem e fornecer informações sobre infecções sexualmente transmissíveis, métodos de prevenção e pré-natal. As profissionais fazem parte do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (DSEI- YY) , Médicos sem Fronteiras e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Outras preocupações relatadas pelas indígenas foi sobre as doenças sexualmente transmissíveis que chegaram aos Yanomami após contato com os não indígenas, por isso, as anciãs incentivam que as mais jovens façam os exames médicos.
“Eu não tenho vergonha da minha vagina, mostro minha vagina sem vergonha. Já que eles estão procurando as doenças, eu vou mostrar sem vergonha, você pode mostrar”, relatou Nilsa Xuwarinapi durante o encontro.
Outro tema abordado durante o encontro foi a gestação e a assistência à saúde para as mulheres yanomami. Para Manuela Otero Sturlini, assessora do Instituto Socioambiental (ISA) e uma das apoiadoras do Encontro, os diálogos ajudaram na compreensão dos não indígenas sobre como os Yanomami entendem a gestação e a formação dos bebês.
“A questão do pré-natal é um tipo de assistência que, além de ser incipiente na Terra Yanomami, também não está claro em seu sentido para as mulheres yanomami. A mulher tem importância chave no pré-natal. Para os Yanomami, a mulher tem uma função de sustentar algo que está sendo formado por outros elementos constituintes. O corpo, como nós o entendemos, é só uma das partes que constitui um Yanomami”, pontua Sturlini.
Segundo a assessora do ISA, o encontro das mulheres é um evento que permite o diálogo intercultural entre mundos, sendo uma prática fundamental para a reestruturação da saúde indígena diferenciada. Ela aponta, ainda, que neste ano mais pessoas estiveram envolvidas devido às percepções sobre as necessidades das mulheres no encontro de 2022.
“Durante o encontro do ano passado houve muita denúncia, era o auge da crise sanitária e a situação estava terrível. Neste ano, embora a situação não esteja boa e as melhorias sejam ainda frágeis, preferimos focar no mergulho sobre temas da saúde da mulher e desnutrição, compreender e dialogar para reconstruir. A reconstrução vai ser lenta, os estragos foram bem profundos. Por isso concordamos com as anfitriãs em ampliar o convite.”
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'Mães dos filhos da floresta'
Mulheres de 27 comunidades, de cinco regiões, participaram do encontro entre 10 a 17 de novembro. Pela primeira vez, o evento teve participação de mulheres Yaroamë. A pesquisadora e artesã Loreta Yanomami e a enfermeira missionária Mary Agnes da Missão Catrimani caminharam oito horas pela floresta para conseguir convidar as Yaromae. Com a chegada de todas, uma apresentação das indígenas, da diretoria da Hutukara Associação Yanomami, assessores, antropólogos e profissionais de saúde foi feita.
Após a apresentação de Chiquinha Yanomami, anfitriã do evento na Maloca Monopii, Missão Catrimani, as participantes foram informadas que a carta que escreveram no passado para Luiz Inácio Lula da Silva foi enviada em 2022 e entregue em mãos no dia que o presidente conheceu a CASAI-Yanomami e assistiram às reportagens sobre a emergência em saúde na Terra Indígena Yanomami.
Em seguida, elas se dividiram em grupos para discutir sobre os motivos que causam a desnutrição entre os Yanomami. Um consenso entre as mulheres é que a invasão garimpeira é a principal responsável não só pela desnutrição, mas também por outras doenças que afetam a elas e seus filhos.
“Na nossa terra, os garimpeiros chegaram e nossas crianças passaram a sofrer. Nós, mães dos filhos da floresta, estamos tristes. Nós, mães, estamos com muita tristeza, por isso queremos que Lula apoie os Yanomami”, disse Loreta Yanomami.
Durante o segundo dia, as mães seguiram falando sobre os casos de desnutrição entre seus filhos e xamãs relataram como trabalham para enfrentar doenças que dialogam com a desnutrição. Depois, a médica Ana Paula Pina explicou o que é a desnutrição no entendimento dos não indígenas e falou sobre como identificar os sintomas, pedindo que as mães se atentem a crianças magras com a barriga grande, com quedas de cabelo e feridas pelo corpo.
“O que causa a desnutrição além da falta de comida? A malária, os vermes, a pneumonia, e a água suja de mercúrio do garimpo. As causas para os brancos não são só a falta de comida. A criança pode ter comida e ter desnutrição por muitas doenças. Existem regiões que têm comida, mas tem desnutrição”, explicou a médica.
Após encerrarem a conversa sobre a desnutrição, as mulheres iniciaram o terceiro dia de evento falando sobre gestação e pré-natal. As mulheres relembraram que, antes da invasão garimpeira, quando os rios estavam limpos, os filhos delas não nasciam tão magros.
“Não tinha isso de beber água suja. Não tinha brancos e ficávamos grávidas sozinhas. Nós, velhas, não temos vergonha de que eles olhem nossas doenças. Eles [profissionais da saúde] não acharam doenças na minha vagina, somente na das outras”, contou Nilsa Xuwarinapi.
As Yanomami também relataram que profissionais do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’Kwana (DSEI-YY) não estão examinando seus corpos de forma correta, mesmo quando sofrem com sangramento em seus órgãos genitais. Além disso, pediram por uma estruturação na saúde com melhoria nos postos e construções de hospitais na Terra Indígena Yanomami. Durante as falas, a assessora do coordenador do DSEI esteve presente.
“As crianças nascem sem cabelos, já nascem estragadas. O mercúrio estraga. Eu quero que vocês mandem equipe para ver sobre o mercúrio. Elas [crianças] nascem com ouvidos que saem sangue. O cabelo nasce fraco e cai. Eu quero mesmo que vocês façam um posto melhor. Eu quero que vocês façam hospital porque as crianças estão apodrecendo”, afirmou Neila do Palimiú, comunidade localizada no Rio Uraricoera, uma das regiões mais atingidas pela invasão garimpeira.
No penúltimo dia do evento, os profissionais da saúde explicaram sobre ISTs às mulheres, como fazer o tratamento e ressaltaram a importância dos exames e do pré-natal.
O último dia do encontro foi dedicado à escuta das mulheres que realizaram tratamentos e intervenções nos hospitais referenciados de Boa Vista. As falas explicitam situações de violência obstétrica e a longa e desconfortável espera por atendimento. Juntas à Hutukara, redigiram uma carta para os hospitais. Além disso, adicionaram que há outros problemas de saúde afetando a menstruação e o leite delas.
Além das mulheres representantes das regiões: Missão Catrimani, Demini, Novo Demini, Palimiu, Surucucu, Parima e Haxiú, estiveram presentes representantes da Hutukara Associação Yanomami, Diocese de Roraima, DSEI Yanomami, ISA, Médicos Sem Fronteiras e Unicef.
Durante o encerramento do evento, as profissionais da saúde distribuíram materiais de proteção para relações sexuais e as Yanomami se comprometeram a serem multiplicadoras sobre as conversas em suas respectivas comunidades.
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Boletim Sirad-I, do ISA, detectou mais de 300 hectares degradados entre maio e agosto de 2023
Entre maio e agosto de 2023 foram registrados 300,98 hectares degradados no interior das Terras Indígenas (TIs) com presença de povos isolados, segundo o último Boletim Sirad-I, lançado nesta quinta (30/11).
Na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (RO), que é habitada por pelo menos cinco grupos isolados e outros quatro povos indígenas, nem mesmo a sobreposição do Parque Nacional (Parna) Pacaás Novos, uma Unidade de Conservação de proteção integral, tem impedido a ação dos invasores.
No total, segundo dados do sistema Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a TI já perdeu 20.770 hectares de floresta. Somente em 2023, o monitoramento do Sirad-I já detectou 90,6 hectares de desmatamento na Terra Indígena.
Na Terra Indígena Piripkura (MT), onde já foram desmatados 168,4 hectares desde janeiro, a expansão de áreas previamente desmatadas traz um indicativo da intenção de transformar o território em pastagem.
O período também foi marcado pela abertura de ramais rodoviários muito próximos às Terras Indígenas, como na TI Araribóia (MA), e do aumento da incidência de focos do calor com destaques para a TI Mundurucu (PA).
Foram detectados 2.266 focos de calor incidentes em 13 Terras Indígenas, número 86,5% maior que o verificado no mesmo período do ano passado.
A TI Mundurucu concentrou os casos mais críticos de queimadas e teve 346 focos de calor detectados, quase o dobro do que no mesmo período de 2022.
Na Amazônia, onde incêndios naturais são raros, o aumento indica a potencial presença de invasores e acende um alerta para o impacto das mudanças climáticas nas Terras Indígenas com presença de povos isolados.
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Durante oficina de trabalho, Agentes Indígenas de Manejo Ambiental da região chamaram atenção para o longo verão entre agosto e novembro
O começo do mês de novembro é o início do ciclo anual no calendário dos povos Tukano do Rio Tiquié. O principal marcador desse período é a localização no poente, ao anoitecer, da grande constelação da Jararaca (que corresponde parcialmente ao Escorpião dos gregos).
A caída da Jararaca, como dizem no Tiquié, acontece com um repiquete do rio, uma enchente que recebe o nome da constelação, conhecida mais amplamente no rio Negro e até no Solimões como Boiuaçu (cobra grande).
Nesse ano, essas chuvas e a crescida do rio foram muito aguardadas, já que foi antecedida por três longos meses de chuvas escassas, em um verão extremo para essa região que registra dos mais altos índices pluviométricos da Amazônia.
O verão amazônico começou em agosto, quando o rio secou fortemente. Com chuvas ocasionais, predominaram dias de sol e calor intenso, mantendo o rio seco. Com isso, a navegação ficou mais difícil e os deslocamentos entre as comunidades e para a cidade de São Gabriel da Cachoeira, mais demorados.
Leia também: Constelação Boiuaçu ‘cai’ e dá pausa à estiagem, mas nível do Rio Negro continua baixo
Reunidos na comunidade Boca da Estrada, no médio Rio Tiquié, entre os dias 25 e 31 de outubro, os dezoito Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs) dessa região se debruçaram sobre suas anotações diárias para elaborar o ciclo anual que estava em seus últimos dias.
A oficina contou ainda com a presença de 70 pessoas da comunidade, em sua maioria estudantes do ensino médio e fundamental e seus professores, que acompanharam e elaboraram sua versão do calendário anual.
Também serviram de referências as medições de pluviometria e nível do rio das estações do Serviço Geológico do Brasil que existem nas comunidades de Taracuá, Pirarara e Cunuri.
Com esse material, foram escritos resumos de cada estação do ano, compreendido entre novembro de 2022 e outubro de 2023, assim como um desenho circular que integra os diversos temas observados e registrados: 1. Calendário agrícola; 2. Fenologia de plantas silvestres (aquelas que produzem frutos consumidos por pessoas, peixes e animais) e cultivadas; 3. Reprodução e migração de peixes, animais de pêlo e aves; 4. Realização de rituais e festas; 5. Doenças sazonais; 6. Chuvas e verões (que são identificáveis por nomes específicos nas línguas indígenas).
Este trabalho faz parte da rotina dos AIMAs, que têm suas observações e conversas anotadas diariamente para serem compartilhadas e organizadas em oficinas de trabalho, que acontecem três vezes ao ano. A descrição completa do ano será publicada no número 6 da revista Aru.
Nessas oficinas é feito um esforço intercultural de interpretação do ciclo anual, entre os diferentes povos presentes no Tiquié e com a equipe do ISA.
Além dos diários e observações dos AIMAs, os conhecedores mais velhos, que contribuem para a formação dos AIMAs nos conhecimentos próprios, são convidados a participar e trazer sua colaboração. Ensinam, por exemplo, formas especializadas de manejo do mundo através da proteção e cura das épocas.
Num relato sobre o verão dos últimos meses, os conhecedores falaram da importância de ahkó bahtó, traduzido como um espelho (ou fonte) de água que impede os rios de secar completamente.
Os AIMAs estão sendo formados como conhecedores dos encantamentos que favorecem o bem-estar e a saúde das pessoas, de seus territórios, os seres que vivem nele, sejam visíveis ou não, e com os quais a todo o tempo estão interagindo.
No encontro em Boca da Estrada, além do verão prolongado e do calor intenso, também saltava aos olhos a profusão de florações das árvores frutíferas nas beiras do rio. São florações de japurá, uacu, cunuri e outras espécies conhecidas por seus nomes locais (theõ, wapekarã, heupu, kerõ).
Segundo os conhecedores, as flores que caem apodrecem no solo dos igapós e das beiras de rios e igarapés. Esse material é depois lavado pelas chuvas e carregado para as águas do rio.
Para que não faça mal para as pessoas, é preciso protegê-las com os benzimentos apropriados, que dissipam os venenos das flores – que é caxiri (bebida fermentada consumida nas festas) para a gente-peixe (waimasa), porém, tóxico para as pessoas.
Sem esse benzimento do mundo, as pessoas ficam suscetíveis às doenças do tempo, conhecidas por seus nomes em tukano e nas outras línguas indígenas.
Embora o verão seja bem-vindo no calendário agrícola, permitindo às famílias a queima de áreas (geralmente cerca de meio hectare) de mata derrubada para novos roçados, acaba por trazer mais prejuízos do que benefícios quando mais prolongado e intenso.
As plantas cultivadas secam e morrem, especialmente as mais novas, e o trabalho nas roças se torna penoso pelo calor, de modo que não é possível fazê-lo durante as horas mais quentes, que são muitas.
A comunidade diz que o dia já amanhece quente; e o solo, ressecado pela ausência de chuvas, aumenta o risco de incêndios.
Roberval Pedrosa, AIMA da comunidade Serra de Mucura, conta que no dia 13/09, a mais de duas semanas de verão, os cultivos se ressentiram da seca.
“Fui na roça ajudar minha esposa a botar mandioca mole e fazer algum fogo para plantar banana, e as manivas estão secando muito, e ela ficou triste por isso. O tempo deu muito verão”.
No dia seguinte, ele relata: “O tempo deu muito verão com vento, por isso meu cunhado queimou uma roça de capoeira baixa”.
Completadas três semanas de verão, ele registra que “o rio secou muito e tempo deu muito verão com canto de dari-dari, sararoa, bioindicadores do verão de lagartas (Ñia kuma)”.
No dia 25/09, o irmão de Roberval “queimou roça de mata primária”, vegetação que requer mais dias de verão para queimar bem.
Depois de mais de um mês seco, ele comentou: “as borboletas de várias cores estão migrando, também mariposas, gafanhotos e cigarras. Doença tem malária, diarreia, gripe e abcessos. Neste ano o verão está muito intenso, fazendo igarapés ficarem parados, com morte de diversas espécies de peixes”.
No dia 04/10, uma simples queima de capim saiu do controle e passou para o mato, montanha acima, e se estendeu por quatro dias.
“Hoje a Serra de Mucura continua queimando muito no topo, sem parar as chamas na mata, a comunidade ficou totalmente cheia de fumaça. O tempo deu muito verão, o poço de tirar água secou, ficou água empoçada, e agora iremos carregar água para beber no caminho da roça. O rio também continua seco e de noite dá muito calor, mesmo para quem não tem parede (na casa)”.
Oscarina Caldas, AIMA e agricultora de Acará-Poço, não muito distante de Serra de Mucura, traz mais detalhes sobre as consequências do clima para as plantas cultivadas. Observa que depois desses meses de verão e poucas chuvas, as mandiocas secaram e apodreceram. Com as ventanias, a planta, que já está mais fraca, cai.
Também secaram carás e pimenteiras, perdendo as folhas. Agosto é o período de derrubada de áreas de mata primária para novos roçados, a queima acontece entre setembro e outubro, no verão de Ñia, que são lagartas que aparecem muito raramente nos cunurizeiros. Nesse ano, com fartos verões, todas as áreas foram queimadas satisfatoriamente.
Durante a oficina, naquela última semana de outubro, a enchente de Jararaca ainda não havia caído, mas estava sendo aguardada para os próximos dias. Os dias foram quentes e o rio estava bem baixo, e sua água, morna. Mas já a partir do dia 31 veio o repiquete da Jararaca e o rio subiu rapidamente. No dia 10 de novembro, com o nível do rio já cerca de três metros mais alto, já começaram as piracemas de peixes como o aracu-riscado em alguns pontos do rio, recomeçando um novo ciclo para as comunidades do Rio Tiquié.
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Do dia 4 ao 8 de dezembro, itens de diferentes comunidades de São Paulo estarão à venda a preços justos e acessíveis; confira a programação completa
A partir de 2 de dezembro, a loja “Floresta no Centro”, do Instituto Socioambiental (ISA), realiza a “Semana de Arte e Cultura Guarani”, com oficina e exposição de artesanatos do povo Guarani das Terras Indígenas Jaraguá e Tenondé Porã, em São Paulo.
No sábado (02/12), as oficinas com mulheres artesãs Guarani acontecem em dois horários: das 10h às 12h e das 14h às 16h, ambas nas dependências da loja. As inscrições já estão esgotadas.
Do dia 4 ao 8 de dezembro, itens do artesanato Guarani de diferentes comunidades estarão à venda na loja do ISA. São cestarias, artesanatos e muito mais, a preços justos e acessíveis.
Venha aprender mais sobre os saberes tradicionais e fortalecer a luta indígena de São Paulo!
Serviço
‘Semana Guarani’
Quando: de 2 a 8 de dezembro
Onde: Loja Floresta no Centro (Av. São Luiz, 187 Galeria Metrópole - loja 28 2º piso - Centro Histórico de São Paulo)
Oficinas: inscrições esgotadas.
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Mesmo com vitória no STF sobre o Marco Temporal, o povo Laklãnõ-Xokleng enfrenta os impactos de uma enchente sem precedentes, enquanto luta pela demarcação de suas terras
Na noite de 13 de outubro de 2023, o povo Laklãnõ-Xokleng enfrentou uma tragédia em seu território: uma enchente sem precedentes, causada pelo fechamento, com uso de força policial, das comportas do reservatório da Barragem Norte. A ordem foi dada pelo governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL).
Mais de 300 pessoas tiveram de ser levadas às pressas para uma área segura, próxima à barragem, onde armaram barracas enquanto viam suas casas sendo invadidas pelas águas e suas comunidades isoladas – uma saga que se repete desde a década de 1970, a cada nova enchente.
Dessa vez, os Xokleng que resistiram ao fechamento das comportas também foram alvo de uma truculenta operação da Polícia Militar de Santa Catarina, com tiros, gás de pimenta e bombas de efeito moral. A operação é objeto de uma apuração por parte do Ministério Público Federal (MPF). Uma das vítimas foi Anergo Camlem, indígena de 29 anos, que passou por cirurgia para retirar um projétil alojado no braço.
“O que fizeram e estão fazendo com o nosso povo é desumano, humilhante. Lembro como se fosse hoje, do meu pai sentado com o prefeito e os secretários falando que essa barragem era um absurdo, que iria acabar com a vida dos índios”, rememora Iraci Nunc-Nfôonro, 66, da aldeia Toldo, que ficou totalmente isolada. Sem banheiro ou água encanada, como todos os Xokleng acampados emergencialmente na área próxima à barragem – que forma a aldeia Plipatól - Iraci espera a água baixar sob uma barraca de lona.
No dia 7 de outubro, a Justiça Federal já havia determinado que o governo do Estado atendesse as comunidades indígenas com cestas básicas, água potável, barcos, atendimento de saúde e um plano de construção de moradias emergenciais, mas segundo a reportagem do ISA constatou em campo, as medidas não foram cumpridas.
Segundo os indígenas, na aldeia Figueira todas as moradias estão condenadas e 30 famílias ficaram desabrigadas. De acordo com os relatos, quando o rio enche a terra fica mole, e quando baixa provoca erosões - um processo que se repete a cada cheia e que coloca novas áreas em risco.
As cestas básicas que chegaram estavam incompletas. Mães relataram falta de fraldas para crianças e de roupas. Renato Covika Camlem, 57, diz que a comunidade está sendo engolida pelo rio e que as autoridades não tomam providências. “Todas as nossas casas estão condenadas, uma parte do prédio da escola desabou e as áreas de roça e para criação de animais estão debaixo d’água”, afirmou ao ISA Covika Camlem.
Nas últimas semanas, a missão da vice-cacica da TI, Fabiana Patte dos Santos, 40, tem sido a busca para assistência das famílias que estão no abrigo improvisado na área da barragem. “Eu sei que é muito importante a nossa luta a longo prazo, para demarcação definitiva de nossas terras, mas também precisamos garantir a dignidade para essas famílias hoje. Não é possível que elas continuem nessa situação, sem banheiro, sem acesso à água potável”, afirma.
Os indígenas ainda reclamam da falta de assistência à saúde e que o polo de atendimento da Saúde Indígena está fora do território, inacessível a muitos deles.
A barragem estava há mais de 14 anos sem operação, sem qualquer tipo de manutenção e, já em 2021, um laudo apontava falhas e problemas na estrutura, expondo não apenas o descaso com os indígenas, mas também o descumprimento de uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA), que determina a inspeção regular de barragens no Brasil.
Além disso, o governo catarinense enviou laudos antigos e documentos que não foram aceitos pela Justiça para assegurar que a estrutura da barragem estava em boas condições. Apenas um barco foi disponibilizado para atender todas as comunidades, o que, segundo os indígenas, era insuficiente para a demanda, e que só operava em horário comercial, das 8h às 18h. O envio de cestas básicas e água potável também não estava regular, e em muitas comunidades faltavam itens básicos para alimentação.
Novas informações foram solicitadas ao governo do estado, mas segundo a assessoria do MPF, ainda não foram respondidas. A reportagem também questionou o governo catarinense sobre a execução do plano de emergência e sobre as indenizações ao povo Xokleng por causa dos impactos da barragem.
Em resposta, o governo de Santa Catarina afirma que “busca o diálogo com a comunidade indígena para retomar as operações na Barragem Norte”, que se comprometeu em realizar ações na comunidade para voltar a operar a estrutura e que tem cumprido com ações emergenciais.
No entanto, esta semana, o governador Jorginho Mello (PL) recusou uma visita da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, para tratar da crise humanitária vivida pelos Xokleng. Mais de 300 pessoas na comunidade indígenas denunciam estarem sem acesso à água potável e sem instalações sanitárias no abrigo onde estão alojadas.
Governo federal aprova Reserva Indígena
Para mitigar os impactos da tragédia, o governo federal aprovou ainda em outubro a Reserva Indígena Barragem Norte, com 860 hectares de extensão, onde os Xokleng encontraram um local seguro para se abrigar da enchente.
Em visita ao território indígena, a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, ouvia as súplicas do povo: “Eu vim aqui trazer minha solidariedade e trazer respostas para essas famílias que aguardam há anos a regularização desta área da União. É uma área para que eles possam se manter, erguerem moradia e terem acesso à políticas públicas”, explicou Joenia, em entrevista ao ISA.
Antes do ato de Joenia, a área da barragem estava em poder do extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), órgão que construiu a barragem e transferiu sua operação ao governo catarinense. O local é um dos poucos no território que está seguro durante os períodos de chuvas e cheias e agora se torna oficialmente de usufruto exclusivo dos indígenas.
Setembrino Camlem, que é cacique-geral da área, comemora a medida: “Foi bom garantir essa área para nossas comunidades, porque a verdade é que nós já estamos aqui há anos nesse movimento. Agora podemos ficar mais tranquilos e os parentes podem construir suas casas sem os riscos de novas enchentes. É um passo importante para o reconhecimento da nossa luta em busca da demarcação de todo nosso território”.
Perseguição histórica
Originários de uma vasta região que hoje compreende os estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, os Xokleng enfrentam uma histórica perseguição desde o século XIX, quando o processo de colonização europeia tomou forma na ocupação de terras no sul do Brasil, e que deixou esse povo constrito entre as montanhas do Vale do Rio Itajaí-açu. Conforme consta no laudo de perícia da Justiça no processo de demarcação da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, o território xokleng é ocupado há “pelo menos cinco mil anos”.
A demarcação definitiva dos 37 mil hectares que compõem o seu território tradicional é, hoje, a principal demanda dos Laklãnõ-Xokleng na luta por direitos territoriais. O caso da TI Ibirama-La Klãnõ, na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, ganhou holofotes com o julgamento da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF).
No último dia 21 de setembro, o plenário da corte decidiu em favor dos Xokleng, negando que a demarcação como Terra Indígena possa ser condicionada à presença na terra na data da promulgação da Constituição Federal – afastando o principal argumento do recurso movido pelo órgão ambiental de Santa Catarina, a Fatma.
Leia: STF enterra tese do ‘marco temporal’ das demarcações de Terras Indígenas
A decisão do Supremo abriu caminho para a demarcação definitiva da TI Ibirama-La Klãnõ, esperança desse povo em favor de um modo de vida diferente de tudo que passaram até aqui pelas mãos dos não indígenas.
Uma trajetória que teve início com a violenta matança promovida pelo governo e colonizadores no final do século XIX e início do século XX, quando bugreiros foram contratados para dizimar os indígenas, então pejorativamente chamados de "bugres". Para escapar da morte, os indígenas ficaram quase 40 anos confinados em isolamento forçado, resultado de uma iniciativa do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1914 .
Os ciclos de violência nunca cessaram, e até hoje se atualizam, como é o caso da Barragem Norte, que impacta a comunidade indígena desde a década de 1970.
“Eu acredito que a barragem é um simbolismo, é uma forma de o Estado demonstrar seu controle sobre nossas vidas, é uma forma de apagamento da nossa história e uma forma de violência. Quando ela foi construída aqui, de uma maneira mais indireta, foi pensando em nos matar”, desabafa Txulunh Gakran, 26, liderança da Juventude Xokleng, uma organização que busca a reafirmação do direito originário dos Laklãnõ-Xokleng.
“A barragem representa um projeto de assassinato a longo prazo. Como nos dias de hoje não é mais permitido contratar os bugreiros, de certa forma, ela está permanentemente nos matando aos poucos”, afirma Txulunh. “Nós estamos sofrendo diretamente essa guerra que está travada sobre a questão climática há muito mais tempo do que as pessoas imaginam. Se fala muito que populações serão afetadas e nós estamos vivendo isso agora. E a gente precisou se adaptar a todas essas violências e mudanças que o estado impôs para nossas vidas”, reclama a jovem.
Iraci foi cacica-geral de 2000 a 2002. Na época, denunciou na tribuna da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina que as terras dos povos indígenas estavam sendo vendidas e cobrou respostas sobre a demarcação do território. Essa é uma luta que Iraci herdou dos mais velhos, que também tinham no sangue — e na memória — a força dos parentes que resistiram desde os primeiros contatos com os colonizadores.
“Gostaria de fazer aqui um apelo ao Sr. Ministro para que assine aquele documento que ele tem na sua mesa e dê a terra do Xokleng, pois é dele desde 1926! Alguém a vendeu e nós não temos nada com isso!”, denunciou, como mostram registros históricos da Assembleia, sem nunca receber as respostas.
Lino Nunc-Nfôonro, pai da ex-cacica, foi o primeiro professor indígena da aldeia e até o fim da vida lutou contra a barragem e a opressão contra os Xokleng. “Ele não viu, mas eu quero ver. Eu luto para que possamos um dia ter nossos direitos reconhecidos”, conta Iraci.
“A barragem tá aqui ela não vai sair daqui. O sofrimento, a perda, a vida, não tem volta”, diz Iraci apontando, como solução, um pagamento contínuo por parte do governo aos indígenas: “porque o nosso sofrimento é contínuo”, completa. Um dos pedidos da comunidade no acordo firmado em 2015 prevê uma compensação financeira pelos impactos da barragem, mas a forma deste pagamento até hoje não foi definida.
Mais de 20 anos depois da denúncia, Iraci presenciou a presidenta da Funai assinando a transferência da área de 860 hectares no entorno da barragem para os indígenas. Ainda que a Reserva Indígena Barragem Norte tenha uma extensão pequena se comparada com os 37 mil hectares da TI Ibirama-La Klãnõ à espera de homologação, o gesto de Joenia Wapichana, sem alardes e sem cerimônia, teve um papel importante para assegurar aos indígenas uma terra até que a demarcação de seu território seja concluída.
O Estado e os interesses dos invasores
Para a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), o processo de demarcação do território xokleng representa muito mais do que a demarcação ou revisão de limites de uma Terra Indígena. É também um reconhecimento dos seguidos ciclos de violências praticados contra os Xokleng com a participação direta do Estado brasileiro.
“Os Xokleng não estavam ocupando as suas terras porque tinham um impedimento real, gerado por todas as circunstâncias que marcaram sua história naquele território. Essa terra é absolutamente necessária para uma população que sofreu com a construção de uma barragem no seu território e que deixa aldeias inacessíveis, eles precisam de uma ação humanitária e que garanta a sua subsistência a médio e longo prazo”, afirma a advogada.
A decisão do STF que afastou a tese do Marco Temporal com base na ação da TI Ibirama-La Klãnõ é considerada como uma das mais importantes para os direitos indígenas na história recente.
Mas a demarcação definitiva ainda depende de uma ação efetiva do governo federal para a homologação e desintrusão da terra, que foi declarada como de posse dos Xokleng em 2001. Isso permitirá que os indígenas retomem sua terra e construam suas vidas em locais mais seguros, longe das margens e das enchentes do rio.
Uma disputa que precisa desmobilizar agentes locais, como políticos, fazendeiros e demais invasores, que mesmo após a decisão do STF não desistem das investidas contra os indígenas. As comunidades continuam recebendo ameaças de agricultores que ocupam áreas reivindicadas historicamente pelos Xokleng, como denunciou o cacique Tucun Gakran.
Segundo informações do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, existem aproximadamente 490 ocupações não indígenas dentro do território reconhecido como de uso tradicional, com 257 imóveis titulados e 180 posses. As maiores ameaças ao território são o roubo de madeira, plantações de fumo com alto uso de agrotóxicos e as invasões por fazendeiros, posseiros e grileiros, e que seriam os principais beneficiados com uma eventual aprovação da tese do Marco Temporal.
Para a advogada Juliana de Paula Batista, os argumentos usados na ação demonstram mais uma vez quais interesses o Estado quer defender. Um deles é o de que a demarcação interferiria na Reserva Biológica (Rebio) do Sassafrás, criada em 1977. Segundo a advogada do ISA, o argumento seria apenas um pretexto para proteger as posses e interesses que existem sobre a terra dos Xokleng.
“É uma ação onde o Estado está litigando em nome de terceiros. Só que ele não tem essa competência para defender a propriedade privada em detrimento do direito originário”, afirma a advogada, que acompanhou o julgamento no STF do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365.
Governador de SC garantiu festa alemã fechando comportas à força
Imposta sem qualquer tipo de diálogo, consulta ou contrapartidas justas, a construção da Barragem Norte foi uma demanda de empresários da região do Vale do Itajaí que, nas décadas de 1950 e 1960, pediram projetos para resolver problemas das chuvas. A obra foi iniciada em 1976, durante a Ditadura empresarial-militar, e durou quase 20 anos, mas nunca foi de fato concluída.
Ao longo de quase meio século, essa estrutura se transformou em uma dolorosa cicatriz na vida e na cultura dos Xokleng para que o Estado catarinense pudesse diminuir a incidência de enchentes em cidades construídas em áreas de alagamento natural dos rios do Vale do Itajaí.
Com apoio de empresários, imprensa e outros atores interessados no apagamento do território dos Xokleng, as obras da barragem eram anunciadas como um grande plano para contenção de catástrofes climáticas. No entanto, apenas não indígenas foram indenizados pelos impactos da obra, e mesmo assim, muitos nunca deixaram a área.
Historicamente — e estrategicamente —, o governo do estado de Santa Catarina, que é o responsável pela operação da barragem, tem negociado com indígenas Xokleng justamente nos momentos críticos de chuvas para o fechamento das comportas. E esse ano não foi diferente.
A previsão de um El Niño levou o governo a buscar um acordo que deveria ocorrer mediante melhorias de infraestrutura, inclusive com um cronograma para construção de casas. E, mais uma vez, o governo catarinense não cumpriu o acordo e fez o fechamento das comportas à força, com violência policial.
A medida tinha como objetivo proteger as cidades abaixo da barragem, principalmente Blumenau, que nesse mesmo período realizava a Oktoberfest, maior festa alemã fora da Alemanha. A cidade é considerada a mais bem sucedida das colônias que, no início do século passado, forçaram o contato com os Xokleng da região. Na internet, o governador justificou a decisão: “Nosso maior bem é a vida dos catarinenses. E faremos todo o possível para protegê-los”, escreveu.
A primeira enchente registrada no território dos Xokleng ocorreu em 1978, durante o processo de construção da barragem, e condenou toda a obra feita até então. Mas a construção foi retomada e as consecutivas enchentes também levaram ao deslocamento forçado dos indígenas pelo território, além de as seguidas mobilizações para denunciar o descaso.
Em 1981, os indígenas chegaram a prender um funcionário da Funai cobrando as indenizações das suas terras por causa dos impactos causados pela barragem. Em 17 de julho daquele ano, o governo federal assumiu através do Convênio 029/81, entre DNOS e a Funai, a dívida e a responsabilidade em pagar as indenizações dos danos causados pela Barragem Norte à comunidade indígena. Mas este convênio nunca foi totalmente executado.
Os protestos e as promessas se repetem ao longo de todos esses anos, lembra o cacique Setembrino. “Em 1990, quando os caminhões estavam deixando o canteiro de obras, nós impedimos que eles saíssem sem cumprirem a indenização pelas nossas terras. Ficamos acampados por dois anos, e conseguimos um acordo para construção de 188 casas. O governo do estado nos pagou para ir embora daqui. Não era nenhum pagamento de indenização nem nada, era para irmos embora mesmo”, disse.
As 188 casas prometidas em 1992 só foram concluídas em 2008, e 16 anos depois, com as consecutivas enchentes que atingiram o território, “todas elas estão condenadas”, avisa Setembrino. Parte dessas moradias estão oficialmente interditadas pela Defesa Civil, mas continuam sendo ocupadas pelos indígenas por ainda não poderem acessar as partes mais seguras do território.
Os Xokleng voltariam a ocupar a Barragem Norte pelos mesmos motivos em 1997, quando tomaram o controle da casa de máquinas; e em 2001 e 2005. Em 2014, quando sete das oito aldeias foram mais uma vez alagadas, a barragem mais uma vez serviu de refúgio.
Em 18 de abril de 2015, os indígenas reuniram cerca de 300 pessoas para bloquear o acesso dos operários para a operação da Barragem Norte. O sistema para prevenção de cheias com o fechamento de comportas ficaria parado, segundo os Laklãnõ-Xokleng, até que houvesse uma solução às reivindicações da comunidade: demarcação das terras e a construção de casas fora da área de alagamento da barragem.
Naquele ano, com previsão de El Niño, a Defesa Civil de Santa Catarina propôs um acordo para garantir acesso dos técnicos à estrutura e evitar enchentes rio abaixo.
“E em mais um acordo se previa a construção de casas, estradas, remoção das famílias, pontes, rede de energia, levantamento do impacto ambiental, uma ponte que liga a aldeia Piplatól com a aldeia Palmeira e mais duas pontes pênseis. Nada disso foi feito”, aponta Setembrino.
A histórica resistência dos Laklãnõ-Xokleng
Até o século XVIII, segundo o antropólogo Nuno Nunes, três subgrupos do povo Xokleng ocupavam uma ampla faixa territorial nos três estados do sul do país. Com a instalação dos núcleos coloniais europeus, tornaram-se frequentes os conflitos e a resistência dos Xokleng.
Nunes, que há mais de 20 anos acompanha a história dos Xokleng, diz que o processo de violência contra os indígenas tem sido permanente e desde o início envolveu órgãos e decisões governamentais.
“O que a gente vê é que os Xokleng estão há mais de 100 anos sendo perseguidos por conta da geopolítica onde eles vivem. É o vale justamente onde foram colocadas as colônias para atrair os alemães. E esse histórico todo vem se repetindo ao longo dos anos. A Barragem Norte é mais um episódio de proteção das colônias, que hoje são municípios do Vale do Itajaí”, explica o antropólogo.
Agentes de diferentes esferas estatais estiveram presentes em todos os momentos de pressão e opressão dos Xokleng. Foi o Estado que promoveu a colonização da região, com a entrega de terras ocupadas pelos indígenas às companhias colonizadoras; foi o estado que autorizou a empresa norte americana Brazil Railway Company a construir da estrada de ferro que ligava a cidade de São Paulo a Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e que culminou na Guerra do Contestado (1912-1916). Criada em 1906 por Percival Farquhar, a concessão da estrada destinou 15 quilômetros de faixa de terra de cada lado da ferrovia para extração de madeira, reduzindo a oferta de pinhões das araucárias e de outros alimentos comuns entre as comunidades indígenas.
Foi o Estado brasileiro que promoveu o confinamento dos indígenas pelo SPI por quase quatro décadas, no chamado processo de “pacificação”, que não foi nada pacífico. Foi o governo que projetou e construiu a barragem e quem também deu e dá ordens para fechamento de comportas.
Todas essas medidas afetaram profundamente o modo de vida e a autonomia territorial dos Xokleng. “É um histórico de desastres e ataques que não tem muitos precedentes na história do Brasil. Desde 1910, quando criaram o SPI, já foi para mediar o conflito de terras envolvendo os Laklãnõ, que estavam tendo suas terras invadidas pela Colônia Hanseática, e eles faziam as resistências que os colonos chamavam de ataques”, explica Nunes.
Em 1914, depois de anos sendo caçados e mortos por bugreiros contratados pelo governo e por companhias de colonização, os Xokleng praticamente se entregaram ao SPI para não serem completamente dizimados.
Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, filho do oficial austríaco Miguel Hörhann e sobrinho-bisneto do monarquista Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, foi o responsável pelo posto do SPI que atraiu os Xokleng em 1914 e confinou os indígenas numa área de 30 mil hectares. Em 1926, a área dos indígenas foi reduzida para 20 mil hectares e em 1952 para 14 mil hectares.
Setembrino conta que o seu avô, Womblé, foi quem fez o primeiro contato com não indígenas, junto com seu parceiro Kóvi. “Eles vieram para margem do rio e decidiram fazer o contato, depois de anos sendo perseguidos”, disse o cacique que é descendente direto dos Camlem, um clã laklãnõ de rezadores e curadores que são os que sabem interpretar sonhos e falas dos pássaros. “Hoje, nós somos os últimos Laklãnõ do Brasil”, diz o cacique.
Enquanto os indígenas permaneciam aldeados pelo SPI, as colônias alemãs chegaram a receber 600 mil hectares de terras em acordos com o governo de Santa Catarina e consolidaram áreas sobre o território indígena. A principal delas é a Colônia Hansa Hammonia, que tem origem na Companhia Colonizadora Hanseática Ltda., de Hamburgo na Alemanha, e se sobrepõe à Terra Indígena.
Já nesse período, empresas madeireiras começaram a explorar os limites do território e a assentar colonos ali. Por mais de 30 anos, Hoerhann manteve os Xokleng confinados ao Posto Indígena Duque de Caxias, onde os indígenas enfrentaram a violência institucionalizada e perderam grande parte da sua população para epidemias. Gripe, sarampo e varíola foram as mais comuns. Dos 400 indivíduos atraídos em 1914, restavam apenas 106 em 1932.
Mesmo assim, os relatórios do agente do SPI apontavam que os indígenas não ficaram restritos ao posto delimitado. Em relatório encaminhado em 1928 à Diretoria do SPI, Hoerhann afirma que “os índios botocudos deste Posto, sempre [...] sahem em suas excursões ou para caçar ou para colher pinhões nos pinheirais do alto da serra, na região dos campos (sic)”.
Hoerhann foi acusado de se apropriar de parte das terras dos indígenas e de negociar parcelas do território com a empresa madeireira Leopoldo Zarling. Em 1954, Hoerhann deixou o posto do SPI acusado de participar da morte do indígena Brasílio Priprá.
Durante o período que Hoerhann comandou o SPI, as lideranças nas colônias alemãs assumiram fortemente o partido nazista, com planos de dominar a região. A colônia Hansa-Hamônia, sobreposta ao território xokleng, era a que tinha mais filiados ao partido em Santa Catarina: 2.475, segundo apontou Antônio de Lara Ribas em seus relatórios de investigação e que estão compilados no livro “O Punhal Nazista No Coração do Brasil” (1943).
A passagem de Hoerhann pelo território criou raízes profundas com diferentes sentimentos e efeitos na vida dos Xokleng. Mas sua saída tampouco resultou no fim das opressões.
Em 1963, uma invasão organizada por empresários com centenas de famílias camponesas tomou os últimos 15 mil hectares que restaram aos Xokleng até então. Sem apoio, as lideranças se deslocaram a pé até a capital Florianópolis para denunciar e cobrar uma solução.
Depois de Hoerhann, os madeireiros e outros invasores pressionaram ainda mais as terras dos Laklãnõ-Xokleng, até que em 1975 é anunciada a construção da Barragem Norte. Em 1991, os indígenas fizeram a retomada de parte das terras que foram transferidas para Hoerhann, onde hoje está a aldeia Palmeira.
No livro “Os índios Xokleng - memória visual", o antropólogo Silvio Coelho, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), um dos maiores pesquisadores do povo Xokleng, conta que o mito do “vazio demográfico” foi utilizado, por décadas, como argumento para justificar o estabelecimento das colônias alemãs e italianas na região.
Txulunh não tem dúvidas de que somente a demarcação definitiva pode garantir os direitos dos Laklãnõ-Xokleng: “A gente espera ser reconhecido como cidadãos de direitos. Que tem direito sobre as nossas vidas, sobre o nosso território, sobre o nosso corpo. Ser reconhecido como sujeito de direito e ser reconhecido como cidadãos catarinenses natos. A gente é nativo desse estado e a gente vê muito essa negação ao longo de toda a história”.
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Grande conhecedor da cultura de seu povo e defensor de seu território, a liderança Mebengokré-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá faleceu em 31 de outubro
Nos últimos dias, tivemos mais uma notícia da morte de um Xikrin que abalou os corações do povo Mebengokré-Xikrin e de seus amigos.
Karangré Xikrin, também conhecido como Neguinho, um forte guerreiro de olhos brilhantes e sorridente. Karangré, nos deixou 31/10/2023 pela luta contra o câncer que se espalhou e não teve jeito. Nosso Neguinho passou seus últimos dias nos cuidados paliativos em Santarém, no Pará.
O povo Mebengokre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá está sofrendo perdas sucessivas de sua gente, como a de Bep Tok, o Cacique Onça, em decorrência de Covid-19, Bepjàti, Karangré Neto, Mané Gavião e mais uma velhinha da aldeia Kenkro de tuberculose.
Mortes evitáveis como os casos das perdas associadas à evolução de quadros de tuberculose. É difícil processar mortes por tuberculose na Trincheira-Bacajá ou em qualquer outro território em 2023, com tratamentos eficazes disponíveis.
Isso reflete um cumulativo de problemas que assolam o território e a vida do povo Xikrin do Bacajá. O “efeito Bolsonaro” na vida dessas pessoas foi cruel ocasionando o aumento de taxas de desmatamento, invasão e grilagem de suas terras, a partir de 2019.
Também os impactos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, como as mudanças no modo de vida e a fragilização da segurança alimentar das famílias associadas à ausência de ações de mitigação ou compensação. O desmonte de políticas públicas de saúde voltadas para atenção preventiva e diferenciada deixa essas marcas de dor, a dor das mortes evitáveis.
Importante dizermos aqui que as equipes de saúde que atuam no DSEI-Altamira são, na maioria dos casos, um exemplo de luta e heroísmo, trabalhando em condições precárias em muitas situações. A essas e esses profissionais deixamos aqui as nossas sinceras homenagens e nossa admiração.
Sem dúvida, Karangré acumulava amigos brancos e eu era mais uma amiga. Lembro a primeira vez que vi Karangré, em 2019, ele estava entoando cantos de guerra na casa do guerreiro, junto de outros Xikrin.
Desde então, voltei muitas vezes para a aldeia Mrõtidjãm, onde sempre o via sentado com sua esposa Irebô na sua casa com muitos cachorros ao redor. Nesse momento, eu levava remédios para os cachorros e, assim como em outras casas, fui aplicar injeções nos cachorros. Karangré, eu e Irebô, trancamos os cachorros dentro da casa e corríamos atrás deles até ele segurar os cachorros e eu aplicar a injeção.
Karangré sabia fazer muitos remédios do mato para animais, mas em alguns casos os remédios que eu trazia curavam mais velozmente. Foi aí que começamos nossa relação, Karangré me dizia que iria me levar no mato para me ensinar a fazer remédios para os cachorros, assim eu poderia cuidar de todos os animais da aldeia.
Logo veio a pandemia e não foi possível que eu aprendesse com Karangré sobre os remédios do mato para animais. Fui rever Karangré junto com a equipe de vacinação do DSEI em 2021.
Eu e Thaís Mantovanelli nos dividimos em uma manhã do dia 29/01/2021 para trazer os Xikrin da aldeia Mrõtidjãm na enfermaria para vacinação, depois de muitas conversas. Thaís surgia de um lado da aldeia com Karangré e Irebô e eu de outro lado da aldeia com Bepkrô e Iretô. Eles quatro foram os primeiros a se vacinar na aldeia Mrõtidjãm em 2021 e junto com eles 75 pessoas de 100 adultos.
Foi com Karangré que chorei a primeira morte de um Xikrin na aldeia, de seu neto morto com 23 anos de tuberculose, Karangré Xikrin Neto.
Karangré era feliz, gostava de falar para os brancos ouvirem, se preocupava com o mundo que deixaria para seus filhos e netos. Ter a sua terra sem invasões era sua pauta número um. Ele morreu em meio a desintrusão da TITB e pôde ver parte de seu sonho realizado, mesmo que não completamente.
Eu estou velho, mas ainda estou defendendo essa terra para meu filhos e netos. No tempo dos caciques mais velhos combatemos os madeireiros, expulsamos os madeireiros, também mandamos embora os garimpeiros e a FUNAI estava junto com a gente. Andávamos a Terra Indígena toda e expulsamos todos os brancos. Hoje em dia o assunto é grave, o pessoal vai nas invasões com os caciques, expulsam os brancos e eles voltam. Hoje temos muitas invasões na nossa terra que é demarcada e os grileiros pegam nossa terra e acabam com nossas castanheiras, acabam com nossa floresta. (Karangré Xikrin, ancião, aldeia Mrõtidjãm).
* Rochelle Foltram, doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos-UFSCar. Trabalha com o povo Mebengokré-Xikrin, no estado do Pará desde 2018. Tem experiência em trabalhos relacionados a violações de direitos humanos contra os povos indígenas e no manejo de produtos da sociobiodiversidade, que mantém a floresta em pé e contribuem para a redução dos efeitos climáticos. Além disso, luta junto do povo Mebengokré-Xikrin em todas as esferas sociais para melhoria de suas vidas e preservação de seu território
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O documentário "Mãri hi - A Árvore do Sonho" foi selecionado para a pré-lista do IDA Documentary Awards. Premiação é considerada a porta de entrada para o Oscar
O documentário "Mãri hi - A Árvore do Sonho" pode ser o primeiro filme dirigido por um cineasta indígena a representar o Brasil no Oscar. O curta do diretor Yanomami Morzaniel Ɨramari venceu o "É Tudo Verdade", festival classificatório reconhecido pelo Oscar, e disputa uma indicação à maior premiação do cinema na categoria de curta-documentário.
O filme estreou internacionalmente no Sheffield Doc Fest no Reino Unido e conquistou diversos prêmios nacionais como Melhor Fotografia e Especial do Júri, no 51º Festival de Gramado 2023 (Brasil). Foi exibido na Mostra Cinema de Inclusão do 80º Festival de Veneza, no Festival Internacional de Cine de Valdivia (Chile), e classificado para a restrita pré-lista da International Documentary Association (IDA) Awards.
Único representante brasileiro na lista do IDA Awards, Mãri hi convida a uma imersão na poética e nos ensinamentos dos povos da floresta pelas palavras do grande xamã Yanomami, Davi Kopenawa. O filme foi realizado na casa coletiva de Watorikɨ, na região do Demini, na Terra Indígena Yanomami (TIY), situada entre os Estados de Roraima e Amazonas.
A obra é uma produção Aruac Filmes em coprodução com a Hutukara Associação Yanomami e produção associada da Gata Maior Filmes, e integra o projeto “A Queda do Céu”, que conta com a produção de um longa-metragem livremente inspirado na obra homônima de Davi Kopenawa e Bruce Albert.
"O filme vai ajudar a fazer com que não-indígenas conheçam o povo Yanomami, conheçam as nossas imagens e comecem a pensar junto com os Yanomami para defender a terra e melhorar a saúde do nosso povo. Espero que todos possam defender o povo Yanomami, nos ajudar a viver em paz, livres de invasores e com boa saúde", afirma Ɨramari.
"Mãri hi" também será exibido com outras produções brasileiras que lutam por uma indicação ao Oscar, como "Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho ("O Som ao Redor", "Aquarius", "Bacurau"), "Incompatível com a Vida", de Eliza Capai, e "Big Bang", de Carlos Segundo, nos cinemas da Academia em Los Angeles durante o 15th Hollywood Brazilian Film Festival, que ocorre entre 6 e 11 de novembro.
Ficha Técnica
Direção
Morzaniel Ɨramari com Davi Kopenawa Yanomami
Direção de Fotografia e Câmera
Morzaniel Ɨramari
Produtores
Eryk Rocha, Gabriela Carneiro da Cunha
Montagem
Morzaniel Ɨramari, Rodrigo Ribeiro-Andrade, Julia Faraco, Carlos Eduardo Ceccon
Edição de Som
Waldir Xavier
Mixagem de Som
Guilherme Lima de Assis
Som Direto
Marcos Lopes da Silva, Morzaniel Ɨramari
Color Grading e Finalização
Caio Lazaneo
Desenhos Originais
Ehuana Yaira Yanomami
Tradutores
Ana Maria Machado, Richard Duque, Corrado Dalmonego, Marcelo Silva, Morzaniel Ɨramari
Supervisão Geral
Davi Kopenawa Yanomami, Dário Vitório Kopenawa Yanomami
Responsável Formação Audiovisual Yanomami
Marília Garcia Senlle
Produção Executiva
Heloisa Jinzenji
Coordenação de Produção
Margarida Serrano
Coordenação Financeira
Tárik Puggina
Gerente de Projeto
Lisa Gunn
Produtoras de Impacto
Marília Garcia Senlle, Carolina Ribas
Produção
Aruac Filmes
Coprodução
Hutukara Associação Yanomami
Produção Associada
Gata Maior Filmes
Apoio
Instituto Socioambiental (ISA)
Contatos
Aruac Filmes (Instagram: @aruacfilmes)
Margarida Serrano - margarida@aruacfilmes.com.br
Marília Senlle - mariliasenlle@gmail.com
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