Mesmo piorada, licença especial, suscetível a interesses políticos, foi aprovada com apoio do governo. Ambientalistas vão subsidiar ações no STF
Texto atualizado em 5/12/2025, às 11:40.
Sob a liderança dos ruralistas, e em acordo com o governo, o Congresso liquidou de vez o sistema de licenciamento ambiental no país como era conhecido até hoje.
Primeiro numa comissão especial mista e no plenário da Câmara, na terça (2/12), e depois no do Senado, ontem, foi aprovada e agora será convertida em lei a Medida Provisória 1.308/2025, que cria a Licença Ambiental Especial (LAE).
Trata-se de um tipo de autorização simplificada e acelerada para grandes obras, com impactos significativos, que forem consideradas “estratégicas” por um conselho de governo.
De acordo com ambientalistas e especialistas, o mecanismo abre caminho para corrupção e licenças concedidas para atender interesses políticos e econômicos, em prejuízo do rigor técnico (leia mais abaixo).
Conduzida pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), a votação no plenário da Casa durou pouco mais de um minuto e meio e foi feita sem debate e de forma simbólica, sem indicação nominal de voto. Alcolumbre tem interesse direto e foi o autor da proposta da LAE.
No plenário da Câmara, a votação do texto principal também foi simbólica. Apenas PSOL e Rede orientaram voto contrário. Mesmo com novos retrocessos incluídos de última hora na MP pelo relator, o deputado ruralista Zé Vítor (PL-MG), o PT e o governo manifestaram-se a favor. Os demais partidos fizeram o mesmo, liberaram suas bancadas ou não deram orientação (veja como cada partido votou).
“Se essa Medida Provisória não for aprovada, nós vamos ter um brutal retrocesso. Quem trabalhou nela na Comissão Especial conseguiu avanços”, afirmou o líder do PT na Câmara, deputado Lindbergh Farias (RJ).
A MP vencia na sexta (5/12) e foi apreciada por meio de outro acordo entre oposição e governo, fechado na semana passada, para que a LAE ficasse de fora da votação que derrubou os vetos à nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (15.190/2025).
Retrocesso histórico
O resultado final é o maior retrocesso ambiental no país em mais de 40 anos, com a ressurreição do texto da legislação apelidado de “PL da Devastação” ou a “mãe de todas as boiadas”, em função da gravidade de suas consequências. Na prática, o processo convencional de licenciamento, com análise prévia e controle dos órgãos ambientais, torna-se uma exceção, a simplificação e as dispensas de licenças, a regra (saiba mais no quadro ao final da reportagem).
Em nota, o Observatório do Clima (OC) chamou a aprovação da MP de “assassinato do licenciamento” e “atentado histórico”. E também já avisou que deve apoiar ações no Judiciário contra a nova legislação. “O Congresso comete um atentado histórico contra a saúde e a segurança dos brasileiros, contra o clima e contra o nosso patrimônio natural”, criticou Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do OC.
“Hoje assistimos ao maior ataque aos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais, à população urbana e ao equilíbrio ambiental”, avalia Alice Dandara de Assis Correia, Advogada do Instituto Socioambiental (ISA).
“Vamos ainda dimensionar toda a profundidade dos danos dessa lei, se ela se concretizar, mas já temos projeções e estudos que apontam para o caos ambiental”, alerta. Ela reforça que o ISA também deverá apoiar as ações de partidos políticos contra a nova lei.
Medida Provisória
A MP havia sido enviada pelo Planalto ao Congresso após os vetos, publicados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em agosto, para ajustar a redação sobre a LAE prevista na Lei 15.190, aprovada pelo Congresso em julho. Mas serviu também para agradar Alcolumbre, que vinha sendo um aliado essencial do Planalto. Com a MP, a LAE já estava valendo desde sua publicação, diferentemente do que estava previsto na Lei 15.190.
Apesar de ter rejeitado a maioria das 833 emendas à MP, o parecer de Zé Vítor piorou o texto na discussão na comissão mista, ampliando dispensas e simplificações de licenças para atender lobbies específicos. Alguns tipos de dragagens e a montagem de antenas de telecomunicação não precisam mais de autorização, por exemplo.
Segundo a MP, o empreendimento que for considerado “estratégico” deverá ser definitivamente aprovado em até um ano após a entrega do estudo e relatório de impacto ambiental (EIA-Rima) e documentos complementares. O prazo é considerado inviável para a avaliação de obras complexas, como hidrelétricas, grandes estradas e indústrias.
Organizações ambientalistas que acompanham o assunto avaliaram que a articulação política do governo falhou e não monitorou nem interveio como poderia nas negociações do parecer para evitar os novos problemas.
Com a votação desta quarta, os ruralistas mataram a fatura do tema – pelo menos por enquanto. Após os vetos, o Planalto também enviou ao Legislativo um projeto de lei, desta vez para tentar ajustar vários outros pontos da norma. A exemplo do que ocorreu até agora, no entanto, se a proposta andar, a perspectiva é que novos retrocessos sejam aprovados.
BR-319
Uma alteração incluída de última hora no relatório de Zé Vítor foi feita sob medida para acelerar o licenciamento do reasfaltamento da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), obra polêmica apoiada por políticos do Norte do país.
O texto aprovado prevê que serão consideradas estratégicas de antemão “obras de reconstrução e repavimentação de rodovias preexistentes cujos trechos representem conexões estratégicas, relevantes na perspectiva da segurança nacional, do acesso a direitos sociais fundamentais e da integração entre unidades federativas”.
Além disso, se a Licença Prévia já tiver sido dada, como é o caso da BR-319, os estudos para obtenção da Licença de Instalação deverão ser apresentados em até 90 dias, prazo igualmente considerado exíguo por técnicos e especialistas.
A estrada existe desde os anos 1970, mas seu trecho central perdeu o asfalto e fica intransitável no inverno amazônico. Segundo as pesquisas, a obra vai induzir a grilagem de terras e o desmatamento, colocando em risco uma das regiões mais preservadas da Amazônia.
O licenciamento está parado na Justiça e o governo anunciou que pretende realizar um plano para tornar o empreendimento sustentável, com a oficialização de terras indígenas e unidades de conservação e a promoção de atividades econômicas que não agridam a floresta, entre outras ações.
“Não se pode estabelecer em lei que determinados empreendimentos, como estradas, por exemplo, devem ser tratados, a priori, já dessa forma. E se, de repente, uma estrada não for estratégica?”, questionou o presidente da Frente Parlamentar Ambientalista (FPAmb), deputado Nilto Tatto (PT-SP). “Estamos fazendo uma coisa absurda, que é colocar uma LAE dentro de uma LAE”, avaliou.
Tatto manifestou voto contrário ao texto final da MP e disse que vai trabalhar para que o presidente Lula vete as alterações feitas no texto original do Planalto. Ele também defendeu que o governo entre com uma ação na justiça contra as modificações promovidas na Lei Geral do Licenciamento pelos ruralistas.
Os defensores da nova legislação repetiram o mesmo discurso de sempre de que o licenciamento burocratiza e dificulta os negócios e que as mudanças na lei vão promover o crescimento econômico.
“A LAE é mais uma oportunidade que o Congresso Nacional oferece para tirar do papel os projetos estratégicos que o Brasil precisa para voltar aos trilhos do crescimento, com segurança e preservação ambiental”, afirmou o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Pedro Lupion (Republicanos-PR).
Quais os principais pontos da nova legislação?
Licença Ambiental Especial (LAE). Um tipo de licenciamento simplificado para grandes obras que forem consideradas “estratégicas” por um conselho de governo. O empreendimento deverá ser definitivamente aprovado em até um ano após a entrega do estudo e relatório de impacto ambiental (EIA-Rima) e documentos complementares. Independente da complexidade dos impactos, o processo poderá ser feito em até uma etapa, e não em três, como acontece hoje para grandes projetos econômicos. Segundo mudanças incluídas na comissão especial mista de última hora, obras de manutenção de rodovias e reasfaltamento passam a ser consideradas automaticamente “estratégicas”. Aprovada pelo Congresso em outubro e já sancionada pela Presidência da República, uma outra MP, sobre o setor elétrico (1.304/2025), já tinha determinado que qualquer hidrelétrica também seja classificada de antemão como "estratégica".
Mata Atlântica. Permite desmatamento no bioma mais ameaçado do país sem análise prévia dos órgãos ambientais estaduais ou federais. A medida abre brechas para que qualquer município, mesmo sem estrutura técnica, plano diretor ou conselho de meio ambiente, possa autorizar o corte de vegetação.
Autolicenciamento. A Licença por Adesão e Compromisso (LAC) vira regra, em prejuízo do modelo convencional, com análise prévia e controle do órgão ambiental. Qualquer empresário poderá obter a autorização preenchendo um formulário na internet e comprometendo-se de "boa-fé" a seguir algumas regras. O problema é que isso não vai valer apenas para empreendimentos de pequeno, mas também para os de médio porte e potencial poluidor. Na MP da LAE, foi incluído um dispositivo que diz que a mineração não poderá ser licenciada dessa forma, com exceção da exploração de areia, cascalho e brita e a faiscação de diamante.
Dispensa de licenças. A lei concede de antemão isenção de licenciamento para algumas atividades e empreendimentos econômicos, como agricultura, pecuária, “manutenção e melhoramento da infraestrutura em instalações preexistentes”, sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário. O texto da MP 1.308/2025 especificou que alguns tipos de dragagens e a montagem de antenas de telecomunicações igualmente estão dispensados de licença.
Estados e municípios. A lei concede poder quase ilimitado para os entes da Federação estabelecerem critérios para o licenciamento e sua própria lista de isenções. Isso tende a gerar confusão regulatória, insegurança jurídica e uma “guerra ambiental” entre quem flexibiliza mais suas regras para atrair investimentos.
Áreas protegidas. Terras Indígenas e territórios quilombolas cuja regularização não foi concluída não serão considerados para efeitos do licenciamento de empreendimentos e atividades econômicas que os impactem. As Unidades de Conservação só serão consideradas se o impacto for direto. No caso dos quilombos, mais de 80% das áreas com processos de titulação abertos não seriam levadas em consideração. Cerca de 32% dos territórios indígenas com processos de reconhecimento já iniciados também seriam desconsiderados. Os pareceres e avaliações dos órgãos de proteção dessas áreas, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), não precisarão ser considerados necessariamente no licenciamento.
Condicionantes. A lei isenta empreendimentos privados de cumprir as “condicionantes ambientais”, jogando a conta dos seus impactos para a população e os cofres públicos. As condicionantes previstas no licenciamento são as medidas obrigatórias de prevenção, redução e reparação de impactos socioambientais.
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