#ElasQueLutam! conta a trajetória da advogada Maíra Pankararu na luta pelo direito indígena à memória, verdade, justiça, reparação e não repetição
“Como a gente prova para vocês que estamos lutando por um futuro bom para todo mundo? Como a gente prova para vocês que se a gente implementar a Comissão Nacional Indígena da Verdade isso será bom para a sociedade como um todo, porque estaremos revelando verdades ocultas não só sobre os povos indígenas, mas sobre a história brasileira?”.
Foi com esse questionamento que Maíra Pankararu, uma das vozes mais proeminentes no tema de justiça de transição, memória e reparação para povos indígenas, urgiu a importância de que o Estado brasileiro dê sequência às investigações de violações de direitos humanos iniciadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2013 e que a sociedade civil também se sensibilize e engaje no tema.
Meses antes, em abril de 2024, em Brasília, Maíra Pankararu havia marcado seu nome como a primeira indígena responsável por relatar um pedido de reparação coletiva a indígenas na Comissão de Anistia. Relembre.
Indígena do povo Pankararu e advogada, Maíra é formada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), uma das mais antigas no país; especialista em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE); e mestre pela Universidade de Brasília (UnB).
Apesar de viver em Brasília, ela se considera uma pessoa do interior. “Eu gosto do ritmo lento, de um ritmo pacato, não gosto de barulho”.
Maíra é segunda de quatro filhos, nasceu em Tacaratu, município do sertão pernambucano onde mais de um terço da população também é indígena, segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Lá, foi criada junto aos seus parentes na aldeia Brejo dos Padres, na Terra Indígena Pankararu.

Se existe um provérbio africano que diz que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança, Maíra defende que não é preciso ir longe para ver isso se comprovar. “Isso acontece aqui. O povo Pankararu vive isso. Na minha infância, eu vivi isso”.
Ela lembra que passava todos os dias brincando com seus primos pela aldeia e só voltava ao anoitecer. “Todo mundo cuidava das crianças, porque é uma responsabilidade de todos ali. Então para mim, foi um privilégio, mas eu só entendi como privilégio quando saí, quando já estava adulta”, recordou.
O que para ela era um privilégio, não durou muito. Quando tinha apenas cinco anos de idade, sua família precisou deixar a aldeia onde viviam para que Maíra e seus irmãos pudessem ter uma educação de qualidade.
A situação evidenciou o racismo da sociedade contra a população indígena. Em uma época em que o acesso à universidade era limitado, sua mãe, Bethe, mesmo com um diploma do Ensino Superior, não conseguia emprego na região. Foi apenas no município de Custódia, a 245 km de distância de sua terra natal, que sua família pôde se estabelecer e sua mãe conseguiu enfim exercer o ofício de professora.
Aos 17 anos, em 2009, Maíra precisou ir ainda mais longe. Sozinha, na capital do seu estado, Recife, ingressou na UFPE. Na época, a discussão sobre cotas étnico-raciais ainda não tinha a força de uma normativa federal como a Lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas, que seria sancionada só três anos mais tarde, em 2012.
“Foi um momento muito sui generis. Não tinham pessoas indígenas onde eu estava, então não tinha como olhar para o lado e ver outra pessoa indígena e dividir certas angústias, anseios e dificuldades”, lembrou.
Apesar de acreditar que atualmente os alunos indígenas seguem passando pelas mesmas situações de racismo e pressões que ela vivenciou 15 anos atrás, Maíra vê positivamente o aumento da presença indígena nas universidades e destaca o importante papel, e em contraponto, a grande responsabilidade das gerações que, assim como ela, passaram pelo lugar de serem as primeiras indígenas a se formarem.
“Eu olho para essas pessoas como meu tio, Paulo Pankararu; como Joenia Wapichana; Eloy Terena; Samara Pataxó; Fernanda Kaingang, e vejo como foi difícil para elas. Por isso, quando vejo as novas gerações e vejo como estão fortalecidas. Eu fico muito feliz e o que eu puder fazer para ajudá-las, eu faço”, afirmou.
Nos passos de outras mulheres
Para seguir, Maíra encontra a força no exemplo de mulheres como sua mãe e sua avó, a quem descreve como “forças da natureza”. “As mulheres Pankararu são fortes, são guerreiras. Eu sou privilegiada por ser rodeada de mulheres assim”. Ela cita também sua tia, Maria das Dores Pankararu, a primeira indígena a conquistar o título de doutora no Brasil, além de Quitéria Binga, importante liderança na luta pela educação e pela demarcação das Terras Indígenas do povo Pankararu.
Na política, ela vê com admiração a atuação de Sonia Guajajara: “o posto que ela está hoje é muito difícil de estar, mas ela consegue fazer de uma forma diplomática, com muita sutileza e com um jeito muito bonito e forte de fazer política”.
Célia Xakriabá, com quem atuou por um ano, também aparece como uma referência de força. “Eu convivi muito perto da Célia e vi tudo que ela passa, todos os tipos de racismo que ela vivencia na Câmara. E, ainda assim, ela é uma mulher que de tudo ela faz poesia. Ela é um exemplo para mim de uma mulher do Cerrado”.
A primeira indígena na Comissão de Anistia
Maíra se tornou advogada em 2015; passou de primeira no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); fez um intercâmbio na Austrália para aprimorar seu inglês; uma pós-graduação; e em 2020, pouco antes da pandemia de covid-19, foi selecionada no mestrado em Direito da UnB.
Se durante a pandemia Maíra achava que seu futuro seria no sertão pernambucano, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência, em 2022, mudou tudo.
Depois de um período como assessora jurídica do mandato da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG), Maíra foi convidada a ser a primeira conselheira indígena da Comissão de Anistia, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Recebeu o convite de sua orientadora no mestrado e à época recém-nomeada presidente da Comissão de Anistia, Eneá Stutz. “Nunca passou nada disso pela minha cabeça”, conta ela.

A Comissão é um órgão do Estado brasileiro, criado por meio de um decreto em 2002, responsável por julgar e estabelecer políticas de reparação e memória às vítimas de violações aos direitos humanos. Durante o governo Bolsonaro, o órgão, sob a batuta do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Damares Alves, negou sumariamente diversos requerimentos de anistia.
Apenas sob a nova gestão que esses casos puderam ser revistos e foi institucionalizada a possibilidade de solicitações de reparação coletiva – antes, eles eram restritos a indivíduos. Neste contexto é que Maíra assumiu uma das cadeiras como conselheira e foi a relatora do caso do povo Guarani Kaiowá da Terra Indígena Guyraroká, vítimas de violações como remoção forçada de suas terras, tentativa de extermínio e desagregação social.
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A sessão que julgou os primeiros requerimentos coletivos de anistia também contou com outras inovações, como recomendações aos entes federativos, por exemplo, a de que a União demarque a Terra Indígena Guyraroká. “É uma tentativa de ajuda dentro das competências da Comissão da Anistia para que esses direitos que já são dos povos indígenas sejam garantidos”, explica Maíra.
Além de sua atuação na Comissão, após um ano atuando como assessora parlamentar, Maíra Pankararu também foi assessora do presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Lelio Bentes Corrêa, no biênio 2022-2024. Sobre a sua passagem pelo tribunal, ela frisa a importância de que as minorias sociais, assim como ela, ocupem posições para pensar em como as questões afetam diretamente essas populações. No entanto, ela não desconsidera a solidão desse lugar. “É um lugar desafiador, eu era a única mulher indígena, mas acho que as outras minorias também sentem um pouco isso também”.
“É complicado chegar em alguns lugares e ter que explicar, por exemplo, que talvez não entendam alguns parentes porque o português não é a primeira língua deles, que ainda tiveram que sair de lá, vir para esse mundo branco falar em português fluente e estão aqui, falando de igual para igual, e vocês ainda reclamam da fluidez?”, indaga. “É pelo constrangimento. Obviamente que é pedagógico, mas fere a gente”, completa.
Atualmente, Maíra não ocupa mais os cargos na Comissão e no TST, mas as maiores lições aprendidas em sua trajetória vieram justamente da necessidade de sair de sua aldeia para viver no mundo não indígena. “Foi uma dura lição entender que está tudo bem viver em outros lugares, ser estrangeiro em outros lugares. Eu só espero que eu e meus parentes sejamos bem recebidos quando a gente for estrangeiro nos lugares que a gente não pertence”, finaliza.