Às vésperas da COP30, os conhecimentos e práticas de povos indígenas e comunidades tradicionais apontam caminhos concretos para enfrentar a crise do clima
*artigo originalmente publicado no Valor Econômico.
O ano de 2025 começou com uma notícia climática alarmante: foi registrado o janeiro mais quente da história. O dado veio após 2024 ultrapassar a marca de 1,5°C de aumento na temperatura média da Terra em relação ao período pré-industrial - limite estabelecido pelo Acordo de Paris para evitar impactos catastróficos.
Essas informações reforçam a urgência de medidas práticas a serem definidas na COP30, a 30ª Conferência da ONU sobre mudanças climáticas, que acontecerá em Belém entre 10 e 21 de novembro.
Sendo a primeira na Amazônia, a conferência traz a oportunidade de ampla participação de indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais. Em 2024, esses povos lançaram a campanha "A Resposta somos nós", reivindicando protagonismo nos espaços de decisão.
Uma dessas respostas vem das economias da sociobiodiversidade, praticadas ancestralmente por pelo menos 28 povos tradicionais do país. A COP30 poderá tornar internacionalmente conhecida — e reconhecida — a resposta econômica e climática que vem dos territórios.
No centro dessa economia estão os Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs), conjunto de conhecimentos que detém sofisticadas tecnologias para enfrentar a crise climática: produz alimentos, movimenta a economia e, ao mesmo tempo, protege a natureza, promovendo ativos como a biodiversidade, cuidado com a água e regulação climática.
Esses sistemas se contrapõem aos meios degenerativos de produção, como o agronegócio. Não estão estruturados em monocultura, mas em diversidade e regeneração de ecossistemas.
Dessa forma, a diversidade ganha espaço com alimentos nem sempre encontrados nos supermercados, como o buriti, o açaí do mato, a castanha de baru, a bacaba, o sal de aguapé e uma grande variedade de mandioca e milho.
Só no Alto Rio Negro (AM), por exemplo, são 300 espécies de mandioca cultivadas pelos 23 povos indígenas que convivem na região. Variedade garantida inclusive pelas relações de trocas estabelecidas entre as mulheres, que perpetuam espécies, laços e histórias.
Assista a reportagem do NatGeo sobre o SAT do Rio Negro
Está comprovado que, onde tem povos e comunidades tradicionais, tem floresta protegida. Relatório do Instituto Socioambiental (ISA) com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) aponta que, na Amazônia, no período de 2023/2024, a perda de vegetação foi de apenas 1,74% nas Terras Indígenas, em contraste com 27% fora delas. No Cerrado, o desmatamento nas TIs foi de 5,89%, sendo de 54,4% em outras áreas.
Outra pesquisa, dessa vez da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e do ISA, mostra que, de 2003 a 2022, os quilombos perderam 1,4% de florestas, sendo que no entorno as perdas foram de 82%.
As economias da sociobiodiversidade são também vitais para as demais cadeias da economia nacional, do agronegócio à geração de energia, que dependem do equilíbrio de chuvas e da qualidade dos solos e da água.
Além disso, levantamento do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) — com base em informações do IBGE e de sua própria rede de parceiros — indica que as economias da sociobiodiversidade movimentaram R$ 17,4 bilhões e geraram 525 mil postos de trabalho. Essa é uma pequena parte dessas economias, pois a maior parte ocorre informalmente e se encontra invisibilizada pelos dados oficiais.
Importante destacar que as economias da sociobiodiversidade diferenciam-se da bioeconomia que, conforme definição da Embrapa, é um modelo industrial baseado no uso de recursos biológicos com objetivo de oferecer soluções sustentáveis.
Mais do que de produtos, as economias da sociobiodiversidade devem ser entendidas, valorizada se promovidas como sistemas de conhecimento, de inovação e de serviços de conservação.
Esses sistemas vêm gerando abundância e preservação há milhares de anos, como mostra o projeto de arqueologia Amazônia Revelada, que questiona a ideia de floresta intocada e indica que a paisagem amazônica é resultado do manejo promovido há pelo menos 12 mil anos por diferentes povos.
Apesar de sua relevância, essas economias estão sob constantes pressões do agronegócio, do garimpo ilegal e de madeireiros, por exemplo. Soma-se a esse cenário crítico, a crise climática. Entre 2024/2025, por exemplo, não houve safra da castanha da região da Terra do Meio (PA) devido à seca na Amazônia.
Há ainda entraves no acesso a políticas públicas - o que gera dificuldades de crédito e incentivos tributários, inclusão sanitária, questões logísticas e carência dedados oficiais.
A proposta inicial da Reforma Tributária, por exemplo, não previa incentivos aos produtos da sociobiodiversidade, o que foi alterado após ampla campanha da rede ÓSocioBio.
O mesmo ocorre com o crédito rural. Outra mobilização, também coordenada pelo ÓSocioBio, revelou que, em 2024, a pecuária - um dos principais setores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa no Brasil - abocanhou 91,7% dos recursos do Pronaf na Amazônia, enquanto menos de 2% foram destinados às cadeias da sociobiodiversidade.
Para prosperarem plenamente, essas economias demandam políticas públicas coordenadas e adequadas às realidades dos territórios. A garantia e a segurança do território são o ponto de partida.
Programas de aquisição de alimentos, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), vêm se mostrando eficazes na geração de renda, segurança alimentar e regulação climática, quando adequados aos territórios. Ao promoverem as roças tradicionais, ajudam a preservar as florestas.
Outra possibilidade vem da política de Pagamento por Serviço Ambiental (PSA), que propõe mecanismos de reconhecimento dos serviços ambientais providos pelos povos tradicionais.
As economias da sociobiodiversidade são cruciais para a transformação ecológica no Brasil, representando um diferencial único baseado na inovação e no conhecimento dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Para sua potencialização, é preciso mais que o festival de cores e sabores de alimentos da Amazônia que a COP promete. É necessário que incentivos do Estado se alterem, reconhecendo as economias da sociobiodiversidade como caminho concreto diante da crise climática e das desigualdades sociais, apontando ao futuro em que a economia esteja a serviço da vida - e não o contrário.
A COP30, inclusive pela urgência, é o momento ideal para dar início a essa mudança. Mostrar ao mundo esse sistema funcionando plenamente na Amazônia, no Cerrado, na Caatinga, no Pantanal, na Mata Atlântica, no Pampa e nas águas é uma obrigação climática. É uma oportunidade para a economia do Brasil para além da COP30.
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