Seminário no Rio de Janeiro e oficina em Brasília, realizados com apoio do ÓSocioBio, colocam em xeque o sistema agroindustrial e denunciam pressões racistas e excludentes
Na cultura do povo Baniwa, a pimenta é mais que um alimento. É um remédio que previne, cura e recupera. Desde o plantio até o consumo, as práticas de manejo milenar cuidam e promovem diversidade de espécies de pimenta que, no território desse povo, no Alto Rio Negro (AM), chegam a cerca de 80.
Há alguns anos, a Pimenta Baniwa vem sendo comercializada por meio da Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI), que precisa traduzir para o mercado toda essa riqueza.
“Temos toda essa diversidade, mas, às vezes, o mercado quer só um tipo de pimenta. Esse não é o nosso sistema”, diz André Baniwa, consultor na área de Medicinas Indígenas do Ministério da Saúde e membro da OIBI, trazendo reflexões sobre diferentes sistemas.
“É preciso criar uma normativa específica para que os povos indígenas e quilombolas não sejam pressionados, mas que mantenham e multipliquem a diversidade”, afirma. “A floresta não emite nota fiscal quando a gente vai para a caça ou vai pegar buriti, buritizeiro. Tudo isso é invisibilidade para o estado, mas é o que sustenta”, completa.
André Baniwa foi um dos participantes das mesas do “Seminário (In)Segurança Alimentar sob o Microscópio: Sistemas Tradicionais Desafiam o Paradigma Industrial - SAM”, no Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
As tensões entre os sistemas alimentares convencionais ligados, por exemplo, ao agronegócio, e aqueles praticados por pequenos produtores e povos e comunidades tradicionais estiveram no centro das discussões deste seminário e da Oficina Desafios para a Inclusão Sanitária dos Alimentos, em Brasília, que aconteceram entre 26 e 29 de novembro.
“É urgente atender às demandas que povos e comunidades tradicionais e pequenos produtores têm reiterado: a construção de um sistema produtivo mais justo, menos racista e menos excludente”, afirma a engenheira de alimentos Bianca Tozato, que atua no Eixo Economias da Sociobiodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA) e integra a rede ÓSocioBio.
Ela explica que as normas sanitárias foram estruturadas para atender modelos baseados em grande produção, o que acaba excluindo sistemas que não se encaixam no mercado de escala.
O seminário e a oficina tiveram apoio do Observatório das Economias da Sociobioeconomia (ÓSocioBio), sendo que o documento final irá apoiar as ações para inclusão sanitária dos sistemas tradicionais.
Uma das mobilizações do ÓSocioBio acontece em torno da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC 49, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Essa norma prevê a inclusão social, produtiva e de boas práticas estabelecidas pelos órgãos de vigilância sanitária e, ao mesmo tempo, considera os costumes e conhecimentos tradicionais. Entretanto, está em risco de ser revogada.
Nas mesas de diálogos, lideranças quilombolas, indígenas e produtores mostraram que os sistemas alimentares considerados à margem estão plenamente vivos e fartos, apesar das diversas pressões.
Liderança quilombola, estudante de pedagogia, mãe e agricultora, Vanilda Donato, do Quilombo Porto Velho, no Vale do Ribeira (SP), afirmou que "o alimento é nossa identidade e pertencimento" e criticou o modelo educacional que desvaloriza a cultura alimentar tradicional, oferecendo "achocolatados, bolachas e pães" em detrimento de alimentos como banana frita e bolinha de chuva, e desmotivando os jovens a permanecerem no território.
Pesquisadora Aliança Científica Antirracista e integrante da Coordenação Nacional Comunidades Rurais Quilombolas (CONAQ), Fran Paula denunciou as pressões para o apagamento da cultura quilombola e reforçou as vozes contra-hegemônicas a processos coloniais que não reconhecem a governança dos povos e comunidades tradicionais que contam com diversidade, interdependência, governança comunitária, tecnologia e ecologia ancestrais e, ainda, o muxirum - ou mutirão - como elementos para organização e gestão do território.
“As práticas agroecológicas de produção nesses territórios provocam uma ruptura do sistema. A semente não é só para banco genético de variedades, somos o povo que mais conserva biodiversidade no planeta, conforme os documentos da ONU”, diz.
Ela ainda trouxe o conceito da "Paz Quilombola", cunhado pela historiadora Beatriz Nascimento. “Os territórios quilombolas, indígenas, quando estão em paz, são altamente produtivos, com potencialidades de reprodução de seus modos de vida, de seus sistemas alimentares, das suas percepções de organização e gestão territorial. A Paz Quilombola é o ápice da liberdade e da produtividade e o alimento tem um papel central”, completa.
Ao lado de Fran Paula, Kregg Hetherington (Canadá), especialista em Estado burocrático e desenvolvimento na América Latina, trouxe informações de sua atual pesquisa atual sobre o boom da soja e seus impactos.
Dando continuidade às reflexões, Bianca Tozato integrou uma das mesas do seminário ao lado de Will LaFleur (Finlândia), que tem pesquisas em práticas de fermentação e etnografia sensorial, e Victor Secco, antropólogo e pós-doutorando na Universidade Ca’ Foscari (Itália).
Com atuação em territórios como Terra do Meio (PA), Rio Negro (AM), Território Indígena do Xingu (MT) e Yanomami (RR e AM) e Vale do Ribeira (SP), ela trouxe uma série de exemplos sobre o manejo de alimento promovido por indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, com indicadores que mostram a segurança sanitária.
Alguns dos exemplos são a castanha coletada por indígenas e beiradeiros da região da Terra do Meio (PA) e o cacau Yanomami que são fornecidos para as indústrias.
“Os levantamentos e as análises que fazemos indicam a segurança desses alimentos e das práticas de indígenas e quilombolas. Ainda assim, temos grandes dificuldades para conseguir as certificações da Vigilância Sanitária”, diz.
Ela defende a inclusão sanitária, com regras de segurança que considerem as diferenças de produção, levando em conta fatores como escala, além de elementos culturais, que incluem partilhas, afetos e produção familiar.
Bianca Tozato reforça que a temática da inclusão sanitária vem sendo abordada como uma questão política, e não apenas técnica ou de saúde pública. “Essa não é só uma questão técnica ou de saúde, mas sim uma decisão política. Afinal, produtos como cigarros, bebidas alcoólicas e agrotóxicos seguem liberados no país. Por outro lado, produções de pequenos agricultores vêm sendo excluídas e até criminalizadas”, alerta.
O produtor de queijo Canastra na cidade de Medeiros (MG) e membro do Slow Food Brasil, Luciano Carvalho, sente no seu dia a dia essa dificuldade. Luciano Carvalho trouxe sua experiência como produtor e fez um contraponto ao sistema higienista, dando um viva aos micróbios que contribuem com a qualidade e com a diversidade do solo, necessárias à sua produção.
Ele informa que análises feitas nos últimos anos comprovaram que não foram identificados riscos sanitários relacionados a microrganismos patogênicos ou toxinas no queijo fabricado com leite cru, mesmo naqueles com pouco tempo de maturação. “Aguardei por mais de 20 anos a comprovação da ciência daquilo que nós já sabíamos”, disse.
Carvalho participou de uma das mesas ao lado de Élise Demeulenaere (França), pesquisadora com foco em Etnobiologia e Antropologia do Meio Ambiente; e de Rosângela (Bibi) Cintrão, pesquisadora associada ao Centro de Referência em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Ceresan).
Bibi Cintrão criticou a legislação sanitária vigente, que, ao se basear no modelo agroindustrial e em indicadores microbiológicos padronizados, desqualifica produtos artesanais – como o queijo de leite cru de Luciano Carvalho – e exclui pequenos produtores.
Na França, onde também há pressão sobre a produção do queijo com leite cru, há uma mobilização de pesquisadores, cientistas e jornalistas e outros profissionais em defesa da microbiodiversidade do queijo. Élise Demeulenaere explica que foram criados grupos de trabalho que fazem, por exemplo, levantamento da literatura sobre os riscos e benefícios do queijo de leite cru e, ainda, promovem conferências para debates sobre o tema.
Ana Paula Perrota, professora de antropologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, reforça que é necessário dar visibilidade a formas de produção para além dos modelos massificados.
“Apesar de várias pesquisas e estudos que associam o modelo industrial massificado de produção de alimentos a problemas sociais, ambientais e de saúde, esse modelo continua sendo entendido como correto, seguro, para o qual todos os outros deveriam tender. Estamos aqui para colocar em questão esses modelos e, ao mesmo tempo, dar visibilidade a essas outras formas de organização social e sistemas alimentares que produzem de maneira diferente”, diz.
Pesquisador Rob Wallace lança livro sobre riscos do modelo agroindustrial
O escritor, pesquisador e biólogo evolucionista Rob Wallace (EUA) esteve presente no seminário no Rio de Janeiro e na oficina em Brasília e lançou o livro “Grandes fazendas produzem grandes gripes".
Com base em pesquisas, Wallace indica que a agricultura industrial, ao confinar milhares de animais geneticamente similares, funciona como uma “fábrica de patógenos”, onde gripes como H5N1 e H1N1 encontram terreno fértil.
Durante o “Seminário (In)Segurança Alimentar sob o Microscópio”, no Rio de Janeiro, Wallace participou da mesa ao lado de André Baniwa e Ana Paula Perrota, trazendo dados sobre a intensificação da produção e seus riscos: A consolidação global da pecuária intensiva, impulsionada por grandes players, transforma animais em commodities sujeitas à volatilidade do mercado.
O objetivo financeiro leva a práticas extremas: a criação de frangos para alta produção de ovos resulta em fraturas em 80% dos animais, por exemplo. E os sistemas propiciam o aparecimento de doenças.
O pesquisador e escritor inverteu a lógica da causa de pandemias como a gripe aviária, indicando que os pontos críticos de doença são os centros financeiros - Nova York, Londres, por exemplo, - que financiam o desmatamento, e não as origens geográficas de alguns surtos.
Alinhado com esse tema, o geógrafo e pesquisador Allan de Campos Silva compartilhou informações disponíveis no site do Observatório de Saúde, Trabalho e Ambiente no Agronegócio (ObAgro), dedicado a temas relacionados a áreas de trabalho, saúde e meio ambiente no agronegócio. (https://www.obagro.com.br/)
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