Após sete anos de luta, DNIT ouve os xinguanos e altera sua proposta de traçado para a BR 242
Estudos ainda não começaram e falta muito para a obra ser autorizada. Decisão do órgão responsável pela construção da rodovia é resultado da luta dos povos do Xingu por seu direito à Consulta Livre, Prévia e Informada
Em julho de 2017, caciques e lideranças do Xingu enviaram pela primeira vez uma carta ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) reivindicando alteração no traçado da rodovia BR 242.
De lá pra cá, os povos do Xingu fizeram diversas manifestações reivindicando seu direito à Consulta Livre, Prévia e Informada antes que a obra fosse iniciada.
Sete anos depois, em fevereiro de 2024, a luta deu resultado: o DNIT oficializou o atendimento à reivindicação dos povos do Território Indígena do Xingu (TIX) e alterou sua proposta de traçado para a BR 242.
A proposta original do DNIT previa a abertura de mais de 40 quilômetros de estradas em áreas de floresta na região das nascentes do Rio Xingu, em trecho que ligaria o município de Gaúcha do Norte a Querência. Os xinguanos questionavam por que não projetar a BR 242 sobre estradas já existentes na região, passando pelo município de Canarana, sem precisar derrubar uma árvore sequer.
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Mapa comparativo das propostas do DNIT e dos xinguanos em relação ao traçado da BR 242
Em outra parte da BR 242, entre Gaúcha do Norte e o Distrito de Santiago do Norte, os povos do Xingu reivindicavam mais uma alteração no traçado: a proposta do DNIT impactava diretamente a paisagem cultural sagrada de Kamukuwaká, sítio arqueológico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
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Paisagem cultural sagrada de Kamukuwaká, sítio arqueológico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)|Piratá Waurá
Nesse caso, também seria necessário abrir um novo trecho de rodovia em área de floresta preservada, além de construir uma ponte sobre o Rio Batovi em cima da paisagem de Kamukuwaká. Os xinguanos pediam o mínimo: realizar um desvio no traçado proposto pelo DNIT aproveitando estrada e ponte já existentes na região, afastando a BR 242 em 12 quilômetros do patrimônio histórico tombado.
A paisagem sagrada de Kamukuwaká tem sofrido com invasões constantes de pescadores. Apesar de tombado pelo Iphan desde 2010, o local é completamente desprotegido. Em 2018, o principal painel de arte rupestre de Kamukuwaká foi depredado em ação criminosa. Inquéritos foram abertos pelo Ministério Público, mas ninguém foi responsabilizado e nenhuma ação reparatória foi proposta.
Kamukuwaká é um sítio arqueológico vivo. Os povos que vivem atualmente no TIX seguem frequentando o local, revivendo ritos e histórias da criação do mundo que lá se sucederam em tempos imemoriais.
Conheça esse patrimônio vivo do Xingu no vídeo da Associação Terra Indígena Xingu (Atix) e da Rede Xingu+, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA). Assista!
Consulta e vitória
A proposta de traçado defendida pelos xinguanos ao longo desses anos foi acolhida pelo DNIT em manifestação oficial do órgão em fevereiro deste ano. No entanto, a obra ainda não está autorizada. Os estudos de impacto sobre a vida dos povos do TIX ainda nem começaram. Os xinguanos deram várias contribuições para a metodologia de pesquisa e participarão ativamente dos trabalhos práticos e teóricos da equipe responsável pelo trabalho. Mais uma conquista fruto de muita negociação com o governo.
Em 2019, os xinguanos foram a Brasília e convenceram o governo a assinar um acordo de Consulta Livre, Prévia e Informada. Além da BR 242, a Ferrovia de Integração do Centro Oeste (FICO) também é objeto do acordo. Nenhuma licença ambiental pode ser emitida para essas obras sem ouvir e negociar com os xinguanos primeiro.
Esse é um importante caso de aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), acordo internacional do qual o Brasil é signatário que garante aos povos indígenas o direito de serem ouvidos sempre que o governo planeja ações que possam impactá-los.
Em julho de 2023, DNIT, Ibama, Funai, Iphan, os ministérios dos povos indígenas e dos transportes e a Infra SA estiveram no TIX pela primeira vez para tratar dessas obras e dialogaram com mais de 100 lideranças indígenas durante três dias na 9ª edição da Reunião de Governança Geral do Território Indígena do Xingu (GGTIX).
“Se eu entrar na igreja, destruir alguma coisa ali, ninguém vai deixar. Porque ali é um lugar sagrado. É a mesma coisa: Kamukuwaká e Sagihengu são lugares muito sagrados. Ali está a nossa história, ali é nossa raiz”, afirmou na ocasião o cacique Tapi Yawalapiti. Kowo Trumai reforçou: “Eu estou aqui falando em nome das nossas crianças, vamos seguir a estrada que já existe”. Depois deles, caciques e lideranças dos 16 povos do TIX argumentaram e provaram que o diálogo com os povos indígenas leva a decisões melhores, mais sensatas e benéficas para toda a sociedade brasileira.
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Cacique Yapatiama Waurá assina encaminhamento para a BR 242 durante a reunião de Governança Geral do Xingu, em julho de 2023|Piratá Waurá/ISA
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Da esquerda para a direita: cacique Tapi Yawalapiti e Yapatiama Waurá, durante a reunião de Governança Geral do Xingu|Piratá Waurá/ISA
Muito além do traçado da BR 242
Uma série de medidas estão sendo reivindicadas pelos povos xinguanos que não se limitam à alteração do traçado da BR 242. A possível construção da BR 242 e da FICO na região das nascentes do Rio Xingu vai aprofundar um cenário de intenso desmatamento, assoreamento dos rios, morte de nascentes, diminuição de peixes, desequilíbrios ecológicos e climáticos, aumento das lavouras com consequente aumento da contaminação por agrotóxicos, dentre uma série de outros problemas já sentidos na região que precisam ser estudados e revertidos.
A sustentabilidade da vida no Xingu está ameaçada. O Estado do Mato Grosso e os municípios da região promovem um modelo de desenvolvimento econômico que destrói as florestas, seca e contamina os rios. Enquanto que na Amazônia Legal Brasileira o desmatamento caiu 22% entre agosto de 2022 e julho de 2023 em relação ao mesmo período do ano anterior, no Mato Grosso, o desmatamento aumentou 8%, passando de 1,9 mil km² para 2,08 mil km² no período [PRODES 2023, INPE].
Ao mesmo tempo, o Mato Grosso está há mais de uma década tentando aprovar uma Lei de Zoneamento Socioeconômico e Ecológico sem sucesso. A lentidão demonstra que não é prioridade para a amplamente majoritária bancada ruralista na Assembleia Legislativa do Mato Grosso regular o uso e a ocupação do solo. A ausência de regras tem se mostrado mais favorável aos interesses dos grandes produtores rurais.
“Os povos do Xingu vem contribuindo de maneira cada vez mais decisiva com o desenvolvimento regional, com sensatez e visão de futuro. A cada ano, ampliam sua participação nos espaços de tomada de decisão, se organizam para defenderem seus direitos e contam com o apoio da sociedade civil organizada que, assim como eles, almeja um futuro de rios limpos, florestas em pé e diversidade política e cultural”, afirma Ivã Bocchini, coordenador-adjunto do Programa Xingu do ISA.
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liderança Ana Terra Yawalapiti (ao fundo) na 9ª GGTIX. Reunião sobre a BR 242 reuniu mais de 100 lideranças de 16 povos do Xingu|Piratá Waurá/ISA
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A ‘água boa’ da qual Mato Grosso e Brasil dependem
Em abril, mobilizações indígenas acontecem no momento em que a preservação de Áreas Protegidas para a produção das chuvas e regulação do clima está em debate no Estado
Rafael Nunes
- Analista de Políticas Climáticas do ISA
Crianças no Rio Araguaia (MT). Bacias hidrográficas do Estado são essenciais para o sistema de águas amazônico|Alexandre Macedo/Mó Documental
Entre 2 e 5 de abril, aconteceu o 2º Acampamento Terra Livre (ATL) em Cuiabá, na Praça Ulysses Guimarães. Organizado pela Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT), a mobilização precede o ATL Nacional, que será realizado no fim do mês em Brasília. Em Mato Grosso, o mote do encontro foi “Construindo nossas perspectivas territoriais e de direitos!”.
Por mais que a discussão sobre os direitos territoriais indígenas possa parecer distante da maioria das pessoas nos centros urbanos, o ATL tem ganhado maior importância.
Isso porque, especialmente em Mato Grosso e na Amazônia Legal, as Terras Indígenas e outras Áreas Protegidas, como Unidades de Conservação, são os locais que garantem a produção das chuvas vitais para as populações urbanas e rurais no Cerrado e nas regiões Centro-Oeste e Sudeste do país. Se esses territórios não forem conservados, o regime de chuvas em todas essas regiões será comprometido.
Não por acaso, um dos temas em debate no ATL foi a gestão territorial das Terras Indígenas e o Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato Grosso. Assim como o direito territorial originário, o Zoneamento Socioeconômico Ecológico é um tema de debate que fica em segundo plano diante do nosso corrido cotidiano.
O instrumento do Zoneamento servirá para planejar a expansão e uso do solo em Mato Grosso pelos próximos dez anos, de modo a considerar as variáveis sociais, econômicas e ecológicas. É por essa política que o Estado organizará o seu crescimento e definirá áreas prioritárias para conservação e para o desenvolvimento de atividades econômicas.
Uma década é tempo suficiente para populações urbanas dobrarem de tamanho, como é o caso de Querência, e zonas metropolitanas, como Cuiabá-Várzea Grande, terem incremento de quase 20% em sua população. Em diversos locais do estado, paisagens inteiras mudaram com a conversão da vegetação nativa em plantios, com a construção de hidrelétricas e outras infraestruturas. Mudou assim a forma de se utilizar a água e a própria forma como o regime de chuvas se comporta.
Mato Grosso é um Estado com três biomas e cujas bacias hidrográficas são essenciais para alimentar tanto o sistema de águas amazônico quanto o importante Rio Paraguai e seu vasto Pantanal, que neste ano apresentam os níveis mais baixos já registrados.
Aqui também se encontram 43 Povos Indígenas e a maior diversidade etnolinguística do mundo, no Território Indígena do Xingu (TIX), onde também existe um alto número de espécies de animais e plantas endêmicas, raras, algumas ameaçadas de extinção.
São esses fatores que sustentam a condição climática e hídrica necessária para que Mato Grosso continue a ser um dos maiores produtores de grãos, algodão e proteína animal do Brasil e do mundo. A produtividade do agronegócio se encontra ameaçada, com perdas consideráveis de safra nos últimos anos, justamente por conta da imprevisibilidade climática e mudanças no regime de chuvas devido à substituição das vegetações nativas do Cerrado, Amazônia e suas transições.
Quando analisamos os focos de incêndio florestal dos anos anteriores e de 2024, fica evidente a importância que as Terras Indígenas possuem na manutenção das vegetações nativas e, portanto, do clima, das águas, dos estoques de carbono e diversos serviços ambientais.
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Sistema de monitoramento remoto de desmatamento da vegetação nativa da Rede Xingu+ demonstra que territórios indígenas como o Xingu são responsáveis pela manutenção das vegetações nativas e servem como freio para processos como desmates e incêndios – logo vêm sendo vitais na regulação do clima, produção de chuvas e manutenção dos estoques de carbono
O cenário desafiador e complexo, porém, pode ser enfrentado com soluções criativas, que misturam técnicas ancestrais de uso e manejo da vegetação com a criatividade e conhecimento dos nossos povos.
Um exemplo de sucesso é a Rede de Sementes do Xingu – nascida em 2008 a partir da campanha ‘Y Ikatu Xingu (“Salve a Água Boa do Xingu”) – e que, por meio da muvuca de sementes, consegue fornecer soluções técnicas e práticas para restaurar áreas degradadas. Contando com coletores de sementes indígenas e urbanos, a Rede de Sementes do Xingu planta as florestas do futuro e consequentemente ajuda a recuperar áreas de nascentes e beiras de rios.
O ano de 2024 traz várias oportunidades – e sementes – para debater a forma como gerimos nossas águas e territórios. Tanto o ATL, quanto o Zoneamento, são frentes centrais para debater se, nos próximos anos, o Mato Grosso agirá ativamente para manter as águas que fazem crescer os grãos e fornecer chuvas aos centros mais populosos do país, ou se seguirá em uma rota de aceleração da perda de áreas naturais e de impactos sociais negativos.
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Rede Xingu+ debate gestão territorial, governança e ameaças ao Corredor de Áreas Protegidas do Xingu
Conselheiros se reuniram em Brasília para trocar experiências sobre seus territórios e discutir oportunidades para promover o fortalecimento da gestão e proteção territoriais
Da esquerda para a direita: Kajet Kayapó, Winti Kisêdjê, Beatriz Ribeiro, Doto Takak-Ire, Gilliard Juruna, Francisco de Assis, Patkore Menkragnoti, Marinês Silva, Mydje Kayapó, André Villas-Bôas, Anaya Suya, Silia Moan, Nhakton Kayapó e Junio Esllei|Mariel Nakane/ISA 2024
Em um cenário de redução do desmatamento, porém, de intensificação do risco devido ao avanço das obras infraestrutura e de atividades ilegais nas Áreas Protegidas do Xingu, os conselheiros do Xingu+ se reuniram em Brasília, entre os dias 08 a 11 de março, para debater estratégias de fortalecimento da gestão de seus territórios.
Durante o evento, representantes da Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Rio Iriri (AMORERI), Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Rio Xingu (AMOMEX), Associação Yudjá Mïratu da Volta Grande do Xingu (AIMIX), Instituto Kabu (IK), Associação Floresta Protegida (AFP), Associação Terra Indígena Xingu (ATIX) e Associação Khisedje (AIK), fizeram um intercâmbio de experiências e visões de seus territórios, tomaram decisões e identificaram oportunidades conjuntas, fortalecendo as conexões existentes para promover a gestão e a proteção integrada da Bacia do Xingu.
Lideranças dos povos indígenas Kisêdjê, Juruna, Kayapó, Kawaiwete, Yawalapiti e de ribeirinhos das Reservas Extrativistas da Terra do Meio, participaram do encontro junto com a equipe da Secretaria Executiva da Rede Xingu+*, que atualmente é exercida pelo Instituto Socioambiental (ISA).
A articulação entre os representantes do chamado “Corredor de diversidade socioambiental do Xingu”, uma área de 26 milhões de hectares preservados onde vivem cerca de 25 mil pessoas, é importante para fazer frente às ameaças em curso na região e que impactam direta e indiretamente os povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem na região.
Assembleia do Xingu+ 2024
No primeiro dia, os conselheiros definiram a data, as pautas e as comitivas que irão participar do 6º Encontro da Rede Xingu+, que dessa vez será realizado na comunidade São Francisco, na Resex Rio Iriri, Pará. Entre 28 a 31 de maio, os membros do Xingu+ e os seus parceiros irão debater os desafios enfrentados pelos povos da floresta e traçar estratégias para a proteção do Rio Xingu, seus modos de vida e para a preservação da floresta em pé.
Avanço das ameaças ao Xingu
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O avanço do agronegócio representa uma grande ameaça a conectividade do Corredor de Áreas Protegidas do Xingu|Renan Kisedje/Xingu+
O segundo dia foi dedicado à atualização dos dados de desmatamento na Bacia do Xingu. Para isso, os conselheiros do Xingu+ retomaram o mapa de pressões e ameaças produzido no ano passado, para avaliar as áreas mais impactadas pelo avanço do roubo de madeira, garimpo e de obras de infraestrutura no Xingu - especialmente a Ferrogrão (EF-170), que prevê a ligação do norte do Mato Grosso ao sul do Pará, com objetivo de fortalecer a rota de escoamento de grãos.
A ferrovia irá passar próximo a Terras Indígenas e Áreas Protegidas, como a região do Instituto Kabu, que representa 12 comunidades do povo Mẽbêngôkre-Kayapó distribuídas entre as Terras Indígenas (TIs) Baú e Menkragnoti e duas comunidades da TI Panará.
O território está na área mais impactada pelo traçado da ferrovia e não houve, até o momento, consulta aos povos indígenas associados ao Instituto Kabu: “Não fomos consultados. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) usou um documento que não garante que foi realizado o processo de consulta prévia, livre e informada, conforme previsto na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) . Após 7 anos a agência reconheceu o erro deles e enviou um documento pedindo desculpas pro instituto Kabu. Eles precisam pedir desculpas para todos os caciques, crianças, floresta e rios”, lamentou o conselheiro da Rede Xingu+ e relações públicas do instituto Kabu, Mydjere Kayapó.
A analista do Instituto Socioambiental (ISA), Mariel Nakane, destaca que os estudos do projeto da Ferrogrão foram retomados em 2023, após 2 anos de paralisação por conta de decisão liminar no caso da ADI 6553, no Supremo Tribunal Federal. Em julho de 2023, a Rede Xingu+ apresentou subsídios técnicos sobre a retomada do projeto, e em outubro de 2023 ingressou como membro da sociedade civil do GT Ferrogrão, criado pelo Ministério de Transportes para debater os estudos e processos sobre o projeto, completa Mariel Nakane.
São obras com essa, prioritárias para o Estado, que continuam ameaçando a maior floresta tropical do mundo e violando direitos dos povos que ali habitam. No outro extremo do Xingu, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que chegou na região há mais de onze anos, deixa um legado de impactos irreversíveis, como relatou o conselheiro Gilliard Juruna, representante da Associação Yudjá Mïratu, da Volta Grande do Xingu (AIMIX) durante o segundo dia da reunião do conselho do Xingu+:
“Com o hidrograma atual, não está havendo reprodução de peixes abaixo da barragem. Os Tracajás estão morrendo. Os furos estão secando e em processo de erosão. Somos nós que estamos monitorando. As ilhas estão virando terra firme e não há frutas suficientes para os peixes. Estamos vendo peixes com deformação”.
A animação 'Pulsa, Xingu+', lançada no ano passado, ilustra uma proposta de hidrograma produzida pelos pesquisadores do MATI (Monitoramento Ambiental Territorial Independente) da Volta Grande do Xingu. Composto por cientistas locais e acadêmicos, o coletivo monitora diariamente os impactos provocados pela operação de Belo Monte.
Assista à animação!
Fortalecimento da Gestão Territorial e Ambiental do Xingu
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Jovens Kuikuro durante pesquisa sobre os recursos naturais ao redor da aldeia Ipatsé, do povo Kuikuro, Território Indígena do Xingu|Camila Gauditano/ISA
“Se a gente quiser melhorar a gestão da nossa terra, de quanto recurso vamos precisar?”, perguntou Pedro Gasparinetti, economista e diretor do Fundo de Conservação Estratégica (CSF).
O Fundo está construindo, em parceria com a Rede Xingu+, a Calculadora de Custos para a Gestão de Terras Indígenas, uma calculadora online que tornará possível quantificar os custos para a implementação dos eixos apontados nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental(PGTAs) das Terras Indígenas do Corredor Xingu.
O terceiro dia do encontro foi dedicado à avaliação da última etapa de desenvolvimento da ferramenta, que foi elaborada a partir das despesas passadas de oito Terras Indígenas da Bacia do Xingu, com diferentes projeções, como: mudanças na população e grau de pressões e ameaças. Durante o 6o Encontro da Rede Xingu+, será apresentada a versão final da Calculadora de Custos de Gestão em Terras Indígenas.
Para Winti Khĩsêtjê, conselheiro da Rede Xingu+, a calculadora online vai facilitar muito a construção de orçamentos para captação de recursos de acordo com as prioridades das comunidades. Além da ferramenta de cálculo online, também foi discutida uma proposta de Fundo para o Corredor Xingu, destinado ao apoio à implementação dos PGTAs e Planos de Manejo das Terras Indígenas e Reservas Extrativistas do Xingu.
Corredor de Áreas Protegidas do Xingu: um escudo verde contra a destruição
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A Bacia do Xingu abriga 28 povos indígenas e comunidades tradicionais que formam a barreira de proteção a uma das maiores biodiversidades do planeta|Kamatxi Ikpeng/Xingu+
Se por um lado os empreendimentos de alto impacto socioambiental e as atividades ilícitas violam os direitos dos povos indígenas e tradicionais nas Terras Indígenas e Unidades de Conservação do Xingu, por outro, o Conselho Político do Xingu+ está avaliando junto ao Governo Federal a criação de uma figura de gestão integrada no Corredor de Áreas Protegidas do Xingu, que garanta não apenas a manutenção dos processos ecológicos ao longo neste imenso território, mas também a proteção e o bem estar dos povos que nele vivem.
No quarto dia do encontro, os conselheiros do Xingu+ receberam Iara Vasco, diretora de criação de manejo de Unidades de Conservação no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Raoni Rajão, diretor de política de controle de desmatamento no Ministério do Meio Ambiente (MMA). A representante do ICMBio reconheceu a importância do Corredor de Áreas Protegidas do Xingu, que comporta um dos maiores mosaicos contínuos de Terras Indígenas e Unidades de Conservação no planeta, para a conservação da sociobiodiversidade.
Segundo o conselheiro Francisco de Assis, “a Rede Xingu+ fez a gente entender a conexão de uma terra com a outra”. Para a liderança da Resex Rio Iriri, os indígenas e ribeirinhos do Xingu têm a mesma causa e devem lutar unidos.
A Bacia do Rio Xingu compreende uma área de aproximadamente 53 milhões de hectares nos Estados do Pará e do Mato Grosso e abrange uma grande diversidade de povos e ecossistemas, de florestas densas e várzeas do bioma Amazônia até áreas de vegetação típicas do Cerrado. Para Raoni Rajão, representante do MMA, a Rede Xingu+ é uma articulação extremamente importante para conter o desmatamento na região do Xingu. “A partir do momento que uma rede como essa documenta e reúne denúncias ao longo do corredor, você consegue ligar os pontos”, afirmou o diretor de política de controle de desmatamento no Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Com 22 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação, o Corredor é considerado uma das regiões com maior sociobiodiversidade no mundo, abrigando 26 povos indígenas e centenas de comunidades ribeirinhas. Há séculos esses povos tradicionais manejam e protegem suas florestas, que comportam um imenso conjunto de espécies de plantas e animais, algumas ainda desconhecidas pela ciência. O Corredor Xingu tem um papel crucial na proteção da Amazônia e do clima global.
Xingu+ se reúne com órgãos do governo para reivindicar os direitos dos povos da floresta
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Nhakton Kayapó, vice-presidente da AFP, explicando a importância do acesso à energia fotovoltaica na Terra Indígena Kayapó|Junio Esllei/Rede Xingu+
No quinto e último dia de reunião, a comitiva de conselheiros do Xingu+ foi recebida por André Dias, Diretor do Departamento de Universalização e Políticas Sociais de Energia Elétrica, do Ministério de Minas e Energia. Os conselheiros levaram as demandas de suas comunidades sobre o andamento de instalação de energia fotovoltaica nas aldeias e nas comunidades do Corredor Xingu. Para Winti Khĩsêtjê, a audiência no Ministério de Minas e Energia (MME) foi muito importante, para o xinguanos discutirem com o governo como essas políticas públicas podem chegar às comunidades do Xingu e atenderem as necessidades da população indígena e ribeirinha.
A nossa luta é uma só!
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Doto Takak-Ire, presidente do Instituto Kabu, incentiva o fortalecimento da relação entre indígenas e ribeirinhos para firmar uma aliança pelo futuro da floresta. Aldeia Kubenkokre, Terra Indígena Menkragnoti, Pará|Lucas Landau/Rede Xingu+
Durante a avaliação da reunião do Conselho do Xingu+, Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu, afirmou que houve muito aprendizado e troca entre os conselheiros durante os 4 dias de reunião. “Cada dia que passa, a gente fica mais forte. Temos que pensar no futuro, não podemos deixar acabar, temos que dar continuidade para proteger o corredor Xingu. Quem luta vence, quem não luta fica por último. Precisamos ter essa luta conjunta, precisamos ter mais jovens para aprender”.
*A Rede Xingu+, é uma aliança política entre 32 organizações de povos indígenas, de comunidades tradicionais do Xingu e organizações da sociedade civil que atuam em Terras Indígenas e Unidades de Conservação na bacia do Rio Xingu, no chamado Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental.
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COP 30: financiamento climático precisa consultar povos indígenas e tradicionais, defendem juristas em Belém (PA)
Autores de livro sobre Consulta Prévia, Livre e Informada apontaram obstáculos para a aplicação do direito no Brasil durante lançamento no MPF-PA
Marcada para acontecer entre 10 e 21 de novembro de 2025, em Belém (PA), a Conferência do Clima sobre Mudanças Climáticas (COP 30) vai desembarcar pela primeira vez no Brasil e deve colocar no centro do maior evento global de discussões climáticas a Amazônia e os povos que vivem nela.
Não é novidade que, por meio de seus modos de vida, indígenas, quilombolas, extrativistas e outras populações tradicionais são os principais responsáveis pela conservação das florestas e, consequentemente, seus territórios armazenam imensos estoques de carbono – o que é essencial para o enfrentamento da crise climática.
No entanto, esses povos vêm enfrentando diversos desafios na defesa de seus direitos e territórios, como a dificuldade para garantir a consulta em todas as fases de projetos de infraestrutura e em discussões sobre mecanismos de financiamento climático em Terras Indígenas e Áreas Protegidas, como mercados de carbono e programas jurisdicionais de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD+).
Entenda o que é carbono e como funcionam os “mercado de carbono”:
A partir de um amplo levantamento, os autores analisaram decisões nos Tribunais Regionais Federais (TRFs) de todas as regiões do país, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
“A consulta prévia aos povos indígenas e tradicionais é o mínimo. E esse mínimo ainda é negado pelo Estado brasileiro”, afirmou Felício Pontes, procurador-regional da República conhecido por sua atuação pela garantia dos direitos constitucionais de indígenas e quilombolas na Amazônia. Ele disse esperar que o livro contribua para “um processo de descolonização do judiciário brasileiro”.
A Consulta Prévia, Livre e Informada é obrigação exclusiva do Estado, representado pelos poderes Executivo e Legislativo, que não podem delegar a particulares a atribuição. “Foram 524 anos, no Brasil especialmente, de colonialismo mesmo, de fazer com que a visão do colonizador, a visão de fora, europeia, fosse a visão dominante, sem nenhuma forma de valorização da visão dos povos originários. O direito à Consulta inverte isso”, explicou.
O que é o direito à Consulta?
A Consulta Livre, Prévia e Informada é um direito instituído pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e incorporado pelo Brasil e pela Declaração de Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas.
Em essência, ele prevê que povos indígenas e comunidades tradicionais sejam consultadas antes de ações que impactem seus territórios e modos de vida (saiba mais no especial do ISA sobre o tema).
Uma das formas de se fazer isso é por meio de protocolos de consulta, documentos elaborados por cada povo indígena ou comunidade tradicional sobre a forma e processo em que devem ser consultados, de modo que respeite suas instituições representativas, usos e tradições.
“Até fevereiro [deste ano], mapeamos 105 Protocolos Autônomos Comunitários. Para a COP 30, é essencial elevar essa discussão estratégica, garantindo o cumprimento da Convenção 169 da OIT e das Convenções-Quadro do Clima, priorizando a proteção dos territórios e biomas frente às vulnerabilidades climáticas”, destacou Liana Amin Lima, professora de Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e coordenadora do Observatório de Protocolos.
“A consulta cabe a todos os atos administrativos e legislativos, portanto, é um dever do Estado acompanhar também esses processos. Mas o acompanhamento no processo de condução de processos de Consulta, de fiscalização do cumprimento dos acordos [como nas discussões de REDD+], passa também pelo respeito ao protagonismo, à autonomia, à autodeterminação desses povos”, continuou.
Biviany Rojas Garzón, advogada e representante do Instituto Socioambiental (ISA), defendeu que a participação de povos indígenas e tradicionais nas discussões sobre a crise climática são cruciais, pois eles desempenham um papel vital para a humanidade. “As florestas são importantes para discutir o conjunto de medidas que precisamos adotar como espécie humana para mitigar e nos adaptar [à crise climática]”, analisou.
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Direito à Consulta é incorporado pelo Brasil e pela Declaração de Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas|Lucas Monteiro/Cabron Studios/ISA
“E os povos da floresta são fundamentais nessa discussão, pois participam ativamente das decisões sobre o manejo e a regeneração das florestas. Dessa forma, as políticas públicas sobre REDD+ envolvem principalmente os territórios indígenas e de comunidades tradicionais e, com isso, eles são atores fundamentais para essa discussão”.
“O direito à Consulta, para a população quilombola, é importante para a visibilização tanto da comunidade, quanto das violações que as comunidades quilombolas passam, ou seja, a invisibilização [sofrida] até mesmo por parte do Estado”, pontuou Vercilene Dias, advogada quilombola e assessora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Com a proximidade da COP 30, ela defendeu que as discussões sobre direito à consulta e a presença de lideranças dos povos da floresta sejam assegurados. “Porque são justamente [eles] que estão sendo afetados. Quem sofre as afetações [das mudanças climáticas] não são as pessoas de classe média ou que estão nos grandes centros; são as pessoas da periferia, as comunidades tradicionais”, lembrou.
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Da esquerda à direita: Juliana Maia, analista de políticas climáticas do ISA, Vercilene Dias, assessora jurídica da Conaq e Ewésh Yawalapiti Waurá, diretor da Atix|Lucas Monteiro/Cabron Studios/ISA
“É importante que outros países [na COP 30] conheçam os protocolos de consulta de povos indígenas e comunidades tradicionais, para avançarmos na discussão da consulta. Há muitas empresas internacionais que desejam comprar créditos de carbono e têm que conhecer como funcionam nossos direitos”, argumentou Ewésh Yawalapiti Waurá, advogado indígena e diretor da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix).
Rodrigo Magalhães de Oliveira, analista do Ministério Público Federal, apontou que o Pará está no centro dessa discussão, devido à COP 30, mas que “o Estado tem sido um sistemático violador” desse direito e que, por isso, é preciso fazer o “dever de casa”.
Segundo ele, a Consulta é um instrumento capaz também de garantir a salvaguarda, a integridade dos territórios e da floresta, o que é fundamental não apenas para os povos protagonistas, mas para o mundo inteiro.
“Não tenho dúvida de que existem muitos obstáculos à concretização do direito à Consulta, que passam pelo racismo e pela forma como o Estado sempre tratou essas comunidades. Então, a Consulta implica na limitação da possibilidade do Estado agir de forma arbitrária”, indicou.
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Da esquerda à direita: Felício Pontes Júnior, procurador do MPF, Biviany Rojas Garzon, do ISA, Vercilene Francisco Dias, da Conaq, Ewésh Yawalapiti Waurá, da Atix, Rodrigo Magalhães de Oliveira, do MPF, Juliana Maia, do ISA, Liana Amin Lima, coordenadora do Observatório de Protocolos e José Heder Benatti, professor de Direito na UFPA|Lucas Monteiro/Cabron Studios/ISA
Realidade nos territórios
Vercilene Dias e Ewésh Yawalapiti Waurá trouxeram para o lançamento em Belém a visão da realidade dessas discussões nos territórios, especialmente no âmbito dos debates sobre financiamento climático. Segundo eles, ainda há muito desconhecimento nas aldeias e comunidades sobre o funcionamento de mecanismos como mercados de carbono e programas jurisdicionais ou governamentais de REDD+.
No caso dos mercados voluntários de carbono, a falta de informações contratuais nítidas e abordagens de empresas que não respeitam os protocolos de consulta, podem resultar na assinatura de contratos assimétricos e injustos, que mantêm essas populações subjugadas
“Ainda estamos em uma etapa de explicar às lideranças e associações como funciona o mercado de carbono, o que é carbono, a orientá-los a entender por que é possível receber créditos de carbono pelo papel que eles desempenham na preservação das florestas”, pontuou Ewésh Yawalapiti Waurá.
“Têm ocorrido negociações desfavoráveis. Muitas vezes os contratos preveem destinar na repartição de benefícios uma porcentagem muito pequena, porque não tem uma consulta efetiva. E a preocupação é ainda maior na questão do mercado de carbono local. As empresas de consultoria de aproximam, incidem diretamente nas comunidades, negociando com algumas lideranças sem levar a discussão ampla para os territórios”, lamentou.
“Quando não se consultam as comunidades, quando há uma ausência total do processo de direito à consulta, aumenta a judicialização”, lembrou Vercilene Dias.
Ela contou durante a mesa de lançamento que empresas que desejam compensar suas emissões de carbono têm procurado comunidades quilombolas com ofertas de contratos extremamente desvantajosos e que só tomam conhecimento de empreendimentos ou de instrumentos normativos a partir do momento em que sofrem a violação.
“E elas [respondem] assim: ‘Olha, não é desse jeito. A gente não foi consultado. Essa norma aqui não atende às nossas especificidades, ou seja, esse projeto, esse empreendimento, também não atende às nossas especificidades’”, relatou.
O direito à consulta, segundo ela, traz a visibilidade necessária para as comunidades lutarem por seus direitos. “Para dizer para o Estado, para dizer para a sociedade: ‘eu existo. Eu estou aqui. Eu estava aqui antes. Por que eu não fui consultado antes do empreendimento vir até meu território querer me deslocar ou antes da normativa ser criada?’”.
Serviço
Livro “Tribunais Brasileiros e o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada”
Capa do livro "Tribunais Brasileiros e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada"|Sophia Cardoso/ISA
Lideranças indígenas e quilombolas, representantes de organizações da sociedade civil que atuam na pauta socioambiental e integrantes do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União participaram, no dia 22 de fevereiro, em Cuiabá-MT, do lançamento do livro “Tribunais Brasileiros e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada”, organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pelo Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado.
O evento aconteceu no auditório da Fundação Escola Superior do Ministério Público, que abriu seu espaço para a oportunidade de aprofundar as discussões sobre a importância e os limites do direito de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais serem consultados sobre projetos que tragam impactos danosos aos seus territórios, conforme preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovada em 1989 e em vigor internacionalmente desde 1991.
Lideranças dos povos indígenas Waurá Yawalapiti, Waurá Kisêdjê, Chiquitanos, Yudja, Bororo, Baikari, Terena, Tapayuna; e dos quilombos do Vão Grande e do Mata Cavalo ocuparam o espaço.
No caso específico do Estado de Mato Grosso, os participantes denunciaram que a ausência da consulta prévia também atinge os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais nos projetos privados e nos programas jurisdicionais de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, Manejo Sustentável e Aumento do Estoque de Carbono (REDD+), e também no zoneamento socioeconômico ecológico.
Ao longo das 320 páginas da publicação, lideranças de comunidades tradicionais, advogados, militantes da luta socioambiental e pesquisadores analisam os efeitos de decisões proferidas por cinco tribunais regionais federais, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e suas consequências na vida das comunidades que, nos últimos anos, têm sido diretamente impactadas pela implementação de grandes empreendimentos, como hidrelétricas, rodovias e barragens, sem sequer serem consultadas.
A capa traz a força do trabalho da artista Daiara Tukano, parte de seu mural na exposição “Brasil Futuro”, com o nome “Bora lutar! Bora pra roça!”. A arte retrata uma mulher indígena com sua criança no braço, envolta de animais e da floresta. Com a mão esquerda, ela ergue um facão com a mensagem “Bora lutar”, expressando, de forma precisa, os esforços que povos e comunidades tradicionais empenham nos mais de cinco séculos de colonização. Bora lutar vem como um chamado necessário para um futuro anticolonial e decolonial.
Respeito à história ancestral
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Da esquerda para a direita: Silvano Chu Muquissai, Juliana de Paula Batista e Ewésh Yawalapiti Wuará|Sophia Cardoso/ISA
O advogado indígena e diretor da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), Ewésh Yawalapiti Waurá declarou que espera que o livro cumpra o importante papel de garantir a aplicação desse direito dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais.
“A Terra Indígena do Xingu tem um protocolo que orienta sobre o procedimento de aplicação do direito à consulta, mas, muitas vezes, talvez pela falta de conhecimento, esse direito é esquecido, não é aplicado, não é cumprido”, ressaltou a liderança, que também assina o texto do livro sobre o posicionamento do TRF da 1ª Região.
“Também estamos diante da ascensão do mercado de carbono, que vem crescendo cada vez mais, o que tem gerado bastante assédio sobre as comunidades indígenas. A consulta é importante para que os povos indígenas mostrem a necessidade de respeitar a nossa história e tudo aquilo em que nós acreditamos”, pontuou Ewésh, destacando a importância da consulta também nos projetos de REDD+ que compõem as estratégias de enfrentamento à emergência climática.
Advogada e assessora jurídica do ISA, Juliana de Paula Batista trouxe a preocupação sobre a postura do Congresso Nacional e do Judiciário diante do descumprimento do direito à consulta prévia, livre e informada.
“O que a gente tem visto é que os tribunais ainda têm uma jurisprudência incipiente sobre o tema, principalmente o STF, mas esperamos que se debrucem mais sobre isso nos próximos anos. Também pretendemos construir um pouco mais de elementos para que os tribunais possam decidir essa questão em consonância com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que está avançada e tem feito uma interpretação muito positiva sobre o direito de consulta”, destacou a advogada que no livro assina o texto sobre o papel do STF no tema.
Violação do direito à consulta atinge toda a sociedade
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Da esquerda para a direita: Renan Sotto Mayor, Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa e Pedro Paulo Rodrigues da Silva|Sophia Cardoso/ISA
Silvano Chue Muquissai, indígena da etnia Chiquitano, chamou atenção para o fato de que, mesmo previsto na Convenção 169 da OIT e em outros instrumentos jurídicos normativos de proteção dos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais, o direito à consulta é sistematicamente violado.
Enfatizou, ainda, os danos dessa omissão para além das fronteiras das Terras Indígenas: “Os grandes empreendimentos construídos em nossos territórios não afetam só os povos indígenas, mas toda a sociedade. Então, esse direito, que é sermos consultados previamente e não no decurso do processo, não tem sido respeitado e, com isso, nós sofremos e vocês também sofrem. Hoje temos as emergências climáticas em decorrência do desrespeito aos direitos ambientais e a esse nosso direito que continua sendo violado”, denunciou Silvano, que, no livro, é autor do texto que faz uma análise decolonial da atuação do STJ.
A advogada popular Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa elaborou sua fala com uma referência à arte de Daiara Tukano “Bora lutar! Bora pra roça!”.
“Parece que são coisas distintas, mas não são, porque o Direito não está só na luta, mas na roça também. Aparentemente a roça é um ato ordinário, corriqueiro, que se faz diariamente, mas os atos do Judiciário também têm que constituir um espaço de luta. E se não é, a gente vai correr atrás para ser”.
No livro, Loyuá assina o capítulo que analisa as decisões do STJ sobre o direito à consulta livre, prévia e informada. “Isso atinge diretamente os povos indígenas inclusive na roça, como no caso de um empreendimento de uma BR que passa dentro de uma Terra Indígena e vai impactar fortemente no acesso à alimentação e na questão espiritual”.
Narrativas do interior
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Participantes do evento de lançamento do livro "Tribunais Brasileiros e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada" em Cuiabá|Sophia Cardoso/ISA
Pedro Paulo Rodrigues da Silva, jovem liderança do Quilombo do Vão Grande, escritor e artista, compartilhou a luta de sua comunidade contra a instalação da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) de Jauquara, no Estado de Mato Grosso, e o processo de elaboração do livro Narrativas do Interior.
Também apresentou o Protocolo de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado do Quilombo do Vão Grande. “Na ideia de escrita do livro, também tivemos a ideia de elaborar o protocolo, porque a PCH de Jauquara surgiu sem consulta. Fizeram um treinamento, umas pesquisas com drone sem ninguém saber o que estava acontecendo e, do nada, surgiu a história de que seria construída uma PCH, sem qualquer autorização da comunidade. Ninguém foi consultado para que fosse construído esse tipo de empreendimento”. Segundo ele, o livro e o protocolo foram formas de mostrar que ali “tem tradição, tem povo, tem comunidade, têm crianças”.
O defensor regional de Direitos Humanos de Mato Grosso e autor do livro, Renan Sotto Mayor fechou as falas abordando os desafios da luta em defesa dos direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais e os danos causados pelo descumprimento do direito à consulta prévia e por outras violações.
“A Constituição Federal, no artigo 232, confere a legitimidade ativa para os povos indígenas tutelarem seus direitos. A gente precisa ter essa noção. E é triste a gente ver a jurisprudência dos nossos tribunais; e esse livro é um marco para explicitar e mostrar para os desembargadores, juízes e ministros”, ressaltou.
Para Renan, essa luta tem que ser coletiva: “Todos defensores e defensoras de direitos humanos têm que mostrar isso tudo que está nesse livro e bora lutar. E lutar por direitos humanos não é fácil num país como o Brasil. Não podemos aceitar a terceirização, temos que batalhar e exigir consulta prévia, livre e informada feita pelo Estado”.
Mulheres protagonizam luta contra hidrelétrica
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Cineasta Juliana Segóvia, teve teaser de seu curta Mansos exibido no lançamento do livro|Sophia Cardoso/ISA
A história de Teresa, Benedita e Jurema (mãe e filhas), mulheres negras moradoras da região de Água Fria, em Chapada dos Guimarães, é o fio condutor do curta-metragem “Mansos”, cujo teaser foi apresentado no intervalo dos debates do lançamento do livro. As três vêem a sua vida ser completamente transformada com a construção de uma usina hidrelétrica e com o assassinato de Teresa (uma referência à líder do Quilombo Quariterê, Teresa de Benguela), agricultora familiar e líder comunitária, na frente de suas duas filhas quando ainda crianças. Vinte anos depois, Benedita e Jurema, já adultas, confrontam aquele que é o responsável pela tragédia.
O curta de ficção tem roteiro e direção da cineasta Juliana Segóvia e produção do Aquilombamento Audiovisual Quariterê, que também faz uma explícita homenagem ao quilombo liderado por Teresa de Benguela. Segundo Juliana, a questão da memória e do apagamento da história da população negra em Mato Grosso e no país é a base da concepção do filme. “O curta-metragem é uma ideia que nasceu a partir de uma conversa com uma moradora local, da região de Manso. Ela trazia em sua narrativa o que aconteceu com bem mais de 1.070 famílias, que eram moradoras da região e foram obrigadas a saírem de suas terras por conta da implementação de uma usina hidrelétrica”.
Embora seja uma ficção, na avaliação da cineasta, o filme tem relação direta com o tema do direito à consulta prévia, livre e informada, pois o fato que serviu de base para a sua concepção foi resultado de um mega empreendimento construído sem ouvir a comunidade envolvida. “A história retrata um crime ambiental, que não teve uma resposta na dimensão do que ocorreu com aquelas famílias. E eu acho que devemos utilizar o cinema como aliado dessa luta territorial, que envolve povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais”, finalizou.
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4ª Expedição da Restauração Ecológica percorre o caminho das sementes da Rede de Sementes do Xingu
Cerca de 80 participantes acompanharam o trajeto que as sementes fazem, desde a coleta até o plantio
Sementes nas mãos de Seu Hermínio, coletor da Rede de Sementes do Xingu, durante a 4ª Expedição da Restauração Ecológica|Bianca Moreno/ISA e ARSX
Construir pontes com muvucas e diversidade: eis o que a Rede de Sementes do Xingu (ARSX) faz de melhor. Entre os dias 30 de outubro e 1 de novembro de 2023, a 4ª Expedição da Restauração Ecológica reforçou esta expertise da ARSX ao reunir cerca de 80 pessoas para acompanhar o caminho de suas sementes, desde a coleta até o plantio.
Ao longo de três dias, coletores de sementes indígenas, urbanos e da agricultura familiar, além de técnicos, pesquisadores, restauradores, apoiadores, financiadores e proprietários rurais estiveram juntos, conectando pontos da cadeia da restauração ecológica, visitando espaços institucionais e áreas restauradas em diversos arranjos, contextos e períodos entre os municípios de Nova Xavantina, Canarana e Querência, todos no estado de Mato Grosso.
A Expedição da Restauração Ecológica é um dos maiores e mais expressivos eventos da Rede de Sementes do Xingu (ARSX), organizada bienalmente em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
Assista ao vídeo da expedição:
Dia 1: A coleta de sementes e a restauração em um grupo misto de agricultores familiares e moradores urbanos
Cada semente tem um jeito de ser beneficiada. Mão, tesoura, quebrador de baru, facão e até carro: coletor é bicho curioso, caprichoso e criativo na hora de encontrar a melhor forma de tratar cada semente. Quanto mais complexo o beneficiamento, mais alto tende a ser o valor da semente.
"Uma das partes mais empolgantes e curiosas da coleta é o beneficiamento: não tem um jeito certo de beneficiar, mas tem que garantir a qualidade da semente. Os coletores estão sempre inovando, usando de sua criatividade e das ferramentas que tiverem para facilitar o processo", explica Milene Alves, coletora de sementes desde 2013 e bióloga do Redário, uma rede de redes de sementes espalhadas pelo Brasil e coordenada pelo ISA.
"Meu pai diz e é verdade: a semente te ensina a trabalhar com ela. O tamanho, a dureza e o tipo da semente te indicam como fazer o beneficiamento. Não é à toa que a maior parte das coletoras é mulher: este é um trabalho muito cuidadoso, que elas fazem com excelência", completa.
Milene é portadora de uma história interessante e bonita, que revela o poder de transformação que a semente carrega não só para a restauração de ecossistemas, mas para a restauração da vida, da saúde e das relações. Além dela, a mãe, o pai e o marido também são coletores.
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Milene Alves, coletora de sementes e bióloga do Redário: "depois que entramos na Rede, nossa vida mudou"|Bianca Moreno/ISA e ARSX
"Depois que entramos na Rede, nossa vida mudou. Eu entrei na faculdade, me tornei mestre em Agroecologia e hoje tenho minha família, minha casa e meu carro. Minha mãe era trabalhadora doméstica e sofria com depressão e ansiedade. Trabalhar com a semente deu um novo sentido à vida dela", relata Milene.
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Vera, mãe de Milene, é coletora urbana desde 2012 no grupo misto de Nova Xavantina, no qual entrega cerca de 600kg de semente por ano|Bianca Moreno/ISA e ARSX
As Casas de Sementes e o Laboratório de Sementes da UNEMAT
Uma vez coletadas, as sementes são armazenadas em uma das três Casas de Sementes da ARSX. Em um ambiente controlado, seco, fresco e escuro, a armazenagem segue protocolos: "As sementes são pesadas e conferidas, incluindo tipo, beneficiamento e qualidade", explica Denise Costa, guardiã da Casa de Sementes de Nova Xavantina.
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As sementes são armazenadas em dispensers, que facilitam a organização do dia-a-dia das Casas de Sementes|Bianca Moreno/ISA e ARSX
É também nas Casas de Sementes onde são separados lotes para controle no Laboratório de Sementes da UNEMAT, no campus de Nova Xavantina. "Nosso papel é avaliar a qualidade fisiológica e física de algumas sementes da Rede. Analisamos o teor de pureza e de água e fazemos o teste de germinação e de emergência em canteiros de areia", explica Rodrigo de Góes, coordenador do Laboratório.
Ao lado dele, a professora Luciane Roswalka se dedica à Fitopatologia. "Na muvuca, se as sementes estiverem contaminadas por patógenos [doenças], elas podem não se desenvolver. Por isso, buscamos agentes biológicos que possam atuar no controle desses patógenos, como a própria microbiota do solo", afirma Luciane.
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Laboratório de Sementes da UNEMAT: À esquerda, a professora Luciane Roswaka. À direita, o professor Rodrigo de Goés|Bianca Moreno/ISA e ARSX
Cumprida esta etapa, na época das chuvas, as sementes vão para as áreas de restauração, onde a magia acontece: a muvuca de sementes é feita e semeada! Curioso notar a circularidade desse trajeto: a semente vem do chão e retorna para ele. Entre uma ponta e outra do caminho, há toda uma travessia, aberta e sustentada por muitas mãos.
Crise é oportunidade: a restauração nos territórios de coleta
Apesar do grande passivo ambiental das propriedades rurais brasileiras, a pouca demanda por sementes tem incentivado uma solução próspera para a Rede de Sementes do Xingu: plantar nos territórios de coleta!
A partir de projetos e programas de apoio, a ARSX tem se dedicado cada vez mais à restauração ecológica nos territórios em que atua no intuito de aproximar as árvores matrizes das comunidades, promover a segurança e a soberania alimentar nos territórios e fortalecer sua biodiversidade e recursos hídricos.
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Renato Nazário, da equipe de Restauração Ecológica da ARSX, cumprimenta os coletores e agricultores rurais Mariozan Ferreira e Vilmar Tusset|Bianca Moreno/ISA e ARSX
"A maior parte dessas áreas está dentro de assentamentos da agricultura familiar e de aldeias indígenas. Nesses locais, planejamos a restauração junto com as comunidades, levando em consideração o que é de interesse delas, olhando sempre para o bem-viver e a permanência na terra", explica Bruna Ferreira, diretora da Rede de Sementes do Xingu.
Assim, o primeiro dia da 4ª Expedição contou com uma visita a uma área de restauração no Projeto de Assentamento (PA) Pé da Serra, no sítio dos coletores e agricultores familiares Mariozan Ferreira e Maria Ângela. Ali, a restauração foi feita em 2021 como uma homenagem a Heber Queiroz, ex-coordenador do componente de Adequação Ambiental do ISA, falecido durante a pandemia da Covid-19.
"Sou coletor da Rede desde quando eu vim para o sítio, há 12 anos, e minha renda principal é a semente. Nossa área está muito bonita, acho que pelo grande carinho que todos tínhamos com Heber. Meus filhos já foram pra cidade, mas eu e minha esposa seguimos por aqui", conta Mariozan.
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O coletor e agricultor familiar Mariozan no Bosque Heber Queiroz, onde77,57kg de 87 espécies de semente foram semeadas|Bianca Moreno/ISA e ARSX
Simulando a natureza e trabalhando com ela: a ciência por trás da muvuca de sementes
A muvuca é uma simulação do que a própria natureza faz, só que de forma acelerada. Enquanto um processo de regeneração natural pode levar cerca de 200 a 300 anos para acontecer, a muvuca de sementes reúne plantas com diferentes funções biológicas e ciclos de vida em um único plantio estrategicamente pensado.
"Há uma ciência por trás da diversidade de espécies e quantidade de sementes escolhidas em uma muvuca, que vem se aperfeiçoando ao longo dos anos, a partir da experiência", afirma Guilherme Pompiano, do ISA.
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Guilherme Pompiano, do ISA, durante o preparo da muvuca de sementes na Fazenda Tanguro, da Amaggi, em Querência/MT|Bianca Moreno/ISA e ARSX
Guilherme explica que as espécies vegetais previstas na muvuca estão separadas conforme o extrato e o ciclo de vida para simular o processo de sucessão que a própria natureza faz: primeiro, nascem as espécies pioneiras, que vivem até um ano e desempenham o papel de adubação verde, impedindo o alastramento do capim, fertilizando e fortalecendo o solo.
Depois, as pioneiras morrem e deixam o espaço preparado para as secundárias, cujo ciclo de vida se estende até 20 anos. Só então teremos as espécies tardias (de 20 a 100 anos) e as clímax (acima de 100 anos), que serão a floresta do futuro.
Danielle Celentano, do ISA, complementa: "Um dos mecanismos de regeneração natural é o banco de sementes do solo, que é enriquecido quando implantamos uma muvuca. Em um plantio, plantamos muitas sementes porque poucas de fato vivem e se estabelecem. A natureza é assim".
Dia 2: a Aldeia Ripá e a restauração ecológica no contexto indígena
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Programação na aldeia Ripá incluiu uma caminhada pela mata com as coletoras de sementes, que marcharam à frente|Bianca Moreno/ISA e ARSX
O segundo dia da Expedição foi todo dedicado à aldeia Ripá, do povo Xavante. Fundada em 2012 pelo cacique José Guimarães Sumené Xavante, a aldeia conta com um grupo coletor formado por 26 mulheres e é referência no trabalho de coleta de sementes.
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Aldeia Ripá conta com um grupo coletor formado por 26 mulheres e que é referência no trabalho de coleta de sementes|Bianca Moreno/ISA e ARSX
Lá, graças à boa consideração do cacique José Sumené com a Rede de Sementes do Xingu, os participantes da 4ª Expedição da Restauração Ecológica tiveram a honra de conhecer um dos pontos sagrados do aldeia: um poço de águas limpas e azuis, que alegrou os waradzu – palavra Xavante para não-indígena –, habituados a ritmos, tempos e confortos tão outros.
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Cacique José Sumené nas águas do poço sagrado ao qual conduziu os participantes da Expedição da Rede de Sementes do Xingu|Bianca Moreno/ISA e ARSX
A recepção contou também com cantos e rodas de conversa para apresentações, informes e partilhas sobre a coleta de sementes. Visitaram-se, ainda, duas áreas restauradas com muvuca: a primeira, semeada em 2019, já exibe seus barus, cajus e mamoninhas, indicando a chegada das plantas secundárias e tardias no sistema. A segunda, fruto de uma semeadura direta realizada em 2022, ainda dá seus primeiros passos rumo ao estabelecimento da sonhada floresta do futuro.
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Arcângelo Xavante, elo do grupo de coletoras, e João Carlos Pereira, um dos técnicos em restauração ecológica da ARSX responsáveis pela implantação das áreas de restauração da aldeia Ripá|Bianca Moreno/ISA e ARSX
À noite, a lua se engrandece ao chegar no horizonte do céu. O centro da aldeia, ainda há pouco aquecido pelo fogo Xavante feito em festa para os visitantes, ecoa frescor e silêncio: alívio. Corpos cansados descansam. O dia quente e a caminhada matinal pela mata, aberta e liderada pelas coletoras de sementes da comunidade, permitem que todos durmam melhor.
O tempo na aldeia é diferente – e parte do cansaço talvez venha da tentativa de controlar um sol determinado a aquecer o chão vermelho da Terra Indígena Pimentel Barbosa. Lado a lado, cada qual em sua rede, cerca de 80 waradzu participantes da Expedição dormem nas poucas horas que antecedem o amanhecer.
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Fogueira acesa no centro da Aldeia Ripa, do povo Xavante. Ritual com a comunidade e visitantes encerrou o segundo dia de expedição|Bianca Moreno/ISA e ARSX
Dia 3: a restauração ecológica em grandes propriedades rurais
O Mato Grosso, assim como o Brasil, é uma terra de contrastes. Um deles são os modos de ocupação da terra. Da Terra Indígena Pimentel Barbosa, partimos rumo a duas grandes fazendas que são referências de produção agrícola e restauração no estado: a Fazenda Schneider, onde há duas áreas de restauração em estágio avançado, com cerca de 15 anos de idade, e a Fazenda Tanguro, do Grupo Amaggi, onde áreas de restauração com muvuca vêm sendo crescentemente implantadas.
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Com uma área de 329 mil hectares, a Terra Indígena Pimentel Barbosa está sob os pés da Serra do Roncador, no Mato Grosso|Bianca Moreno/ISA e ARSX
"O Mato Grosso é um território em disputa. Os fazendeiros são poderosos porque mantêm a balança comercial do Brasil positiva, mas dependem de conhecimentos de comunidades locais, de agricultores, assentados e povos indígenas, que são quem sabem de sementes. Esse conhecimento é muito sofisticado e poderoso, capaz de promover a convivência entre grupos que até pouco tempo estavam em uma guerra aberta – se não continua. A Rede de Sementes do Xingu construiu pontes – das poucas que a gente tem, de mundos que se entendem excludentes", afirma Biviany Rojas, coordenadora do Programa Xingu/ISA.
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Da lavoura de soja, avista-se, ao fundo, a mata fruto do projeto de restauração implantado entre os anos de 2009 e 2010 na Fazenda Schneider|Bianca Moreno/ISA e ARSX
Fundada em 1988 por uma família do Rio Grande do Sul, a Fazenda Schneider é referência no plantio de soja, algodão e milho no estado de Mato Grosso. Com uma área total de 3000 ha e uma área produtiva de 2150 ha, a propriedade se tornou um case de sucesso pelo bom estabelecimento de uma área restaurada entre os anos de 2009 e 2010. Hoje, caminha-se com a sensação de realmente estar em uma mata.
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Duas áreas de restauração foram implantadas na Fazenda Schneider entre 2009 e 2010, com 830 kg de 47 espécies de sementes|Bianca Moreno/ISA e ARSX
Além disso, a restauração na propriedade conta com outra particularidade de destaque: o balanço de carbono. Graças a um projeto feito com a Natura, a restauração na Fazenda Schneider monitora a taxa de absorção de carbono, que tem surpreendido os técnicos envolvidos com este plantio.
"Na segunda medição, de 10 anos, o projeto absorveu quatro vezes mais carbono do que previsto. Este é um carbono premium. A nossa expectativa é compartilhar essa história para que outras pessoas não cometam os mesmos erros que nós e aprendam a partir da nossa experiência", conta Rodrigo Junqueira, atual secretário geral do ISA, que acompanhou os primeiros plantios.
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Rodrigo Junqueira, do ISA, e o proprietário rural Valmir Schneider em uma das áreas de restauração da Fazenda Schneider|Bianca Moreno/ISA e ARSX
"Hoje, ainda temos espécies germinando e se estabelecendo. O solo e o clima dessa área são totalmente diferentes, com uma cobertura de matéria orgânica dentro da floresta, pássaros e animais. Se todo mundo fizer sua parte, o ambiente vai andar em paralelo com a agricultura", afirma Valmir Schneider, proprietário da Fazenda Schneider.
A muvuca de sementes na Fazenda Tanguro
O ponto final de nossa Expedição foi a Fazenda Tanguro, da Amaggi, em Querência/MT. Com cerca de 87 mil hectares de extensão, a Fazenda Tanguro se dedica à soja, ao algodão e ao milho ao mesmo tempo em que mantém mais de 50% de sua área como reserva legal. Foi lá onde fizemos nossa muvuca, semeada em uma Área de Proteção Permanente (APP), cuja restauração prevê uma área total de 35 ha.
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Participantes da 4ª Expedição misturam muvuca de sementes para semeadura direta na Fazenda Tanguro, da Amaggi|Bianca Moreno/ISA e ARSX
“Estamos trabalhando duas áreas de um mesmo fragmento com 17,5ha de cada lado. Será um experimento interessante: a área foi toda preparada da mesma forma, mas metade dela vai receber muvuca de sementes e a outra metade será destinada à regeneração natural para, no futuro, compararmos os resultados", explica Paulo Mariotti, analista socioambiental da Fazenda Tanguro.
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O plantio foi feito de forma manual a lanço e com implementos agrícolas para demonstrar aos participantes que na hora de semear uma muvuca, é possível usar o que estiver à disposição|Bianca Moreno/ISA e ARSX
"Viemos de um processo de restauração em um modelo mais tradicional, com plantio de mudas, e encontramos dificuldades como o controle de formigas, o plantio manual das mudas e a obtenção delas. Experimentamos a muvuca de sementes em 2020 e os resultados foram bastante positivos – tanto em termos de germinação de sementes, quanto econômicos. Agora, trabalhamos quase exclusivamente só com essa técnica", completa Paulo.
Não faltam sementes: falta demanda!
Um dos argumentos da restauração ecológica por meio da muvuca de sementes é a falta de sementes. E isso não é verdade. A Rede de Sementes do Xingu tem capacidade de coletar até 30t de sementes por ano, através de um trabalho coletivo que reúne seis etnias indígenas – sendo cinco delas na Terra Indígena do Xingu (TIX) –, mais de 20 assentamentos da reforma agrária e coletores urbanos de três municípios em Mato Grosso.
"Somos a maior iniciativa do tipo no Brasil. Fazemos, ainda, parte do Redário, uma rede de redes de sementes coordenada pelo Instituto Socioambiental (ISA), que inclui outros 24 projetos como o nosso, capazes de coletar e distribuir sementes de todos os biomas do Brasil. A disponibilidade de sementes não é mais um gargalo para restauração com muvuca”, afirma Bruna Ferreira, diretora da Rede de Sementes do Xingu.
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Parte da equipe técnica da Rede de Sementes do Xingu, que se divide mas frentes de de Sociobiodiversidade, Restauração Ecológica, Vendas, Casas de Sementes, Comunicação e Administrativo/Financeiro|Bianca Moreno/ISA e ARSX
"O ponto de não retorno está mostrando que não basta só parar de desmatar: temos que plantar. A restauração pode contribuir com o clima, com a diminuição da desigualdade e com a diversidade do Brasil. A coleta de sementes é capaz de complementar a renda e restaurar relações, principalmente em um mundo tão polarizado. A semente tem o poder de conectar mundos e trajetórias muito diferentes", lembra Rodrigo Junqueira, do ISA.
Ao longo de seus 16 anos de atuação, a Rede de Sementes do Xingu já comercializou mais de 330 t de sementes de 220 espécies diferentes, contribuindo para a restauração de mais de 8 mil hectares de área. Por um lado, é pouco, se temos em vista o passivo ambiental brasileiro. Por outro, é muito, visto que essa semeadura não germina apenas floresta: além da renda de mais de R$ 6,125 milhões gerada aos coletores de semente, a Rede semeia também afeto e cuidado entre gentes, bichos e plantas, promovendo uma restauração ecológica que fortalece as bases e o território de quem vive no campo.
"Pra mim, a maior importância de coletar semente é saber que um dia ela vai ser plantada em algum lugar. Tenho orgulho de fazer um trabalho tão bonito – coletar semente, sabendo que ela tá fazendo um bem enorme para o planeta. O que a gente faz com amor e com carinho nunca é em vão", conclui Cleusa Nunes de Paula, coletora e elo da Rede de Sementes do Xingu desde 2010.
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Cleusa Nunes de Paula é elo do grupo Novo Paraíso, que reúne coletoras indígenas da comunidade Xavante|Bianca Moreno/ISA e ARSX
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Livro apresenta coletânea comentada de decisões de tribunais brasileiros sobre direito à consulta livre, prévia e informada
Publicação é fruto do esforço coletivo que busca evidenciar e problematizar as lacunas presentes nas decisões judiciais
Arte de Daiara Tukano que ilustra a capa do livro e simboliza a força e a harmonia entre a mulher indígena e a natureza, representando a luta coletiva na defesa dos direitos humanos
Com origem em uma demanda do Instituto Socioambiental (ISA) ao Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado, o livro "Tribunais Brasileiros e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada" é uma resposta à escassez de pesquisas abrangentes sobre o papel crucial das decisões judiciais no estabelecimento de conceitos e na efetivação deste direito nos tribunais federais e superiores no Brasil.
A publicação é composta por coletâneas de decisões relativas ao direito de consulta livre, prévia e informada obtida junto aos Tribunais Regionais Federais (TRFs) de todas as regiões do país, bem como em decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além da coletânea de decisões, o livro traz um texto analítico por tribunal, onde especialistas avaliam a atuação dos tribunais no tema.
Assim, cada capítulo, elaborado por um grupo dedicado de autores e autoras, mergulha em análises específicas, desde metodologias de pesquisa até discussões aprofundadas sobre jurisprudência socioambiental, racismo estrutural, efetividade do direito de consulta à luz da Convenção n.o 169 da OIT, entre outros temas fundamentais para a compreensão desse direito no contexto do sistema jurídico da justiça federal no Brasil.
Assessora jurídica e coordenadora do Programa Xingu do ISA, Biviany Rojas conta que a arte de capa foi cedida pela artista Daiara Tukano e simboliza a força e a harmonia entre uma mulher indígena e a natureza, representando a luta coletiva e a união na defesa dos direitos humanos socioambientais.
“Este livro não apenas desvela o intrincado contexto das decisões judiciais relacionadas ao direito à consulta prévia, mas também aponta caminhos para promover decisões judiciais que contribuam com um futuro mais inclusivo e respeitoso aos direitos dos povos indígenas e as comunidades tradicionais”, ressalta a advogada.
Fernando Prioste, assessor jurídico do ISA, reforça que “sua importância transcende o campo jurídico, colocando em pauta um debate fundamental para o futuro da sociedade brasileira, instigando reflexões sobre diversidade, justiça socioambiental, participação social e garantia de direitos para as próximas gerações”.
A publicação desta obra não marca um ponto final, mas sim um convite para a continuidade desse diálogo, da busca por uma justiça mais ampla e inclusiva, em que a diversidade seja não apenas reconhecida, mas celebrada e protegida em todos os âmbitos da vida nacional.
Acesse agora a versão digital do livro sobre a jurisprudência brasileira no direito de consulta a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: clique aqui.
Direito em risco
Recriado em agosto pelo Governo Lula, o Programa de Aceleração do Crescimento (“Novo PAC”) foi apresentado com um conjunto de medidas consideradas necessárias para o crescimento econômico do Brasil.
Entre as propostas apresentadas no documento está o “aperfeiçoamento do marco regulatório do licenciamento ambiental”. Ou seja, o Governo quer mudar a forma de fazer o licenciamento ambiental. Entre essas medidas está a proposta de regulamentação do direito de consulta livre, prévia e informada.
A regulamentação da Consulta já existe em alguns estados, e em alguns órgãos do Governo Federal, como no caso do INCRA para quilombolas. Mas até agora não existe uma regulamentação nacional que se aplique igualmente para todos os casos. É justamente por isso que o Governo Federal disse que vai fazer a regulamentação do direito de consulta.
As experiências da Bolívia, Venezuela, Colômbia e Equado ensinaram que a regulamentação do direito à consulta prévia é feita através de decisões políticas que, na maioria dos casos, não garantem direitos a povos indígenas e povos e comunidades tradicionais..
Confira os principais riscos de uma possível regulamentação do direito de consulta:
1. Risco de retirar das comunidades tradicionais o direito à consulta;
Essa restrição poderia acontecer:
(I) Pelo reconhecimento de que apenas indígenas e quilombolas deveriam ser consultados, excluindo-se as comunidades tradicionais de todo o Brasil;
(ii) Pelo estabelecimento de critérios que impeçam ou limitem o direito de consulta, como fazer diferenças entre área diretamente afetada e área indiretamente afetadas nos casos de licenciamento de empreendimentos;
(iii) Pela desconsideração das várias formas de representação que cada povo indígenas, comunidade quilombola ou outras tradicionais tem;
2. Risco de alteração da responsabilidade de quem pode e deve conduzir o processo de consulta;
Este risco está relacionado com o fato do Governo poder:
(i) Colocar a responsabilidade pela realização da consulta a órgãos públicos que não são os responsáveis pela decisão que será tomada pelo Governo;
(ii) permitir que empresas privadas com interesses nos empreendimentos possam realizar os procedimento de consulta, indo contra o estabelecido pela Convenção 169 da OIT;
3. Risco de limitar as medidas e ações que devem ser objeto de Consulta;
Essa restrição poderia acontecer:
(i) Caso sejam criadas regras em que a consultas só devem ocorrer nos casos de empreendimentos de infraestrutura e mineração, excluindo outras decisões importantes, como projetos de lei e políticas públicas direcionadas a comunidades tradicionais e povos indígenas.
(ii) Pela definição de uma única consulta sobre um empreendimento que tem várias fases de licenciamento ambiental e de decisões de governo. Como, por exemplo, determinar que a consulta sobre empreendimentos ocorra uma única vez no licenciamento ambiental, ignorando as etapas de planejamento, ou vice-versa;
4. Risco de padronização ou generalização dos procedimentos de Consulta;
Esse risco pode acontecer:
(i) Pelo descumprimento dos Protocolos Autônomos de Consulta, substituídos pela regulamentação geral que se aplicaria de forma igual a todos os povos e comunidades;
(ii) Por imposição de prazos rígidos para a realização do processo de consulta, incompatíveis com os tempos necessários para a realização do procedimento por cada povo e comunidade tradicional;
5. Risco do Governo não considerar a decisão tomada no processo de consulta;
Esse risco poderia acontecer:
(i) Se não for respeitada a necessidade de que a tomada de decisão do Governo deve levar em consideração, obrigatoriamente, os resultados do processo de consulta;
(ii) Se o Governo alterar decisões sem considerar os processos de consulta, desrespeitando sua eficácia.
Givanilda dá aula de geografia na escola da comunidade Praia Grande, Resex Riozinho do Anfrísio|Acervo Pessoal
Givanilda Aguiar Rocha (Gigi), de 39 anos, é professora de alunos com necessidades especiais na comunidade Praia Grande, Reserva Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio, distante há mais de dois dias de barco da cidade de Altamira (PA).
Criada apenas pela mãe, Dona Francineide, ela precisou trabalhar desde cedo para ajudar a sustentar a família. Em casa, aprendeu a manejar os produtos da floresta, extraindo o óleo do coco e da andiroba, e a fazer artesanato.
Foi apenas em 2016, com 31 anos, que conseguiu cursar o ensino médio por meio do ‘magistério’, um projeto da Universidade Federal do Pará (UFPA) para formação da primeira geração de professores ribeirinhos na Resex.
A lembrança do caminho percorrido é carregada de orgulho, mas também de tristeza. Apesar de ter aprendido a ler e escrever com os familiares, teve dificuldade nos estudos. Quando se formou, ingressou na universidade em Altamira, onde hoje cursa Etnodesenvolvimento.
Gigi conta que para estudar precisou enfrentar o preconceito por ser mulher em um espaço tradicionalmente ocupado por homens.
“Muitas das vezes as pessoas falavam assim ‘Vai para cidade e não vai mais voltar. Não quer saber da família’. E eu não enxergo dessa forma. Eu enxergo que a mulher tem direito de fazer o que quiser. Ela tem direito de estudar. Ela tem direito de trabalhar. Ela tem direito de ir aonde ela quer”.
A professora reconhece que, apesar da sociedade ter conquistado importantes avanços na busca pela igualdade de gênero, essas tensões ainda são bastante latentes. Na faculdade, ela divide o espaço com outras três mulheres, em uma sala de vinte alunos, e conta que viu muitas das colegas escolherem entre o casamento e a faculdade.
“Hoje, graças a Deus, (elas) tão se formando, trabalhando, mas ainda é muito comum essa história, né? [...] Pra chegar onde eu cheguei, a gente sofre. Sofre pelo fato da gente ser mulheres ribeirinhas, da gente ser tradicionais, sabe? Até o jeito da gente falar incomoda algumas pessoas.”
As memórias de sua trajetória de vida são também um sinal alerta para a dificuldade de permanência dos povos e comunidades tradicionais no ensino superior. Para se manter em Altamira, Gigi e uma colega, Luziane Pereira Matos -conhecida como ‘Vovózona’ -passaram fome e contaram com doações de alimentos para seguir os estudos.
No cargo de professora, Givanilda encontrou uma forma de conquistar autonomia financeira para poder terminar a faculdade, e assim realizar um sonho antigo. Com a voz embargada, ela agradeceu pela oportunidade de inspirar as novas gerações da Resex.
“Quando eu penso em tudo que eu passei para chegar onde eu cheguei, eu me emociono muito. Pensar em tudo que eu já passei e hoje poder estar passando essa minha força para as crianças, né? Não tem preço”.
Com a sabedoria de quem reconhece que uma conquista fica ainda melhor quando compartilhada, ela sonha com a criação de um ensino médio dentro do território tradicional, para que a juventude não precise abandonar os estudos ou passar dificuldades em Altamira.
“Se não tiver o ensino médio, todo esse povo que tá saindo do nono ano vai ficar parado. Não tem condição de ir para cidade. Então o meu sonho é que tenha um ensino médio para ele que eles não parem (os estudos)”.
Givanilda divide a rotina entre a faculdade, em Altamira (PA) e o trabalho perto da família, na Resex Riozinho do Anfrísio|Acervo pessoal
Nas salas de aula da universidade, Gigi se aprofundou no estudo da Constituição e das leis que amparam as populações tradicionais na busca por direitos. Esse conhecimento, somado à memória de tantas lideranças importantes para a comunidade, fortalece a resistência de quem ainda tem muito pelo que sonhar.
Com carinho, ela lembra de Herculano Porto de Oliveira, conhecido como Seu Herculano, primeiro presidente da Associação de Moradores da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio (Amora).
A liderança da comunidade Bom Jardim teve um papel central no período de criação da Resex e recebeu, em 2005, o Prêmio Chico Mendes na categoria Associações Comunitárias.
“Eu me inspiro muito nele. Ele foi uma pessoa que não teve medo de morrer, não teve medo de lutar. E se hoje eu tenho essa formação, eu devo muito a ele”.
Givanilda conta que, apesar de ainda existir pressão contra a comunidade, a entrada de invasores diminuiu bastante em relação ao cenário vivido no início do século, antes da criação da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio.
“A gente foi no rio. Quando chegou lá, a gente se deparou com um barco cheio de arma. Arma de tudo quanto era a qualidade. [...] A gente tentava não ter medo, mas não tinha jeito, né? Era barco por cima de barco, eles vinha e voltava, entrando nos igarapés. A gente não tinha paz”.
Há três anos, ela participou de um encontro de mulheres do Movimento Xingu Vivo para Sempre, no Rio de Janeiro. Gigi relata que a experiência ajudou a dimensionar o desafio enfrentado por lideranças femininas de populações tradicionais em outras partes do país.
“Quando a gente sai daqui para outros territórios, a gente vê que a luta das mulheres são as mesmas. Eu me segurei muito para não chorar. [...] Não é pelo fato de eu ter meu dinheirinho que eu vou ficar acomodada. Eu enxergo que todas nós tem que trabalhar. Eu vou ficar muito orgulhosa de ver outras mulheres, guerreiras, trabalhar e ter sua renda”.
Hoje, ela já não participa de reuniões em outros territórios, mas segue atuando pela defesa das populações ribeirinhas nas salas de aulas da universidade e da escola da comunidade Praia Grande.
Mãe de quatro filhos, Givanilda defende a mobilização das novas gerações de ribeirinhos pelo futuro do Xingu.
“A minha luta é tanto pelo território, como por esses jovens. [...] A gente não tem que ter medo de falar. É direito nosso! A gente tem que perder esse medo de falar e correr atrás dos nossos direitos”.
Magistério permitiu a formação da primeira geração de professores do território ribeirinho|Acervo Pessoal
Givanilda acompanha entrega de freezer na cantina da escola em que trabalha|Acervo Pessoal
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
A morte de Karangré Xikrin, um ancião e guerreiro da aldeia Mrotidjãm
Grande conhecedor da cultura de seu povo e defensor de seu território, a liderança Mebengokré-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá faleceu em 31 de outubro
Karangré Xikrin na aldeia Mrõtidjãm|Rochelle Foltram
Nos últimos dias, tivemos mais uma notícia da morte de um Xikrin que abalou os corações do povo Mebengokré-Xikrin e de seus amigos.
Karangré Xikrin, também conhecido como Neguinho, um forte guerreiro de olhos brilhantes e sorridente. Karangré, nos deixou 31/10/2023 pela luta contra o câncer que se espalhou e não teve jeito. Nosso Neguinho passou seus últimos dias nos cuidados paliativos em Santarém, no Pará.
O povo Mebengokre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá está sofrendo perdas sucessivas de sua gente, como a de Bep Tok, o Cacique Onça, em decorrência de Covid-19, Bepjàti, Karangré Neto, Mané Gavião e mais uma velhinha da aldeia Kenkro de tuberculose.
Mortes evitáveis como os casos das perdas associadas à evolução de quadros de tuberculose. É difícil processar mortes por tuberculose na Trincheira-Bacajá ou em qualquer outro território em 2023, com tratamentos eficazes disponíveis.
Isso reflete um cumulativo de problemas que assolam o território e a vida do povo Xikrin do Bacajá. O “efeito Bolsonaro” na vida dessas pessoas foi cruel ocasionando o aumento de taxas de desmatamento, invasão e grilagem de suas terras, a partir de 2019.
Também os impactos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, como as mudanças no modo de vida e a fragilização da segurança alimentar das famílias associadas à ausência de ações de mitigação ou compensação. O desmonte de políticas públicas de saúde voltadas para atenção preventiva e diferenciada deixa essas marcas de dor, a dor das mortes evitáveis.
Importante dizermos aqui que as equipes de saúde que atuam no DSEI-Altamira são, na maioria dos casos, um exemplo de luta e heroísmo, trabalhando em condições precárias em muitas situações. A essas e esses profissionais deixamos aqui as nossas sinceras homenagens e nossa admiração.
Sem dúvida, Karangré acumulava amigos brancos e eu era mais uma amiga. Lembro a primeira vez que vi Karangré, em 2019, ele estava entoando cantos de guerra na casa do guerreiro, junto de outros Xikrin.
Desde então, voltei muitas vezes para a aldeia Mrõtidjãm, onde sempre o via sentado com sua esposa Irebô na sua casa com muitos cachorros ao redor. Nesse momento, eu levava remédios para os cachorros e, assim como em outras casas, fui aplicar injeções nos cachorros. Karangré, eu e Irebô, trancamos os cachorros dentro da casa e corríamos atrás deles até ele segurar os cachorros e eu aplicar a injeção.
Karangré sabia fazer muitos remédios do mato para animais, mas em alguns casos os remédios que eu trazia curavam mais velozmente. Foi aí que começamos nossa relação, Karangré me dizia que iria me levar no mato para me ensinar a fazer remédios para os cachorros, assim eu poderia cuidar de todos os animais da aldeia.
Logo veio a pandemia e não foi possível que eu aprendesse com Karangré sobre os remédios do mato para animais. Fui rever Karangré junto com a equipe de vacinação do DSEI em 2021.
Eu e Thaís Mantovanelli nos dividimos em uma manhã do dia 29/01/2021 para trazer os Xikrin da aldeia Mrõtidjãm na enfermaria para vacinação, depois de muitas conversas. Thaís surgia de um lado da aldeia com Karangré e Irebô e eu de outro lado da aldeia com Bepkrô e Iretô. Eles quatro foram os primeiros a se vacinar na aldeia Mrõtidjãm em 2021 e junto com eles 75 pessoas de 100 adultos.
Foi com Karangré que chorei a primeira morte de um Xikrin na aldeia, de seu neto morto com 23 anos de tuberculose, Karangré Xikrin Neto.
Karangré era feliz, gostava de falar para os brancos ouvirem, se preocupava com o mundo que deixaria para seus filhos e netos. Ter a sua terra sem invasões era sua pauta número um. Ele morreu em meio a desintrusão da TITB e pôde ver parte de seu sonho realizado, mesmo que não completamente.
Eu estou velho, mas ainda estou defendendo essa terra para meu filhos e netos. No tempo dos caciques mais velhos combatemos os madeireiros, expulsamos os madeireiros, também mandamos embora os garimpeiros e a FUNAI estava junto com a gente. Andávamos a Terra Indígena toda e expulsamos todos os brancos. Hoje em dia o assunto é grave, o pessoal vai nas invasões com os caciques, expulsam os brancos e eles voltam. Hoje temos muitas invasões na nossa terra que é demarcada e os grileiros pegam nossa terra e acabam com nossas castanheiras, acabam com nossa floresta. (Karangré Xikrin, ancião, aldeia Mrõtidjãm).
* Rochelle Foltram, doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos-UFSCar. Trabalha com o povo Mebengokré-Xikrin, no estado do Pará desde 2018. Tem experiência em trabalhos relacionados a violações de direitos humanos contra os povos indígenas e no manejo de produtos da sociobiodiversidade, que mantém a floresta em pé e contribuem para a redução dos efeitos climáticos. Além disso, luta junto do povo Mebengokré-Xikrin em todas as esferas sociais para melhoria de suas vidas e preservação de seu território
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Garimpo continua a assolar Xingu, e estrago deve perdurar por anos
Dossiê detalha avanço da atividade ilegal na gestão Bolsonaro; 82% da destruição ocorreu em áreas protegidas, sendo 72% somente na Terra Indígena Kayapó
Avanço do garimpo ilegal na Terra Indígena Kayapó, que concentrou 72% de toda a devastação na Bacia do Xingu entre 2018 e 2022|Divulgação
Sob Bolsonaro, foram quatro anos de descontrole da fiscalização ambiental. Taxas recordes de desmatamento e a expansão, por toda a Amazônia, de atividades ilegais como o roubo de madeira e o garimpo.
Na Bacia do Xingu, que atravessa os estados do Pará e Mato Grosso, a destruição causada pelo garimpo ilegal foi avassaladora entre 2019 e 2022. Desmontar a estrutura de destruição instalada nestes territórios demanda fortes investimentos, continuidade e consistência na atuação de segurança pública na região.
Novo dossiê da Rede Xingu+ mostra o avanço e reincidência do garimpo nos últimos anos nas Terras Indígenas e Unidades de Conservação da região. Os dados produzidos pelo Observatório De Olho no Xingu indicam que, desde 2018, foram mais de 12,7 mil hectares de áreas de garimpo abertas – 82% dentro de áreas protegidas.
Entre 2018 e 2019, período de mudança de gestão presidencial, o desmatamento gerado pela atividade aumentou 15% nas áreas protegidas.
Em 2023, a atividade teve uma redução expressiva, devido ao aumento da fiscalização, mas não parou.
No primeiro semestre do ano, já foram desmatados cerca de 475 ha em TIs, segundo os boletins divulgados pelo Sistema de Indicação por Radar de Desmatamento da Bacia do Xingu (Sirad X). Ao menos 17 frentes de exploração garimpeira em funcionamento ou com indício de atividades foram identificadas este ano.
Durante o governo Bolsonaro, a reativação de garimpos antigos foi uma ação recorrente na Bacia do Xingu, como os garimpos Coringa, Madalena e Manelão nas TIs Baú, Kuruaya e Trincheira Bacajá.
Além da desarticulação da fiscalização, a melhora da cotação do preço do ouro no mercado internacional estimulou o avanço da megaestrutura bilionária que controla a atividade criminosa.
O dossiê detalhou a extensão do garimpo em seis Terras Indígenas e cinco Unidades de Conservação no Xingu.
O caso mais drástico foi a Terra Indígena Kayapó, que concentrou 72% de todo o garimpo na bacia entre 2018 e 2022 e é a TI com a maior área de desmatamento gerado pelo garimpo ilegal de todo o país.
Nesse território, o garimpo destruiu mais em cinco anos do que nas três décadas anteriores.
Existem três frentes principais de exploração no território do povo Mebengokré: nos rios Arraias, Fresco e Branco, e uma quarta um pouco mais discreta, no Riozinho.
No primeiro semestre de 2023, mais de 450 ha de floresta foram derrubados pelo garimpo na TI Kayapó em suas diversas frentes.
O território já havia sido assolado pela atividade nas décadas de 1970 e 1980, impulsionado pela abertura de estradas e pelo aumento da cotação do preço do ouro. Nos anos seguintes, arrefeceu, até voltar com tudo no fim da década de 2010.
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Garimpo ilegal do Rio Branco, Terra Indígena Kayapó, em imagem produzida nos anos 90|Divulgação
Thaise Rodrigues, analista do Instituto Socioambiental (ISA) e autora do dossiê, diz que a realidade encontrada hoje na TI Kayapó é resultado de muitos fatores.
A exploração garimpeira nesse território remonta à década de 1960, anterior à homologação da TI, que ocorreu em 1991.
A retirada mal sucedida dos garimpeiros na TI após a sua homologação, o fácil acesso terrestre às frentes de exploração garimpeira e a proximidade de cidades e municípios com um longo histórico de pilhagem ambiental, criaram condições para a consolidação e avanço da atividade ilegal na Kayapó.
Em 2019, os incentivos diretos do governo à exploração garimpeira somado ao desmonte da fiscalização ambiental, foram determinantes para o crescimento descontrolado do garimpo no local.
Garimpo em UCs
Outra triste novidade dos anos Bolsonaro foi o aumento do garimpo nas Unidades de Conservação.
Em cinco anos, mais de mil hectares de vegetação primária foram derrubados para ocupação de garimpos ilegais nas UCs. Rios tiveram seus leitos destruídos e suas águas assoreadas e contaminadas.
Os impactos não ficaram só na paisagem: peixes, tracajás e outros animais foram contaminados, afetando a sobrevivência de diversas comunidades ribeirinhas que, ao longo desses anos, também sofreram com aliciamento e ameaças.
Em 2023, novos focos de exploração foram identificados na Reserva Biológica (REBIO) Nascentes da Serra do Cachimbo e o funcionamento dos garimpos na Flona de Altamira e Reserva Extrativista (RESEX) Rio Iriri também continuou.
Na RESEX Riozinho do Anfrísio, no Pará, ao menos cinco novos focos de garimpo foram abertos durante a gestão de Bolsonaro, permanecendo ainda uma frente ativa em agosto de 2023 – apesar dos esforços de fiscalização do novo governo. Ao todo, na RESEX do Riozinho do Anfrísio foram derrubadas 42 hectares de floresta e 19 comunidades beiradeiras afetadas pela contaminação do mercúrio.
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Balsa de garimpo no Rio Iriri, RESEX Riozinho do Anfrísio, Pará, em registro de maio de 2014|Anna Maria Andrade/ISA
Outro caso que chama atenção é o da Floresta Nacional (Flona) de Altamira. A UC tem a maior área de desmatamento por conta do garimpo ilegal na Bacia do Xingu. São duas frentes principais: na região noroeste, onde foram 309 hectares derrubados entre 2018 e 2022, e na zona oeste do território, onde foram desmatados 428 hectares no período.
A situação é extremamente preocupante sobretudo porque as áreas de garimpo estão localizadas nas chamadas "Zonas Primitivas" das UCs, isto é, áreas especialmente importantes para preservação e recuperação, do ponto de vista da biodiversidade. Essas zonas são delimitadas para, teoricamente, estabelecer regiões com a mínima intervenção humana para proteção de cabeceiras de rios (áreas de nascente), e recuperação de áreas já degradadas no passado. Mas elas não estão sendo respeitadas, e a degradação só tem aumentado.
Rodrigues aponta que a persistência do garimpo exige uma ação articulada e contínua nesses territórios. “Estamos falando de várias áreas destruídas com o uso de grande maquinário, e capitalizadas por uma rede criminosa. Isso exige um plano de proteção territorial consistente, com manutenção de bases de proteção em locais estratégicos e operações regulares para desativar os focos de garimpo”, aponta.
Segundo ela, essas ações devem incluir a inutilização de toda a infra-estrutura associada, como pistas clandestinas, estradas e a destruição completa do maquinário utilizado na extração de ouro.
Fiscalização e persistência
O garimpo tem se mostrado persistente mesmo após sucessivas operações feitas pelo Ibama, que tem intensificado as ações desde a mudança do governo. No garimpo do "Manelão", por exemplo, uma operação feita em abril destruiu equipamentos avaliados em R$ 304.500, segundo informações do próprio Ibama. Mesmo assim, novas cavas de exploração foram detectadas no primeiro semestre de 2023.
O Manelão, situado na Terra Indígena Trincheira Bacajá, foi aberto pela primeira vez ainda na década de 1970, e reativado em meados da década passada. Entre 2018 e 2022, foram detectados mais de 85 hectares de floresta derrubadas.
Situação similar ocorre na Terra Indígena Apyterewa, do povo Parakanã. O Ibama realizou a operação em 2023, mas o problema persiste. “Ainda existe garimpeiro. A aldeia Kaete fica muito próxima dos pontos de garimpo e os indígenas que moram nessa aldeia escutam até a zoada do motor”, afirma Wenathoa Parakanã, liderança e presidenta da associação Tatooa.
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Sobrevoo na Terra Indígena (TI) Apyterewa, onde está localizado o maior garimpo da TI|Rogério Assis/ISA
O garimpo já havia sido um problema no passado, foi combatido e voltou a assolar o território dos Parakanã em 2017. Durante os anos do governo Bolsonaro, o garimpo se expandiu, financiado por pessoas ligadas à grilagem de terras, um problema estrutural no território.
Em 2018, um novo garimpo conhecido como Pista Dois foi aberto ao norte da TI no afluente do igarapé Bom Jardim. Em 2019 e 2020, novos focos também surgiram. A região já atingiu a marca de mais de 208 hectares derrubados pela exploração garimpeira entre 2018 e 2022. Em 2023, dados de satélite confirmam a situação relatada por Wenathoa: a atividade segue em garimpos que haviam sido abertos em anos anteriores.
“O risco para nós, Parakanã, é sobretudo a poluição da água, que tá ficando suja, que é o garimpo que fica lá para cima, e tem várias aldeias no Rio Bom Jardim, a Kaeté, a Kanaã, Tivé, Itaeté, Catu, Paranapiana. O peixe pode estar contaminado e a gente não sabe”, diz ela. Além disso, os Parakanã são constantemente ameaçados pelos garimpeiros.
Wenathoa se refere à contaminação por mercúrio. O metal pesado é utilizado no processo de garimpagem, para amalgamar o ouro. Depois, ele é queimado, restando apenas o metal nobre. Sua queima gera emissões tóxicas na atmosfera, que contaminam o solo e a água. Quando despejado em rios e lagos, o mercúrio se converte em sua forma mais tóxica, o metilmercúrio, que é consumido pelos peixes e por outros animais aquáticos.
Estudo de contaminação do mercúrio em peixes lançado em 2023 pelo ISA, em parceria com o Iepé e Greenpeace, mostrou índices de consumo de mercúrio acima dos níveis considerados seguro para a saúde nos centros urbanos de São Félix do Xingu e Altamira, cidades no entorno dos territórios ameaçados do Xingu.
Dados alarmantes também foram encontrados em outro estudo, feito em 2018, com base nos peixes dos rios Curuá e Baú, que abastecem a Terra Indígena Baú. “Uma criança que foi gestada e se desenvolveu tendo acesso a altos índices de mercúrio pode ter problemas de desenvolvimento, motores, neurológicos e isso é pro resto da vida. Muito mais que longo prazo”, afirma Estevão Senra, pesquisador do ISA.
A degradação e fragilidade da Apyterewa exigem esforços permanentes, articulados entre vários órgãos, além da completa desintrusão dos ocupantes não-indígenas na área “A solução é que tire todas as pessoas que tão lá dentro da nossa TI Apyterewa, antes que fazendeiros tirem todas as árvores e poluam toda água. É da floresta que a gente tira o nosso alimento, a água. Se não tiver água limpa, não conseguimos sobreviver, como os animais. Queremos água pura e a floresta em pé para podermos respirar o oxigênio puro”, exige Wenathoa.
Outro caso de constante preocupação é o da Terra Indígena Baú, que sofreu com a intensificação do garimpo ilegal nos últimos anos e com sucessivas ameaças contra lideranças e comunidades. Operações da Polícia Federal e do Ibama em 2022 conseguiram desativar grande parte dos garimpos e de suas estruturas no território. Mesmo assim, a partir de imagens de satélite foi possível identificar a retomada de atividade em dois garimpos: o Pista Velha e o Jurandi. Trata-se de um exemplo na prática de que esse tipo de crime exige constante atenção das autoridades.
No dossiê, Rodrigues também detalha como o combate deve contar com o apoio de agências reguladoras para garantir a desarticulação da logística, com a fiscalização das redes de comunicação (Anatel), da operação irregular de aeronaves (Anac) e do controle da venda de combustível (ANP).
“É importante pensar na conscientização e no estímulo a uma cadeia econômica sustentável nessas regiões. A economia da região amazônica precisa se apoiar na sociobiodiversidade, de forma que as comunidades locais tenham uma renda obtida de forma sustentável, não ilícita e não predatória, que garanta os recursos naturais para as próximas gerações”, conclui.
Estrago deixado pelo garimpo ilegal
Entender a dimensão da destruição provocada pelo garimpo ilegal na Bacia do Xingu é importante porque, mesmo com a recuperação da fiscalização ambiental em 2023, as consequências da falta de controle dos anos passados devem perdurar por décadas.
Hoje, a garimpagem na Amazônia é feita de forma mecanizada e com alto investimento. Nesse tipo de exploração, o meio ambiente é destruído, e o dano pode permanecer por muitos anos.
“O garimpo, como é feito hoje, remove a cobertura do solo todo. Você praticamente não tem mais estrutura de solo para que uma vegetação mais diversa possa colonizar essa área. Depois de 30 anos, uma área destruída pelo garimpo ainda não tem a floresta recuperada, apenas uma vegetação muito pobre e escassa em recursos”, explica Senra.
Com grandes mangueiras, às margens do rio são convertidas em lama, que passam por outras máquinas para a extração de ouro. Nesse processo, cursos d’água menores, como igarapés são destruídos e tornam-se lagos estéreis. Em consequência, os rios maiores são assoreados por essa lama. Esse é outro tipo de impacto que ficará marcado no ambiente por décadas.
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