Projeto que flexibiliza licenciamento da BR-319 é aprovado pela Câmara
Proposta coloca em risco uma das regiões mais preservadas e de maior biodiversidade da Amazônia. Recursos do Fundo Amazônia poderão ser utilizados para financiar a obra
A Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Lei (PL) que coloca em risco uma das regiões mais preservadas e de maior biodiversidade da floresta amazônica ao flexibilizar o licenciamento ambiental do reasfaltamento da rodovia BR-319, que corta o bioma e conecta Manaus (AM) a Porto Velho (RO). O PL permite ainda o uso de recursos do Fundo Amazônia para financiar a obra. O texto será enviado ao Senado.
A proposta, que classifica o empreendimento como "infraestrutura crítica, indispensável à segurança nacional", foi aprovada nesta terça-feira (19), com 311 votos a favor e 103 contra. A votação gerou indignação entre a sociedade civil e especialistas, que veem o projeto como um ataque direto à preservação do bioma e aos direitos das populações indígenas e tradicionais.
“É evidente e comprovado que a abertura de rodovia é um vetor para o desmatamento e a grilagem. Centenas de estudos indicam isso, é preciso ter cautela”, afirma Alexandre Gaio, da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa). “Não temos mais tempo para permitir que um empreendimento seja feito sem as devidas medidas compensatórias e mitigadoras”, completa.
Em nota, a Abrampa declarou que o projeto, ao propor a repavimentação da rodovia sem o devido licenciamento ambiental, pode agravar eventos climáticos extremos na região amazônica, intensificando o desmatamento, as queimadas e, em consequência, as emissões de gases de efeito estufa.
“Não faz sentido uma lei para uma obra específica. Isso fere a divisão de poderes entre Legislativo e Executivo”, alerta Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima (OC). “É uma lei esvaziada, de uso político. Não deveria ser essa a opção do legislador nacional. As leis têm que ter conteúdo normativo”, avalia.
“É inapropriado que a decisão sobre determinado projeto seja exclusivamente política, sem nenhum critério técnico e objetivo”, critica Luís Henrique Sanches, professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Associação Internacional de Avaliação de Impactos.
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Vista aérea do trecho sem asfalto da BR 319, entre Humaitá e Realidade (AM) | Alberto César Araújo / Amazônia Real
Licenciamento fracionado
O PL nº 4.994/2023 determina que a liberação e o licenciamento ambiental para obras "de pequeno e médio potencial poluidor" relacionadas à rodovia "deverão ser realizados por meio de procedimentos simplificados ou por adesão e compromisso, inclusive os serviços acessórios ou necessários à realização das obras da rodovia". Ao compartimentar e fracionar o licenciamento ambiental, o projeto desconsidera o impacto global do empreendimento. A licença por “adesão e compromisso” é feita de forma automática, por meio do preenchimento de documentos via internet, sem nenhuma análise prévia dos órgãos ambientais.
“É importante que sejam avaliados os impactos diretos, indiretos e cumulativos, inclusive das obras derivadas da obra principal, que não são apenas ‘serviços acessórios’”, alerta Sanches. Para ele, a proposta é contrária às recomendações internacionais de avaliação de impactos para empreendimentos desse porte e tem potencial de impactos significativos.
“Haverá, certamente, lesão a direitos”, avalia Alexandre Gaio, da Abrampa. “Ao fazer a obra sem o licenciamento completo, sem o devido debate sobre todos os impactos, estamos abrindo espaço para graves lesões aos direitos fundamentais e ao meio ambiente. Não me parece adequado, justo, legal e constitucional, se buscar atalhos para agilizar o licenciamento e colocar em risco outros direitos constitucionais”.
Em nota técnica, o ISA e o Observatório do Clima consideram que o projeto pode ser alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade, já que o licenciamento simplificado para atividades de médio impacto ambiental viola a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto.
“Além de poder gerar danos significativos ao meio ambiente e à população do entorno, o PL é contraproducente para aqueles que querem ver a obra implantada rapidamente”, pondera Mauricio Guetta, assessor jurídico do ISA. “As inconstitucionalidades do PL são flagrantes e sua aprovação resultará em judicialização desnecessária e insegurança jurídica e financeira. Não faz sentido sob nenhum ângulo”.
Fundo Amazônia
Além da flexibilização do licenciamento, o projeto autoriza o uso de doações recebidas pela União, incluindo recursos do Fundo Amazônia, para a repavimentação da rodovia. Esse ponto é visto por alguns especialistas como um desvio de finalidade desses recursos, que originalmente são destinados ao combate ao desmatamento na Amazônia.
“Esse é um problema de injuridicidade. Temos acordos com os doadores que regem a aplicação desses recursos e as diretrizes concretas para sua aplicação são fixadas pelo Comitê Orientador do Fundo Amazônia”, explica Araújo.
Dispensa de licenciamento
Originalmente, o projeto continha um dispositivo que dispensava o empreendimento como um todo do licenciamento ambiental. Depois de acordo com o governo, o relator do PL, deputado Capitão Alberto Neto (PL-AM), aceitou exclui-lo.
Para o deputado Nilto Tatto (PT-SP), no entanto, a mudança não reverteu a inconstitucionalidade da proposta. “Fracionar processo de licenciamento também é inconstitucional. O PL trabalha com conceitos ultrapassados, não tem nenhuma estrada que pode ser enquadrada no quesito segurança nacional. Os recursos do Fundo Amazônia também têm regras próprias de destinação. O projeto é inócuo, feito para os deputados da Amazônia fazerem política”, afirma Tatto.
“Apesar da negociação para retirada desse dispositivo, o texto foi aprovado com autorização para processo de licenciamento ambiental simplificado e fracionado, o que não garante a aplicação de mecanismos de monitoramento, mitigação e compensação. É um retrocesso, uma afronta à legislação vigente e à defesa do meio ambiente”, pontua a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ).
Obra impacta Terras Indígenas
Construída nos anos 1968 a 1976, rasgando a floresta amazônica entre Manaus e Porto Velho, a BR-319tem cerca de 885 km de extensão e foi planejada na época do chamado “milagre econômico brasileiro” da Ditadura Militar, com o objetivo de ser um eixo de colonização, tornando possível fazer uma viagem de carro entre as duas capitais em cerca de 12 horas. A manutenção da rodovia foi abandonada em 1988 e retomada anos depois.
A estrada vem sendo reconstruída de forma irregular, sem licenciamento ambiental para as obras, como exige a legislação. Os impactos chegaram a vários povos indígenas da região, inclusive na aldeia São Francisco, na Terra Indígena Apurinã do Igarapé Tauá-Mirim, no município de Tapauá, na parte sul do Amazonas, a área do estado mais impactada por desmatamento, grilagem e queimadas.
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Senado confronta STF e Constituição e aprova ‘marco temporal’ das demarcações
No mesmo dia em que o tribunal concluiu a análise do assunto, senadores aprovam projeto considerado inconstitucional. Liderança do governo promete veto de Lula
O relator do PL 2.903 no plenário e na CCJ, Marcos Rogério, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, na sessão que aprovou a proposta | Waldemir Barreto / Agência Senado
Por 43 votos a 21, o plenário do Senado aprovou, na noite desta quarta (27), o texto principal do Projeto de Lei (PL) 2.903/2023, a maior ameaça aos direitos indígenas desde a Redemocratização (veja como votaram os senadores). As duas emendas que amenizariam a proposta foram rejeitadas e ela segue agora à sanção presidencial.
Entre outros retrocessos, segundo a redação final, os povos originários só teriam direito às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, o chamado “marco temporal”.
Nesta quarta, enquanto a Corte concluía a análise do caso, fixando teses complementares sobre a demarcação de Terras Indígenas (TIs), os senadores iniciavam a análise do PL 2.903 no plenário (saiba mais abaixo).
A votação do projeto converteu-se em mais um capítulo na novela de tensões e conflitos entre os três Poderes, e uma represália de ruralistas e oposição contra o STF e o governo. Após o resultado parcial do julgamento do "marco temporal" na semana passada, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) passou a ameaçar obstruir as votações, principalmente na Câmara. Também articulou o apoio de outras bancadas, como as de armamentistas e evangélicos, contra a decisão do Supremo.
Nas últimas semanas, uma verdadeira blitz conservadora foi articulada no Congresso, sob a alegação de que a Corte estaria usurpando a competência dos parlamentares de decidir sobre alguns temas, como a descriminalização do aborto e do porte de drogas. O "marco temporal" acabou sendo adotado como mais uma das bandeiras da ofensiva contra o tribunal. Os oposicionistas tentam agora articular uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permita o Congresso rever decisões do órgão máximo do Judiciário.
“Não aceitaremos qualquer interferência na prerrogativa legislativa do Congresso Nacional. Tomaremos as devidas medidas para restabelecer o equilíbrio entre os Poderes”, diz nota assinada pelo FPA e mais 17 frentes parlamentares. Entre os partidos, só o PL e o Novo assinaram o documento.
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Placar da orientação de bancadas na votação do PL 2.903 | Waldemir Barreto / Agência Senado
Governo e Pacheco cedem às pressões
Tanto o governo quanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), acabaram cedendo às pressões para votar o PL 2.903 a toque de caixa. Ele foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) horas antes, pela manhã, por 16 votos contra 10, junto com um requerimento de urgência para apreciação no plenário. O PL havia sido aprovado na Comissão de Agricultura (CRA), no mês passado, e no plenário da Câmara, em maio.
Pacheco descumpriu promessas feitas a lideranças indígenas de que o projeto teria uma tramitação em ritmo moderado, que permitisse o aprofundamento do debate sobre o assunto.
O relator da proposta na CCJ e no plenário, Marcos Rogério (PL-RO), agradeceu o empenho de Pacheco. “Esse tema só está sendo votado neste momento porque vossa excelência o chamou para si. Eu sei das dificuldades regimentais inerentes ao processo, mas sei do esforço que vossa excelência fez para que votássemos no dia de hoje essa matéria”, disse.
Ecoando o discurso de retaliação ao STF e reconhecendo, em parte, os problemas do projeto, Marcos Rogério repetiu que o Senado tem o direito de tomar a decisão política de aprová-lo e que o presidente da República poderia vetá-lo.
“De nossa parte não há nenhum tipo de sentimento revanchista em relação à Suprema Corte do nosso país”, afirmou Pacheco. Ele reconheceu que o projeto tem muitos pontos que são “objeto de dúvida”. “Eventualmente, num caso de veto, será então debatido pelos colegas senadores se isso é realmente importante estar ou não no ordenamento jurídico”, completou.
O governo fez pouco esforço para barrar a votação, temendo perder outras, como a do projeto do programa apelidado de “Desenrola”, que prevê renegociar as dívidas de milhões de devedores.
No plenário, orientaram favoravelmente ao projeto o PL, União, Podemos, Republicanos, PP, PSDB, Novo, Minoria e Oposição. Já o MDB, PT e Governo orientaram voto contrário. A Maioria, PSB, PDT, PSD e a Bancada Feminina liberaram os parlamentares para votar como quisessem.
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Indígenas protestam contra 'marco temporal' na Esplanada dos Ministérios, em Brasília | Tiago Miotto / Cimi
Acordo
A informação que circulou é que o governo teria costurado um acordo para que o presidente Luís Inácio Lula da Silva vete parte do projeto e para que o veto seja mantido. O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), disse que Lula irá vetar o texto aprovado.
Se isso não acontecer e alguém provocar o STF a se pronunciar sobre ele por meio de uma ação, a decisão tomada nesta quarta pela Corte será a base a ser usada na análise.
"O Senado quer perpetuar o genocídio indígena. Esse projeto de lei legaliza crimes que ameaçam as vidas indígenas e afetam a crise climática. O PL é inconstitucional e o Supremo já anulou o ‘marco temporal’, mas o projeto tem muitos outros retrocessos aos direitos indígenas”, criticou Kleber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Além do “marco temporal”, o PL 2.903 permite a exploração dos recursos naturais e a instalação de empreendimentos predatórios nas TIs, a desconstituição de “reservas indígenas” e a possibilidade de contatos forçados com indígenas isolados, especialmente vulneráveis a doenças e conflitos. Em nota técnica, o ISA apontou a inconstitucionalidade da proposta ponto a ponto.
"O Senado vai na contramão da Constituição ao legislar em favor de tese declarada inconstitucional pelo STF. Infelizmente, a bancada ruralista não se conforma com um dos principais papéis das Supremas Cortes nas democracias: a defesa dos direitos fundamentais das minorias”, afirma a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.
“Infelizmente, o governo cede ministérios e verbas de emendas parlamentares, mas fica sem votos. Dessa forma, promessas fundamentais feitas pelo presidente Lula, como a continuidade das demarcações e a proteção dos direitos e das Terras Indígenas, serão descumpridas", completa.
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Indígenas comemoram derrubada do 'marco temporal' pelo STF na Praça dos Três Poderes, em Brasília | Ana Paula Sabino / Funai
Fim do julgamento
Na conclusão do julgamento no STF, nesta quarta, os ministros fixaram outras teses complementares sobre a demarcação de TIs que surgiram na análise do caso (leia mais no quadro ao final da reportagem).
A principal novidade, até agora não prevista na legislação, é a possibilidade de pagamento de indenização da terra para produtores rurais que tiverem de ser removidos de suas propriedades. Hoje, segundo a Constituição, a indenização deve ser feita apenas pelas benfeitorias.
Segundo a decisão, haverá direito à indenização quando houver ocupação de boa-fé e o proprietário tiver um título expedido pelo Estado, no caso em que for comprovado que os indígenas não estavam no território e não havia disputa judicial ou conflito em campo em 5 de outubro de 1988, o chamado "renitente esbulho". Não caberá indenização para as áreas já “pacificadas”, ou seja, no caso de TIs já "reconhecidas e declaradas", exceto em casos já judicializados.
O receio do movimento indígena e da sociedade civil é que uma indenização “prévia” dificulte ainda mais o acesso das comunidades aos seus direitos e territórios.
"A indenização prévia relativa à terra nua pode tornar o acesso das comunidades indígenas às suas terras ainda mais demorado do que já é", reforça Moreno Saraiva Martins, coordenador do Programa Povos Indígenas no Brasil (PIB) do ISA. Ele lembra que, no caso de algumas demarcações, o território continua indisponível para os indígenas por mais de 20 anos. “De acordo com a decisão do STF, no caso de comunidades que estejam fora de seu território tradicional, há um grande risco de que elas tenham o direito de reocupá-lo só após o Estado definir o valor da indenização e realizar o depósito para ocupante", conclui.
Além disso, segundo a decisão do STF, o governo poderá assentar uma comunidade indígena em outra área que não a de ocupação tradicional, por meio da desapropriação de terras para constituição de “reservas”, no caso de “absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação”. Nesses casos, as comunidades indígenas seriam ouvidas, mas não teriam o direito de vetar a decisão.
Ampliação de áreas
Ainda de acordo com a decisão do STF, qualquer ampliação de TI só poderá ocorrer em até cinco anos após a “demarcação anterior” e desde que comprovado “grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites”. A regra não abrange ações judiciais ou pedidos de revisão de limites já registrados na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Uma proposta feita pelo ministro Dias Toffoli que causou bastante polêmica e acabou sendo retirada do debate por ele próprio, no último momento, após o intervalo da sessão desta quarta, foi a de determinar que o Congresso regulamentasse, em até um ano, o dispositivo da Constituição que prevê a possibilidade de exploração mineral e a construção de hidrelétricas nas Terras Indígenas.
Antes do debate dos dez pontos da tese final da decisão, os ministros decidiram se adotariam a tese mais sintética, elaborada pelo relator, Edson Fachin, ou a mais extensa, proposta por Toffoli com base em seu próprio voto, no de Fachin, dos ministros Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin.
Derrotada por 6 votos contra 5, a proposta mais concisa apenas afirmava que o direito territorial indígena independe de qualquer “marco temporal” ou da comprovação de disputa judicial ou conflito em campo pela terra.
Tese final do STF
(transcrito da transmissão do julgamento e sujeito a revisão com base no texto que será publicado oficialmente)
1- A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena.
2 - A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e das necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo os seus usos, costumes e tradições, nos termos do parágrafo primeiro do Artigo 231 do texto constitucional.
3 - A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente, à data da promulgação da Constituição.
4 - Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias previsto no Parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
5 - Ausente a ocupação tradicional indígena, ao tempo da promulgação da Constituição Federal, ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição Federal, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada, relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular o direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis pela União, e quando inviável o reassentamento dos particulares caberá a eles indenização pela União com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área correspondente ao valor da terra nua paga em dinheiro ou em título da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitida autocomposição e o regime do Artigo 37, parágrafo 6° da Constituição.
6 - Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de Terras Indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados em andamento.
7 - É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das Terras Indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida em todo caso a comunidade indígena, buscando-se se necessário a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas, Artigo 16.4 da Convenção 169 da OIT.
8 - O procedimento de redimensionamento de Terra Indígena não é vedado, em caso de descumprimento dos elementos contidos no Artigo 231 da Constituição da República, por meio de instauração de procedimento demarcatório, até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da Terra Indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento.
9 - O laudo antropológico, realizado por meio do Decreto 1.775/1996, é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com os seus usos, costumes e tradições e observado o devido processo administrativo.
10 - As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nela existentes.
11 - As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.
12 - A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurado o exercício das atividades tradicionais dos povos indígenas.
13 - Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutir seus interesses sem prejuízo nos termos da lei, da legitimidade concorrente da Funai e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei.
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Indígenas comemoram emocionados final do julgamento do lado de fora do STF | Ana Paula Sabino / Funai
Com o eco da alegria, do grito e do choro emocionados dos mais de 600 indígenas que acompanhavam o julgamento na Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal (STF), rejeitou, nesta quinta-feira (21/09), a tese do “marco temporal” da demarcação das Terras Indígenas.
A interpretação ruralista buscava estabelecer a data de 5 de outubro de 1988 como limite para o reconhecimento da ocupação tradicional indígena no país.
"Passa um filme na mente da gente. Quantas lideranças lutaram por isso, né?", afirmou Setembrino Canlem, cacique geral dos Xokleng de Santa Catarina. Uma área Xokleng, a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, foi alvo da ação julgada agora pelo STF, o Recurso Extraordinário (RE) 1017365. "Os nossos antepassados que lutaram e que hoje não estão mais aqui, então, essa vitória é deles também", comemorou.
Foram nove votos contra o marco temporal: dos ministros Edson Fachin, relator do caso, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber. Os ministros André Mendonça e Nunes Marques proferiram votos favoráveis.
"A superação do marco temporal pelo STF é uma vitória histórica dos povos indígenas", considera Juliana de Paula Batista, advogada do ISA. "O Supremo Tribunal Federal afirma sua grandeza ao bem tutelar os direitos fundamentais das minorias. A decisão de hoje fortalece a democracia e põe fim a uma das mais sórdidas tentativas de inviabilizar os direitos indígenas desde a redemocratização do país", comenta.
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Indígenas acompanham julgamento no plenário do STF | Felipe Sampaio / SCO / STF
A discussão tramita na Suprema Corte desde 2019, quando foi reconhecida a repercussão geral do caso sobre a interpretação do artigo 231 da Constituição, que prevê os direitos territoriais indígenas.
O tribunal deve discutir, na próxima semana, as teses propostas pelos ministros sobre a ação, que abordam temas como a indenização pela terra nua aos proprietários com terras adquiridas de boa-fé e sobrepostas a territórios indígenas e também a proposição do ministro Dias Toffoli, que poderá determinar ao Congresso o prazo de 12 meses para legislar sobre a regulamentação do parágrafo 3º do artigo 231 da Constituição, que prevê a possibilidade de mineração e construção de usinas hidrelétricas nas Terras Indígenas, o que hoje é proibido.
"Não é o momento de se decidir [sobre esse assunto] no âmbito do recurso extraordinário", avaliou Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib. "Além disso, muito nos preocupa a atual configuração do Congresso, que não é favorável a nós, povos indígenas. A gente espera que essa tese não esteja dentro do acórdão e que de fato os ministros fiquem adstritos à legalidade e ao voto do ministro Fachin, ao objeto da ação", concluiu.
Para Joenia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a derrubada do “marco temporal” é fundamental para dar continuidade aos procedimentos demarcatórios. "Sabemos que tem outros desafios a serem superados, dependendo das teses que serão votadas. Há a preocupação sobre a questão da indenização prévia e temas que extrapolam o objetivo do caso de repercussão, como a mineração. Então, uma luta por dia, uma luta por vez. Hoje é o dia de comemorar o ponto final no marco temporal", destacou, após o final da sessão do STF.
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Indígenas comemoram o final do julgamento no STF na Praça dos Três Poderes | Carlos Moura / SCO / STF
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Lula oficializa o equivalente a três cidades de São Paulo em áreas protegidas na Amazônia, mas Terras Indígenas já prontas para conclusão de demarcação chegam a 66
Para celebrar o Dia da Amazônia, nesta terça-feira (5), o governo federal lançou um pacote de ações ambientais, incluindo a regularização de cinco áreas protegidas e a ampliação de outras duas, totalizando mais de 454,4 mil hectares sob proteção federal na região, extensão equivalente a três vezes a cidade de São Paulo (saiba mais no quadro abaixo).
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou os decretos de homologação (a última etapa do processo de demarcação) da Terra Indígena (TI) Rio Gregório, de 187 mil hectares, dos povos Katukina e Yawanawá, no município de Tarauacá (AC), e da TI Acapuri de Cima, com 19 mil hectares, do povo Kokama, em Fonte Boa (AM). As duas TIs abrangem uma população de cerca de mil pessoas (leia mais no quadro ao final da reportagem).
Também foram destinados quase 20 mil hectares para a regularização da TI Valparaíso (AM) e outros 2,5 mil hectares para a TI Kanela do Araguaia (MT). Um hectare mede, mais ou menos, um campo de futebol.
Apesar disso, Lula continua sem cumprir integralmente a promessa de homologar 14 TIs já prontas para isso, listadas ainda durante a transição do governo. Mais longe ainda está de cumprir a outra promessa, feita em abril, quando homologou seis territórios, de acabar com as pendências dos procedimentos demarcatórios até o fim de seu mandato (saiba mais logo abaixo).
Na cerimônia no Palácio do Planalto, nesta terça, como já havia feito em abril, Lula reconheceu que é preciso acelerar a tramitação dos processos e voltou a prometer que irá fazê-lo. “Vocês sabem que o governo tem de fazer mais e vocês sabem que nós vamos fazer mais”, afirmou.
“Temos um grande passivo de demarcação de terras indígenas e titulação de quilombos nas gavetas do poder público, mas o anúncio de hoje é para comemorar”, afirma a assessora do ISA, Adriana Ramos.
“Ao celebrar o dia da Amazônia com um conjunto de medidas que inclui a oficialização de áreas protegidas e ações de regularização fundiária, o governo dá mais concretude ao que o presidente Lula vem destacando como compromisso de seu governo”, conclui.
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Fonte: ICMBio
UCs federais
Também foram assinados os decretos de criação da Floresta Nacional (Flona) do Parima, com 109,4 mil hectares, e de ampliação da Estação Ecológica de Maracá, em 50,7 mil hectares, que alcança agora 154,2 mil hectares, ambas em Roraima. Junto com a Flona de Roraima (instituída em 1989), as duas áreas formam agora um escudo que pode proteger contra invasões a fronteira leste da TI Yanomami, que ainda enfrenta uma crise humanitária sem precedentes (veja os mapas acima e mais abaixo).
O presidente anunciou ainda a ampliação do Parque Nacional do Viruá, também em Roraima, em 66 mil hectares ‒ a Unidade de Conservação (UC) soma agora mais de 281 mil hectares. A proteção das novas áreas no estado faz parte de um acordo realizado, em 2009, para a transferência de terras federais para o governo roraimense.
A Flona do Parima é a segunda UC criada por Lula: em junho, ele oficializou o Parque Nacional da Serra do Teixeira (PB), com 61,1 mil hectares. Antes dele, a última UC federal havia sido formalizada em 2018. Somando as outras TIs e UCs oficializadas até agora, a terceira gestão de Lula alcança a marca de mais de 1,1 milhão de hectares protegidos ou o equivalente a quase duas vezes a extensão do Distrito Federal.
Pacote ambiental do Dia da Amazônia
‒ Homologação da TI Rio Gregório (AC), de 187 mil hectares, e da TI Acapuri de Cima (AM), com 19 mil hectares ‒ Destinação de 19,9 mil hectares para a regularização da TI Valparaíso (AM) e de 2,4 mil hectares para a TI Kanela do Araguaia (MT) ‒ Criação da Floresta Nacional do Parima (RR), com 109,4 mil hectares ‒ Ampliação do Parque Nacional do Viruá (RR) em 66 mil hectares ‒ Ampliação da Estação Ecológica de Maracá (RR) em 50,7 mil hectares ‒ Programa União com Municípios, com promessa de R$ 600 milhões, até 2025, para prefeituras que reduzirem o desmatamento ‒ Programa Florestal Viva, com promessa de R$ 500 milhões não reembolsáveis do BNDES e iniciativa privada para restauração florestal, em até três anos ‒ 1º edital do programa Floresta Viva, com R$ 26,7 milhões em recursos não reembolsáveis para apoio a até nove projetos de restauração florestal e fortalecimento de cadeias produtivas associadas na Bacia do Xingu ‒ Retomada do funcionamento da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) ‒ Repasse de terras de seis UCs federais em Roraima, somando 3,6 milhões de hectares, da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para o ICMBio (uma das últimas etapas da regularização fundiária das UCs) ‒ Entrega de 534 títulos para agricultores familiares de São Gabriel da Cachoeira (AM) ‒ Declaração de interesse da Funai em 3,81 milhões de hectares para reconhecimento de TIs na Amazônia ‒ Declaração de interesse do MMA em 3,75 milhões de hectares para futura criação de UCs e concessão florestal
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Presidente Lula oficializa áreas protegidas no Palácio do Planalto ao lado de ministros: Marina Silva, do Meio Ambiente (E), Sonia Guajajara, dos Povos Indígenas (D), entre outros | Ricardo Stuckert / PR
Promessa de R$ 1,1 bilhão
Outro anúncio feito pelo governo foi o de um novo programa que pretende incentivar os municípios da Amazônia a reduzir suas taxas de desmatamento e degradação florestal. O governo promete liberar, até 2025, R$ 600 milhões do Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
“Os municípios que mais reduzirem o desmatamento vão ter acesso a um maior volume de recursos para investir em ações de regularização fundiária e regularização ambiental, restauração agroflorestal, atividades produtivas sustentáveis”, explicou o secretário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA), André Lima, em entrevista ao ISA, ao final da cerimônia no Planalto.
De acordo com ele, a ideia é comprometer, além das prefeituras, também deputados, senadores e vereadores com o programa, inclusive com emendas parlamentares destinadas ao combate ao desmatamento e que servirão como contrapartida aos recursos do BNDES. Lima informa ainda que o ministério pretende acelerar a redução das taxas de destruição da floresta nesses municípios, até a realização da Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP-30), em Belém, em 2025, como uma vitrine para a captação de mais recursos internacionais para esse fim.
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Fonte: ICMBio
Ainda na cerimônia no Planalto, a diretora socioambiental do BNDES, Tereza Campello, informou que o banco está lançando um edital de R$ 26 milhões para o reflorestamento de 1,5 mil hectares em TIs, UCs e áreas de agricultura familiar na Bacia do Rio Xingu. A medida faz parte do programa Floresta Viva, que pretende captar e ofertar R$ 500 milhões em recursos não reembolsáveis, em até três anos, para atividades de restauração florestal e o fortalecimento de cadeias produtivas a elas associadas. De acordo com Campelo, metade do montante será oferecido pelo banco e a outra metade pela iniciativa privada.
Como fez em relação às demarcações, Lula também prometeu ampliar as ações de combate ao desmatamento. “Nós vamos provar que aqueles que acham que têm de derrubar uma árvores para ganhar dinheiro são muito mais ignorantes do que espertos. Porque ele pode ganhar muito mais dinheiro com a floresta em pé”, disse.
O presidente voltou a dizer que pretende formar um grupo composto pelos países amazônicos, mais a Indonésia e o Congo, com um posicionamento único nas negociações internacionais sobre mudanças climáticas, para pressionar as nações desenvolvidas a cumprirem a promessa de ofertar US$ 100 bilhões ao ano para conservar as florestas tropicais.
Como vem fazendo recentemente, o presidente, no entanto, acenou aos governadores da Amazônia, quase todos mais ou menos alinhados a bolsonaristas e ruralistas, e voltou a destacar a necessidade de promover o desenvolvimento econômico da região. “O povo da Amazônia tem pressa de conquistar oportunidades, de ter apoio para empreender e produzir. O povo da Amazônia tem pressa de viver em uma economia dinâmica para encontrar mais e melhores empregos”, apontou.
Desafios para as demarcações
Considerando processos já abertos na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o país tem hoje 740 TIs. Com as homologações desta terça, passa a contar com 500 TIs com seu processo de demarcação finalizado. Ainda restam, no entanto, 66 TIs declaradas que seguem aguardando pela assinatura do decreto de homologação.
Além disso, ainda há 46 TIs com seus relatórios de identificação já publicados pela Funai e 128 ainda em processo de estudo para produção do relatório de identificação de suas áreas. Ao todo ainda são 240 Terras Indígenas com processo não concluído e, para elas, o futuro ainda é incerto (entenda o processo de demarcação).
Entre as 66 terras declaradas, o tempo médio de espera até a finalização do processo, com a homologação pelo Presidente da República, é de 12 anos. Em alguns casos, como o da TI Acapuri de Cima, homologada nesta terça, a demora chegou a mais de duas décadas: o Ministério da Justiça reconheceu os estudos para sua delimitação e declarou a área em 2000.
“Hoje, 66 áreas já passaram por todas essas etapas do longo processo de demarcação, com investimento de tempo e recursos públicos, e aguardam um ato de confirmação do presidente, com sinais ainda muito tímidos de avanço. Não há mais nada a ser feito nesses processos. Eles já estão prontos. A única explicação para a demora em finalizá-los são as pressões de setores que trabalham para mudar o processo de demarcação”, defende Moreno Saraiva Martins, coordenador do programa Povos Indígenas no Brasil (PIB) do ISA.
Lula precisará acelerar os processos de demarcação e ir além do que foi feito em todos os seus mandatos para cumprir a promessa feita em abril. Para se ter uma ideia, em seu último governo (2007-20100, ele homologou 21 áreas, totalizando 7,7 milhões de hectares, em uma média de pouco mais de cinco homologações por ano. Na primeira gestão (2003-2006), por outro lado, foram homologadas 66 terras, totalizando 11 milhões de hectares e uma média de 16,5 homologações ao ano.
Para cumprir a promessa e acabar com as pendências de 240 TIs que já tem seus processos iniciados, o presidente precisaria homologar 60 áreas por ano, ou cinco por mês, em seus quatro anos de mandato. Atualmente, a média está abaixo de uma homologação ao mês.
Conheça as duas Terras Indígenas homologadas
Rio Gregório (AC)
A TI Rio Gregório é parte do território tradicional dos Yawanawá, povo de língua Pano que vive no município de Tarauacá (AC). Essa é única área destinada a esse povo, e chegou a ter uma parte de sua extensão delimitada em 1984, sendo a primeira demarcação feita no Acre. A homologação realizada, em 1991, deixou de fora partes significativas do território original. Por essa razão, uma nova área foi delimitada, em 2006, e declarada em 2007. A TI possui quase um quarto de sua área sobreposta à Floresta Estadual Rio Liberdade, UC de uso sustentável. Há ainda uma pequena sobreposição, menor que 1%, com a Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade. Atualmente, cerca de 600 pessoas vivem na TI.
Acapuri de Cima (AM)
Terra do povo Kokama, localizada no Amazonas, possui mais de 19 mil hectares e aguarda a homologação há mais de 23 anos. Apesar da ocupação tradicional registrada por ao menos 116 anos, teve seu processo de reconhecimento oficial iniciado só em 1997, com seus limites identificados em 1999, com a aprovação do relatório de delimitação pela Funai. O Grupo Técnico que fez o levantamento fundiário e cartorial só encontrou dois imóveis sobrepostos à TI, em 1998: um terreno do Ministério da Educação, adquirido para a construção de uma escola, e um segundo imóvel de posse de um antigo patriarca de uma das famílias kokama residente na área. Sua população hoje é de aproximadamente 500 pessoas. A TI foi declarada pelo Ministro da Justiça em 2000.
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Casa Civil bloqueia homologações de Terras Indígenas
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli critica a demora do governo em esvaziar a gaveta deixada por Bolsonaro no Planalto com homologações de Terras Indígenas
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Quarta-feira passada (9/8) foi o Dia Internacional dos Povos Indígenas e, também, o dia seguinte da “Cúpula da Amazônia”, que reuniu, em Belém, os chefes dos países da América do Sul que formam a Amazônia. Havia grande expectativa, no movimento indígena, na sociedade civil e no próprio governo, de que o presidente Lula assinasse os decretos de homologação de oito Terras Indígenas (TIs), já demarcadas fisicamente, cujos processos estavam engavetados desde o governo Bolsonaro.
A Constituição determina que a União demarque e proteja as TIs, o que foi descumprido pela gestão anterior. Lula prometeu retomar e concluir todos os processos demarcatórios pendentes. Quando assumiu, encontrou 14 deles apenas na gaveta do Palácio do Planalto. Seis foram homologados em abril, quando se disse, em relação aos outros oito, que ainda havia ajustes formais necessários e que a edição dos respectivos decretos ocorreria mais à frente.
Com as pendências resolvidas e o reenvio dos processos do Ministério da Justiça para a Casa Civil, esperava-se a publicação dos decretos o quanto antes. Nas últimas semanas, circulou a informação de que apenas duas homologações seriam anunciadas, por não haverem, nesses casos, manifestações em contrário. Afinal, nenhum decreto foi editado e o governo alegou que a coincidência da data com o final da cúpula tornava impróprios os anúncios.
Na verdade, imprópria é a vacilação da Casa Civil diante de manifestações extemporâneas contrárias a esses decretos. O receio é que ela signifique ignorância sobre o processo administrativo de demarcação. Por outro lado, põe em dúvida a vontade política do governo e o compromisso do presidente Lula para resolver, de uma vez por todas, as pendências ainda existentes sobre cerca de um terço das TIs com processos abertos na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Diferente do que muitos pensam, não é o decreto de homologação que define os limites de uma TI. Ele é a penúltima etapa de um processo com várias fases e que começa com a criação, pela Funai, de um grupo de trabalho para elaborar o estudo de identificação. Cabe ao presidente do órgão indigenista aprová-lo ou não. Há prazos para a manifestação e contestações de interessados. Depois disso, o Ministério da Justiça aprova ou não os limites ou pode pedir novas diligências à Funai. Se aprovados esses limites, o órgão indigenista procede à sua demarcação física e digitalização. Só depois é realizada a homologação por meio de um decreto presidencial. Após esse passo, ocorre o registro da área no cartório de imóveis da comarca correspondente e na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Vale lembrar que essas oito terras, assim como as outras seis que foram homologadas em abril, tiveram os seus limites definidos, há muitos anos, por portarias ministeriais. Além disso, recursos públicos significativos já foram investidos nos trabalhos de demarcação física e não há pendências administrativas ou decisões judiciais que impeçam as suas homologações.
Também vale lembrar que estamos discutindo, ainda, a gaveta de Jair Bolsonaro, o presidente mais anti-indígena de nossa história recente, e que há outras 240 áreas com processos abertos na Funai e tramitando em alguma instância do governo à espera de conclusão. Se o governo enrosca-se logo nas pendências herdadas de Bolsonaro, o que se pode esperar do processo como um todo?
O Planalto deveria saber que a definição de limites dessas terras antecedeu as demarcações. Outra pergunta impõe-se: vai sentar em cima dos processos ou devolvê-los à Funai a esta altura, prolongando conflitos e postergando soluções?
O presidente Lula precisa dar um jeito na situação, pois há comunidades envolvidas e tensões locais. A indefinição da Casa Civil afeta o discurso do presidente e pode até provocar uma crise de governo. É melhor desenroscar.
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Moraes vota contra ‘marco temporal’ e propõe indenização de terra; Mendonça suspende julgamento
Placar agora está em 2x1 contra interpretação ruralista. Processo decisivo para Terras Indígenas deve ser retomado a partir de agosto no STF
(E-D) O secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas, Eloy Terena, a ministra Sonia Guajajara, e a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) acompanham a sessão do STF | Carlos Moura / SCO / STF
O ministro Alexandre de Moraes manifestou-se contra a tese original do “marco temporal”, nesta quarta-feira (7), na retomada do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que decide o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs). Ele acompanhou quase integralmente o voto do relator, Edson Fachin.
“A opção nua e crua pelo marco temporal é uma opção pela segurança jurídica, mas isso não garante a paz social”, defendeu Moraes. “[Se formos aplicá-lo], estaríamos ignorando totalmente os direitos fundamentais das comunidades indígenas proclamados pela Constituição”, afirmou.
O ministro divergiu de Fachin, porém, em relação a como devem ser tratados os casos de proprietários de áreas formalmente reconhecidas como indígenas. Para Moraes, se for comprovado que a comunidade estava na terra em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição), o proprietário deve ser indenizado apenas pelas benfeitorias, como prevê a Carta Magna hoje. Se a posse indígena não for atestada nessa data, mas em outra, a indenização deverá abranger também a terra nua.
O ministro também propôs que uma população originária possa optar por outro território, que não o de ocupação tradicional, desde que com a sua “expressa concordância”. A regra não existe na legislação atual. Além disso, segundo a Constituição, as TIs são "indisponíveis" (confira os 10 pontos da "tese" no box ao final da reportagem).
Após a manifestação de Moraes, o ministro André Mendonça pediu “vistas”, ou seja, mais tempo para analisar o processo, suspendendo-o. O julgamento deve ser retomado a partir de agosto, após o recesso do Judiciário. Mendonça sinalizou que pretende devolver o caso ao plenário dentro do período regimental de 90 dias, “num prazo comum e que nós estabeleçamos”. Ele chegou a defender o “marco temporal” na mesma ação, atuando como advogado-geral da União do governo Bolsonaro.
O placar agora está em dois votos contra, de Fachin e Moraes, e um voto a favor da tese, do ministro Nunes Marques. Ainda faltam votar, nessa ordem: Mendonça, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.
O “marco temporal” é uma tese ruralista que busca restringir os direitos dos povos originários. De acordo com ela, só poderiam ser oficialmente reconhecidas as terras por eles ocupadas em 5 de outubro de 1988. Alternativamente, teriam de provar a existência de disputa judicial ou conflito pela área na mesma data, o chamado “renitente esbulho”.
A interpretação legaliza e legitima violências e expulsões sofridas por essas populações. Também ignora que elas eram tuteladas pelo Estado e não tinham autonomia para acionar a Justiça até a promulgação da Constituição.
O movimento indígena acompanha o assunto com grande expectativa e, desde segunda-feira (5), mobilizou cerca de duas mil pessoas de várias regiões e etnias num acampamento montado ao lado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Manifestações contra a interpretação ruralista também foram realizadas ao longo da semana em outros locais no Brasil e exterior.
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Indígenas acompanham julgamento do lado de fora do STF, em Brasília | Nelson Jr. / SCO / STF
“Boa-fé”
Em seu voto, Moraes ponderou sobre a necessidade de se respeitar os direitos dos produtores rurais que adquiriram de “boa-fé” títulos de propriedade emitidos pelo Estado.
“Da mesma forma que as comunidades indígenas têm o direito de se indignarem por não terem suas terras demarcadas, aqueles agricultores que estiverem na terra de boa-fé têm o direito de receberem uma indenização justa. O grande culpado é o poder público", afirmou. “Me parece que não há necessidade nem do oito nem do 80, eu diria, nos reflexos da decisão do Supremo Tribunal Federal. Se continuarmos com isso, jamais conseguiremos garantir a paz no campo”, disse.
Ele o lembrou os massacres sofridos pelo povo Xokleng até a década de 1950 pelos “bugreiros”, pessoas contratadas pelo governo de Santa Catarina para expulsar e assassinar os indígenas. Moraes citou o processo colonizatório e a submissão imposta aos povos indígenas: "Muito mais que um choque de culturas, houve sim um massacre cruel em relação aos povos originários e uma submissão imposta pelo Estado, desde o início".
O caso específico analisado agora pela corte trata do recurso da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para impedir a reintegração de posse movida, em 2009, pelo governo de Santa Catarina sobre um trecho da TI Ibirama-La Klãnõ (SC), habitada pelos Xokleng, entre outras populações. A ação chegou ao tribunal, em 2016, e foi elevada à categoria de “repercussão geral” em 2019. Isso significa que a decisão sobre ela servirá de diretriz para a gestão federal e o Judiciário em relação a todas as demarcações do país.
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Ministro do STF Luís Roberto Barroso | José Cruz / Agência Brasil
Barroso destaca concordâncias
Mesmo após a interrupção do julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso destacou posições suas em comum com as de Fachin e Moraes.
“Considero muito importante os aspectos de concordância manifestados pelo ministro Alexandre de Moraes em relação ao voto do ministro Edson Fachin, desmistificando, ao meu ver, com acerto, ambos, a ideia de que haveria um 'marco temporal' assinalado pela presença física em 5 de outubro de 1988 e reconhecendo que a tradicionalidade e a persistência da reivindicação em relação à área, mesmo que desapossadas, também constitui fundamento de direito para as comunidades indígenas”, salientou
Barroso também defendeu a redefinição do conceito de “renitente esbulho”, exceção à regra do "marco temporal" defendida em um julgamento anterior da Segunda Turma do STF.
“Evidentemente não se pode nem se deve exigir das comunidades tradicionais que atuem da mesma forma que a cultura dominante, ajuizando ações judiciais, fazendo notificações judiciais ou tomando providências que não são compatíveis com as culturas tradicionais”, argumentou. “Portanto, ainda que se queira preservar essa ideia de ‘esbulho renitente’, ela tem que ser reconceituada para uma permanente manifestação de inaceitação daquele desapossamento injusto”, concluiu.
Avaliação indígena
Também estavam presentes no STF a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), o cacique Raoni Metuktire e a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana.
Xakriabá considerou positivo o resultado da sessão e elogiou o voto de Moraes. “Também já prevíamos que ia entrar com o pedido de vistas, mas conseguimos agora dar um fôlego, porque saímos com voto favorável”, comentou.
A deputada avaliou que a manifestação do ministro pode influenciar positivamente a tramitação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, proposta ruralista que prevê a aplicação do “marco temporal”, foi aprovada recentemente pela Câmara e agora está no Senado.
"Para nós, que enfrentamos o PL 490, que tenta acelerar e antecipar a tese do 'marco temporal', é uma vitória importante”, comemorou. “Então, neste momento, para enfrentar o [PL] 2903 [nova numeração do PL 490] no Senado, nós temos uma vantagem”, afirmou.
“Mas precisamos permanecer vigilantes, porque a 'bancada do desmatamento' ainda segue fortalecida. Certamente, o ministro Alexandre de Moraes, que tem votado muito coerentemente em favor da democracia, votar junto com os povos indígenas é uma sinalização importante para dizer que não vai existir democracia sem demarcação dos territórios indígenas”, enfatizou.
Já o assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) Maurício Terena classificou o voto de Moraes como um “meio termo” entre os dois votos anteriores, de Fachin e Nunes Marques.
“Essa tese ‘meio termo’ tem alguns problemas, justamente porque ela prevê, por exemplo, a instituição da indenização prévia, ou seja, isso pode causar problemas internos entre nós, isso pode causar o assédio de pessoas querendo comprar terras indígenas e ocupar os territórios. Para os direitos dos povos indígenas não existe negociação, não existe 'meio termo' ”, criticou.
Tese proposta por Alexandre de Moraes
(Transcrito da transmissão da TV Justiça; sujeito a revisão após publicação oficial do voto)
1) A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário à posse das terras ocupadas tradicionalmente pelas comunidades indígenas.
2) A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo os seus usos, costumes e tradições, nos termos o parágrafo 1º do artigo 231 do texto constitucional.
3) A proteção constitucional aos direitos [dos povos] originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal, em 5 de outubro de 1988, ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
4) Inexistindo a presença do marco temporal, em 5 de outubro de 1988, ou de renitente esbulho ou conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada, que tem a ver por objeto a posse ou o domínio; ou a ocupação de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena; ou a exploração do solo, rios e lagos nela existentes; assistindo ao particular direito à indenização prévia em face da União, em dinheiro ou títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, tanto em relação à terra nua quanto em relação às benfeitorias realizadas.
5) Na hipótese prevista do item anterior, sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada, e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja [sua] expressa concordância.
6) O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto 1.775/1996 é elemento fundamental para demonstração da tradicionalidade da ocupação da comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições.
7) O redimensionamento da terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório, nos termos das normas vigentes.
8) As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios nela existentes.
9) As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.
10) Há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.
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Com governo sob pressão, plenário da Câmara aprova projeto que inviabiliza demarcações
Na última hora, parlamentares aliados do movimento indígena conseguiram retirar do parecer do PL 490 autorização para mineração, garimpo e hidrelétricas nas Terras Indígenas. Projeto segue ao Senado enquanto “marco temporal” será analisado pelo STF
Por 283 votos a favor, 155 contra e uma abstenção, o plenário da Câmara aprovou o Projeto de Lei (PL) 490/2007, na noite desta terça-feira (30/05). Na prática, a proposta inviabiliza a demarcação das Terras Indígenas (TIs), entre outros pontos (veja box abaixo).
O projeto vai agora ao Senado mas ainda não há previsão de quando será apreciado. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), prometeu um trâmite menos acelerado, com mais espaço para debates, em conversas com a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) e a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.
“O presidente do Senado já demonstrou que terá prudência, que passará [o PL] por todas as comissões, organizará audiências e ouvirá também os povos indígenas, sobretudo potencializando todos os procedimentos e ritos”, informou Xakriabá. “[Pacheco] ainda reafirmou o compromisso de analisar toda a inconstitucionalidade [do projeto] e que não deixará passar qualquer inconstitucionalidade”, acrescentou.
Na votação de destaques na Câmara, os partidos contrários ao PL 490 obtiveram uma vitória importante, conseguindo retirar do relatório do deputado Arthur Maia (União-BA) a possibilidade da realização do garimpo, da mineração e da construção de hidrelétricas nas TIs. O destaque é uma emenda sobre um dispositivo específico votada em separado e, nesse caso, foi apresentado pela deputada Duda Salabert (PDT-MG).
A redação final do relatório, no entanto, autoriza a instalação nesses territórios de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação”. Além disso, segundo o texto aprovado, quando houver sobreposição entre TIs e Unidades de Conservação federais, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área.
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Parlamentares e ministra Sonia Guajajara protestam contra o PL490 no plenário da Câmara | Pablo Valadares / Câmara dos Deputados
Quais os principais problemas do PL 490?
- Permite a retomada de "reservas indígenas" pela União a partir de critérios subjetivos
- Aplica o “marco temporal” a todas as demarcações de Terras Indígenas, inviabilizando um procedimento já demorado
- Estabelece que a demarcação poderá ser contestada em todas as fases do processo administrativo, também inviabilizando-o
- Permite a implantação nas TIs de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação”
- Dispensa atividades altamente impactantes da realização de consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas afetadas, conforme determina a Constituição e a legislação internacional
- Abre brecha para o fim da política de “não contato” com indígenas isolados. De acordo com o PL, o contato poderia ser feito com a finalidade de “interesse público”, por empresas públicas ou privadas, inclusive associações de missionários
- Quando houver sobreposição entre territórios indígenas com Unidades de Conservação federais, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área
PT, PCdoB, PV, PSOL, Rede e PDT orientaram suas bancadas contra o texto principal do PL 490. O bloco formado por União Brasil, PP, a federação PSDB-Cidadania, PDT, PSB, Avante, Solidariedade e Patriota liberou os parlamentares para que votassem como quisessem. Demais partidos, oposição e minoria posicionaram-se a favor (veja orientações de bancada e votos dos parlamentares).
“Esta questão [da continuidade das demarcações de TIs] fez parte do programa de reconstrução apresentado pelo presidente Lula na disputa eleitoral. Foi um compromisso eleitoral”, afirmou o líder do governo, José Guimarães (PT-CE). De acordo com ele, a posição governista considerou também que o PL 490 altera a Constituição por meio de uma lei ordinária, o que não pode ser feito segundo a legislação. “É um risco grande. Isso gera instabilidade [jurídica]”, defendeu.
Na última hora, no entanto, o PT desistiu de defender um destaque, para evitar novos atritos com sua própria base e com os ruralistas.
Tentativa de acordo
Guimarães revelou a tentativa de um acordo entre governo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender igualmente a análise do PL, pelos deputados, e do chamado “marco temporal” das demarcações, pela corte. A negociação falhou.
O STF está apreciando o assunto por meio do caso específico da TI Ibirama-Laklanõ (SC), mas a decisão final terá “repercussão geral”, ou seja, servirá de regra para todos os procedimentos demarcatórios. O julgamento começou em 2021, já foi suspenso cinco vezes e tem previsão de ser retomado na próxima quarta (7/6). A questão é que o “marco temporal” também está previsto no PL 490.
Trata-se de uma tese ruralista que busca restringir os direitos dos povos originários. De acordo com ela, só poderiam ser oficialmente reconhecidas as terras por eles ocupadas em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada. Alternativamente, teriam de comprovar a existência de disputa judicial ou conflito pela área na mesma data.
A interpretação legaliza e legitima violências e expulsões sofridas por essas populações, em especial durante a Ditadura Militar. Também ignora que, até 1988, elas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para entrar na Justiça em defesa de seus direitos.
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Líder do governo, José Guimarães, discursa no plenário da Câmara | Pablo Valadares / Câmara dos Deputados
Tensão entre poderes
A votação de ontem na Câmara tornou-se mais um capítulo das tensões entre os três poderes. Lira pautou o projeto com o propósito explícito de pressionar o STF a recuar do julgamento. Defensores do PL alegaram que o tribunal estaria “usurpando” a competência do Congresso de legislar sobre o assunto.
“Eu acredito que, com essa votação aqui na Câmara, prevaleça o bom senso. O bom senso é o Supremo Tribunal Federal compreender que ele, o Supremo, deve agir como ‘julgador’. O STF existe para dirimir conflitos constitucionais, e não para legislar”, afirmou Arthur Maia. Ele disse que o STF segue o processo porque havia antes um “silêncio legislativo”, e que não seria mais o caso.
Agora, movimento indígena, políticos e governo estão em compasso de espera, porque a determinação final da corte deverá influenciar a tramitação do projeto e seu conteúdo, embora seja difícil prever o que de fato acontecerá. Ainda não é possível saber nem qual o teor final da decisão do tribunal nem qual será a posição do Senado.
Demonstração de força
Com o controle e o apoio da maioria da Câmara favorável ao PL 490 (ruralistas, bolsonaristas e “Centrão”), o placar da votação de ontem também converteu-se em mais uma demonstração de força de Lira diante de uma base governista ainda indefinida e de uma articulação política do Planalto criticada por todos os lados.
Isso porque o presidente da Casa marcou a votação da Medida Provisória (MP) 1.154/2023, que reestrutura o primeiro escalão da gestão federal, também para ontem, a dois dias de seu vencimento, dificultando ainda mais negociações sobre a proposta.
A apreciação foi adiada para esta quarta e não tinha sido concluída até o fechamento desta reportagem. Se a MP caducar, pastas serão desfeitas e a Esplanada dos Ministérios voltará ao desenho da administração de Jair Bolsonaro.
As manobras de Lira colocaram o governo ainda mais na defensiva. Nos corredores da Câmara, circulou que ele teria condicionado a votação da MP a uma votação rápida e sem alterações de conteúdo do PL 490. Publicamente, o presidente da Câmara e o “Centrão” cobram cargos e a liberação de verbas de emendas parlamentares pelo Planalto.
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Deputado ruralista Coronel Chrisóstomo (PL-RO) defende PL 490 no plenário da Câmara | Pablo Valadares / Câmara dos Deputados
Marco temporal
Bolsonaristas e ruralistas alegam que a adoção do “marco temporal” apenas garante o direito à propriedade privada e que a competência dos antropólogos responsáveis pelos estudos de identificação das TIs seria abusiva, entre outros pontos.
“O PL 490 vai na contramão de tudo aquilo que o texto constitucional orientou”, argumentou o secretário executivo do ministério dos Povos Indígenas, Luís Eloy Terena, numa coletiva antes da votação.
“[A Constituição] reconheceu o direito originário dos povos indígenas e colocou como requisito a tradicionalidade [da ocupação da terra]. E o próprio texto constitucional traz esses requisitos. E entre esses requisitos não tem tempo, não tem data, mas é a forma como cada povo se relaciona com o seu território”, completou. Ele alertou que a adoção do “marco temporal” promoverá mais conflitos e disputas judiciais por terra, e não mais segurança jurídica, como defendem os ruralistas.
Discurso emocionante
O clima esquentou no plenário da Câmara. O início da sessão foi conduzido pelo 4ª secretário da Mesa, o ruralista Lúcio Mosquini (MDB-RO), que dificultou o encaminhamento de “questões de ordem” dos parlamentares críticos ao PL 490.
Num determinado momento, o vice-líder da Maioria Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE) aproveitou a situação para, nessa condição, orientar o voto a favor de um requerimento para continuar a análise da matéria. Segundo o procedimento usual, no entanto, ele deveria ter liberado os parlamentares para votarem como quisessem, porque não havia consenso entre os partidos do bloco sobre o assunto - governo e partidos mais à esquerda lutavam para retirar de pauta o projeto. Sob protestos, a orientação foi alterada e o voto foi liberado.
O discurso mais emocionante da noite, último antes da votação do PL 490, foi de Célia Xakriabá. Acompanhada de outras parlamentares e de Sonia Guajajara, ela pintou o rosto e as mãos de urucum na tribuna do plenário. Sonia foi à Câmara pedir a retirada de pauta da proposta (veja vídeo abaixo).
“Como vocês [parlamentares] querem ser lembrados nesse Brasil tão diverso? [Como] o povo brasileiro que tem origem de sangue indígena nas veias ou que tem origem de sangue indígena nas mãos?”, questionou Célia. “Matar não é somente atirar sobre povos indígenas. Matar é arrancar direito”, completou. Ela voltou a chamar o projeto de “genocídio legislado”. No final da fala, o grupo repetiu as palavras de ordem “Demarcação Já”.
pAs parlamentares imitaram o gesto do pensador Aílton Krenak, há 36 anos, na Constituinte. Ele pintou o rosto com tinta para reafirmar sua identidade indígena e chamar atenção para a defesa dos direitos dos povos originários.
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Homologar não é definir limites de Terra Indígena
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa a retomada das demarcações anunciada no final do Acampamento Terra Livre 2023. Artigo publicado originalmente na Mídia Ninja
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Sexta-feira passada (28), encerrou-se a 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que reuniu cerca de seis mil indígenas de todas as regiões do país, em Brasília. O presidente Lula compareceu ao encerramento e anunciou medidas importantes para os povos indígenas. O Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) foi recriado para reunir os órgãos federais e o movimento indígena e articular ações de governo. Também foi instituído o Conselho Gestor da Política Nacional de Gestão Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI), no Ministério dos Povos Indígenas.
Lula também assinou seis decretos, que homologam as demarcações das Terras Indígenas (TIs) Arara do Rio Amônia (AC), Uneiuxi (AM), Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS) e Avá-Canoeiro (GO). Pouco depois, foi anunciada a assinatura, pela presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, da portaria de identificação das TIs Sawré Bap’in, dos Munduruku, na região do Tapajós (PA), e Sete Salões (MG), do povo Krenak. Em abril, por meio de uma Medida Provisória, Lula já tinha destinado R$ 640 milhões para assistência emergencial aos Yanomami e, na sexta, anunciou mais R$ 12,3 milhões.
A relevância desses decretos vai além da quantidade, pois eles representam a retomada dos processos de demarcação das TIs, previstos na Constituição, mas paralisados há cinco anos. Cada um deles é especialmente importante, pois significa a conclusão, no âmbito administrativo, do procedimento demarcatório daquele território, essencial para as comunidades ocupantes e por elas esperado há décadas.
Processo com várias etapas
Porém, diferente do que muitos pensam, não é o decreto de homologação que define os limites de uma TI. O processo de demarcação tem várias etapas e começa pela criação, pela Funai, de um grupo de trabalho, coordenado por um antropólogo, para fazer os estudos necessários à identificação do território. Cabe ao presidente do órgão indigenista, por meio de portaria, aprovar a área identificada pelo grupo, como fez Joenia agora com as TIs Sawré Bap’in e Sete Salões.
Desde o início do processo administrativo, até a publicação da portaria de identificação no Diário Oficial da União (DOU), abre-se um prazo de 90 dias para contestações aos limites propostos para demarcação, que podem ser feitas por pessoas, empresas ou instituições. Em seguida, a Funai tem outro prazo, de 60 dias, para se manifestar sobre as eventuais contestações e, então, encaminhar o processo para o ministério responsável pela tomada de decisão política sobre os limites a serem demarcados.
Terceiros interessados, que tenham direitos afetados pela identificação da TI, têm o direito de contestar administrativamente os limites propostos após a sua oficialização. Caso não tenham o seu pleito reconhecido podem recorrer à Justiça. Mas não podem obstar, por outros meios, a continuidade do processo demarcatório e o reconhecimento do direito constitucional dos povos originários.
O Decreto 1.775/1996 atribuía ao ministro da Justiça a competência para decidir sobre esses limites, aprovando-os, rejeitando-os ou solicitando novas diligências à Funai. A Medida Provisória 1.154/23, que deverá ser votada em breve pelo Congresso, transfere essa competência ao novo Ministério dos Povos Indígenas.
É só após a decisão ministerial sobre os limites da área que a Funai pode providenciar a sua demarcação física, propriamente dita, com a colocação de marcos e placas de identificação e com o cercamento ou a abertura de picadas, conforme cada caso. Via de regra, a Funai contrata, por meio de licitação, empresas de engenharia para esse fim. É essa etapa, da demarcação física, que demanda maior investimento de recursos públicos. É nela, também, que é feita a digitalização do perímetro demarcado, que dá precisão ao memorial descritivo da área constante do decreto de homologação presidencial.
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Manifestação do Acampamento Terra Livre 2023 na Esplanada dos Ministérios | Richard Wera Mirim
Sentido lógico
As etapas do processo demarcatório fazem sentido. A tomada de decisão política sobre os limites se dá em nível ministerial, acima da Funai, e sabendo-se de eventuais objeções, podendo consultar outros ministérios e o próprio presidente, se for o caso. Da mesma forma, faz sentido que a decisão política preceda o investimento na demarcação física, que resultaria em desperdício, caso os limites fossem posteriormente revistos. Também é lógico que o processo chegue às mãos do presidente com as pendências tratadas e o respaldo técnico cabível.
Não é mera formalidade a precisão das coordenadas geográficas do perímetro demarcado, que, muitas vezes, só pode ser assegurada in loco, durante a materialização dos limites. Não se trata só de aprimorar o ato presidencial, mas de evitar sobreposições e conflitos evitáveis após o registro da área na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e nos cartórios locais.
Desde o governo de transição, segundo fontes oficiais, havia 14 terras com demarcação física concluída. Essa informação gerou a expectativa de que um número correspondente de decretos de homologação fossem expedidos agora.
Fontes do governo alegaram, no entanto, que alguns desses processos ainda mantêm pendências formais e não teria havido tempo para a Casa Civil resolvê-las, mesmo com a demarcação física concluída. Esse órgão é o responsável por formular os textos de decretos a serem editados pelo presidente.
São as seguintes as oito terras que estavam na lista do governo de transição, mas não foram homologadas : Potiguara de Monte-Mor (CE), Xukuru-Kariri (AL), Toldo Imbu (SC), Cacique Fontoura (MT), Aldeia Velha (BA), Rio Gregório (AC), Acapuri de Cima (AM) e Morro dos Cavalos (SC). Grupos oriundos dessas terras, presentes no ATL, protestaram contra a exclusão dos seus territórios.
Se houver motivos formais para a não homologação, logo estarão sanados e os decretos serão editados. Pode ser que se espere a conclusão, em junho, do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da questão do “marco temporal”. Segundo essa tese ruralista, só teriam direito às suas terras as populações indígenas que estivessem em sua posse ou em conflito por elas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Não se sabe exatamente o que aconteceu, mas outra informação que circulou, extraoficialmente, é que houve forte pressão política contra as oito homologações que não saíram, aliás, o que é comum acontecer nesses casos. Pode-se imaginar, para cada uma dessas áreas, quais seriam os interesses contrariados, mas não se sabe porque teriam sido tão convincentes.
Ficam várias questões em aberto. Quem convenceu o governo a sustar essas homologações? O Planalto sabe que a definição de limites dessas terras antecedeu as demarcações? Vai sentar em cima dos processos, prolongando conflitos e postergando soluções? Vai devolvê-los à Funai?
No ATL, Lula declarou que pretende demarcar todas as TIs com processos inconclusos até o final do mandato. Isso seria ótimo para o Brasil, fazendo justiça e ajudando a ordenar a ocupação do território, embora existam casos em análise no Judiciário ou relativos a grupos isolados, cuja solução não depende apenas da vontade do governo. Para se aproximar da meta, Lula precisa avisar seus subordinados que não vale sentar em cima dos processos.
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Vem aí o Acampamento Terra Livre
Está chegando a data da maior mobilização indígena do país. O sócio fundador do ISA Márcio Santilli comenta o contexto e a importância desse evento fundamental para a causa e os direitos dos povos originários
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Abril é mês de Acampamento Terra Livre (ATL). De 24 a 28 deste mês, milhares de indígenas, de todas as regiões do país, estarão acampados em Brasília para discutir o tratamento dado aos seus direitos e demandas pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Esta será a décima nona edição do ATL, que já se tornou uma tradição e uma referência de mobilização social democrática e participativa. Nada a ver com portas de quartéis. A Apib, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que convoca e coordena o ATL, já iniciou negociações com o GDF, o Governo do Distrito Federal, para definir o local do acampamento. A APIB sempre prefere o gramado da Esplanada dos Ministérios, mas o GDF quer transferi-lo para a Granja do Torto, ou outro local fora do Plano Piloto, alegando o trauma político causado pela predação golpista de 8 de janeiro. É provável que acabe ficando próximo da Funarte, atrás da Torre de Rádio e TV, o mesmo local do ano passado e um meio termo entre as expectativas.
Esta será a primeira edição do ATL após a criação do MPI, o Ministério dos Povos Indígenas, prometido pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva no último ATL, ainda como candidato. Há uma grande ansiedade com a proximidade da mobilização e as comunidades e organizações indígenas já articulam delegações, compram miçangas e arrecadam recursos para a viagem e estadia.
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O então candidato Lula visita o ATL 2022 | Mídia Ninja
‘Marco temporal’
Uma das prioridades do movimento indígena é a retomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do julgamento sobre o “marco temporal”, uma interpretação jurídica dos ruralistas que pretende impedir a demarcação das terras que não estivessem na posse das comunidades indígenas em 8 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O julgamento está empatado em 1 X 1 e um pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes adiou a conclusão do julgamento.
Em visita a uma aldeia Marubo, no Vale do Javari (AM), a presidenta do STF, Rosa Weber, prometeu que o julgamento será retomado ainda no primeiro semestre. Os povos indígenas esperam que seja reafirmado o caráter originário dos seus direitos territoriais - anterior à própria constituição do Estado brasileiro - e que as comunidades expulsas durante a ditadura militar também tenham as suas terras demarcadas.
A Apib espera que o julgamento seja retomado até a instalação do ATL, ou, pelo menos, que Rosa Weber anuncie a data dessa retomada. Espera, ainda, que os seus dirigentes sejam recebidos por Alexandre de Moraes e que ele vote contra o tal marco temporal.
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Sonia Guajajara e Joenia Wapichana com o presidente Lula | Ricardo Stuckert / PR
Disputas no Congresso
Durante o ATL, será relançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, sob a coordenação da deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) nessa Legislatura. Na Legislatura passada, a frente foi liderada pela então deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), atual presidente da Funai. O requerimento de recriação, com assinaturas de 207 deputados, já foi homologado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Não se trata de burocracia, mas do resultado do trabalho de articulação da deputada e da sua assessoria, que superou e derrotou a tentativa do deputado Coronel Crisóstomo (PL-RO) de “grilar” a FPI para submetê-la a interesses anti-indígenas. O relançamento da FPI no ambiente do ATL terá forte simbolismo.
Também foi instalada, na Câmara, a Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais. Trata-se de uma comissão técnica permanente, que opinará sobre projetos de lei e outras proposições legislativas. Ela também será presidida pela deputada Célia Xakriabá, mas o seu mandato vai além das questões indígenas e inclui as demais populações tradicionais.
No Senado, deverá ser instalada a CPI das ONGs, liderada pelo senador Plínio Valério (PSDB-AM), que pretende criminalizar, além das ONGs, o próprio Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES e que ficou inativo durante o governo passado. A CPI pretende atingir, também, as organizações indígenas mais representativas, que conquistaram novas fontes de financiamento e espaços de influência política inéditos.
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Celia Xakriaba | Benjamin Mast / La Mochila Produções / ISA
Políticas indígenas
Nesse ATL, o movimento indígena terá a primeira oportunidade para avaliar e discutir, coletivamente, os primeiros 100 dias do governo Lula, os avanços e impasses que os representantes indígenas têm vivenciado no MPI, na Funai, na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e em outros espaços de governo.
Autoridades indígenas, como a ministra Sonia Guajajara, o secretário-executivo do ministério, Eloy Terena, a presidente da Funai, Joênia Wapichana, e o titular da Sesai, Weibe Tapeba, terão a oportunidade de expor às bases os desafios e dificuldades do governo e de ouvir críticas e sugestões sobre os rumos das políticas indígenas.
Nesse começo de governo, a Funai renovou portarias de restrições de uso de áreas ocupadas por indígenas isolados e constituiu grupos de trabalho para identificar Terras Indígenas. Espera-se que, até o ATL, sejam homologadas, por decretos presidenciais, 14 áreas e anunciadas outras medidas que marquem a retomada dos processos de demarcação, como determina a Constituição.
Também são esperadas as nomeações de pessoas indicadas pelas organizações indígenas para as coordenações regionais da Funai e outros cargos da Sesai, também disputadas por deputados e políticos locais. No ATL, todos poderão saber melhor sobre as condições de orçamento, estrutura e pessoal dos órgãos mais afetos às demandas indígenas, herdadas do governo anterior.
Será um bom momento para apontar e cobrar providências dos órgãos de governo em relação aos territórios que mais sofrem com invasões de garimpeiros, madeireiros, traficantes e grileiros, alguns dos quais até com decisões judiciais favoráveis à retirada dos invasores, mas ainda não cumpridas. O caso da Terra Indígena Yanomami, que foi objeto de intervenção direta do presidente Lula, registra avanços, mas também a necessidade de articular melhor a ação dos órgãos federais.
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Kléber Karipuna, da coordenação da Apib | Fernando Frazão/Agência Brasil
Vendo por dentro
Será, também, a hora do movimento indígena olhar-se por dentro, promover novos quadros para ocupar os vazios deixados pelos que foram para o governo, aprofundar parcerias e repor os parâmetros da sua autonomia. A Apib e outras organizações têm responsabilidades ampliadas e enfrentam inimigos fortes.
Ainda não foi divulgada a programação dos cinco dias de atividades do ATL, mas pode-se esperar que ela seja intensa. Embora ainda estejam presentes desafios típicos de resistência, que predominaram durante o governo Bolsonaro, já estão quentes as demandas de agenda positiva e dos avanços esperados para os próximos meses e anos.
No paralelo, certamente rolarão notícias de todas as regiões, papos sobre contratos de carbono, muitos cantos e danças, fofocas picantes e fortes emoções. Além dos artesanatos, das pinturas corporais e produtos da floresta.
Se você ainda não é parceiro da Apib, mas compreende a importância dos povos indígenas, dos seus territórios e das suas culturas para um bom projeto de futuro para o Brasil, chega mais. Visite os perfis da Apib nas redes sociais (@apiboficial), acompanhe o ATL, contribua com alguma grana e compartilhe notícias, imagens e impressões com os seus.
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Senado precisa rever a Comissão Externa Yanomami
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli comenta os bastidores do colegiado que deveria investigar a crise na Terra Indígena Yanomami, mas foi tomado pela bancada pró-garimpo
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Quando vieram a público números e imagens do genocídio contra o povo Yanomami, houve forte clamor e muitos mobilizaram-se para ajudar a estancar a tragédia o mais rápido possível. Assassinos e cúmplices retraíram-se. Por incrível que pareça, o Senado compôs, para acompanhar a crise, uma “comissão externa”, com maioria de senadores de Roraima, e favoráveis aos criminosos!
Chico Rodrigues (PSB-RR), Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e “Dr.” Hiran (PP-RR), conhecidos senadores pró-garimpo, enviaram um ofício a diversas autoridades de Brasília requerendo que os garimpeiros flagrados na Terra Indígena Yanomami não respondam a processo criminal, conforme revelou a Agência Pública. De acordo com a reportagem, o documento foi entregue ao procurador-geral da República, Augusto Aras, aos ministros José Múcio (Defesa), Flávio Dino (Justiça) e Rui Costa (Casa Civil) e aos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira.
O senador Chico Rodrigues (PSB-RR) preside a comissão. Natural de Pernambuco, fez extensa carreira política em Roraima, onde foi governador. Já foi alvo de uma operação da Polícia Federal contra o desvio de recursos públicos destinados ao combate à Covid entre os Yanomami, que apreendeu dinheiro em espécie na sua cueca e uma grande pepita de ouro num cofre da sua casa.
Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e Dr. Hiran (PP-RR) são naturais do Maranhão e do Amazonas e também fazem política em Roraima. Mecias foi o responsável pela indicação dos gestores do Distrito de Saúde Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y), cuja atuação contribuiu para a situação de genocídio. Dr. Hiran é o relator da comissão e propõe pagamento de auxílio financeiro para os garimpeiros. Não fala em punir os donos de garimpos ilegais.
Cínicos e afoitos
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi avisado da gravidade de compor uma comissão só com representantes de Roraima e, ainda mais, com posições assumidas pró-garimpo. Fez-se de surpreso quando confrontado com a parcialidade do colegiado, mas se dispôs a incluir nela os senadores Humberto Costa (PT-PE) e Eliziane Gama (PSD-MA), o que atenua, mas não reverte aquela tendência.
Pacheco quis ficar bem com os seus colegas de Roraima, mas deixou o Senado muito mal na fita. A repercussão da composição da comissão foi a pior possível. Além da notória falta de isenção, veio à tona toda a sujeira pregressa. Em vez de contribuir para estancar a crise, o Senado entrou pela contramão, como copromotor da situação.
Ungido como presidente por Pacheco, Rodrigues não perdeu tempo. Nem reuniu a comissão para discutir e aprovar um plano de trabalho, como exige o regimento do Senado. Recorreu ao apoio logístico da FAB e foi, sozinho, visitar a área.
Representantes dos Yanomami repudiaram a visita e a composição da comissão. Rodrigues aterrissou na base de Surucucu, não foi recebido pela comunidade e limitou-se a visitar o batalhão do Exército. Depois, sobrevoou áreas devastadas pelo garimpo e, ao chegar em Boa Vista, declarou que estava “tudo tranquilo” e que o território já estava praticamente vazio.
Na mesma semana, a base de fiscalização instalada pelos órgãos federais no Rio Uraricoera, que dá acesso à Terra Yanomami, foi atacada por um comboio armado de garimpeiros, que tentava evadir-se com um carregamento de cassiterita. Um dos garimpeiros foi ferido e preso. Os demais fugiram. Nem tudo está tranquilo.
Responsabilidades institucionais
Mecias e Hiran estão na moita, deixando Rodrigues como alvo central das críticas generalizadas à comissão. Eliziane e Humberto estão indignados com a afoiteza mais do que suspeita de Rodrigues e foram reclamar com Pacheco, que, a essa altura, já deve ter percebido a fria em que meteu o Senado.
O presidente da casa precisa tomar alguma providência. Se deixar rolar, vai se arrepender. É mais do que previsível um relatório cheio de benevolências para os garimpeiros e sem qualquer responsabilização pelo genocídio. Organizações civis pedem a recomposição da comissão. Pacheco vai tentar cercar o relator. O Senado está virando pau de galinheiro.
A situação também está péssima para o PSB, que acabou de acolher Chico Rodrigues entre os seus filiados. Talvez não se possa esperar que todos os “socialistas” sejam socialistas, mas, assim, já é demais. O partido tem uma história e um papel na reconstrução do país. E Rodrigues já não tem como reinventar a própria história.
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