Presidente Lula visita Casa de Saúde Indígena em Boa Vista (RR) para avaliar crise sanitária dos Yanomami, janeiro de 2023 | Ricardo Stuckert / PR
Na cosmologia ensinada por Davi Kopenawa, o ouro e outros minérios, quando retirados dos seus depósitos subterrâneos, exalam energias que forçam o rompimento e a queda do céu. Por isso, os pajés Yanomami precisam trabalhar o tempo todo para segurar o céu. Se os invasores matarem os Yanomami, o céu desabará sobre a Terra.
O pensamento de Davi tem uma similaridade impressionante com a ciência do clima e com as emissões excessivas de gases do efeito estufa, que aquecem a atmosfera e provocam secas agudas e violentas tempestades, ameaçando todas as formas de vida. É, também, uma metáfora viva da interdependência entre os povos e deles com a natureza.
Davi nos faz essa denúncia há 40 anos, desde as primeiras invasões garimpeiras à Terra Indígena Yanomami (AM-RR), ainda nos tempos de ditadura militar. Eram, então, 40 mil garimpeiros, grande parte oriunda do garimpo exaurido de Serra Pelada, no Pará. Foram milhares, mas nem é possível precisar quantos Yanomami morreram, vítimas de armas de fogo, da malária e de outras doenças. Quase todos os invasores foram retirados e a terra foi demarcada, mas pequenos focos ficaram, pulando de um lado para outro na fronteira com a Venezuela.
Agora, há outra invasão em massa. Os garimpeiros estão em menor número, mas provocam destruição maior. Talvez sejam uns 20 mil ou menos. Mas usam dragas, escavadeiras e outros equipamentos muito maiores e com alta capacidade de destruir igarapés inteiros. A contaminação do solo, das águas e dos organismos é muito maior.
Parte deles presta serviços de apoio, manutenção, alimentação e lazer, enquanto outros operam na extração do ouro ou da cassiterita. Entre esses, há garimpeiros profissionais, que tendem a vazar pela fronteira em busca de outros garimpos, e os sazonais, que seguem esse caminho para tentar levantar dinheiro, para a compra de imóveis ou carros, entre outros. Os nossos motivos são comezinhos. Por isso, os Yanomami dizem que os brancos não têm memória.
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Yanomami recebem atendimento em hospital em Boa Vista (RR) | Felipe Medeiros / Amazônia Real
Chocante
Não faltaram denúncias. Várias comunicações e alertas formais foram feitas às autoridades. A Hutukara Associação Yanomami liderou campanhas e a mídia publicou bastante sobre o assunto. O caso chegou ao Tribunal Penal Internacional. Mas foi só depois que mudou o governo que informações oficiais do Ministério da Saúde revelaram as mortes (subnotificadas) de 570 crianças indígenas por desnutrição e outras causas evitáveis e vieram à tona imagens estarrecedoras de velhos e crianças famélicos.
Mas o que levantou, mesmo, a poeira foi a decisão do presidente Lula de visitar Roraima, de supetão, com ministros e jornalistas, pondo em evidência a situação caótica na Casa de Saúde Indígena de Boa Vista. Lula não foi ao território, mas colocou as cenas chocantes na casa de cada um de nós, tornando urgentes soluções para aquela situação inaceitável. E determinou ações emergenciais aos órgãos envolvidos, como os ministérios da Justiça, Defesa e dos Povos Indígenas, enquanto se planeja a retirada dos invasores.
No meio desse escândalo planetário, o governador reeleito de Roraima, Antônio Denarium, ainda foi capaz de piorar as coisas, declarando-se a favor da aculturação forçada dos indígenas, à revelia dos seus direitos constitucionais de viverem conforme as suas culturas, como se está fosse a solução para o gencídio em seu estado. Ele já havia promulgado uma lei estadual legalizando o garimpo predatório, declarada inconstitucional pelo STF. Mostrou-se ao mundo como um dos cúmplices dessa situação.
Representantes do ex-governo genocida tentam minimizar a repercussão da tragédia. Bolsonaro disse que o problema sempre existiu e não responde pelo crescimento de mais de 300% do garimpo durante o seu mandato nas terras Yanomami. Ele visitou pessoalmente garimpos ilegais e tentou assediar líderes yanomami para estender a predação pelo território. O genocídio decorreu de políticas deliberadas.
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Militares jogam mantimentos para aldeia na Terra Indígena Yanomami em meio à crise sanitária | Fernando Frazão / Agência Brasil
Solidariedade
Muita gente, chocada, está ajudando nas ações emergenciais com doações em dinheiro, alimentos e remédios. A Hutukara e o Conselho Indígena de Roraima (CIR) mobilizam parceiros na sociedade civil, como a Central Única das Favelas (CUFA), Médicos Sem Fronteira, Diocese de Roraima e o Instituto Socioambiental (ISA) para apoiarem as iniciativas do governo na assistência à saúde, distribuição de alimentos e comunicação.
Certamente, há entre as doações contribuições de empresas e de empresários indignados com a situação. O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) reiterou a sua oposição ao garimpo ilegal. Mas não houve, até agora, um movimento empresarial de escala para barrar de vez o acesso da produção predatória aos mercados e para viabilizar investimentos num modelo econômico sustentável na Amazônia. A cooperação internacional está oferecendo recursos para ajudar no front emergencial e na reestruturação das políticas socioambientais, desmanteladas no mandato anterior. Mas também pode fazer mais para impedir o acesso dos produtos e dos recursos ilegais aos mercados. A comoção gerada pelo genocídio precisa ir além da justa indignação para dar suporte à reversão definitiva do quadro atual.
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O que você precisa saber para entender a crise na Terra Indígena Yanomami
Dados confirmam que tragédia é resultado direto do desmonte de serviços de saúde e do agravamento da invasão garimpeira promovidos pelo governo Bolsonaro
No dia 20/1, a agência Sumaúma noticiou que 570 crianças de até cinco anos morreram de doenças evitáveis, entre 2019 e 2022, na Terra Indígena (TI) Yanomami (AM-RR). As fotos de crianças e idosos esquálidos, desnutridos, divulgadas na imprensa e nas redes sociais causaram comoção dentro e fora do Brasil.
Acompanhado de vários ministros, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi a Roraima avaliar a crise. O governo decretou emergência de saúde na área e anunciou uma série de medidas, como o envio de equipes médicas à região e a instalação de um hospital de campanha em Boa Vista.
A repercussão do caso gerou indignação, dúvidas, surpresa, com a impressão de que o problema veio a público só agora, e, claro, fake news. Logo começaram a circular notícias falsas para desviar o foco da responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro. Contra fatos e imagens, ele classificou a situação como uma “farsa da esquerda”.
O ISA resumiu abaixo, num texto de perguntas e respostas, as principais informações e dados científicos colhidos por pesquisadores, técnicos do governo, imprensa, sociedade civil e as próprias comunidades para você entender a tragédia humanitária que se abateu sobre os Yanomami e ajudar a combater a desinformação.
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Garimpo no Rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami, em janeiro de 2022
O que está acontecendo na Terra Indígena Yanomami pode ser considerado genocídio?
A Lei 2.889/1956 diz que o genocídio é caracterizado pela “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, por meio de atos como: “matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”. A definição segue a legislação internacional.
Juristas ouvidos pela imprensa nos últimos dias dizem que há indícios de que a gestão Bolsonaro cometeu o crime na TI Yanomami, mas apenas um julgamento pela Justiça brasileira ou internacional poderá confirmá-lo.
Na segunda (30), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou a abertura de inquérito contra autoridades federais para apurar essa possibilidade. Não se sabe exatamente quem é alvo do processo porque ele está sob sigilo.
Na semana passada, o ministro da Justiça, Flávio Dino, já tinha determinado que a Polícia Federal (PF) também investigasse os possíveis crimes de genocídio e omissão de socorro por parte do governo anterior no território indígena.
O assassinato de 16 Yanomami por garimpeiros, em 1993, conhecido como “Massacre de Haximu”, é o único caso do crime de genocídio confirmado pela Justiça brasileira.
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Garimpo no Rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami, janeiro de 2022
Quais os motivos para a crise de saúde na Terra Indígena Yanomami?
Agravadas ao longo dos últimos cinco anos, as razões da crise são a desestruturação da assistência à saúde indígena e a invasão garimpeira, responsável por uma série de impactos sanitários, ambientais, socioculturais e econômicos sobre as comunidades.
Não é verdade que a origem da situação seja a suposta incapacidade produtiva dos indígenas. Ao contrário, com suas terras e seus recursos naturais preservados, eles conservam boas condições de vida.
Também não é verdade que a crise Yanomami seja comum a outras populações indígenas neste momento. Há outras TIs com problemas parecidos, mas não na mesma escala e pelos mesmos motivos.
Qual a relação entre o garimpo ilegal, a disseminação de doenças e a desnutrição entre os Yanomami?
O garimpo é o responsável direto por uma série de problemas graves entre os povos originários. No caso Yanomami, há relação comprovada entre a explosão da atividade e o aumento de casos de doenças infectocontagiosas, como gripe e pneumonia.
É inequívoca ainda a associação entre a devastação provocada pela mineração ilegal e a propagação da malária, facilitada pela multiplicação de invasores e pelas crateras com água parada, fruto da atividade e propícias à proliferação de mosquitos transmissores da enfermidade.
Em virtude do contato razoavelmente recente e do isolamento relativo, os indígenas têm menos defesas imunológicas para moléstias comuns entre não indígenas.
A ocupação do território, a destruição da floresta, a contaminação dos corpos de água promovidas pelo garimpo dificultam a manutenção e abertura de roças, a caça, a pesca e a coleta de frutos, as principais fontes de alimentação das comunidades.
Uma parte delas também é aliciada. Especialmente vulneráveis a falsas promessas de prosperidade, jovens recebem armas e comida para trabalhar ou aliar-se aos invasores. Mulheres são abusadas e exploradas sexualmente. O recrudescimento da violência cria um clima de tensão permanente. Os moradores ficam sitiados em suas próprias aldeias.
Todo o quadro é agravado pelo desmonte da assistência aos indígenas. Além disso, os invasores têm se apossado de parte da infraestrutura de atendimento, como pistas de pouso e postos de saúde. A violência do garimpo dificulta a presença de equipes médicas, a distribuição de medicamentos e alimentos.
Sem comida e assistência médica, a condição dos enfermos piora. Como a economia indígena depende da mão de obra familiar, as atividades tradicionais de subsistência ficam inviáveis com as pessoas permanentemente adoecidas ou trabalhando no garimpo, num círculo vicioso de fome, debilidade física e escassez.
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Garimpo no Rio Novo, Terra Indígena Yanomami, janeiro de 2022
Qual a extensão da crise de saúde na Terra Yanomami?
Conforme dados do Ministério da Saúde obtidos pela agência Sumaúma, 570 crianças de até cinco anos morreram de doenças evitáveis na TI Yanomami, entre 2019 e 2022, um aumento de 29% em relação a 2015-2018. De acordo com o Ministério dos Povos Indígenas, 99 crianças de um a quatro anos teriam morrido, só em 2022, por causas como desnutrição, pneumonia e diarreia.
Cerca de 56% das crianças da área acompanhadas tinham um quadro de desnutrição aguda (baixo ou baixíssimo peso para a idade) em 2021, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) fornecidos à agência Pública. “O estado nutricional das crianças Yanomami é realmente muito ruim, só comparável aos dados de crianças da África Subsaariana”, afirmou o médico Paulo Basta, da Fiocruz à agência.
Apenas entre 2020 e 2021, a TI Yanomami registrou mais de 40 mil casos de malária, de acordo com o Sistema de Informações de Vigilância Epidemiológica (Sivep) do Ministério da Saúde. Isso tudo para uma população de cerca de 30 mil pessoas.
É importante observar que a TI Yanomami é a maior do país, com cerca de 96 mil km2 (superando a extensão de Portugal), e há diferenças entre as 370 comunidades. As regiões mais distantes das invasões têm uma condição sanitária mais favorável, embora a precarização do atendimento à saúde impacte todo o território.
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Bebês yanomami desidratados são atendidos em hospital em São Gabriel da Cachoeira (AM), em 2020 | Raquel Uendi / ISA
O que aconteceu com os serviços de saúde Yanomami nos últimos anos?
A saúde indígena foi desestruturada pelo governo Bolsonaro, embora sempre tenha apresentado deficiências. A pandemia de Covid-19 agravou e escancarou a situação.
No caso Yanomami, a má gestão de recursos e o aparelhamento político, com a nomeação de pessoas sem conhecimento e experiência para cargos importantes, criaram um quadro de desorganização, escassez de equipamentos, mão de obra, medicamentos e outros insumos.
Indígenas e profissionais de saúde relataram o fechamento ou abandono de postos de saúde e a redução dos atendimentos nos que continuaram funcionando. O problema foi documentado pelo relatório Yanomami Sob Ataque, publicado pela Hutukara Associação Yanomami e a Associação Wanasseduume Ye’kwana.
Auditorias da própria administração federal confirmaram várias falhas no Distrito Especial de Saúde Indígena Yanomami (DSEI-Y): desatualização de indicadores de saúde; descumprimento de jornadas de trabalho e metas de atendimento; entrega de medicamentos com data de validade próxima do vencimento; transporte por aeronaves sem autorização de voo, entre outros. Os relatórios foram ignorados pelo governo.
Na verdade, a crise sanitária é ainda pior por causa da subnotificação e do “apagão” de dados dos últimos anos. Por exemplo, 90% das crianças yanomami eram monitoradas pelo DSEI-Y em 2019, mas o número baixou para 75%, em 2022. Nas estatísticas oficiais, houve melhora nos registros de desnutrição, mas ocorreu o contrário, simplesmente porque o número de crianças acompanhadas caiu. No início do governo Bolsonaro, já se sabia que a situação era ruim e, mesmo assim, a vigilância foi reduzida.
Quando começou exatamente a crise de saúde na Terra Indígena Yanomami? Ela veio a público só agora?
Não há dúvida de que a situação agravou-se a partir de 2018 e 2019, com as eleições e o início do governo Bolsonaro, embora já houvesse problemas na assistência e invasores na área. O discurso antiambiental de Bolsonaro e seus aliados e o desmonte dos órgãos de fiscalização estimularam a ocupação ilegal de áreas protegidas e provocaram recordes sucessivos de desmatamento. O território yanomami foi um dos mais afetados.
Não é verdade, portanto, que a situação seja a mesma em 30 anos, embora os Yanomami já tenham passado por crises graves, principalmente com a intensificação do contato com os não indígenas e a primeira grande onda garimpeira, nos anos 1970 e 1980. Profissionais de saúde e lideranças indígenas reafirmam que a situação nunca foi tão grave nesse período.
Muita gente teve a impressão de que a crise veio a público só agora porque as notícias sobre ela alcançaram uma audiência sem precedentes, resultado da repercussão da visita do recém-empossado presidente Lula e das medidas emergenciais tomadas por seu governo.
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Quem são os responsáveis pela crise de saúde dos Yanomami?
Notoriamente anti-indígena, Bolsonaro foi o primeiro presidente da República desde a Redemocratização a não demarcar “nenhum centímetro” de TIs, como prometeu em campanha.
Durante todo o governo, ele estimulou o crime ambiental e sua regularização, em especial o garimpo ilegal nas TIs. Também promoveu um desmonte administrativo sem precedentes na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e no Ibama, responsáveis pela fiscalização dessas áreas.
Tudo isso resultou, a partir de 2019, numa onda de invasões a áreas protegidas e recordes sucessivos de desmatamento em cerca de 15 anos. A TI Yanomami foi uma das mais afetadas.
A saúde indígena também sofreu com a desestruturação de políticas públicas do governo Bolsonaro. As deficiências já existentes recrudesceram.
Forças militares e de segurança também reduziram a fiscalização e, muitas vezes, negaram apoio a operações para a retirada dos invasores e proteção das aldeias.
Toda a situação foi denunciada aos órgãos federais, ao Ministério Público, à imprensa e nas redes sociais pelo Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Ye’kwana (Considisi-Y), a Hutukara Associação Yanomami, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o ISA. Os alertas foram desprezados, no entanto. Pelo menos 21 ofícios sobre o caso foram ignorados por diversas instituições oficiais em apenas dois anos, informou o The Intercept Brasil.
A ordem de isolar e conter os garimpeiros na TI Yanomami também foi ignorada. O mesmo aconteceu com decisões do próprio STF e da Justiça Federal para que a União formulasse e executasse um plano para retirar os invasores. Também foi desconsiderada uma deliberação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e pedidos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Se as determinações e alertas tivessem sido atendidos, a crise não teria ocorrido ou seria menor.
Portanto, têm responsabilidade sobre a tragédia, em diferentes graus e aspectos, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, então coordenador do Conselho Nacional da Amazônia, responsável por articular as ações de fiscalização ambiental na região durante o último governo. Também podem ser responsabilizados os respectivos dirigentes, no antigo governo, da Funai, do Ibama, da PF e dos ministérios da Saúde, da Justiça, da Defesa e do Meio Ambiente, entre outros que uma investigação adequada vier a apontar.
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Presidente Lula visita indígenas yanomami em Boa Vista, Roraima, 20/1/2023 | Ricardo Stuckert / PR
Quais as medidas tomadas pelo governo até agora para enfrentar a crise sanitária na TI Yanomami?
Ainda no dia 20, o governo federal decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na TI Yanomami. Trata-se de uma situação que demanda o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, de danos e de agravos à saúde pública, em situações que podem ser epidemiológicas (surtos e epidemias), de desastres ou de desassistência à população. Esse último é o caso dos Yanomami.
A gestão federal também anunciou o envio de equipes médicas para prestar assistência emergencial e fazer um diagnóstico da situação, além da instalação de um hospital de campanha em Boa Vista e de um Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE), que fará a coordenação das ações contra a crise e deverá ser gerido pela Sesai.
Foi criado ainda um Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami, que vai discutir as medidas a serem adotadas, apoiar a articulação entre poderes e estados e apresentar um plano de ação em 45 dias. Fazem parte do colegiado os ministérios dos Povos Indígenas, da Saúde, da Defesa, da Justiça, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e da Gestão e Inovação em Serviços Públicos.
O governo planeja uma grande operação de retirada dos garimpeiros. A ação ainda não tem data para acontecer, mas nesta segunda (30), em reunião com vários ministros, o presidente Lula pediu pressa no bloqueio do espaço aéreo e dos principais rios que cortam a área, com o objetivo de estrangular a logística do garimpo. Cerca de 56 toneladas de alimentos e medicamentos já teriam sido enviados à TI Yanomami, segundo a Força Aérea Brasileira (FAB).
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Estudo do ISA comprova que garimpo impede progresso social da Amazônia
Análise revela que municípios com presença de garimpo têm condições de vida ainda piores que a média amazônica, já mais baixa que a nacional por razões históricas
Nos últimos anos, pesquisas e reportagens vêm mostrando exaustivamente como o garimpo contamina cursos d' água e fontes de alimentação, amplia o desmatamento, a disseminação de doenças, o consumo de drogas e álcool, a criminalidade e a violência. Os impactos são mais diretos para os povos indígenas, mas abrangem outras populações e áreas da Amazônia.
Agora, um estudo do ISAcomprova que a exploração mineral predatória não só não promove o desenvolvimento como derruba os indicadores sociais onde ocorre na região. A ideia de que a atividade traz progresso, portanto, é um mito.
O levantamento aponta que o Índice de Progresso Social (IPS) médio dos municípios amazônicos afetados pelo garimpo é de apenas 52,4, menor do que a média para a Amazônia, de 54,5, e bem abaixo da média nacional, de 63,3. O IPS médio dos municípios garimpeiros é 4% menor que a média amazônica e 20% menor que a média nacional.
O IPS amazônico é menor do que o nacional por fatores estruturais históricos e estruturais, como baixo desenvolvimento econômico, ausência de políticas públicas, gargalos de logística e transporte diante de grandes distâncias, entre outros.
O IPS é um indicador internacional que combina três dimensões - “necessidades básicas de sobrevivência”, “fundamentos do bem-estar” e “oportunidades” - por meio de uma série de indicadores sociais e ambientais, provenientes de bases de dados internacionais, além de pesquisas de percepção, com objetivo de identificar o cenário, os desafios e as possibilidades de progresso social dos países (saiba mais no quadro no final da notícia).
Segundo Antonio Oviedo, assessor do ISA e um dos autores do estudo, além da redução do progresso social, o garimpo provoca várias outras mazelas socioambientais, o que gera gastos públicos desnecessários e problemas quase irreversíveis para as comunidades afetadas.
“O avanço da área degradada pelo garimpo, além de ampliar os impactos ambientais e reduzir as condições para o progresso social, gera enormes gastos públicos como, por exemplo, despesas para o sistema de saúde, segurança pública, assistência social e fiscalização ambiental”, enfatiza o pesquisador.
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Situação nos estados e municípios
Para se ter uma ideia da situação, os municípios de Roraima com presença de garimpo tem um IPS médio 7% mais baixo que o da Amazônia e 20% menor que o do Brasil. No Pará, os municípios garimpeiros têm um IPS médio 5% menor que o da Amazônia e 18% menor que o nacional.
Entre 2014 e 2021, o IPS dos municípios do Pará e de Roraima com garimpo em Terras Indígenas caiu de 51,81 para 50,90, uma queda de 2%. Já nos municípios sem áreas degradadas pela atividade foi registrado um pequeno aumento de 1%, com o índice subindo de 52,35 para 52,97.
Dados de outras pesquisas reforçam a gravidade do problema. Três municípios da lista dos dez com menores IPS afetados pelo garimpo estão na relação dos 30 municípios mais violentos do país, segundo o Anuário Brasileiro de Violência Pública 2022. Jacareacanga (PA) está em 2º lugar, com um índice de 199,2 mortes violentas intencionais (MVI) por 100 mil habitantes. Cumaru do Norte (PA) está na 16ª posição, com 113,2 MVIs/100 mil, e Bannach (PA) está na 30ª posição, com 101,8 MVIs/100 mil.
A presença dos três municípios no ranking faz parte de um contexto: a violência letal na Região Norte é 38% superior àquela das demais regiões do país. Ao contrário do resto do Brasil, as mortes violentas estão crescendo na região, conforme a mesma publicação (saiba mais).
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Crateras e impactos deixados por garimpo em Terra Indígena | Divulgação
Seis milhões de pessoas afetadas
O garimpo afeta pelo menos 216 municípios e uma população estimada de 6 milhões de pessoas na Amazônia Legal, ainda de acordo com o levantamento do ISA. Todos os estados da região têm garimpo, exceto o Acre. Em 2020, o Pará estava em primeiro lugar em termos de área degradada pela atividade, com 86,8 mil hectares, seguido pelo Mato Grosso, com 29,5 mil hectares, Rondônia, com 6,5 mil hectares, e Roraima, com 480 hectares.
Mais de 90% da área de garimpo no território nacional está na Amazônia Legal. A extensão total explorada pela atividade na região saltou de 10,1 mil hectares para 124,2 mil hectares, entre 1985 e 2020, um aumento de 1.127% ou mais de 10 vezes, de acordo com o MapBiomas. O número de árvores abatidas pode chegar a pelo menos 71,4 milhões. Um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol.
Um total de 10,8 mil hectares degradados pelo garimpo estão em Terras Indígenas, o que representa 8,7% da área degradada pelo garimpo na Amazônia Legal, segundo o MapBiomas. As Terras Indígenas mais afetadas são: Kayapó (PA, 7.988,9 hectares), Mundurucu (PA, 1.765,2 hectares), Yanomami (AM-RR, 550,6 hectares), Sawré Muybu (PA, 213 hectares) e Sararé (MT, 135,7 hectares). A Constituição não permite o garimpo nas Terras Indígenas.
Entre janeiro de 2019 e maio de 2021, o aumento da área degradada pelo garimpo em Jacareacanga (PA) foi de 269%. Mais de 98% da extensão do município é sobreposto à Terra Indígena Mundurucu e, no mesmo período, foram devastados 2,2 mil hectares nessa área protegida (saiba mais).
Entre 2020 e 2021, o garimpo ilegal avançou 46% na Terra Indígena Yanomami (RR-AM). Entre 2019 e 2020, já havia sido registrado um salto de 30%. De 2016 a 2020, o garimpo cresceu nada menos que 3.350% na área. Em dezembro de 2021, mais de 3,2 mil hectares já haviam sido devastados pela atividade no território (saiba mais).
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Impactos socioambientais
As florestas nas regiões impactadas pelo garimpo são degradadas e já sofreram uma redução de 23% em sua área entre 1985 e 2020, o que representa uma perda de mais de 141 milhões de árvores adultas, ainda segundo o levantamento do ISA. No mesmo período, foi registrado um aumento de 1.235% nas classes de uso antrópico terra (agricultura, pecuária, urbano, mineração). Vale lembrar que a redução das florestas na Amazônia pode levar a uma redução de 25% das chuvas no Brasil.
Além disso, o garimpo impacta diretamente os rios na Amazônia Legal, comprometendo o fornecimento de água potável para a população local e nacional. Em 36 anos de dados do MapBiomas, é possível identificar um grande avanço da degradação pelo garimpo sobre os recursos hídricos. Em 1985, foram detectados 229 km de rios impactados, e em 2020 esse número saltou para 2,6 mil, um aumento de 1037%.
No início deste ano, a mudança de cor do rio Tapajós chamou atenção internacional: da cor verde esmeralda, as águas do rio localizado em Alter do Chão, no Pará, transformaram-se em barrentas e opacas. Após laudo da Polícia Federal (PF), concluiu-se que a mudança de cor foi provocada pelo garimpo e pelo desmatamento na região.
O material coletado pelos peritos comprovou que o aumento drástico na quantidade de sedimento nas águas teve origem no Mato Grosso, em rios que desaguam no Tapajós. A estimativa da PF é que os garimpeiros tenham despejado cerca de 7 milhões de toneladas de rejeitos no Tapajós e, ainda, os investigadores alertam para o risco da presença de produtos químicos no rio, como mercúrio e cianeto, geralmente usados por garimpeiros no processo de extração de minérios e altamente tóxicos para saúde humana.
Como é composto o IPS
O IPS é um indicador que combina três dimensões e uma série de indicadores sociais e ambientais, a partir de bases de dados internacionais e pesquisas de percepção.
Para chegar aos resultados do estudo, foi realizado o cruzamento entre os dados do IPS 2021, produzidos pelo Projeto Amazônia 2030, e da ocorrência de garimpo nos municípios da Amazônia Legal, disponíveis pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG).
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Por que é importante deter o garimpo?
- Além de provocar impactos ambientais graves, o avanço da área degradada pelo garimpo gera enormes gastos públicos desnecessários, por exemplo, em despesas e sobrecarga no sistema de saúde, segurança pública, assistência social e fiscalização ambiental.
- A Amazônia guarda 25% das reservas de carbono acima do solo das florestas do mundo. Se esse carbono for liberado para a atmosfera, poderia tornar o aquecimento global ainda mais catastrófico, com consequências devastadoras, por exemplo, para a agricultura e a geração de energia. O fim da floresta pode levar a uma redução de 25% das chuvas no Brasil, conforme um estudo da Universidade de Princeton (EUA).
- O mercado pede cada vez mais o fim da mineração ilegal. Há uma enorme pressão vinda dos mercados, dos investidores e iniciativas para excluírem do comércio exterior os produtos “contaminados” pelo garimpo.
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Maior bancada indígena da história enfrentará oposição ferrenha em novo Congresso
Número de parlamentares autodeclarados indígenas eleitos chega a sete. Expectativa é de mais embates com bolsonaristas e ruralistas, mas também mais visibilidade e articulação na defesa da agenda socioambiental
A partir de 2023, o Congresso terá o maior número de parlamentares indígenas da história. A expectativa do movimento social e da sociedade civil é que isso signifique mais visibilidade e capacidade de articulação na defesa dos direitos dos povos originários e do meio ambiente. Outra expectativa, porém, é que a "bancada do cocar" enfrente uma oposição inédita por causa do crescimento de bolsonaristas e outros adversários diretos no Legislativo.
O tamanho do problema também dependerá do novo presidente eleito. Jair Bolsonaro faz um governo anti-indígena e anti-ambiental, enquanto Luís Inácio Lula da Silva tem um legado positivo na área e fez promessas importantes na campanha, como criar um Ministério dos Povos Originários e retomar a política ambiental. As posições antagônicas irão se refletir no parlamento e apontar os rumos do debate da agenda.
Com os resultados do 1º turno das eleições, os autodeclarados indígenas eleitos para o Congresso são agora sete. Desses, duas novas deputadas federais tiveram as candidaturas apoiadas formalmente pelo movimento indígena: Sonia Guajajara (PSOL-SP) e Célia Xakriabá (PSOL-MG). Também se autodeclararam e foram eleitos para a Câmara Juliana Cardoso (PT-SP), Paulo Guedes (PT-SP) e Sílvia Waiãpi (PL-AP) (saiba mais no quadro ao final da reportagem). Já Wellington Dias (PT-PI), ex-governador do Piauí, e Hamilton Mourão (Republicanos-RS), o vice-presidente da República, chegaram ao Senado. Além deles, Capitão Assumção (PL-ES) e Índia Armelau (PL-RJ) elegeram-se para assembleias estaduais.
Em 2018, apenas Joenia Wapichana (Rede-RR) conseguiu uma vaga na Câmara, tornando-se a primeira mulher indígena deputada federal. Antes dela, só Mário Juruna (PDT-RJ) tinha exercido o cargo, entre 1982 e 1986. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) começou a registrar a cor e raça dos candidatos a partir de 2014 (veja tabela).
Nessas eleições, 44% do Legislativo federal foi renovado. Na Câmara, os partidos que, nos últimos anos, alinharam-se aos ambientalistas e ao movimento indígena perderam duas cadeiras das 146 que têm hoje, somando 27% do total. No Senado, o número baixou de 16 para 15 ou 18%.
A conta considera as legendas que podem ser qualificadas como oposição ao atual governo: PT, PSB, PDT, PCdoB, PSol, PV, Rede, Solidariedade, Pros, Avante e Cidadania. Obviamente, o número de votos a favor ou contra as pautas socioambientais pode variar entre os partidos, dependendo do tema específico.
Por outro lado, agremiações de centro-direita, que só eventualmente votaram contra o governo na última legislatura, perderam assentos, enquanto partidos mais à direita ou de extrema-direita, em geral anti-indígenas e antiambientais, ampliaram sua presença. Chamou atenção o crescimento do PL, ao qual Jair Bolsonaro é filiado, que passou de 76 para 99 deputados, e de 9 para 13 senadores, sendo agora o maior do Congresso.
Além disso, União Brasil e PP, também com muitos bolsonaristas e ruralistas, avaliam uma fusão. Se concretizada, ela pode originar uma nova força com mais de 100 assentos na Câmara e 15 no Senado ‒ desconsiderando possíveis defecções ou adesões.
Assim, essas legendas continuarão dominando a distribuição de cargos nas mesas diretoras e comissões e, logo, também a definição das prioridades legislativas e o ritmo da tramitação de matérias. Em consequência, as pressões pela aprovação de propostas contra o meio ambiente e os direitos indígenas devem aumentar e as negociações tendem a ser ainda mais difíceis.
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Novo composição da Câmara dos Deputados a partir de 2023. Fonte: Câmara dos Deputados
Menos compromisso socioambiental
O impacto do 1º turno na agenda socioambiental no novo Congresso foi medido pelo Farol Verde, projeto liderado pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e a Rede Advocacy Colaborativo. A iniciativa criou o Indicador de Convergência Ambiental total (ICAt) para avaliar o compromisso dos parlamentares com a pauta. Numa escala de 0% a 100%, quanto maior o índice, mais “verde” o posicionamento.
Segundo o levantamento, o percentual de deputados “verdes” (acima de 50%) cairá de 30% para 27% e dos “moderados” (ICAt na faixa média) passará de 30% para 33%, enquanto aqueles com ICAt abaixo de 50%, com baixo engajamento socioambiental, vai subir de 37% para 42%. O índice geral da Câmara hoje é 43%. Com a nova composição, cai para 42%.
O ICAt tem como referência as posições do coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista em temas como regularização fundiária, agrotóxicos e mineração em Terras Indígenas. Para medir o índice da nova legislatura, foram avaliados posicionamentos dos parlamentares reeleitos e, no caso dos novatos, aplicada a média do ICAt de cada partido.
O consultor jurídico do ISA Mauricio Guetta concorda que o crescimento das bancadas alinhadas mais diretamente ao bolsonarismo será um fator importante no Congresso a partir de 2023, mas ressalva que elas sozinhas não têm maioria nas duas casas legislativas.
“Não vamos convencer bolsonaristas radicais, como Bia Kicis (PL-DF), Carla Zambelli (PL-SP) e Ricardo Salles (PL-SP). A saída é continuar a dialogar com o centro, que eventualmente pode votar a favor do meio ambiente e dos direitos dos povos originários”, aposta.
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Sonia Guajajara | Christian Braga / MNI
Desafio gigante
Sonia Guajajara reconhece que enfrentar uma maioria anti-indígena e antiambiental será um “desafio gigante”. Apesar disso, está confiante de que a "bancada do cocar" conseguirá fazer um contraponto eficaz, em articulação com os partidos progressistas e outras bancadas temáticas.
“De qualquer modo, a gente precisa muito do movimento indígena articulado, mobilizado e forte em Brasília, como a gente sempre fez, para poder continuar dando essa legitimidade, esse respaldo para defendermos nossas bandeiras [no Congresso”], afirma.
Para Kléber Karipuna, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib), o mandato de Joenia Wapichana é um exemplo de capacidade de articulação dentro do Legislativo, com o movimento social e a sociedade civil, que deve ser seguido e aprimorado. A deputada reativou e coordena a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Indígenas.
“Essa intensidade de atuação do movimento indígena, a partir dessa representação de Sonia e Célia, vai ter um impacto superpositivo, trazendo como aliados, para esse debate, tanto os autodeclarados que mais se identificam com a pauta do movimento como outros parlamentares, também aliados, que a gente sempre teve no Congresso”, ressalta Kléber.
Ele aponta como prioridade do movimento indígena barrar a aprovação dos Projetos de Lei (PLs) 490/2007, que altera as regras das demarcações e abre as Terras Indígenas para atividades de impacto ambiental, e 191/2020, que libera a mineração e outras atividades insustentáveis nesses territórios. Outra ameaça é o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, que autoriza a saída do Brasil da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual garante a consulta livre, prévia e informada de qualquer medida que afete os territórios indígenas.
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Célia Xakriabá | Benjamin Mast / La Mochila Produções / ISA
“A minha expectativa é de que, com mais representantes indígenas, a gente possa fazer um ‘barulho’ maior”, diz o sócio fundador do ISA Márcio Santilli. “Porque esses parlamentares não trazem apenas um mandato ou um voto. Eles trazem uma carga de legitimidade histórica na sua representação, no questionamento, por sua simples presença, de toda a tragédia colonial que marcou nosso país”, analisa.
“É importante que os representantes indígenas tenham capacidade de fazer as alianças necessárias e, sobretudo, de promover a mobilização da opinião pública, no sentido de fortalecer sua agenda. Será uma disputa difícil, travada palmo a palmo”, aposta. Santilli acredita que o currículo e a envergadura política dos eleitos fará diferença no debate legislativo.
Autodeclarados bolsonaristas
Uma dificuldade adicional para a bancada indígena podem ser dois autodeclarados eleitos saídos do governo: Hamilton Mourão e, sobretudo, Sílvia Waiãpi. O receio é de que tentem usar a condição étnica registrada na Justiça Eleitoral para sinalizar uma suposta divisão no movimento e na representação indígenas. Governo e ruralistas já vêm promovendo indígenas aliados, muitas vezes não reconhecidos como interlocutores de seus povos.
Não há muita expectativa de que Mourão apresente-se como um líder indígena. Neste ano, ele causou polêmica ao tentar registar a candidatura ao Senado como de uma pessoa “branca”, porque autodeclarou-se indígena em 2018. Depois que o assunto veio a público, voltou atrás.
Já Sílvia sempre afirmou a condição étnica e foi nomeada chefe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em 2019, por essa razão, entre outras. Ela deixou o cargo em 2020, após pressões do movimento indígena. De lá para cá, posicionou-se contra as pautas ambiental e indígena e defendeu o governo Bolsonaro. Na campanha, recebeu apoio de bolsonaristas conhecidos, como Damares Alves (Republicanos-DF), Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Carla Zambelli (PL-SP).
“Não vemos, pelo menos agora, inicialmente, nesta conjuntura, a Sílva trabalhar a favor dos direitos indígenas”, diz Karipuna. “[Sobre] a questão dela se colocar como uma liderança parlamentar indígena, para a gente está claro que indígena que trabalha contra os direitos indígenas não tem conexão [com o movimento], não tem coerência”, defende.
Ele não questiona a condição étnica da deputada eleita e diz que quem pode reafirmá-la ou negá-la é o povo Waiãpi. Também explica que o problema não é estar em campos ideológicos diferentes. Ressalva, porém, que o movimento indígena continuará batendo de frente com quem apoiar propostas que ameaçam os direitos dos povos originários.
Sílvia foi denunciada pelo Ministério Público por supostamente ter usado dinheiro do fundo eleitoral para pagar uma operação estética. Ela nega a acusação. Candidatos que perderam a eleição no Amapá também questionaram a votação para deputado federal no Tribunal Regional Eleitoral (TRE). A Comissão de Apuração do órgão rejeitou os argumentos e manteve o resultado. O relatório do colegiado ainda será analisado pelo TRE.
A reportagem entrou em contato com Sílvia e a assessoria de Hamilton Mourão, mas não obteve resposta.
Bancada ruralista
Maior adversária de ambientalistas e indígenas, a bancada ruralista deve manter sua influência na nova legislatura ‒ o quanto também dependerá de quem for o presidente eleito. Embora figuras importantes do bloco não tenham sido reeleitas, serão substituídas por outras de peso político.
Dos 39 senadores da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), cinco não se reelegeram. Entre eles estão a ex-ministra da Agricultura do governo Dilma, Kátia Abreu (PP-TO), e o atual presidente da Comissão de Agricultura, Acir Gurgacz (PDT-RO). Em contrapartida, a deputada federal e ex-ministra da Agricultura do governo Bolsonaro, Tereza Cristina (PP-RS), conquistou uma vaga na casa.
Na Câmara, “bolsonaristas-raiz”, como Nelson Barbudo (PL-MT), perderam as eleições. Neri Geller (PP-MT) teve sua candidatura à reeleição indeferida pela Justiça. José Mário Schreiner (MDB-GO) e Jerônimo Goergen (PP-RS) não disputaram o pleito. Em compensação, mantiveram seus mandatos o atual presidente da FPA, Sérgio Sousa (MDB-PR), e o presidente da Comissão de Agricultura, Giacobo (PL-PR).
Segundo o Broadcast Político do jornal O Estado de São Paulo, a frente já está de olho na filiação de Ricardo Salles (PL-SP), eleito deputado, ex-ministro do Meio Ambiente e principal responsável pela política antiambiental de Bolsonaro. No Senado, além da incorporação natural de Tereza Cristina, também são visados Hamilton Mourão e outros ex-ministros da atual gestão, como Damares Alves, Rogério Marinho (PL-RN) e até Sérgio Moro (União Brasil-PR).
"No Senado, há sempre dificuldade para passar as pautas do setor. A nova configuração dá mais tranquilidade nisso. Agora, chegarão senadores eleitos com um pouco mais de afinidade e conhecimento”, afirmou Sousa ao Broadcast Político. “Sem dúvida, nossa bancada será tão grande ou maior que a atual", completou.
Quem são os autodeclarados indígenas eleitos para a Câmara
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Sonia Guajajara (PSOL-SP)
Sônia Bone de Souza Silva Santos, 48, nasceu na Terra Indígena Araribóia (MA). É formada em Letras e Enfermagem e especialista em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Atua no movimento indígena há mais de 20 anos. Começou sua trajetória na Coordenação das Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima), foi vice-coordenadora da Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) até chegar à coordenação da Apib. Em 2018, foi candidata a vice-presidente na chapa do PSOL encabeçada por Guilherme Boulos. Em maio, foi eleita pela revista Time uma das 100 personalidades mais influentes do ano. Foi eleita a primeira mulher indígena deputada federal por São Paulo, com mais de 156 mil votos, o maior número já obtido por um indígena na história. Terá como prioridades a defesa dos direitos indígenas, das mulheres indígenas e do meio ambiente (saiba mais).
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Célia Xakriabá (PSOL-MG)
Célia Nunes Correa, 32, é da Terra Indígena Xakriabá, nos municípios de Itacarambi e São João das Missões, no norte de Minas Gerais. Formou-se em Educação Indígena pela UFMG e tem mestrado em Desenvolvimento Sustentável, na área de Sustentabilidade dos Povos Tradicionais, pela Universidade de Brasília (UNB). Também é doutoranda em Antropologia pela UFMG. Foi coordenadora de Educação Indígena de Minas Gerais e uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). Foi eleita a primeira mulher indígena deputada federal de Minas Gerais com mais de 101 mil votos. Tem como prioridades a preservação da memória e do patrimônio cultural; a democratização do acesso à cultura; a educação especial indígena; o reconhecimento e proteção dos territórios indígenas e quilombolas; o combate à mineração predatória; as reformas agrária e urbana (saiba mais).
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Juliana Cardoso (PT-SP)
Tem 42 anos, é nascida e criada em Sapobemba, Zona Leste da cidade de São Paulo. Começou a militar cedo nas Comunidades Eclesiais de Base e na Pastoral da Juventude da Igreja Católica. Seu pai era um indígena Terena que migrou do Mato Grosso do Sul para São Paulo para estudar. Ele foi assassinado quando ela tinha apenas cinco anos e Juliana perdeu contato com a família paterna por algum tempo. Retomou esses laços e, hoje, autodeclara-se Terena. É formada em Gestão Pública e está no quarto mandato como vereadora, sendo a única indígena na Câmara Municipal paulistana. Ajudou a criar o Conselho Municipal dos Povos Indígenas e participou de mobilizações pelo direito à terra e contra desocupações de indígenas aldeados. Foi eleita com mais de 125 mil votos a primeira deputada federal indígena do PT. Atua nas áreas de direitos humanos, direitos das mulheres, moradia popular, saúde pública, assistência social, infância e juventude. Pretende integrar a “bancada do cocar” e lutar na linha de frente da defesa dos direitos indígenas na Câmara (saiba mais).
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Paulo José Carlos Guedes (PT-MG)
É natural de São João das Missões, no norte de Minas Gerais, e tem 52 anos. Tem curso de Magistério. Estudou Direito e Gestão Pública, mas não chegou a se formar. Iniciou sua vida pública com 20 anos, como vereador na cidade de Manga (MG). Exerceu o cargo entre 1993 e 2004 e foi deputado estadual, entre 2007 e 2019. Em 2015, foi secretário de Desenvolvimento e Integração do Norte e Nordeste de Minas Gerais na gestão de Fernando Pimentel (PT). Em 2018, elegeu-se deputado federal. Autodeclarou-se indígena neste ano. Nestas eleições, teve cerca de 134 mil votos. Tem atuação nas áreas de infraestrutura, transporte, logística e segurança pública, entre outras.
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Sílvia Waiãpi (PL-AP)
Silvia Nobre Lopes, 47, nasceu na Terra Indígena Waiãpi (AP). Aos três anos, foi adotada por um casal de Macapá. Aos 13 anos, após ser mãe, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde chegou a morar na rua e foi vendedora de livros e revistas. Conseguiu estudar artes cênicas, foi pesquisadora, figurinista, preparadora de elenco e atriz na TV Globo. Participou de novelas e minisséries. Também foi esportista e chegou a ganhar medalhas de atletismo pelo clube Vasco da Gama. Formou-se em Fisioterapia pelo Centro Universitário Augusto Motta. Em 2011, foi a primeira mulher autodeclarada indígena a integrar o Exército brasileiro. Também é formada em Política e Estratégia e Liderança Estratégica pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Participou do governo de transição de Jair Bolsonaro e foi chefe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) entre 2019 e 2020. Tem se alinhado ao governo Bolsonaro, defendendo a liberação de grandes projetos econômicos nas Terras Indígenas e a militarização da política indigenista. É muito próxima à senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF). Foi eleita com 5.435 votos.
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Debate socioambiental vai esquentar no novo Congresso com resultado de eleições
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa o provável aumento da polarização do debate sobre meio ambiente e povos indígenas no Legislativo a partir dos resultados do 1º turno das eleições
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Embora a agenda socioambiental não tenha sido debatida em profundidade na campanha eleitoral, os resultados do primeiro turno já indicam um recrudescimento qualitativo no trato da questão no Congresso.
Do ponto de vista numérico, não houve grandes alterações na correlação de forças. Bancadas antagônicas saíram fortalecidas, como as do PL e do PT, partidos dos dois principais candidatos à Presidência.
O orçamento secreto certamente cacifou o “centrão” governista, que tomou espaços dos partidos do centro e direita mais convencionais, ligados aos candidatos presidenciais menos votados. PSB, PDT, PSDB e Cidadania diminuíram, enquanto cresceu a federação do PSOL com a Rede.
A bancada bolsonarista cresceu no Senado, mas houve ganhos pela esquerda também. É provável que teremos um Senado mais polarizado e com menor interlocução. A mediação de interesses poderá ser melhor exercida pelo Executivo, caso se confirme a vitória de Lula no segundo turno. O petista tem maior capacidade e disposição para a negociação política.
Expressões opostas
As mudanças mais significativas e interessantes foram de caráter qualitativo, pelo perfil dos eleitos, que têm relação mais próxima com a agenda socioambiental, para o bem e para o mal.
Na bancada federal paulista, há exemplos eloquentes. A deputada Carla Zambelli (PL) reelegeu-se com extraordinários 940 mil votos, desbancando o próprio Eduardo Bolsonaro entre os bolsonaristas mais radicais. Ela foi superada no estado apenas por Guilherme Boulos (PSOL), que teve mais de um milhão de votos. Zambelli foi presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara e tem notória inclinação contrária à agenda da sustentabilidade. Também se elegeu por São Paulo, com grande votação, o ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles (PL), o passador de “boiadas” contra o meio ambiente.
Em contrapartida, os paulistas foram generosos ao acolher e eleger duas novas deputadas diretamente ligadas a essa agenda: Marina Silva (Rede), acreana e ex-ministra do Meio Ambiente de Lula, e Sonia Guajajara (PSOL), maranhense e integrante da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Também reelegeu-se o deputado Nilto Tatto, secretário do Meio Ambiente do PT, com cerca de 150 mil votos. Igualmente foi eleito o seu irmão, Jilmar Tatto (PT), numa proeza familiar que duplica o seu poder de voto na Câmara.
Além deles, por outros estados, parlamentares com atuação importante na agenda socioambiental que conseguiram manter seus mandatos na Câmara são Tábata Amaral (PSB-SP), Talíria Petrone (PSOL-RJ) e Túlio Gadêlha (Rede-PE).
Infelizmente, Camilo Capiberibe (PSB-AP), Rodrigo Agostinho (PSB-SP) e Alessandro Molon (PSB-RJ) não conseguiram se reeleger. Agostinho é ex-coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista e ficou como primeiro suplente, sendo provável que retome o mandato caso outro parlamentar de seu partido assuma um cargo executivo. Molon é o atual coordenador da frente, candidatou-se ao Senado e perdeu as eleições.
Bancada indígena
Além da Sonia, o movimento indígena também apoiou a eleição da deputada Célia Xakriabá (PSol-MG), ampliando a presença dos povos originários no parlamento. Infelizmente, Joênia Wapichana (Rede-RR), a primeira deputada federal indígena do Brasil, não conseguiu se reeleger, apesar de ampliar em mais de um terço a votação obtida nas eleições anteriores. Ela foi a sexta mais votada em seu estado, mas a federação partidária pela qual se candidatou, entre Rede e PSOL, não alcançou o quociente eleitoral.
Há outros cinco parlamentares eleitos para o Congresso autodeclarados indígenas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE): na Câmara, Silvia Waiãpi (PL-AP), Juliana Cardoso (PT-SP) e Paulo Guedes (PT-MG); no Senado, Hamilton Mourão (REP-RS), vice-presidente, e Wellington Dias (PT), ex-governador do Piauí.
Vale destacar que parte importante dos votos obtidos por Sonia e Célia não vieram de eleitores indígenas, mas de não indígenas de zonas urbanas. Ao que parece, há uma significativa receptividade à questão indígena em segmentos da sociedade que, antes, não se posicionavam sobre isso.
Amazônia sob pressão
O cenário político da Amazônia também promete grande tensão. Bolsonaro foi mais votado na região do chamado Arco do Desmatamento, que elegeu vários representantes de interesses ligados à extração predatória de recursos naturais. O avanço da devastação na região no mandato de Bolsonaro, assim como o orçamento secreto, fortaleceram esses segmentos.
Caso o modelo predatório de exploração de recursos continue sendo promovido pelo governo no próximo mandato, o Brasil certamente sofrerá graves sanções internacionais pelo enorme impacto negativo para as já debilitadas condições do clima global. Na hipótese, mais provável, de vitória do Lula, esses atores resistirão à adoção de políticas pela sustentabilidade ambiental na Amazônia.
Por outro lado, as condições climáticas continuarão piorando em função dos danos já acumulados. Todos os países sofrem com essa situação e os impactos sobre o Brasil já têm sido devastadores, como atestam as secas e enchentes que destroem as cidades, afetam a produção agrícola, a geração de energia e o abastecimento de água. A tendência é de acirramento de conflitos de interesse, caso não sejam tomadas providências efetivas e urgentes para a redução de danos.
Portanto, o clima político também deve esquentar. Com representantes mais qualificados e aguerridos, de ambos os lados, vai se acirrar o debate sobre a proteção da Amazônia e dos demais biomas, assim como sobre toda a agenda socioambiental. O povo brasileiro, como um todo, terá que se posicionar, para que o país possa recuperar o tempo perdido e construir um presente melhor e um futuro mais promissor para as próximas gerações.
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Audiência na Câmara sobre direitos indígenas em 2015 | Fábio Nascimento / MNI
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Remanescentes desumanos
O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa o quadro de violência na Amazônia à luz do desgoverno do desgoverno de Bolsonaro e de seu discurso vazio sobre a região. Artigo publicado originalmente no portal da Mídia Ninja, em 23/06/2022
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
A última semana foi fortemente marcada pela catártica dor causada pela confirmação do assassinato de Bruno Pereira e de Dom Phillips, nas proximidades da Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas. Três dos autores do crime estão presos, um deles confessou e outro se entregou à polícia. Fala-se de mandantes ligados ao narcotráfico e há responsabilidades políticas a serem cobradas. A Polícia Federal vacila em aprofundar as investigações, que o presidente Bolsonaro, em plena campanha reeleitoral, quer encerrar.
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| Marcello Casal / Agência Brasil
Entre abjetas aberrações proferidas por Bolsonaro, tentando responsabilizar as vítimas pelo próprio assassinato, coube ao ministro da Justiça, Anderson Torres, informar, oficialmente, sobre a localização dos corpos, chamados por ele de “remanescentes humanos”. O malabarismo verbal ministerial deveu-se à circunstância de que Bruno e Dom, depois de mortos, tiveram os seus corpos esquartejados. A extrema brutalidade do crime inspirou a licença poética do ministro.
O que remanesce dessa história cheira muito mal para Torres, Bolsonaro e ideólogos das Forças Armadas, que recorrem à defesa retórica da soberania nacional para atacar os críticos às políticas do governo para a Amazônia, os povos indígenas, os direitos humanos, as mudanças climáticas, etc. O mundo inteiro assistiu um filme de horror em tempo real, num território sem lei, num país desgovernado, com enredo determinado pelo crime organizado.
Defesa de quem?
Durante o período democrático recente, o Brasil fez investimentos consideráveis para aumentar o controle militar sobre as fronteiras. Várias unidades do Exército foram transferidas de outras regiões para a Amazônia e um colar de batalhões foi instalado ao longo da fronteira norte. O Projeto Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), com a instalação de potentes radares em pontos estratégicos, deveria permitir o controle do espaço aéreo regional. A Marinha também teve a sua estrutura reforçada em algumas áreas, inclusive no Alto Solimões.
O artigo 17-A da Lei Complementar nº 97/1999 assim dispõe sobre o exercício o poder de polícia na da faixa de 150 km ao longo das fronteiras nacionais: “Cabe ao Exército Brasileiro, além de outras ações pertinentes, […]: IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, […]”. São atribuições afetas a vários dos casos recentes de violência ocorridos em Rondônia, Roraima e, também, no Vale do Javari.
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Coletiva de imprensa com órgãos que trabalham nas investigações sobre as mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira. Ao centro, o superintendente da PF no Amazonas, Eduardo Alexandre Fontes | Reprodução Youtube
Por isso causou espanto a nota emitida pelo Comando Militar da Amazônia, logo após o desaparecimento do Bruno e do Dom, dizendo que ainda aguardava “ordens superiores” para reagir ao fato. Pareceu uma forma de dizer que havia alguma ordem para não agir. É a Polícia Federal quem lidera as investigações. Não há inteligência militar suficiente para isso.
A postura do Ministério da Defesa tem gerado críticas e suspeitas de desvio de função. Enquanto se deixa usar em movimentos estranhos que questionam o sistema eleitoral, vai dando sucessivas demonstrações de leniência diante da atuação do narcotráfico, do garimpo predatório e de outras empresas criminosas na Amazônia. O Alto Comando parece não perceber, ou não se importar, com o desgaste que essa situação gera junto aos melhor informados.
Resistência à mudança
O remanescente mais desumano é o próprio Bolsonaro. Ele consegue desumanizar quase um terço da população. Mas, para isso, cristaliza a sua rejeição pelos outros dois terços. Da sua boçalidade, o povo brasileiro poderá se livrar nas eleições de outubro. Esse passo será fundamental para impedir que o país se afunde de vez, multiplicando remanescentes humanos.
Este será apenas o primeiro passo. A violência é resiliente. O crime organizado vai remanescer e tentar manter a soberania conquistada sobre grande parte da Amazônia durante o governo Bolsonaro. O crime está armado e capitalizado. Para reverter essa situação, será preciso estratégia, inteligência e perseverança para cortar as suas conexões internas e internacionais. Enquanto isso, a violência poderá se intensificar ainda mais no curto prazo.
Sob novo governo, com comandos militares renovados, haverá oportunidade para rever a atual estrutura de defesa, que tem sido lenta e pouco efetiva em evitar, ou reagir, aos ilícitos amazônicos. Mas a experiência dos anos recentes demonstra que remanesce, nas Forças Armadas, uma cultura política corporativa completamente desatada dos desafios civilizatórios deste século.
Não é a existência da floresta e a presença dos povos indígenas que abalam a soberania brasileira sobre a Amazônia. Não é crível que governos de países vizinhos ou outros se atrevam a ameaçar nossas fronteiras. O abalo vem da demonstração da incapacidade do país em gerir a região de forma racional, do avanço descontrolado do desmatamento e da mineração predatória, da grilagem de terras públicas e da ação do crime organizado. Além de lesar o país, a predação da Amazônia afeta objetivamente o mundo todo.
O resgate da soberania nacional na Amazônia não precisa de retórica vazia, mas depende da demonstração da capacidade efetiva do país de combater os ilícitos e de privilegiar o desenvolvimento sustentável em detrimento da predação dos recursos naturais. Depende do protagonismo dos povos da floresta, ameaçados e encurralados no atual ciclo de violência. E se completa com o justo reconhecimento internacional.
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Servidores da Funai fazem ato nacional de greve
Funcionários reivindicam responsabilização de mandantes das mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips e saída de presidente de órgão indigenista
Servidores da Funai, em frente à sede do órgão, em Brasília | Ester Cezar / ISA
Reportagem atualizada em 24/6/2022, às 22:30
Servidores e servidoras da Fundação Nacional do Índio (Funai) participaram, nesta quinta (23), de um ato nacional de greve promovido pela organização Indigenistas Associados (INA) e a Associação Nacional de Servidores da Funai (Ansef), entre outras, para denunciar o desmonte do órgão oficial, exigir providências de sua direção e das autoridades para garantir a integridade dos funcionários e pedir a saída imediata do atual presidente, Marcelo Augusto Xavier. Protestos foram registrados em 38 cidades.
Uma mobilização nacional começou no dia 14 e, de lá para cá, foram sete dias de paralisação, cinco nesta semana. Entre segunda e quarta da semana que vem, está prevista mais uma vigília em frente à sede da Funai, em Brasília. Na quinta, está marcado mais um dia nacional de greve.
Os assassinatos do indigenista e servidor da Funai Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, desaparecidos no dia 5 e encontrados mortos no dia 15, em Atalaia do Norte, extremo oeste do Amazonas, foram o estopim do movimento. Eles sumiram na floresta após registrarem as atividades de invasores da Terra Indígena Vale do Javari, a segunda maior do país, com 8,5 milhões de hectares, na mesma região. Pereira foi cremado, na tarde desta quinta, em Recife. Phillips será cremado em Niterói (RJ), no próximo domingo.
Os dois foram achados após um dos suspeitos dos homicídios, Amarildo da Costa de Oliveira, levar as equipes de busca até o local do crime. Ele também implicou o irmão, Oseney da Costa de Oliveira. Há ainda mais dois suspeitos presos: Jeferson da Silva Lima, que teria atirado nas vítimas, e Gabriel Pereira Dantas. No total, a polícia investiga a participação de oito pessoas nos assassinatos.
As mortes acabaram expondo ainda mais o enfraquecimento do órgão indigenista promovido pelo governo Bolsonaro e a violência na Terra Indígena Vale do Javari.
Primeira greve em 10 anos
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Indígena Guarani Kaiowa dança em homenagem a Bruno Pereira e Dom Phillips, em frente à sede da Funai, em Brasília | Ester Cezar / Brasília
“Essa questão do Bruno levantou uma mobilização que há muitos anos não acontecia na Funai. Há 10 anos não se declarava greve na Funai. Então, a força do Bruno e do Dom levantou também uma série de questões que estavam dormentes, mas que também são mais que necessárias para que a gente fortaleça a política de povos isolados, a política [de povos] de recém-contato e a proteção das Terras Indígenas em geral”, diz Luiz Carlos Lages, servidor da Funai e membro da INA.
“É inevitável, nesse contexto, a gente não passar para a pauta que é o ‘Fora, Xavier!’, que é uma das nossas principais pautas aglutinadoras, justamente porque o Marcelo Xavier veio à Funai para cumprir a promessa feita pelo presidente Bolsonaro de dar uma foiçada no pescoço da Funai. Assim, na gestão dele, a proteção territorial das terras indígenas, não só do Javari, como do Brasil inteiro, sofreu bastante e tem sofrido uma série de ataques e revezes”, complementa.
Lages acrescenta que o movimento também condena a militarização do órgão indigenista, com a nomeação de integrantes das Forças Armadas e policiais sem qualificação ou experiência para cargos importantes.
Durante o ato em Brasília, a servidora e membra da INA Luana Almeida explicou que os funcionários foram ignorados por Xavier na tentativa de dialogar sobre as reivindicações. Depois disso, o movimento decidiu que não o considera mais um interlocutor válido. De acordo com a INA, o secretário-executivo adjunto do Ministério da Justiça, Washington Leonardo Guanaes Bonini, prometeu um encontro com o ministro Anderson Torres nos próximos dias.
“Hoje, o maior objetivo da greve é sermos recebidos pelo ministro da Justiça para poder apresentar as nossas reivindicações e para poder pactuar com pessoas que tenham de fato poder decisório, para tirar encaminhamentos relativos aos [nossos] oito pontos emergenciais, e também uma pauta estruturante para recomposição e reorientação da atuação da Funai em prol da sua missão institucional, que é proteger e defender os direitos dos povos indígenas”, afirmou.
Os oito itens mencionados por Almeida foram encaminhados a Torres, no dia 20, por meio de um ofício. Entre as demandas, estão o envio de forças de segurança para garantir a integridade física dos servidores em todas as bases de proteção do Vale do Javari; a continuidade das investigações dos assassinatos de Pereira e Phillips e a identificação dos mandantes; e a saída dos atuais membros da cúpula da Funai, incluindo os que ocupam cargos superiores (confira lista no quadro ao final da reportagem).
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Servidores da Funai protestam na Esplanada dos Três Poderes, em Brasília | Ester Cezar / ISA
Omissão da Funai e do Estado
“O Vale do Javari diz que vai lutar até o último índio e afirmo: não sei quanto tempo estarei aqui, mas gostaria de ressaltar isso — nós estamos com vocês e vamos nos fortalecer porque certamente unidos nós vamos vencer e, mais ainda, vocês não estão sós. É por Dom e por Bruno!”, ressaltou o assessor jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Eliésio Marubo, no ato em Brasília.
“Eles dois perderam a vida pela omissão do Estado, pela omissão da Funai, que teima em criminalizar a conduta de vocês servidores, que teima em criminalizar a atuação das nossas organizações, das nossas lideranças”, concluiu.
Além dos servidores da Funai, a mobilização desta quinta contou com o apoio de representantes dos povos indígenas que reforçaram a crítica ao desmonte do órgão indigenista e as reivindicações por condições dignas de trabalho para os servidores. Os indígenas fizeram rezas e prestaram homenagens a Pereira e Phillips.
O que estão reivindicando os servidores da Funai?
1) Declaração pública do presidente da Funai, retratando-se de suas declarações difamando Bruno Pereira e Dom Phillips.
2) Envio imediato de forças de segurança para garantir a integridade física dos servidores da Funai em todas as bases de proteção da Terra Indígena do Vale do Javari e coordenações regionais (CRs) da Funai na região.
3) Envio imediato de força-tarefa para apoio aos servidores e às atividades das CRs Alto Solimões e Vale do Javari, bem como da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari.
4) Nenhuma retaliação aos servidores em greve, incluindo mudanças de lotação, exoneração de cargos e abertura de sindicâncias administrativas.
5) Pagamento dos dias parados aos grevistas sem compensação de horário.
6) Apuração até o fim das responsabilidades pelos assassinatos, ressaltando que a violência no Vale do Javari tem conexões com o crime organizado.
7) Que o Ministro da Justiça receba imediatamente uma comissão dos servidores para discutir as reivindicações.
8) Troca do comando da Funai, incluindo o presidente Marcelo Xavier e todos os membros anti-indigenistas da equipe de assessores e cargos de direção e assessoramento superior.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Observatório faz propostas sobre sociobiodiversidade para novo governo
Organizações e movimentos sociais que integram o ÓSócioBio, entre eles o ISA, também denunciaram desmonte ambiental do governo Bolsonaro
Numa audiência na Comissão de Meio Ambiente do Senado, nesta quarta (22), organizações da sociedade civil e movimentos sociais que integram o Observatório da Economia da Sociobiodiversidade (ÓSócioBio) denunciaram os impactos negativos para povos e comunidades tradicionais do desmonte ambiental do governo de Jair Bolsonaro e criticaram a falta de políticas públicas para ampliar a produção econômica dessas populações (saiba mais sobre sociobiodiversidade no quadro ao final da reportagem).
Integrado pelo ISA, o ÓSócioBio também apresentou uma lista de recomendações para o próximo presidente eleito para estimular a economia da sociobiodiversidade. Até agora, está confirmada a entrega do documento à coordenação de programa de governo de Luís Inácio Lula da Silva.
“A economia da sociobiodiversidade é um dos caminhos para encarar o recrudescimento dos cenários de mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a insegurança hídrica e alimentar, e o aumento das desigualdades sociais”, afirma o texto.
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Audiência discutiu políticas de estímulo para produção de povos e comunidades tradicionais | Oswaldo Braga de Souza / ISA
Proteção de territórios
“Infelizmente, o contexto em que estamos vivendo não demonstra [ser] um momento muito favorável para essa agenda socioambiental no país”, lamentou na audiência Dione do Nascimento Torquato, secretário-executivo do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
Ele frisou que a economia dos produtos da floresta e dos outros biomas depende da oficialização e proteção de Terras Indígenas e Reservas Extrativistas - o que não vem sendo feito na gestão Bolsonaro. “O maior reflexo dessa triste realidade são os inúmeros casos de conflitos territoriais e fundiários, a morte de lideranças ativistas no campo e a invasão massiva dos nossos territórios tradicionais”, continuou.
Torquato defendeu a retomada de políticas desmanteladas pela administração federal que apoiaram a produção de povos e comunidades tradicionais no passado, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e à Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio).
“As comunidades tradicionais, comunidades quilombolas, comunidades indígenas que são verdadeiros defensores do meio ambiente, eles estão fazendo o papel do Estado, mas estão sendo dizimados. Não tem outra palavra. Estão sendo dizimados com políticas antiambientalistas, antivida”, reforçou o senador Fabiano Contarato (PT-ES), que conduziu a audiência.
“[É preciso apoio para] tudo que envolve a parte de orientação para que as coisas aconteçam como tem que ser. Porque é muita legislação, é muita burocracia, são muitos entraves. Ter pessoas, ter equipe, ter política pública que permita que pessoas apoiem os empreendimentos é de suma importância”, defendeu Dionete Figueiredo, da Cooperativa de Agricultura Familiar Sustentável com Base em Economia Solidária (Copabase), de Arinos (MG), em entrevista ao ISA (veja vídeo abaixo).
“Não menos importante é o acesso ao crédito. Sem crédito não é possível desenvolver esses trabalhos”, continuou. “O mercado é cruel, não dá espaço para erro. Nos nossos empreendimentos não temos acesso a política pública de crédito. Entregamos tudo para o banco, que dá uma resposta não favorável. Assim é nossa realidade”, disse. Ela cobrou a retomada de iniciativas oficiais de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater).
Na audiência, o facilitador de Diversidade Socioambiental do ISA, Jeferson Camarão Straatmann, argumentou que os produtos da sociobiodiversidade não podem ser tratados apenas como insumos e matérias-primas, mas devem ser considerados em seu potencial de geração de conhecimento e inovação e demandam regulamentação e estímulos diferenciados e adaptados (veja vídeo abaixo).
“Precisamos sair dessa lógica de provedores de insumos para uma lógica de economias que inovam a partir do conhecimento tradicional, são desenvolvedoras de tecnologias e soluções para saúde, moda, alimentação, governança, modelos econômicos, manejo e são prestadoras de serviços que entregam benefícios ecossistêmicos para todo o planeta”, defendeu.
“Os arranjos locais e territoriais e sua gestão devem ter políticas e programas específicos de gestão e regulamentação, que enxerguem esses arranjos com um prisma diferente do prisma das regulamentações do setor privado”, comentou.
“O futuro que o Brasil deseja é um futuro de inovação que reconheça os valores das economias da sociobiodiversidade, com garantia de direitos, proteção e segurança de seus territórios e modos de vida", fala Jeferson Straatmann (ISA), no @SenadoFederal. #ÓSócioBiopic.twitter.com/rt1t2Zmocm
A professora e pesquisadora da Universidade de Brasília Mônica Nogueira chamou a atenção para a dificuldade provocada pela ausência de dados sistematizados sobre os povos e comunidades tradicionais.
“Nós temos uma fragmentação, uma dispersão das informações relativas a povos e comunidades tradicionais no Brasil, seus territórios, os conflitos a que estão submetidos. E, ainda mais, sobre o que produzem, como a sua produção circula, como ela dinamiza a economia local”, apontou.
“O apagão de informação naturalmente dificulta a elaboração de políticas públicas apropriadas que considerem as especificidades da economia da sociobiodiversidade. E pior, marginaliza essa economia e os seus sujeitos”, completou.
O pesquisador e professor da USP Ricardo Abramovay informou que, segundo algumas pesquisas, a bioeconomia corresponde a 5% do PIB dos EUA, algo em torno de US$ 1 trilhão. Por outro lado, reiterou que, no Brasil, não há informações consolidadas sobre o setor, em especial para a Amazônia e o Cerrado.
“O Brasil pratica, sobretudo na Amazônia, uma economia da destruição da natureza. Nós precisamos de uma economia do conhecimento da natureza”, ressaltou. “A economia da destruição da natureza não propiciou desenvolvimento na Amazônia. A Amazônia hoje é a parte do Brasil onde estão seus piores indicadores sociais, onde a lei é sistematicamente desrespeitada, as instituições não conseguem exercer o seu papel, sobretudo num governo de fanáticos fundamentalistas que estimula a violência e o desrespeito à lei e a invasão de áreas protegidas”, comentou.
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Representantes do ÒSócioBio na audiência no Senado | Oswaldo Braga de Souza / ISA
O que é sociobiodiversidade?
Biodiversidade
A diversidade biológica ou biodiversidade é a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos, outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte. Abarca, ainda, a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.
Povos e comunidades tradicionais
A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais conceitua essas populações como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
Além de índios e quilombolas, podem ser assim considerados seringueiros, ribeirinhos, caiçaras, ciganos, beradeiros, quebradeiras de coco babaçu, geraizeiros, sertanejos, comunidades de fundos e fechos de pasto, entre outros, parte fundamental da diversidade sociocultural da sociedade brasileira. Há, pelo menos, 27 segmentos diferentes reconhecidos pelo Estado, conforme o Decreto nº 8.750/2016, que institui o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Sociobiodiversidade
O conceito de sociobiodiversidade foi desenvolvido em linhas de pesquisa que confirmaram o papel dos pequenos agricultores, camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais na preservação e promoção da biodiversidade dos ecossistemas. Trata-se de uma noção que abarca as relações entre essa diversidade biológica e os conhecimentos, informações e práticas sobre seu uso e conservação desenvolvidos por essas populações, ao longo de séculos e até milênios.
Em geral, a economia da sociobiodiversidade refere-se a produtos não madeireiros gerados a partir da exploração sustentável dos biomas. Alguns exemplos mais conhecidos no Brasil são: açaí, castanha-do-pará, pequi, babaçu, carnaúba, andiroba, copaíba, piaçava e derivados (alimentos, medicamentos, cosméticos, essências, óleos etc).
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Yanomami recebem outros povos para discutir gestão e proteção do território
Encontro em Maturacá (AM) reuniu povos do Rio Negro, Uru-Eu-Wau-Wau, Kaxuyana e Pataxó, populações indígenas que vivem em áreas de sobreposição com parques nacionais
Lideranças e visitantes acompanharam ritual tradicional Yanomami realizado durante encontro / Natália Pimenta / ISA
O Yaripo, nome Yanomami para o Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil, com 2.995 metros de altitude, foi reaberto à visitação, em março, com um projeto de turismo de base comunitária que tem os indígenas Yanomami como protagonistas. A montanha está em plena floresta amazônica, em área de sobreposição entre o Parque Nacional que leva seu nome em português e o território indígena, no extremo noroeste do Amazonas.
A iniciativa de gestão territorial e geração de renda conduzida pelos próprios indígenas com apoio de parceiros foi uma das experiências compartilhadas em encontro com a participação de representantes dos povos indígenas Uru-eu-wau-wau (RO), Kaxuyana (PA) e Pataxó (BA), em Maturacá, na Terra Indígena (TI) Yanomami (AM-RR). A aldeia fica entre os municípios de Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira (AM). Povos da região do Rio Negro – como os Baré, Baniwa e Tukano – também apresentaram suas experiências no evento.
Assim como os Yanomami, as populações que vieram dos outros estados vivem em áreas de sobreposição com parques nacionais e relataram trabalhos principalmente de pesquisa e monitoramento, mas com abordagem também em vigilância e turismo de base comunitária.
O intercâmbio aconteceu entre 8 e 12/6 e foi promovido pela gestão do Parque Nacional Pico da Neblina, vinculada ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com apoio do ISA, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Fundação Nacional do Índio (Funai) e do projeto Legado Integrado da Região Amazônica (Lira), do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê).
Enquanto os Yanomami e os Pataxó falaram mais sobre suas experiências de turismo, os Uru-eu-wau-wau e os Kaxuyana trouxeram informações sobre vigilância e monitoramento.
Pesquisas nos territórios
Os Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas) que atuam na Bacia do Rio Negro, no Amazonas, em projeto desenvolvido pelo ISA e Foirn com o apoio do Lira, falaram sobre como os indígenas vêm realizando pesquisas dentro dos territórios, incluindo rios como Uaupés, Tiquié, Içana e Ayari. Os Aimas monitoram os ciclos da natureza e vêm relatando alterações climáticas em seus diários de papel ou eletrônicos.
Também foram apresentadas no encontro as iniciativas da Rede de Turismo Indígena do Rio Negro e o projeto Serras Guerreiras do Tapuruquara, do Médio Rio Negro.
Coordenadora-executiva do Lira, Neluce Soares, conta que o encontro em Maturacá mostrou um mosaico de experiências e de ações que têm os indígenas com protagonistas, o que está alinhado com o projeto, que apoia iniciativas para o aumento da efetividade de gestão de áreas protegidas, Unidades de Conservação e TIs.
“Cada um dos representantes dos indígenas pôde mostrar suas experiências, inspirando iniciativas que podem ser levadas adiante. Foi um encontro de muito trabalho, mas também festivo. Os Yanomami se abriram para mostrar parte de sua cultura”, disse Lana Rosa, assessora do ISA para o Projeto Yaripo.
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Rogelino Azevedo, Aima do povo Tukano que participa de pesquisas na região do Rio Tiquié, fala durante encontro em Maturacá | João Claudio Moreira
Turismo
Ela ressalta a importância da troca de conhecimentos entre os povos indígenas para o fortalecimento da gestão territorial. Rosa informou ainda que a troca de experiência foi primordial como contribuição para a construção do plano de monitoramento de impactos socioambientais relacionados à atividade de turismo no Yaripo.
O projeto é de base comunitária e busca o protagonismo dos indígenas, tendo como objetivo gerar renda, proteger o território e fortalecer a cultura indígena. A apresentação da iniciativa foi conduzida pela Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca).
Durante o encontro, o tema do turismo também foi abordado pelo representante do povo Pataxó, o cacique José Fragoso, conhecido como Jitaí Pataxó. Ele relatou a experiência do Parque Nacional do Descobrimento, em Prado, no Sul da Bahia.
Um dos pontos primordiais para o sucesso da iniciativa foi o termo de compromisso assinado com o ICMBio, há cerca de quatro anos, encerrando uma série de conflitos. O projeto tem três pilares: etnoturismo, cultura pataxó e soberania alimentar. Também foi apresentada a experiência do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal.
As iniciativas de turismo de base comunitária interessam ao povo Uru-Eu-Wau-Wau, que vive num território em Rondônia que abrange parte da Serra dos Pacaás Novos. Na área, está o ponto mais elevado do estado, o Pico do Tracoá, que vem despertando interesse de turistas.
A liderança jovem Tejubi Uru-Eu-Wau-Wau reforçou que seu povo quer conhecer melhor esse tipo de atividade, mas quer estar à frente da iniciativa. “Sabemos usufruir do nosso território sem prejudicar o ambiente ou os indígenas isolados que vivem na região”, diz. Os indígenas de Rondônia trouxeram ao Amazonas sua experiência com monitoramento e vigilância do território.
Kaxuyana
Para o povo Kaxuyana, as iniciativas de turismo também levantam interesse, desde que não interfiram em seus modos de vida e que eles próprios estejam à frente da atividade.
“Não queremos ser empregados. Queremos estar à frente do projeto”, diz Juventino Peserina Kaxuyana. O território desse povo está em área de sobreposição com a Floresta Nacional Trombetas, no Pará.
Antes de seguir para Maturacá, os Kaxuyana ficaram em São Gabriel da Cachoeira, sendo que Juventino Kaxuana teve a oportunidade de rever a cidade onde morou há cerca de 40 anos. Ele conta que foi retirado de seu território e acabou sendo levado para estudar em um colégio católico em São Gabriel.
“Estudei num colégio logo ali perto”, diz ele, apontando para a catedral da cidade. Ele acabou retornando para perto de suas origens. A partir dos anos 2000, seu povo foi se reaproximando do território e, em 2006, a área passou a ser considerada Unidade de Conservação. Com toda essa história, os Kaxuyana desenvolveram práticas de vigilância territorial.
Também participaram do encontro em Maturacá a Associação Kanindé, o Instituto do Meio Ambiente e do Homem da Amazônia (Imazon), o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé) e o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-bio).
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Encontro reuniu sociedade civil, órgãos oficiais e indígenas do Amazonas, Pará, Rondônia e Bahia para discutir experiências comuns | Divulgação
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PF confirma assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira no Vale do Javari (AM)
Polícia Federal informou que um dos suspeitos confessou ter participado de crimes. Corpos e pertences de vítimas ainda estão sendo periciados e barco será analisado nos próximos dias
A Superintendência da Polícia Federal (PF) no Amazonas confirmou, na noite desta quarta-feira (15/6), em entrevista coletiva em Manaus, que os corpos que seriam do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista e servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai) Bruno Araújo Pereira foram encontrados perto da comunidade ribeirinha de São Rafael, na região do município de Atalaia do Norte, no extremo oeste do estado do Amazonas. Os dois estavam desaparecidos desde domingo (5).
De acordo com a PF, Amarildo da Costa, conhecido como “Pelado”, confessou a participação nos assassinatos de ambos. Ainda na quarta, ele foi levado por policiais ao local onde estariam os restos mortais das vítimas.
Outro suspeito já preso é o irmão de Amarildo, Oseney da Costa Oliveira, conhecido como “Dos Santos”. Ele negou a participação nos crimes, mas há “provas em seu desfavor”, segundo o superintendente da PF no Amazonas, Eduardo Alexandre Fontes. Fontes também confirmou que há um terceiro suspeito em investigação já preso.
O superintendente da PF reforçou que só será possível ter “100% de certeza” sobre a identidade dos cadáveres e sobre como as vítimas foram mortas após a conclusão da perícia. Apesar disso, informou que Amarildo contou que teria sido usada uma arma de fogo. O policial não deu mais detalhes, justificando que as investigações correm sob sigilo.
No início da semana, a PF tinha encontrado documentos de Pereira e objetos pessoais dele e de Dom. Os pertences foram enviados para perícia em Manaus. Os itens estavam próximos à casa de Amarildo, na comunidade de São Rafael, submersos e amarrados a uma árvore, para que não fossem encontrados. O barco em que estavam Phillips e Pereira também teria sido afundado com uso de sacos de terra para que não fosse encontrado. A embarcação ainda não foi encontrada.
Amarildo havia sido preso em flagrante, na terça-feira (7/6), por posse de drogas e de armas, uma delas de uso restrito. Também foram encontrados vestígios de sangue, que estão em análise, no barco do suspeito.
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Coletiva de imprensa com órgãos que trabalham nas investigações sobre as mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira. Ao centro, o superintendente da PF no Amazonas, Eduardo Alexandre Fontes | Reprodução Youtube
Linha investigativa
Nos últimos dias, com base em vazamentos vindos da própria PF, veículos da imprensa divulgaram que Amarildo teria esquartejado e enterrado os corpos. Os assassinatos teriam sido cometidos por causa dos registros feitos por Phillips e Pereira sobre a pesca ilegal realizada por invasores na Terra Indígena (TI) Vale do Javari, a segunda maior do país, com 8,5 milhões de hectares. A polícia suspeita que a atividade era usada para lavar dinheiro do narcotráfico praticado na fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.
Pouco antes de desaparecer, além da documentação da prática dos crimes, Pereira estava fazendo conversas com indígenas, ribeirinhos e autoridades locais para tentar conter a pesca ilegal na região e obrigar alguns dos invasores a aderirem a práticas legais de manejo pesqueiro. Recentemente, o servidor realizou um grande mapeamento das atividades ilícitas na TI Vale do Javari. O material foi entregue a órgãos como o Ministério Público Federal (MPF).
Já Dom Phillips era um experiente e reconhecido repórter que colaborou para jornais importantes, como os norte-americanos New York Times eWashington Post e, principalmente, para o britânico The Guardian. Morava há 15 anos no Brasil, tinha conhecimento da Amazônia e estava escrevendo um livro sobre os principais problemas ambientais da região e como solucioná-los.
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Perícia no barco do suspeito Amarildo da Costa | PF-AM
Univaja confirma crimes
Na coletiva em Manaus, chamou atenção a ausência de mais informações relevantes, de representantes dos povos indígenas da região e do reconhecimento do seu trabalho e dedicação nas buscas aos desaparecidos.
Pouco antes da entrevista com a PF e integrantes dos órgãos oficiais que auxiliam as investigações, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) divulgou uma nota, também confirmando as mortes.
“Hoje, 15/06/22, após 11 dias de buscas, obtivemos a notícia de que os corpos de Pereira e Phillips, nossos parceiros e defensores dos Direitos Humanos, foram encontrados pelos órgãos competentes envolvidos nas buscas”, diz o texto.
“A UNIVAJA compreende que o assassinato de Pereira e Phillips constitui um crime político, pois ambos eram defensores dos Direitos Humanos e morreram desempenhando atividades em benefício de nós, povos indígenas do Vale do Javari, pelo nosso direito ao bem-viver, pelo nosso direito ao território e aos recursos naturais que são nosso alimento e garantia de vida, não apenas da nossa vida, mas também da vida dos nossos parentes isolados”, continua a nota.
Exoneração na Funai
Pereira foi chefe da coordenação de Povos Isolados da Funai no Vale do Javari. No final de 2019, foi exonerado do cargo de coordenador geral de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato da sede da Funai, em Brasília, após ser responsável por uma ação de repressão ao garimpo ilegal também no Vale do Javari, com a destruição de dezenas de balsas de garimpo.
“Na conjuntura atual de desmonte da política indigenista e de ataques aos direitos indígenas, ele [Bruno] optou por se afastar do órgão [indigenista] e seguir esse trabalho lá no Vale do Javari, como assessor da Univaja, onde vinha participando de uma série de iniciativas voltadas a proteger o território, produzir informações, subsidiar a atuação do estado com informações qualificadas sobre o conjunto de pressões e ameaças que incidem sobre essa terra indígena”, conta Conrado Octávio, geógrafo associado ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI).
“Era um profissional extremamente dedicado, competente e comprometido com os povos indígenas do Vale do Javari, onde começou a trabalhar em 2010, quando entrou na Funai”, complementa Octávio.
“No Vale do Javari, ele veio desempenhando um papel fundamental nas ações de proteção territorial, de proteção de povos isolados e de recente contato. Enquanto esteve à frente desse trabalho, estendeu essas ações para muitos outros povos e territórios indígenas”, conclui.
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