A Amazônia (ou "Pan-amazônia'', para olharmos o bioma integralmente, para além das fronteiras brasileiras) é um sistema socioecológico integral, compartilhado por oito países e uma província francesa na América do Sul, que beneficia todos os habitantes do planeta. Sua enorme diversidade socioambiental é um ativo estratégico tanto para o meio ambiente tropical da América do Sul quanto para o equilíbrio do clima na Terra. Os grandes responsáveis por manter os ecossistemas amazônicos conservados são os mais de 400 povos indígenas e outras populações tradicionais, como comunidades quilombolas e ribeirinhas.
Nós do ISA acreditamos que para fortalecer uma visão integral da Pan-amazônia, olhar o bioma como um todo, é necessário superar abordagens fragmentadas e promover iniciativas com sinergia territorial, considerando escalas geográficas regionais, nacionais e internacionais para, ao final, fortalecer os territórios indígenas e as áreas protegidas de toda a Pan-amazônia, o que significa aumentar a proteção das florestas. Para caminhar nessa direção, o ISA ajudou em 2007 na criação da Rede Amazônica de Informações Socioambientais Georreferenciadas (RAISG), uma rede formada por organizações da sociedade civil de países amazônicos com larga experiência de trabalho na Amazônia e com seus povos.
A RAISG busca construir uma visão integral da Amazônia que vincule os direitos coletivos dos povos indígenas e populações tradicionais à valorização e proteção da biodiversidade. Nesses 14 anos, a RAISG tem produzido e divulgado um conjunto de mapas, dados estatísticos e informações socioambientais da Pan-amazônia, que contribuem para o monitoramento de 3,8 milhões de hectares de terras indígenas e áreas protegidas em nove países. O Atlas Amazônia Sob Pressão 2020 reúne as versões mais recentes de muitos destes mapas.
As informações produzidas pela RAISG também geram evidências sobre o valor da Pan-Amazônia para o enfrentamento da crise climática e podem ajudar na tomada de decisões em processos de desenvolvimento sustentável em diferentes níveis de planejamento (municipal, estadual, nacional e internacional) para prevenir e mitigar a degradação ambiental da região. Desde 2017, a RAISG tem parceria com a iniciativa MapBiomas Brasil, para o mapeamento da cobertura do uso do solo na região amazônica dos nove países. Os produtos e dados cartográficos produzidos pela RAISG estão disponíveis para download em sua plataforma: www.amazoniasocioambiental.org.
Em tempo: no ISA também atuamos regionalmente na "Amazônia" brasileira, em duas de suas grandes bacias hidrográficas, a do Rio Xingu e a do Rio Negro. Para conhecer nossa atuação "raiz", pé no chão, visite as páginas destes territórios.
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A Amazônia (ou "Pan-amazônia'', para olharmos o bioma integralmente, para além das fronteiras brasileiras) é um sistema socioecológico integral, compartilhado por oito países e uma província francesa na América do Sul, que beneficia todos os habitantes do planeta. Sua enorme diversidade socioambiental é um ativo estratégico tanto para o meio ambiente tropical da América do Sul quanto para o equilíbrio do clima na Terra. Os grandes responsáveis por manter os ecossistemas amazônicos conservados são os mais de 400 povos indígenas e outras populações tradicionais que habitam suas florestas, como comunidades quilombolas e ribeirinhas.
Nós do ISA acreditamos que para fortalecer uma visão integral da Pan-amazônia, olhar o bioma como um todo, é necessário superar abordagens fragmentadas e promover iniciativas com sinergia territorial, considerando escalas geográficas regionais, nacionais e internacionais para, ao final, fortalecer os territórios indígenas e as áreas protegidas de toda a Pan-amazônia, o que significa aumentar a proteção das florestas. Para caminhar nessa direção, em 2007 o ISA ajudou na criação da Rede Amazônica de Informações Socioambientais Georreferenciadas (Raisg), uma rede formada por organizações da sociedade civil de países amazônicos com larga experiência de trabalho na Amazônia e com seus povos.
Nesses 14 anos, a Raisg tem produzido e divulgado mapas, dados estatísticos e informações socioambientais da Pan-amazônia, que contribuem para o monitoramento de 3,8 milhões de hectares de terras indígenas e áreas protegidas em 6 dos 9 "países amazônicos" (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela). O Atlas Amazônia Sob Pressão 2020 reúne as versões mais recentes de muitos destes mapas.
As informações produzidas pela rede de organizações sul-americanas também geram evidências sobre o valor da Pan-Amazônia para o enfrentamento da crise climática e podem ajudar na tomada de decisões em processos de desenvolvimento sustentável em diferentes níveis de planejamento (municipal, estadual, nacional e internacional) para prevenir e mitigar a degradação ambiental da região. Desde 2017, a Raisg tem parceria com a iniciativa MapBiomas Brasil, para o mapeamento da cobertura do uso do solo na região amazônica. Os produtos e dados cartográficos produzidos pela rede estão disponíveis para download em sua plataforma: www.amazoniasocioambiental.org.
Em tempo: no ISA também atuamos regionalmente na "Amazônia" brasileira, em duas de suas grandes bacias hidrográficas, a do Rio Xingu e a do Rio Negro.
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Próxima parada, Belém
Entre avanços parciais e impasses estratégicos, Bonn testa os limites da diplomacia climática rumo à COP 30
Ciro de Souza Brito
- Analista de Políticas de Clima do ISA
Propaganda da COP 30 no saguão de embarque do Aeroporto Internacional de Belém|Fernando Frazão/Agência Brasil
A Conferência de Bonn, também conhecida como pré-COP, foi considerada como um teste para a Presidência da COP do Brasil, mesmo sendo liderada pelos coordenadores dos órgãos subsidiários de Aconselhamento Científico e Tecnológico e de Implementação (SBSTA e SBI, siglas em inglês, respectivamente) – órgãos permanentes da Convenção do Clima da ONU. Ou seja, apesar de não ser o anfitrião oficial da conferência, o Brasil está sob os holofotes.
A expectativa sobre a COP 30 vem aumentando por diversos fatores, positivos ou não. Quando recebeu outros eventos de grande porte, o Brasil conseguiu ser bem sucedido em facilitar a coalizão de relevantes avanços globais, como na Conferência Rio 92. Além disso, contribuem para essa atmosfera fatores relevantes, como a recuperação de uma liderança global no tema ambiental com o governo Lula, fortalecida com o trabalho das ministras Marina Silva e Sonia Guajajara e a experiência do embaixador André Corrêa do Lago, além da forte tradição da sociedade civil brasileira em pressionar o governo por participação social nos processos políticos e diplomáticos.
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André Corrêa do Lago, presidente da COP30, traz experiência diplomática para fortalecer atuação brasileira|Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
No ano em que o Acordo de Paris completa 10 anos, e após o frustrante resultado da COP do Azerbaijão, a ausência dos Estados Unidos na conferência – devido à saída da lista de países signatários do referido acordo – somou-se ao crescente desânimo das nações em desenvolvimento com o multilateralismo. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que a meta de financiamento climático ficou US$ 1 trilhão abaixo do valor reivindicado, que era de US$ 1,3 trilhão.
Os países ricos indicam que não podem se comprometer com mais recursos, mesmo que os gastos bélicos estejam sendo alavancados por um cenário de acirramento de guerras como a de Israel contra Palestina e Irã. Por sua vez, sugerem que o setor privado se comprometa com maior provisão de recursos. Mas os países em desenvolvimento questionam: a que custo?
Também chegamos em Bonn após a apresentação da governança da Presidência brasileira da COP 30 e da divulgação de sua visão com as três primeiras cartas publicadas em março e maio. Como prioridade nas negociações, a delegação brasileira vinha colocando três pontos: transição justa, objetivos globais de adaptação e diálogo sobre o balanço global. Como lema, trazia uma proposta de mutirão contra a mudança do clima, um esforço global de cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.
Apesar da boa vontade, a surpresa no início da Conferência foi a manifestação do grupo LMDC ("Like-minded Developing Countries”, em inglês), composto por Bolívia, Índia, Arábia Saudita, China, entre outros, reivindicando que houvesse negociações sobre financiamento climático. O movimento ficou conhecido nos corredores do World Conference Center Bonn como “a ressaca de Baku” e indicou que o tema do financiamento climático não foi superado e que a Presidência brasileira deverá dar conta dele, sob o risco de implosão da COP.
Vale lembrar que a presidência brasileira já havia noticiado que não tinha interesse em incluir nenhum novo item na agenda de Bonn, mas o parceiro sul-americano, ficou responsável por vocalizar o pedido de inclusão do artigo 9.1 do Acordo de Paris. No final, o item foi alçado a uma nota de rodapé e houve o compromisso que mais consultas seriam feitas até novembro.
Em transição justa, o documento final incluiu menção a gênero e afrodescendentes. Recentemente, lideranças afrodescendentes de 16 países, incluindo as comunidades quilombolas, e organizadas na Coalizão Internacional de Organizações para a Defesa, Conservação e Proteção dos Territórios, do Meio Ambiente, Uso da Terra e Mudança Climática dos Povos Afrodescendentes da América Latina e do Caribe (CITAFRO) entregaram carta a André Corrêa do Lago exigindo maior reconhecimento internacional a partir da agenda da COP 30. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) faz parte dessa coalizão.
Se em transição justa, as negociações foram concluídas no tempo previsto, o tema da adaptação fez a Conferência de Bonn avançar para o décimo primeiro dia, tendo encerrado já na madrugada do dia 27 de junho. O principal tema que vinha sendo discutido era sobre os Objetivos Globais de Adaptação (GGA, sigla em inglês). As negociações emperraram quando esbarraram nas discussões sobre temas transversais, incluindo os grupos mais vulnerabilizados pela crise climática, dentre eles afrodescendentes, e sobre meios de implementação, incluindo a questão do financiamento para adaptação.
Depois de mais de 14 horas de negociações, a saída achada foi a retirada da menção aos afrodescendentes da transversalidade que deveria guiar os GGA. Em relação a povos indígenas, permaneceu a menção de que os indicadores devem conter informações sobre povos indígenas e que seus conhecimentos, bem como os conhecimentos tradicionais, são equiparados à "melhor ciência possível". Sobre meios de implementação, onde a questão do financiamento de adaptação gerou impasse entre os países ricos, que buscavam retirar essa menção, e os países em desenvolvimento, que buscavam deixá-la, a saída foi levar duas opções para a COP de Belém: em uma consta a mensuração do acesso e qualidade do financiamento, bem como a apresentação do progresso e direção no apoio à adaptação; e em outra não. Esse dissenso deve voltar a aparecer mais para frente.
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Protesto durante a Conferência Mundial em Bonn, na Alemanha, durante as negociações climáticas da SB62|Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Outra questão que saiu do “belo” script articulado pelo Brasil, foi do balanço global, ferramenta que guia o aumento de ambição dos países nas suas metas nacionais de mitigação, adaptação, meios de implementação, perdas e danos e transição justa. Mais uma vez, os países do grupo LMDC trouxeram questões que, dessa vez sim, emperraram a fluidez das negociações e o afinamento de um texto consensual para futura aprovação na COP. Não houve consenso e foram produzidas duas versões de texto, cheia de colchetes, nas quais foram destacadas todas as divergências entre os países. A resolução foi que ambas versões serão encaminhadas para a COP.
Dos três temas prioritários, a avaliação da delegação brasileira buscou fomentar otimismo para a COP, apontando um placar vitorioso em relação à transição justa e ao balanço global. O termômetro que a embaixadora Liliam Chagas apresentou, quantitativo, foi de que dos 49 itens em discussão na agenda em apenas dois não houve acordo. Em tempo, a Presidência brasileira da COP 30 aproveitou as reuniões de Bonn para divulgar sua quarta carta, com foco na Agenda de Ação. A repercussão foi mais tímida do que a divulgação, mas deve ser firmada nos próximos encontros internacionais.
Se considerarmos a aprovação do número de rascunhos finais e o mérito de algumas discussões, como da extensão de mandato dos especialistas e as diretrizes para a produção dos indicadores do GGA e a menção a gênero e afrodescendentes no documento sobre transição justa, a Conferência de Bonn pode ser considerada como uma das mais eficientes dos últimos anos.
Mas se a lupa focar no desconforto em relação ao grande tema que estrutura a ação climática, – o financiamento – bem como outros que foram adiados para que se conseguisse chegar a um resultado final, entre multiplicação de colchetes e opções que indicam divergências, Bonn pode ter simplesmente adiado infortúnios. A próxima parada é em Belém.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Povos da Terra do Meio fortalecem alianças e inovam na sociobioeconomia
Semana do Extrativismo, promovida pela Rede Terra do Meio na aldeia Ita´Aka (PA), reforça união entre indígenas, beiradeiros e agricultores familiares e avança no diálogo com parceiros públicos e privados, protegendo territórios e sustentabilidade
A distância que separa a casa e a roça da família da professora e artesã Ipikiri Assurini, na aldeia Ita´Aka, não é tão grande. Depois de caminhar pela lateral do campo de futebol na parte central da comunidade e, em seguida, passar perto da Casa Sagrada, entra-se numa trilha. E daí a pouco já começam a fartura e a diversidade: cacau, banana, mandioca.
Esses produtos, cultivados em meio à floresta, alimentam a família e são partilhados com a comunidade, algumas vezes em forma de preparos tradicionais, como o mingau da macaxeira doce, espécie que só esse povo domina.
Desde o ano passado, os produtos das roças, dos rios e das florestas têm uma nova destinação: a escola da comunidade. A partir do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), esses alimentos passaram a compor a alimentação escolar.
“Essa roça é da minha família e tem plantação de cacau, banana, mandioca. A gente está entregando na escola, para o pessoal que faz a merenda. E o pessoal nos faz o pagamento. Na escola estudam os meus sobrinhos, minha prima e todos os meus quatro filhos. Eu entrego tudo natural. Não são as coisas que vêm da cidade. E eu me sinto bem feliz que eles estão comendo o que vem da roça”, conta Ipikiri Assurini.
Quando trilham esse caminho dos alimentos, os povos da Terra do Meio - indígenas, beiradeiros e agricultores familiares - garantem alimento da família, dos alunos, da comunidade. Mas também movimentam as economias da sociobiodiversidade, ou seja, a economia praticada ancestralmente por essas pessoas, baseada em seus sistemas agrícolas e de saberes que protegem a floresta e a cultura.
Essa economia dos povos da floresta esteve no centro das discussões na Semana do Extrativismo - Semex 10ª Edição, realizada pela Rede Terra do Meio entre os dias 21 e 25 de maio.
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União dos povos da Terra do Meio e novas parcerias marcaram a 10ª Edição da Semana do Extrativismo|Juliana Oliveira/ISA
O encontro, na Aldeia Ita´Aka, a duas horas de Altamira (PA), fechou suas atividades marcado pela aliança entre os povos e avançando na construção de parcerias para apoio na execução do planejamento da Rede Terra do Meio para o futuro, indicando um coletivo fortalecido e unido para os desafios da sociobiodiversidade. Outro destaque foi a diversidade e a representatividade: entre as cerca de 300 pessoas presentes estavam beiradeiros, agricultores familiares e indígenas de povos como Xipaya, Xikrin e Arara.
Um dos diferenciais dessa edição foi a maior participação do poder público, sendo que também foram renovados diálogos com apoiadores privados e financiadores.
Entre os parceiros e apoiadores estavam órgãos públicos como Ministério do Meio Ambiente (MMA); ICMBio; Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai); Banco do Brasil; Governo do Estado do Pará; Banco do Brasil. As empresas Mercur e Natura, entre outras, também estiveram no encontro.
Além de traçar o planejamento da Rede Terra do Meio, a Semex promoveu o debate de temas como políticas públicas de aquisição de alimento - Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); Pagamento por Serviço Ambiental (PSA); Fundo Terra do Meio e estratégias de mercado.
“Essa décima Semex nos faz refletir o quanto que a Rede cresceu e conseguiu aproximar outros atores que estão colaborando para o fortalecimento. Há alguns anos, dificilmente a gente conseguiria articular e aproximar o poder público. Hoje estamos aqui vivenciando um momento único, fazendo com que o poder público entenda a realidade dessas comunidades e, a partir desta compreensão, possa formular leis e políticas públicas adequadas à realidade desse povo”, disse Francinaldo Lima, membro da secretaria executiva da Rede Terra do Meio.
Diretor-presidente da Rede Terra do Meio, Francisco de Assis Porto de Oliveira, o seu Assis, explica que a Semex é um espaço de governança onde busca-se o diálogo com parceiros para apoio à execução das estratégias planejadas coletivamente, entre elas a comercialização de produtos como a castanha, a borracha, a copaíba.
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Semex teve momentos para trocas entre os integrantes da Rede Terra do Meio e também de diálogo com parceiros|Juliana Oliveira/ISA
“A Rede Terra do Meio tem o objetivo de promover cultura, promover saberes e a soberania alimentar. E também dar transparência na gestão e comercialização dos produtos das comunidades. E quem faz a Rede Terra do Meio é uma grande diversidade de povos: são os cantineiros, os paioleiros, os extrativistas, indígenas e pequenos agricultores familiares. As pessoas fazem a rede existir e ela ser Rede”, disse seu Assis, que divide seu tempo entre Altamira e a Reserva Extrativista (Resex) Rio Iriri.
Moradora da comunidade São Francisco, na Resex do Rio Iriri, Aurilete da Silva Maciel, a Dete, é mãe de família, cantineira, pescadora e extrativista. Com sua atuação frente à cantina - uma das estruturas utilizadas pela Rede para troca e comercialização dos produtos - é um exemplo para as mulheres e jovens.
“O meu envolvimento com a Rede começou porque eu via que meu marido, que trabalha na cantina, precisava de apoio. E eu comecei a ajudar. E aí foi através disso, através de uma história de amor, que eu entrei na rede. E eu tenho muito orgulho também de fazer parte dessa rede. Como jovem, como mulher”, conta.
Dete fala que a participação das mulheres na Rede Terra do Meio vem aumentando.“A mulher está no território, a mulher está na governança, a mulher está em todo o ciclo da Rede. As mulheres ajudam a fortalecer a Rede. E a Rede também apoia as mulheres com geração de renda e fortalecimento de suas culturas”, diz.
A coleta de sementes e a restauração de florestas emergem também como essenciais para promover a sustentabilidade e a conservação na Terra do Meio. O agricultor familiar e agroextrativista José Santiago da Silva, presidente da Associação Agroextrativista Sementes da Floresta (Aasflor), tem se dedicado à coleta de sementes de espécies como o babaçu, andiroba, castanha, cupuaçu e outras, com o objetivo de preservar a biodiversidade e fortalecer a recuperação de áreas degradadas.
“Não precisa a gente fazer a devastação da floresta para viver. Lá você tira alimentação, você tira a medicina, você tira os cuidados pessoais de beleza”, conta. Santiago diz que tem o dom de plantar florestas. E vem colhendo os frutos, com a produção de óleos e cosméticos.
Composta por 39 organizações locais, a Rede Terra do Meio conta com representantes de 10 territórios indígenas, três reservas extrativistas – Resex Xingu, Resex Riozinho do Anfrísio e Resex do Iriri - e uma organização de agricultura familiar, localizadas em uma área de aproximadamente 9 milhões de hectares de áreas protegidas na Amazônia.
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Rede Terra do Meio atua em uma área de 10 milhões de hectares de área protegida|Fellipe Abreu/ISA
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Encontro reuniu indígenas, ribeirinhos e agricultores familiares da Terra do Meio|Juliana Oliveira/ISA
Coordenadora-adjunta do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA), Fabíola Silva aponta que a Rede cresceu em diversidade de povos e parceiros, que agora incluem empresas, governos e bancos. “O foco não é só vender produtos, mas valorizar toda a história e o significado cultural por trás deles, o que tem sido fortalecido nessa edição da Semex”, disse.
Marina Aragão, que está à frente da área de Economia e Finanças para a Amazônia Brasileira na The Nature Conservancy (TNC), também trouxe observações sobre a maturidade da Rede. "A Rede Terra do Meio está madura, discutindo, além da comercialização, o protagonismo das comunidades e as políticas públicas. Na Semex estão reunidas associações, governos e setor privado para fortalecer essa governança compartilhada de indígenas, ribeirinhos e pequenos agricultores", considerou.
Da roça e da floresta para a escola
As trocas entre as comunidades e seus parceiros têm dado frutos concretos. Um dos exemplos é a participação da Rede Terra do Meio no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), desenvolvido com a Conab. Em 2023, a ação garantiu R$1,5 milhão em compras de alimentos saudáveis para escolas.
Assessora da Diretoria de Política Agrícola e Informação da Conab, Maria Cazé informa que a Rede Terra do Meio promoveu um PAA que é exemplo nacional. Foram, entregues 516 toneladas de alimentos, sendo de 82 tipos, dos quais 22 até então desconhecidos pela Conab, envolvendo pelo menos 107 famílias e 90 escolas, além de 9 povos indígenas e três reservas extrativistas.
Entre os alimentos estão frutas da região, como golosa e o cacauí, além de preparos tradicionais, como o mingau de macaxeira doce dos Assurini e o berarubu dos Kayapó e Xikrin, uma massa de mandioca recheada de peixe e assada em pedras quentes.
“Temos um resultado exitoso da execução do PAA, qualificando a alimentação escolar dos filhos dessa terra, dos filhos dessas florestas, dos filhos desses rios. Então, essa é hoje considerada uma das maiores referências de PAA no Brasil. É a que tem a diversidade de alimentos, diversidade de povos e que tem o maior número de unidades recebedoras. Isso mostra que é possível as políticas públicas chegarem e mudarem a vida das pessoas em seus territórios”, conclui Maria Cazé.
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Trajetória da Rede Terra do Meio foi retomada durante o encontro e apontou caminhos para o futuro|Fellipe Abreu/ISA
O impacto do PAA nas comunidades “foi uma maravilha”, nas palavras de Assis Porto. Os diálogos apontam que há potencial para a execução do projeto triplicar, elevando para 500 o número de famílias que fornecem alimentos.
“Isso impacta positivamente as comunidades. Toda alimentação que vai para as mesas das pessoas é tirada da floresta, levada para ser manipulada e beneficiada, e depois retorna para as comunidades. O PAA mudou isso, possibilitando que a comida orgânica seja retirada da floresta e entregue diretamente nas escolas. Então isso é um projeto muito fantástico”, diz.
O processo para ampliar o acesso dos povos e comunidades tradicionais às políticas públicas de aquisição de alimentos vem sendo impulsionado pela Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos (Catrapovos), por meio do Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) e parceiros.
Outro tema discutido durante a Semex foi o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), que prevê reconhecer e promover as atividades realizadas pelas comunidades que mantêm a floresta viva. Essas atividades, baseadas em seus sistemas de conhecimentos, promovem a manutenção e melhoria da preservação da biodiversidade, proteção da água e regulação climática.
A Rede Terra do Meio vem pilotando mecanismos de PSA com o setor privado desde 2014. As experiências em curso no território e sua capacidade de governança aproximaram o Governo do Estado do Pará, que apresentou a proposta de projeto-piloto conjuntos que viabilizem a estruturação da política estadual de PSA.
Assessora técnica da Secretaria Adjunta de Bioeconomia do Pará, Danyelle Couri, informou que será uma construção participativa para Pagamento por Serviço Ambiental em Territórios Coletivos. “Viemos à Semex participar num momento mais de escuta, sobre os anseios e os planejamentos da Rede, num movimento de construção participativa”, disse.
Francinaldo Lima, o Naldo, explica como os povos da Terra do Meio se conectam ao projeto. “A gente sabe da importância que é a manutenção dessa floresta, na regulação do clima, por exemplo, na manutenção da água, de toda a biodiversidade. Então é necessário que as organizações governamentais e o setor privado valorizem esse serviço que prestamos”, explica.
Diretora do Departamento de Políticas de Estímulo à Bioeconomia do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Bruna De Vita, informa que o pagamento de serviços ambientais é uma forma de aumentar a renda dessas famílias e valorizar as atividades produtivas mais conservativas do ambiente.
“As formas de vida dessas comunidades e, principalmente, as formas de produzir que mantêm a floresta em pé são muito relevantes para a manutenção dos chamados serviços ecossistêmicos, para manter água, a regulação do clima. E a gente tem a necessidade de saber valorizar isso, porque quando eles estão fazendo a roça, quando eles estão colhendo castanha, quando eles estão tirando a borracha, eles estão prestando serviço ambiental, estão protegendo o território e evitando que seja trocado por outras atividades degradantes”, considera.
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Participantes da Semex puderam acompanhar a feitura do cerâmica pelas mulheres Assurini|Ana Amélia Hamdan/ISA
Bruna De Vita já acompanha o território da Terra do Meio há bastante tempo e vê o fortalecimento da Rede. “A gente vê como a Rede vem sendo fortalecida ao longo do tempo. E representa cerca de 9 milhões de hectares de áreas protegidas, o que é muito importante para o Ministério do Meio Ambiente estar trabalhando de forma integrada com as unidades de conservação, com as terras indígenas, os assentamentos. São nesses territórios que a bioeconomia acontece. Então para nós é importante buscarmos formas de integrar as políticas públicas às demandas desses territórios”, disse.
A empresa Mercur, uma das principais parceiras da Rede Terra do Meio, vem executando um projeto de PSA, agregando preço à borracha nativa pelos serviços de proteção ambiental prestados pelos povos da floresta. Jovani Machado, representante da Mercur, esteve na Semex e falou dessa história da empresa - que completou 100 anos em 2024 - com as comunidades.
“O produto é uma consequência dos relacionamentos que fazemos aqui. O que nos faz pagar esse valor a mais por esse produto é entendermos que para manter a floresta em pé precisamos estar aqui apoiando esses povos”, disse. “Temos 15 anos de atuação junto às comunidades. E nós temos uma demanda que é borracha nativa. E posso dizer que a gente fica feliz em ver como o movimento está avançando, com as pessoas engajadas. E seria importante ter mais empresas para compor esse grupo”, completou.
Emergência climática
Se, por um lado, esses povos são os guardiões da floresta e sua economia preserva o ambiente, por outro são os que estão na linha de frente da emergência climática.
Em 2024/2025, sob o impacto da seca recorde na Amazônia, não houve safra da castanha, que é uma das principais fontes de renda do coletivo. Os efeitos também foram sentidos nos seringais - com queda na produção - e nas roças, com prejuízo a alimentos como mandioca, batata e cará.
“O sol de hoje não é mais o mesmo. As crianças não podem brincar como antes. As plantas estão sofrendo. Estamos perdendo variedades”, disse Ney Xipaya, liderança do seu povo e integrante da Rede Terra do Meio.
Ele chama a atenção para os impactos das mudanças climáticas no calendário agrícola tradicional, base da sociobioeconomia. E trouxe ainda a importância da Rede Terra do Meio para a valorização desses sistemas e proteção territorial. “Valorizar a cadeia produtiva da roça, que é o ensinamento do meu vô e da minha avó, traz todos os aspectos ancestrais de plantio, de respeito aos espíritos. E também valoriza a permanência do indígena dentro do território”, considera.
“Nosso sonho é que a rede se sustente sozinha, financeiramente. Mas também que ela mantenha a harmonia, a união e o respeito. Lá fora, a pressão é muito grande. Aqui, precisamos de força coletiva para resistir”, reflete.
Este ano, a COP 30 acontece em Belém, no Pará, e os povos da Rede Terra do Meio pretendem levar para a conferência seu exemplo de governança, sociobioeconomia e conservação.
Analista sênior em economia da sociobiodiversidade do ISA e membro da secretaria executiva da Rede Terra do Meio, Jeferson Straatmann diz que o coletivo deve levar à Conferência do Clima a potencialidade de uma articulação ampla de povos que trabalham a economia de uma forma diversa, baseada em sistemas de saberes ancestrais. “Uma conferência climática passa basicamente pelo que a Rede tem feito”, diz.
Ele explica que os povos da Terra do Meio vêm promovendo uma economia do envolvimento das pessoas, com promoção de direitos e de segurança territorial.
“Uma economia do envolvimento é uma economia que fortalece os laços entre os povos. A região da Terra do Meio é um arranjo de povos indígenas, comunidades tradicionais, ribeirinhos, beiradeiros e agricultores familiares. E que tem como objetivo primeiro agregar as pessoas em função dos seus sistemas agrícolas tradicionais, seus sistemas de conhecimento. Por meio da comercialização desses produtos, potencializa-se a continuidade desses saberes, de uma geração para outra, transformando florestas em florestas, promovendo a proteção da água, cuidado da biodiversidade e regulação climática”, diz.
A 10ª Semana do Extrativismo foi encerrada com danças e cantos tradicionais. A Rede Terra do Meio reuniu um grupo diverso de comunicadores indígenas, beiradeiros e agroextrativistas, da Rede Xingu+, da Aasflor e de associações locais que participaram ativamente das discussões e produziram um vídeo abordando a identidade do coletivo. A exibição aconteceu na noite do fechamento do encontro, tendo como cenário a Casa Sagrada dos Assurini.
Assista abaixo:
Os trabalhos continuam. É a partir da floresta, das sementes e dos saberes ancestrais que os povos da Terra do Meio seguem tecendo seu futuro, reafirmando a sustentabilidade como um modo de viver.
A Semana do Extrativismo foi realizada pela Rede Terra do Meio em parceria com o ISA, TNC, Sama, Origens Brasil e Vem do Xingu, tendo como apoiadores o Bezos Earth Fund, Fundo Amazônia, Fundo Vale e Rainforest - RFN.
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Pronaf financia pecuária na Amazônia e deixa sociobioeconomia à margem
Campanha do ÓSocioBio revela que, em 2024, a pecuária, um dos principais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa no Brasil, abocanhou 91,7% dos recursos do Pronaf, enquanto menos de 2% foram destinados às cadeias da sociobiodiversidade
Um levantamento do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), com base em dados do Banco Central, aponta que, em 2024, 91,7% do orçamento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) na Amazônia foi para a pecuária convencional. Apenas 8,3% foram destinados a atividades agrícolas, sendo que menos de 2% do orçamento do Pronaf na Amazônia em 2024 chegou às cadeias da sociobiodiversidade.
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Grupo Wai Wai, povo conhecido pelo manejo da castanha do Pará, passa por várias etapas até a comercialização. Na foto, a quebra do ouriço|Rogério Assis/ISA
Esse cenário vai na contramão das políticas ambientais e das metas climáticas brasileiras. Segundo dados de 2023 do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima, quando somadas às emissões por mudança no uso da terra – como desmatamento e queimadas –, as atividades agropecuárias respondem por 74% do total de emissões no Brasil. Dentro do setor agropecuário, a pecuária emitiu 503.531.709 toneladas de CO2e (GWP-AR5) em 2023, o que representa 80% das emissões do setor e 22% das emissões brutas nacionais.
Por outro lado, projeções do WRI Brasil mostram que atividades sustentáveis podem proteger até 25 hectares por unidade produtiva. Os dados da Conexsus demonstram que as Unidades Familiares de Produção da Agricultura Familiar, Povos e Comunidades Tradicionais possuem, em média, 30 hectares. Estima-se que cerca de 300.000 hectares possam ser protegidos com a expansão do crédito para a sociobioeconomia.
Uma das reivindicações da campanha é que o valor destinado à sociobioeconomia pelo Pronaf aumente para 5%, com o valor passando de R$194 milhões para R$470 milhões. O valor para a pecuária convencional reduziria de 91,5% para 86%, enquanto o destinado à agricultura diversa se manteria em 8,5%.
Campanha reivindica mudanças para incluir de forma mais justa os povos e comunidades tradicionais
A Campanha “Sociobioeconomia no Pronaf”, do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), propõe mudanças urgentes no Plano Safra 2025/2026 e no Manual de Crédito Rural (MCR) para adaptar o Pronaf às realidades dos povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares e negócios comunitários da sociobioeconomia.
Algumas das propostas prevêem eliminar entraves documentais, reconhecer juridicamente os modos de vida desses públicos e descentralizar a emissão do CAF, incluindo a permissão para que cooperativas e associações emitam o documento.
Também há previsão de soluções inovadoras para inclusão bancária — como aplicativos com funcionamento offline e validação por biometria ou vídeo para agricultores analfabetos —, fortalecendo a autonomia dos territórios e o acesso ao crédito em regiões historicamente excluídas.
Além disso, a campanha defende o protagonismo da restauração produtiva e das cadeias da sociobiodiversidade na estratégia de financiamento rural sustentável do país.
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Cubiu, alimento tradicional na região do Rio Negro|Fellipe Abreu/ISA
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Entre os produtos produzidos na Terra do Meio, está o babaçu|Rogério Assis/ISA
Para isso, propõe metas claras — como a destinação de R$ 10 bilhões do PRONAF para essas atividades e 20% das operações voltadas a sistemas não monocultivos —, além de incentivos econômicos para instituições financeiras e maior remuneração para assistência técnica e projetos voltados à agroecologia, energia renovável e SAFs.
As medidas consolidam a sociobioeconomia como eixo estruturante do desenvolvimento sustentável, promovendo justiça social, segurança climática e valorização dos territórios.
“Sem acesso adequado ao crédito, as cadeias da sociobiodiversidade ficam travadas. Essa campanha é fundamental para mostrar que financiar a sociobioeconomia é uma estratégia concreta à crise climática e às desigualdades nos territórios, que alia conservação e geração de renda com base nos ativos da floresta.”, conclui Laura Souza, secretária executiva do Observatório.
Entidades representativas do setor agropecuário, como o Sistema FAEP, a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores Familiares do Estado do Paraná (Fetaep), a Organização das Cooperativas do Estado do Paraná (Ocepar) e a Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento do Paraná (Seab), já encaminharam propostas ao governo federal.
Essas propostas incluem a solicitação de R$597 bilhões em crédito rural e R$4 bilhões para subvenção ao seguro rural para o próximo Plano Safra.
Em março, o Observatório enviou uma nota técnica ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) apresentando propostas para adaptar as políticas de crédito rural à realidade das comunidades tradicionais, extrativistas e agricultores familiares, promovendo o acesso ao crédito para sistemas produtivos sustentáveis, especialmente nos biomas como a Amazônia.
“Precisamos de regras de acesso ao Pronaf que sejam mais adequadas ao público, de fato, em especial o Pronaf B, de entrada. Discutir a dinâmica de uso da terra, considerando territórios coletivos, as famílias da agricultura familiar e povos e comunidades tradicionais, em relação à política pública de crédito rural é fundamental. As pessoas precisam acessar e promover um novo modelo de desenvolvimento econômico para a Amazônia e o Brasil.”, reforça Fabíola Zerbini, diretora executiva da Conexsus.
Integram o ÓSocioBio as seguintes organizações: Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Conexões Sustentáveis – Conexsus, Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Rede Cerrado Coletivo da Castanha, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Federações dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGs), Central Única dos Trabalhadores (CUT), universidades e centros de pesquisa, Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), Conselhos Estaduais de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, Entidades representativas de povos e comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
O garimpo está desacelerando na Amazônia?
Com o fim da presunção de “boa-fé” na compra de ouro e mais controle sobre a cadeia produtiva, atividade garimpeira dá sinais de retração
Há poucas semanas, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu extinguir de vez a famigerada “regra da boa-fé” na comercialização de ouro de garimpos, regramento que, na prática, isentava as empresas compradoras de ouro de qualquer responsabilidade sobre a origem do produto que estavam adquirindo. Isto é, manchado de sangue ou não, bastava a palavra do vendedor sobre a suposta localização da extração para, automaticamente, inserir o ouro no mercado formal.
Os efeitos da inconstitucionalidade da regra da boa-fé, porém, já vêm sendo sentidos desde agosto de 2023, quando passou a valer a decisão do ministro Gilmar Mendes que suspendeu a validade do parágrafo 4º do artigo 39 da Lei 12.844/2013. Um levantamento da colaboração internacional Opacidade Dourada indicou queda de 73%na produção declarada de ouro no Brasil, entre maio de 2023 e maio de 2024.
Além do fim da “presunção da boa-fé”, outros avanços regulatórios também foram fundamentais para impulsionar a queda. Entre elas, a adoção da nota fiscal eletrônica para registros de operações pelas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM) e o aumento das exigências por parte do Banco Central em relação aos relatórios financeiros das mesmas.
Mas diante dos dados que indicam a redução da produção de ouro declarada, restava saber ainda se este recuo também poderia ser verificado em outros indicadores, como, por exemplo, no desmatamento associado ao garimpo. Pois uma das hipóteses consideradas era a de que a produção pudesse ter continuado a todo vapor (de mercúrio) e o que estivesse decrescendo fosse apenas a quantidade de ouro de garimpo circulando pelas vias legais.
Recentemente, a plataforma Amazon Mining Watch lançou novos dados sobre a situação do garimpo na Amazônia. O projeto utiliza aprendizado de máquina - quando um sistema “aprende” a reconhecer padrões a partir de exemplos - para identificar automaticamente as áreas impactadas e, por isso, consegue apresentar um quadro amplo do fenômeno, em escala regional, algo difícil de encontrar em outras iniciativas.
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Gráfico elaborado pelo autor com dados da Amazon Mining Watch
De acordo com o AMW, em 2024, a área total afetada pelo garimpo atingiu um acumulado de 2,02 milhões de hectares, o que inclui áreas novas e áreas identificadas nos anos anteriores, mas com algum grau de regeneração. O incremento anual de 2024, contudo, foi de 111.603 hectares, o que significa uma redução de 35% em relação ao ano anterior (2023) e de 45% em comparação com o ano recorde, em 2022.
Ainda de acordo com o AMW, essa redução foi bastante influenciada pela queda nas taxas brasileiras, que representam quase 50% do total impactado, mas não só. A desaceleração, por sua vez, foi ainda mais expressiva nos garimpos localizados em áreas protegidas. Nos três territórios indígenas mais impactados pelo garimpo - TI Kayapó, TI Yanomami e TI Munduruku - houve uma queda significativa no aumento de novas áreas para a exploração mineral. Em 2024, a Terra Indígena Yanomami registrou o menor nível de atividade desde 2018 (ano base da plataforma).
Num tema como este, em que as notícias costumam ser sempre desalentadoras, os dados do AMW parecem trazer algum ânimo e isso é algo que merece ser compartilhado com todos que de alguma maneira se preocupam com o futuro da Amazônia e de seus povos.
Sem dúvidas, a retomada da fiscalização ambiental no Brasil é um ponto que também merece destaque e os devidos créditos, além das reformas administrativas na cadeia do ouro. O esforço dos órgãos de comando e controle, como mostram os números, não têm sido em vão. Ademais, algumas inovações nas estruturas de combate ao crime, como a centralização das ações de fiscalização - visando o estrangulamento logístico do garimpo ilegal -, é algo que deve ser notado, pensando nas lições aprendidas que os últimos dois anos têm gerado no enfrentamento do problema.
O trabalho de articulação promovido pela casa de governo para enfrentar o garimpo na TI Yanomami, por exemplo, traz diversos elementos importantes para a reflexão sobre o combate de crimes ambientais na Amazônia. Boa parte das operações concentra-se no entorno do território, envolvendo as agências reguladoras na fiscalização de aeródromos clandestinos, postos de combustível e demais estruturas de apoio logístico. Ao mesmo tempo, a colaboração com as organizações indígenas para a produção de inteligência territorial no monitoramento da situação é fundamental para garantir uma resposta rápida diante de novos focos.
O garimpo ilegal, porém, é uma atividade bastante resiliente e possivelmente está buscando novas formas para seguir atuando. O momento, portanto, é de manter a pressão e não aliviar. Muitos outros ajustes ainda precisam ser feitos na legislação e nas normas infralegais para seguir aprimorando a transparência da cadeia do ouro, especialmente na Agência Nacional de Mineração (ANM), órgãos especialmente frágil e leniente no controle da exploração garimpeira.
É preciso seguir vigilante também para entender o que está de fato acontecendo no contexto regional, pois com o caos econômico gerado pela guerra de tarifas de Donald Trump, a tendência é de que o preço do ouro exploda nos próximos anos, e que isso promova uma nova onda de reterritorialização do garimpo, algo que só aparecerá nos dados dos satélites anos depois.
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“Vozes do Clima”: Mulheres analisam desafios da COP 30 e apontam caminhos para enfrentar emergência climática
No mês que marca a luta das mulheres, o primeiro episódio da segunda temporada do boletim de áudio produzido pelo ISA ouve ativistas da sociedade civil e lideranças indígenas, quilombolas e extrativistas
Na esteira das celebrações do 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, o Instituto Socioambiental (ISA) lança nesta sexta-feira (28/03) a segunda temporada do “Vozes do Clima”, boletim de áudio que propõe levar informações a povos e comunidades tradicionais sobre os temas relacionados à pauta climática. O primeiro episódio de 2025 fecha as ações deste mês, trazendo o olhar de lideranças mulheres sobre a COP30 (Conferência das Nações sobre Mudanças do Clima), que será realizada em novembro, em Belém (PA).
Guardiãs da cidade, do campo, das florestas e das águas, elas estão na linha de frente de ações concretas de enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas e, por isso, têm muito a dizer sobre o que esperam da COP30. Além disso, podem apontar quais alternativas o Brasil deve adotar para garantir o respeito aos modos de vida de povos e comunidades tradicionais e das populações mais vulneráveis das periferias e favelas das cidades.
Neste episódio, o “Vozes do Clima” ouviu Letícia Moraes, vice-presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS); Cristiane Julião, indígena do povo Pankararu e uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga); Fran Paula, quilombola que integra o Grupo de Trabalho de Meio Ambiente e Agricultura da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq); Amanda Costa, ativista climática e fundadora do Instituto Perifa Sustentável; Suely Araujo, Coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima; e Adriana Ramos, secretária-executiva do ISA. Todas trouxeram em suas falas a necessidade de a COP30 reconhecer as demandas de povos e comunidades tradicionais e, assim, apontar ações efetivas que apoiem as populações mais afetadas, sobretudo as mulheres.
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“Nosso endereço é a luta”
“Espaços como as COPs são espaços que ainda não têm tanta inserção, ou é mínima a participação efetiva dos povos e comunidades tradicionais que possam levar as demandas, apresentar as soluções que nós já vivenciamos em nossos territórios. E falando especificamente da demanda das mulheres extrativistas para a COP 30, com certeza nós levaremos, com muita ênfase, a necessidade que é defender e fortalecer os nossos territórios como uma estratégia essencial para a proteção da vida no planeta”, destaca Letícia Moraes, vice-presidente do CNS.
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Letícia Moraes, vice-presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) é uma das convidadas do novo episódio|Comunicação CNS
A liderança extrativista, que vem da comunidade Nossa Senhora da Boa Esperança, localizada em Curralinho, na região do Marajó, no Pará, trouxe para o episódio uma poesia de sua autoria, destacando quem está na luta cotidiana pela proteção territorial e do clima.
“Quem somos? Somos homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e anciões. Nós somos os filhos e as filhas da mata. Mãe seringueira, mãe castanheira, somos sangue amazônico, açaí. Bacaba, patao e miridi. Somos corpo de mandioca, farinha de tapioca, de crueira, fruto da terra, das mãos que planta, cultiva e rega. Nós somos o território.
Por muito tempo fomos os outros e a luta nos garantiu espaço na Constituição. Por isso, também somos milhões e milhares. Reservas extrativistas, projetos de assentamento extrativistas, projetos de desenvolvimento sustentável. Flonas, frotas. Nós somos o território extrativista. Semente da resistência, netos da ancestralidade cabocla. Nós somos as vozes que ecoam. Nós somos os e as extrativistas.
Somos milhões de milhares que o nosso endereço é a luta”.
Embora estejam diretamente ligadas às ações de enfrentamento à crise climática, são as mulheres as mais afetadas por ela.
Segundo o relatório Justiça Climática Feminista: um Quadro para Ação, elaborado pela ONU Mulheres em 2023, caso o cenário de aumento de três graus na temperatura do planeta se concretize, mais de 158 milhões de mulheres e meninas serão levadas à pobreza até 2050 – 16 milhões a mais do que o número esperado para homens e meninos no mesmo cenário. Além disso, 236 milhões de mulheres e meninas poderão sofrer com a insegurança alimentar – 131 milhões a mais do que o número esperado entre homens e meninos.
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Fran Paula, do GT de Meio ambiente, da Conaq, abordou a questão da interseccionalidade para alcançar a justiça na questão climática|Arquivo pessoal
A quilombola Fran Paula espera que a COP30 também considere essa interseccionalidade e avance na promoção da justiça racial.“São protagonistas dos processos de soberania dos territórios. Seja na defesa desses territórios, na sua gestão ambiental, dos seus bens naturais, das águas, das florestas, mas também como no manejo. Somos nós mulheres que manejamos a terra, as florestas. Fazemos da agricultura um espaço também ancestral de guardião de práticas tradicionais e ecológicas, que conservam o solo, que conserva o meio ambiente, que promove a saúde e a vida”.
Cristiane Julião também espera que as mulheres indígenas sejam efetivamente ouvidas, nesse momento em que o Brasil e o mundo param para debater os diversos problemas ambientais, econômicos e sociais em decorrência da crise climática.
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Cristiane Julião, uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) também contribuiu|Glória Dias
“Eu acredito muito que nós, mulheres, devemos chegar nessa Conferência, para quem for e para quem fica também, com a força e a coragem da mulher indígena, sobre a forma como nós mantemos os nossos territórios, mantemos as nossas articulações, mantemos a nossa força de vontade e como nós acreditamos o que seja bem viver. Bem viver para todos, na manutenção da sociobiodiversidade, no compartilhar de ecossistemas, porque quem tá de fora sempre acha que sabe o que é melhor para nós sem nos ouvir”, enfatiza.
Valorizar conhecimentos ancestral e antirracista dos territórios
Na avaliação das lideranças ouvidas pelo “Vozes do Clima”, fortalecer os territórios envolve lutar por políticas públicas que garantam a autonomia dos grupos que neles vivem, acesso a serviços essenciais e segurança fundiária. Essas medidas são fundamentais para que povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais e populações que vivem nas periferias e favelas das cidades desenvolvam ações de enfrentamento aos impactos da emergência climática e que possibilitem seguir com seus modos de vida que geram conservação.
Pensando nesses desafios, Amanda Costa, ativista climática e fundadora do Instituto Perifa Sustentável, afirma que a COP 30 precisa fazer a conexão entre o debate internacional, global e o que acontece nos territórios.
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Amanda Costa, fundadora do Instituto Perifa Sustentável, compartilhou sua experiência em negociações climáticas, como a COP|Ivan Pacheco
“É importantíssimo valorizar o conhecimento tradicional, ancestral, antirracista e decolonial, trazendo soluções para esses territórios, mas também fortalecendo as comunidades que muito tempo vêm resistindo e vêm desenvolvendo suas próprias soluções, seus próprios caminhos, suas próprias próprias possibilidades, mas que muitas vezes não conseguem recursos, não conseguem conexões, não conseguem oportunidades para aumentar o impacto das suas ações e ampliar o projeto de transformação política que já está sendo desenvolvido nos seus territórios”.
O que é o “Vozes do Clima”?
O boletim de áudio “Vozes do Clima” é uma realização do ISA, com produção da produtora de podcasts Bamm Mídia e apoio da Environmental Defense Fund (EDF). A identidade visual foi concebida pelas designers e ilustradoras indígenas Kath Matos e Wanessa Ribeiro. Além de ser distribuído via Whatsapp e Telegram, o programa também poderá ser ouvido nas plataformas de áudio Spotify, iHeartRadio, Amazon Music, Podcast Addict, Castbox e Deezer.
O primeiro episódio de 2025 abre a segunda temporada do “Vozes do Clima”, que contará com um total de 12 edições e abordará os diversos debates sobre clima e socioambientalismo.
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Funai assina portaria para proteção dos indígenas isolados do povo Mashco
Após dez anos de espera, Restrição de Uso foi assinada a partir de determinação do Supremo Tribunal Federal (STF)
Visando a proteção integral do povo isolado conhecido como Mashco, no dia 18/01, a presidente substituta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Mislene Metchacuna Martins Mendes, assinou a portaria que restringe o acesso à Terra Indígena Mashco do Rio Chandless, localizada entre os municípios de Manoel Urbano, Santa Rosa do Purus e Sena Madureira, no Acre.
A TI teve sua portaria de Restrição de Uso publicada graças à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) para que a Funai adote todas as medidas necessárias para a proteção dos territórios com presença de povos indígenas isolados e de recente contato, no âmbito da ADPF 991. A corte também decidiu que a renovação das portarias deve ser garantida antes do término do período de vigência, até que elas sejam definitivamente demarcadas ou que a presença de indígenas isolados seja descartada.
Agora, a entrada na área de 538 mil hectares só poderá ser feita a partir de autorização com validade limitada emitida pela Coordenação-Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC/Funai). Além disso, a portaria também proíbe a exploração de recursos naturais na área.
“A medida está dentro das determinações da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 991 que estabelece que se tem povos indígenas isolados, deve também existir uma ação de proteção específica. No caso dessa Terra Indígena, esse é um registro de isolados que já foi confirmado há bastante tempo e está sobreposta a uma área de proteção integral que é o Parque Estadual Chandless”, explica Tiago Moreira, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA).
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Imagem do Parque Estadual Chandless, que se sobrepõe à Terra Indígena Mashco do Rio Chandless, no Acre|Odair Leal/Secom AC
Para a indigenista e sócio-fundadora do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) Maria Emília Coelho, que já relatou a situação de povos isolados em duas edições da coletânea Povos Indígenas no Brasil, do ISA, “é importante agora que exista uma articulação entre os órgãos governamentais para que esse trabalho de proteção seja feito com efetividade”.
Ela também explica que apesar do hiato de dez anos entre a confirmação oficial da presença na região e da publicação da portaria de Restrição de Uso, existem relatos sobre o povo Mashco em território brasileiro desde os anos 1970.
Foi só nos anos 1970 que a Funai se estabeleceu na região. Na época, ainda sob o regime ditatorial, não existiam as políticas de proteção aos povos isolados que estão em vigor atualmente. Por exemplo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada pelo Brasil e que garante o direito à autodeterminação dos povos indígenas, entrou em vigor no Brasil apenas em 2003.
Assim, mesmo com a presença do órgão indigenista no território, a confirmação oficial da presença dos isolados Mashco veio apenas em 2015, após uma expedição da Funai e da Secretaria do Meio Ambiente do Acre (Sema-AC) no Parque Estadual Chandless.
Para a Funai, existem três tipos de registros de povos indígenas isolados: os “em informação”, quando são relatadas a possível existência de um povo isolado; “em estudo”, quando são reunidos conjunto de dados ou relatos sobre a existência de um povo isolado; e “confirmado”, quando, por meio de trabalhos de localização como o que foi feito na expedição, são identificados os territórios habitados por um povo isolado. A partir da confirmação, são necessárias medidas efetivas de proteção, como é o caso da Portaria de Restrição de Uso.
“A restrição de uso é um instrumento frágil que depende apenas de uma assinatura de um presidente da Funai. Se muda a conjuntura política e a presidência da Funai, essa proteção pode cair. Por isso é importante que os estudos de identificação e de localização sejam concluídos para que essa Terra Indígena seja declarada e que se reconheça essa área que deve ser demarcada”, defende Maria Emília Coelho
Os Mashco são um povo transfronteiriço que se desloca entre o Brasil e o Peru, com maior presença no lado peruano da fronteira – ainda que existam relatos de cada vez mais frequentes em território brasileiro em razão de ameaças e pressões como exploração madeireira e o avanço do narcotráfico no país vizinho. O território mashco se estende pelas divisas dos rios Juruá, Madre de Dios/Madeira, Purus e Ucayali e possui áreas de proteção em ambos os lados da fronteira. Falantes de uma língua da família Arawak, os Mashco são conhecidos pelas suas habilidades de caça.
O povo isolado Mashco no Brasil e os desafios de uma proteção integrada na fronteira com o Peru
Maria Emília Coelho, sócio-fundadora do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) e presidente do conselho diretor da Comissão Pró-Indígenas do Acre
Na Amazônia ocidental, entre os limites de Brasil e Peru, estão os indígenas Mashco ou Mashco-Piro, como foram sendo denominados ao longo do processo de colonização desta região de fronteiras, séculos atrás. Hoje, a literatura os considera um povo em “isolamento voluntário”, caracterizado por se organizar em diferentes grupos e subgrupos que se deslocam sazonalmente em um extenso território de floresta. No inverno amazônico, ocupam as zonas altas e terras firmes das cabeceiras. No verão seco, descem às margens dos igarapés e os cursos dos rios, deslocando-se entre os limites internacionais (Clark; Michael; Beier, 2005; Huertas, 2015).
Reconhecidos como exímios caçadores, falam uma língua da família linguística arawak, muito próximo à língua do povo Yine, no Peru, como dos seus parentes Manchineri, no Brasil. Sobreviventes das correrias praticadas contra indígenas no auge do caucho e da seringa, na virada dos séculos XIX e XX, refugiaram-se nas áreas de difícil acesso da floresta, onde não havia borracha. Antropólogos acreditam que, no caminho ao “isolamento”, aspectos da sua vida social sofreram drásticas transformações, como o abandono da agricultura e a atividade de caça e coleta como estratégia de sobrevivência (Gow, 2011; Huertas, 2002; Shepard, 1996; 2017). Atualmente, o território mashco está situado no divisor de águas dos grandes rios Juruá, Madre de Dios/Madeira, Purus e Ucayali, em uma região composta por diferentes categorias de Áreas Protegidas, que constituem um importante mosaico para a conservação ambiental e um corredor de territórios indígenas onde habitam diversos povos isolados. Sua maior parte está em solo peruano, abarcando diversos rios e igarapés em uma extensa área.
No Brasil, existem registros da presença dos Mashco nos altos rios Acre, Iaco, Chandless, Envira e Purus, próximo aos limites da fronteira. Diferentes grupos e subgrupos mashco, vindos do Peru, entram em território acreano pelos rios binacionais Iaco (TI Mamoadate), Acre (Estaçã o Ecológica Rio Acre), Chandless (Parque Estadual Chandless) e Envira (TI Kampa e Isolados do Rio Envira). No lado brasileiro, seus deslocamentos costumam acontecer no verão amazônico, quando descem igarapés e rios para a coleta de produtos da floresta (Aquino; Meirelles, 2014).
Movimentação no Brasil
Os primeiros relatos sobre a existência dessas populações isoladas começaram a ser registrados de forma sistemática no Brasil a partir da chegada da Funai no alto rio Iaco e da instalação do Posto Indígena Mamoadate e da aldeia Extrema, entre 1975 e 1976, assentando indígenas Manchineri e Jaminawa. Na época, o sertanista José Carlos dos Reis Meirelles observou que esses isolados eram chamados de Masko pelos Jaminawa, seus “inimigos tradicionais” e com uma relação de conflito perpetuada por décadas. Os processos de contato dos Jaminawa e Manchineri com os não-indigenas foram empurrando os Mashco para regiões menos habitadas, para as cabeceiras dos rios Iaco, Envira, Chandless e Purus.
José Correia da Silva Tunumã, grande cacique jaminawa e primeiro intérprete no contato com o “povo do Xinane”, em 2014, afirma que esses indígenas já conheciam a palavra Masko quando eram “isolados”, para se referirem ao grupo sem contato que anda pelas cabeceiras do rio Envira:
“A gente chama Masko. Mashco-Piro é no Peru. Eu não sei como inventaram isso, mas desde que me conheço por gente é Masko. Quando fui lá, nem puxei assunto e eles falaram para mim ter cuidado se não os Masko matavam nós. Eles já tinham essa noção desde a primeira vez que falei com eles”.
As possíveis rotas, antigas e atuais, utilizadas pelos Mashco são parte do imaginário coletivo das comunidades jaminawa e manchineri do Alto Iaco, pois seus moradores compartilham territórios e recursos naturais com esses grupos há muito tempo. Hoje, os mais velhos da TI Mamoadate contam que, segundo seus pais e avós, os Mashco andavam até a região onde é a aldeia Extrema.
Otávio Brasil Manchineri, antigo cacique da Extrema, e seu filho, Lucas Artur Brasil Manchineri, proeminente liderança, acreditam na existência de dois grupos distintos que andam em diferentes rotas no Alto Iaco, na fronteira com o Peru. Para Lucas, o que caracteriza a diferença entre os grupos é o tamanho do rastro de seus indivíduos:
“Eles vão no encontro daquelas cabeceiras todas. E ali tem dois grupos, um do rastro grande e um do rastro pequeno. O ano que o rastro pequeno passa, o rastrão não passa. E o ano que o rastrão passa, o do rastro pequeno não passa. Tem essa diferença e alternância. Acho que eles já sabem quando os do pé grande passam, aí não vão. Às vezes, eles já têm até alguma ligação, e aí não se encontram”.
Otávio e Lucas afirmam que existem grupos que se diferenciam também por usarem, ou não, instrumentos de ferro e metal. “O grupo que anda no Chandless usa terçado, já o grupo que anda no alto Iaco é outro, e não usa”. Eles acreditam que Yine, Manchineri e Mashco falam a mesma língua, porque são parte de um mesmo povo. Lucas sugere que os Manchineri deveriam colocar seus intérpretes em uma possível situação de contato no Brasil e afirma que eles estão se aproximando das aldeias em suas andanças e reocupando antigos territórios. Nos últimos dois anos, os moradores de Extrema encontraram seus vestígios a poucos quilômetros da comunidade.
Intensificação das evidências
Nos últimos anos, os vestígios e aparições dos Mashcos se intensificaram nas áreas hoje constituídas pelas TIs Mamoadate e Kampa e Isolados do Rio Envira. Entre 2015 e 2016, foram registradas três situações de conflitos no alto Envira envolvendo os Mashcos e o “povo do Xinane”, resultando na morte de um indígena de recente contato.
Nos altos rios Acre, Chandless e Iaco, não existe uma situação de contato iminente, mas uma série de evidências que apontam novas formas de uso e deslocamento e/ou processo de reocupação territorial. Em 2014, um acampamento mashco foi encontrado pela primeira vez pelas equipes do ICMBio e da Funai em uma área bem próxima à Base da Estação Ecológica Rio Acre.
Em 2015, uma expedição conjunta entre Funai e Secretaria do Meio Ambiente do Acre (Sema-AC) confirmou a presença dos Mashcos no Parque Estadual Chandless, atendendo a uma demanda antiga do órgão indigenista federal para a qualificação da informação na área protegida sob gestão do Governo do Estado do Acre.
Em 2017, entre junho e setembro, diferentes expedições da Funai identificaram a sua presença pelos altos rios Acre, Iaco e Chandless. Durante uma viagem ao alto Acre, a Frente de Proteção Etnoambiental Envira registrou vestígios na TI Cabeceira do Rio Acre, mais abaixo do seu curso, ultrapassando os limites da Estação Ecológica Rio Acre. Foram registrados, ainda, relatos sobre avistamentos incomuns de isolados, com fortes indícios de serem Mashcos, na TI Alto Purus. Em 2018, novos vestígios foram registrados nos altos rios Iaco e Purus.
Nos últimos anos, a Funai vem constatando que os Mashcos estão ocupando cada vez mais o território brasileiro. A população local e os técnicos do governo têm essa percepção, sobretudo após a constatação do grande número de evidências registradas em 2017. Outra mudança identificada foi o aumento na frequência das suas aparições durante o inverno amazônico, meses em que, tradicionalmente, ocupam as terras altas das cabeceiras. As comunidades vizinhas também observaram o interesse dos Mashcos em adquirirem instrumentos de metal e alimentos cultivados, o que não aconteceu em décadas passadas.
“UNASÓ!” NA BASE DO XINANE.
Em 1999, apareceu um grupo com cerca de 50 homens Mashco na praia em frente à Base do Xinane da Funai. Este acontecimento confirmou a presença de isolados Mashco no alto Envira, além de ter levantado questões sobre suas dinâmicas territoriais em um contexto de intensa exploração ilegal madeireira no lado peruano da fronteira. O incidente aconteceu no dia 26 de outubro e provocou a imediata evacuação da Base por parte da equipe que foi para a aldeia Sete Voltas do povo Ashaninka. Dias após o ocorrido, a partir dos vestígios, constatou-se que era um grupo bem maior, com aproximadamente 200 pessoas, entre homens, mulheres e crianças.
Possíveis motivações para as mudanças
Possivelmente, essas alterações em suas rotas e períodos de deslocamento sejam motivadas pela busca de espaços mais seguros e em decorrência de conflitos com populações indígenas, ou não, com quem compartilham seus territórios.
Gestão compartilhada
A confirmação de grupos isolados em duas Unidades de Conservação do Acre (Estação Ecológica Rio Acre e Parque Estadual Chandless) amplia o debate sobre as estratégias de proteção territorial Mashco, exigindo a construção de processos de gestão compartilhada entre instituições governamentais federais e estaduais que monitoram as áreas de uso e ocupação dos isolados.
No alto Chandless, existem relatos de sua presença desde o início do século XX. Hoje, seus moradores mais antigos, descendentes de peruanos que ocuparam a região na época do caucho, contam histórias sobre encontros e lugares onde costumavam localizar seus vestígios. Também afirmam que os Mashco estão descendo cada vez mais e reocupando territórios que não frequentavam há mais de 20 anos.
Em setembro de 2006, foi criado o Parque Estadual Chandless (PEC). No seu Plano de Manejo, publicado em 2010, está a recomendação de “uma assessoria antropológica para o acompanhamento das atividades propostas e implementadas, garantindo a efetiva proteção dos territórios e dos recursos naturais utilizados tradicionalmente na área do Parque pelos grupos de índios isolados” (Acre, 2010).
Durante o planejamento do PEC, a área sul foi cogitada como “Zona Intangível”, para garantir o usufruto exclusivo e a proteção territorial dos isolados. Entretanto, em decorrência da falta de informações qualificadas, a mesma foi estabelecida como “Zona Primitiva”: “aquela onde ocorre pequena intervenção humana, com espécies de fauna e flora e fenômenos naturais de grande valor científico” (Acre, 2010). No Plano de Manejo, está indicado, ainda, que, após a comprovação da presença de isolados na área, o zoneamento do PEC deverá ser revisto, sendo indicada, em substituição da Zona Primitiva, a readequação da área para “Zona Intangível” (Acre, 2010).
Em 2014, a Funai e a Sema-AC elaboraram um projeto, amparados por um Acordo de Cooperação Técnica, para a criação e execução de um projeto para o Programa Áreas Protegidas da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente. Entre as justificativas, estava a lacuna de informações sobre as formas de uso e ocupação dos Mashco na área, que dificultam o estabelecimento de diretrizes e estratégias para a sua proteção. As ações do projeto, que teve dois anos de duração, visavam estreitar a relação entre as duas instituições governamentais, os indígenas que residem no entorno (TIs Mamoadate e Alto Purus) e os moradores do PEC (2 famílias ribeirinhas), para minimizar conflitos relacionados ao uso dos recursos naturais e qualificar as informações em áreas com referências de deslocamento de grupos isolados.
Em 2015, foram realizadas oficinas com os moradores das duas TIs e da UC para investir e validar acordos de convivência entre indígenas, populações tradicionais e órgãos do governo. A parceria possibilitou experimentos no monitoramento da presença de isolados a partir da análise de focos de calor, imagens de satélite e informações prévias sobre os territórios de deslocamentos dos Mashco na fronteira Brasil-Peru. Observou-se a frequência, ou a reincidência, a partir de 2010, em algumas regiões do PEC. A primeira expedição de localização da Funai na área também aconteceu em 2015, resultando na confirmação da presença de isolados.
Em agosto de 2017, uma nova expedição da Funai e da Sema-AC, proposta no âmbito do projeto “Proteção e Monitoramento de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato na Amazônia Brasileira”, da cooperação técnica entre CIT e Funai, foi realizada para qualificar informações de vestígios em um acampamento recente dos Mashco encontrado por um morador do Parque.
Assim, o fortalecimento de parcerias, acordos e entendimentos entre moradores do PEC, populações indígenas do entorno e instituições do governo federal e estadual é fundamental para o monitoramento da presença dos grupos isolados no PEC. Com suas dinâmicas próprias de uso e ocupação territorial, que ultrapassam fronteiras institucionais e nacionais, o modo de vida dos Mashco exige cada vez mais estratégias e ações integradas para a proteção dos seus direitos fundamentais.
Políticas transfronteiriças
Nas últimas duas décadas, comunidades e organizações indígenas brasileiras e peruanas vêm debatendo problemas e desafios comuns e pensando em conjunto a gestão e a proteção dos seus territórios. Em espaços de diálogo com a sociedade civil e órgãos governamentais, têm discutido sobre os impactos dos projetos de infraestrutura e das atividades extrativistas e ilícitas, bem como a necessidade de estratégias transfronteiriças que assegurem a integridade dos povos que desconhecem os limites nacionais.
Desde 2005, os Manchineri do Brasil e os Yine do Peru, povos vizinhos aos Mashco, estão intercambiando informações e construindo uma política de aliança para a proteção dos seus “parentes” isolados. Essa iniciativa é apoiada por organizações não governamentais de ambos os países. Para diminuir a pressão sobre o uso dos recursos naturais na área utilizada pelos Mashco, os moradores das aldeias da TI Mamoadate estabeleceram um acordo para que ninguém ultrapasse o igarapé Abismo, no alto Iaco, em território brasileiro.
As lideranças Manchineri e Yine também alertam aos governos sobre os possíveis impactos de um projeto de estrada que pretende conectar os municípios peruanos Iñapari e Puerto Esperanza, a dez quilômetros da fronteira com o Brasil, cortando ao meio o território Mashco. Discutem, ainda, sobre a importância do diálogo entre os dois países para a fiscalização das atividades ilícitas na fronteira, como o crescente narcotráfico.
Com base em 2014, os governos brasileiro e peruano assinaram um memorando de entendimento para a cooperação entre Funai e Ministério de Cultura do Peru, visando a promoção de atividades para a proteção dos povos isolados e de recente contato na fronteira Brasil-Peru. O acordo teve validade de dois anos e foi um primeiro passo para o diálogo entre as duas instituições indigenistas. Porém, sua efetivação dependia de um plano de trabalho conjunto, que não foi realizado. Uma série de situações de contato com grupos isolados em ambos os países exigiu ações emergenciais dos governos. As equipes reduzidas dos dois países, focadas em aplicar seus próprios planos de contingência, não encontraram as condições ideais para uma agenda integrada.
Assim, a cooperação entre Brasil e Peru – tanto para coibir atividades ilegais, quanto para reconhecer o papel das populações indígenas e tradicionais e suas organizações representativas na construção de políticas de proteção – é hoje fundamental para a garantia dos direitos dos povos isolados e de recente contato na Amazônia. A sobrevivência dos Mashco depende de políticas transfronteiriças construídas com a participação dos diferentes atores que trabalham em defesa dos seus territórios e modo de vida.
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Terras Indígenas na Amazônia e no Cerrado protegem uma área de vegetação nativa maior que o estado de Mato Grosso
Apesar de múltiplas pressões e ameaças, TIs seguem sendo as maiores barreiras contra o desmatamento, protegendo mais de 100 milhões de hectares
Imagem de sobrevoo pela TI Cachoeira Seca e pelo Rio Iriri|Rogério Assis/ISA
No Cerrado e na Amazônia, as Terras Indígenas seguem sendo as maiores barreiras contra o desmatamento.
Na Amazônia, as Terras Indígenas são responsáveis pela preservação de mais de 97,4 milhões de hectares, ou 137,2 milhões de campos de futebol. Já no Cerrado, as TIs protegem cerca 8,3 milhões de hectares, ou o equivalente a 11,7 milhões de campos de futebol. Juntas, as TIs nos dois biomas – Amazônia e Cerrado – são responsáveis por proteger uma área equivalente a 12,4% do território nacional, maior que a de Mato Grosso, que possui pouco mais de 90 milhões de hectares.
É o que conclui o relatório Desmatamento em Terras Indígenas na Amazônia e Cerrado - Prodes 2024, lançado nesta terça-feira (21/01) pelo Instituto Socioambiental (ISA). A partir dos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) por meio do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), o relatório apresenta uma análise e os principais destaques do desmatamento em Terras Indígenas nos biomas Amazônia e Cerrado no período entre agosto de 2023 a julho de 2024.
O documento destaca o importante papel do processo demarcatório na proteção da sociobiodiversidade. No Cerrado, Terras Indígenas com processo de demarcação não concluído estão entre os territórios mais vulneráveis. À exemplo disso, as duas TIs mais desmatadas – Porquinhos dos Canela-Apãnjekra (MA) e Wedezé (MT) – ainda não possuem seu processo demarcatório concluído e esperam 24 anos para verem a assinatura da portaria homologatória.
Apesar da pressão que o Cerrado tem sofrido, as Terras Indígenas seguem sendo uma importante proteção para o bioma: apenas 5,89% da vegetação original das Terras Indígenas foram desmatadas, ao passo que a área fora de Terras Indígenas perdeu 54,4% de sua vegetação.
“Nós temos observado, para o contexto geral, que o avanço do processo demarcatório é fundamental para promoção da integridade ambiental das Terras Indígenas. Contudo, a delimitação pela Funai e a declaração dos limites pelo Ministro da Justiça, são incapazes por si só de frear a ação de ocupantes ilegais nos territórios, fato que só pode ser controlado com a homologação plena da área pelo Presidente da República”, afirma Tiago Moreira dos Santos, antropólogo do Programa Povos Indígenas no Brasil, do ISA.
Já no bioma Amazônia, a área fora de Terras Indígenas já perdeu mais de 27% da vegetação original, enquanto nas TIs o desmatamento é de apenas 1,74%. Isso significa que na Amazônia, as áreas fora de TIs estão cerca de 16 vezes mais desmatadas que dentro delas.
O relatório evidencia ainda uma redução no desmatamento no bioma Amazônia de 30,6% em relação ao período anterior, de agosto de 2022 a julho de 2023. No Cerrado, a queda foi de 25,7%, o que representou a menor taxa oficial de desmatamento desde 2019. Contudo, no caso das Terras Indígenas, a redução no bioma Amazônia não foi expressiva, enquanto no Cerrado houve um aumento de 34,2% no desmatamento nestes territórios.
No Cerrado, entraves no processo de demarcação aumentam a vulnerabilidade das TIs
No segundo maior bioma do Brasil, o Cerrado, o desmatamento em TIs foi de aproximadamente 10.150 hectares no último período, ou de aproximadamente 14,2 mil campos de futebol.
Dez TIs foram responsáveis por 94% de todo o desmatamento identificado no período, com as duas TIs que figuram no topo da lista sendo responsáveis por mais de 70% do total. Além disso, o relatório destaca que quase 80% de toda a perda de vegetação nativa em TIs no Cerrado se deu em áreas que ainda não tiveram seu processo de demarcação concluído, ressaltando a importância da regularização para a proteção plena desses territórios.
A TI Porquinhos dos Canela-Apanyekrá (MA), que encabeça a lista, foi responsável por 58% do desmatamento total em TIs no Cerrado em 2024. A TI está localizada em uma região conhecida como “Matopiba” e sofre com intenso conflito de disputas fundiárias e avanço da agropecuária. Apesar de ter sido declarada pelo Ministério da Justiça em 2008, seu processo está desde 2014 em um disputa no Supremo Tribunal Federal. Atualmente, segundo aponta o relatório, 80% da área TI é sobreposta a registros de propriedades rurais no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em 2024, foram quase 6 mil hectares desmatados, ou 8,2 mil campos de futebol, o que representa um aumento de 162% no total de área desmatada em relação a 2023.
A Terra Indígena Wedezé (MT), por sua vez, é território tradicional do povo indígena Xavante. Vítima da política imposta na ditadura de esbulho territorial e transferência forçada para outro território nos anos 1970, o povo autodenominado A’uwe ainda não pôde retornar à sua terra. Atualmente, a TI sofre com a expansão de atividades agropecuárias que causam graves danos ambientais, como a perda de 1,5 mil hectares de vegetação nativa entre agosto de 2023 e julho de 2024, ou mais de 2 mil campos de futebol. Segundo o relatório, o número representa um aumento de 979% em relação ao período anterior e o valor mais alto desde o início da série histórica em 2008.
Outro destaque no relatório, a Terra Indígena Inãwébohona (TO), localizada na Ilha do Bananal, sofreu um desmatamento de quase 500 hectares, ou quase 700 campos de futebol. Além dos desmatamentos, a TI enfrenta incêndios florestais de grandes proporções, com uma área de 141 mil hectares de queimadas, ou quase 200 mil campos de futebol. Na TI, além dos povos Avá-Canoeiro, Iny Karajá e Javaé, existe o registro de um grupo indígena isolado.
Na Amazônia, as TIs tiveram o menor índice de desmatamento desde 2018
No bioma Amazônia, as dez TIs com maior área desmatada em 2024 foram responsáveis por acumular 60% do total desmatado em Terras Indígenas. No total, foram quase 14 mil hectares desmatados em TIs no período.
Apesar do desmatamento analisado estar apenas 4 hectares abaixo do identificado no período anterior – entre agosto de 2022 e julho de 2023 –, esse é o menor índice desde 2018, considerando as 240 TIs cujos dados foram integralmente disponibilizados pelo Inpe.
Ademais, as TIs Sararé (MT) e Alto Rio Guamá (PA), mesmo sem terem sido inteiramente cobertas pelo mapeamento realizado, apresentaram perda de vegetação nativa alta o suficiente para figurarem entre as mais desmatadas do bioma.
Na Sararé, aproximadamente 4% da vegetação original da TI foi perdida apenas em 2024. No total, foram 2,6 mil hectares desmatados. Uma das razões apontadas é o avanço do garimpo ilegal, responsável por quase metade do desflorestamento registrado na TI no período analisado.
Outra TI que figurou entre as dez mais desmatadas, a Cachoeira Seca (PA), teve uma área desmatada de mais de 20 mil hectares apenas entre os anos de 2017 e 2020. Em 2024, esse número chegou a mais de 1,2 mil hectares. O povo Arara que habita a TI foi vítima da política de contato forçado instituída na ditadura militar, da invasão e divisão do seu território pela Rodovia Transamazônica (BR-230).
Segundo a nota técnica Queimadas em Terras Indígenas, do ISA, as rodovias são responsáveis por aumentar a vulnerabilidade de Terras Indígenas, impulsionando invasões, desmatamentos e queimadas. Relembre aqui.
A Terra Indígena Andirá-Marau (PA e AM), por sua vez, apresentou um aumento de 795% no desmatamento em relação ao período anterior – entre agosto de 2022 e julho de 2023, com 1.165,20 hectares devastados.
Histórico do desmatamento anual no bioma Amazônia em TIs
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Após quatro anos, Funai restringe área a povos isolados no sul do Amazonas
Com presença confirmada desde 2021, este foi o primeiro passo em direção à proteção efetiva dos indígenas isolados que habitam o território no Purus
Buscando garantir a proteção integral dos territórios com presença de povos indígenas isolados e de recente contato, no dia 11 de dezembro de 2024, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) publicou a portaria 1.256/2024, que restringe o acesso à Terra Indígena Mamoriá Grande.
Localizada entre os municípios de Tapauá e Lábrea (AM), a área de aproximadamente 260 mil hectares possui confirmação da presença de indígenas isolados desde agosto de 2021. Segundo a equipe da Funai que identificou a presença indígena, esse grupo seria composto de aproximadamente 25 pessoas.
Acesse a localização da Terra Indígena Mamoriá Grande:
Neste ano, em julho de 2024, a Funai já havia criado um Grupo Técnico para identificar a Terra Indígena, que abrange a área do Mamoriá Grande e do Igarapé Grande, reivindicada pelo povo Apurinã. A portaria de interdição, entretanto, abrange apenas a área do Mamoriá Grande.
A portaria de interdição emitida neste mês cita a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 991, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e na qual o ISA é Amicus Curiae. A ação de 2022 pede que o Supremo Tribunal Federal (STF) tome medidas urgentes de proteção aos povos indígenas isolados e de recente contato, garantindo a publicação de portarias de restrição de uso até a finalização dos processos demarcatórios ou de estudo que descarte a presença de indígenas isolados na área.
Os relatórios e pedidos de proteção dos isolados do Mamoriá Grande pela Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus foram por muito tempo ignorados pela Funai, fazendo com que o grupo vivesse por meses desprotegido na Reserva Extrativista (Resex) do Médio Purus.
Povo isolado no sul do Amazonas se refugia em áreas oficiais de (des)proteção federal
Karen Shiratori (Antropóloga, Universidade de Coimbra) e Daniel Cangussu (Indigenista, Funai e ICB/UFMG)
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Panacos dos isolados do Mamoriá Grande na Resex Médio Purus|Daniel Cangussu/Acervo FPE Madeira-Purus/Funai, 2021
Em janeiro de 2022, a imprensa brasileira noticiou que um novo grupo de indígenas isolados havia sido recentemente localizado no sul do estado do Amazonas por uma equipe de indigenistas da Funai. Em comum, as notícias tinham um tom paradoxal: se por um lado celebravam o trabalho técnico meticuloso de indigenistas e antropólogos que possibilitou localizar mais um pequeno grupo no vasto território da Amazônia, algo a ser celebrado; por outro, apontavam a morosidade do Estado brasileiro em implementar, de forma efetiva, as medidas imprescindíveis e urgentes destinadas à proteção do grupo, cuja existência havia sido oficialmente confirmada em agosto de 2021, quase seis meses antes.
Segundo dados de campo da equipe responsável pela localização, o grupo indígena seria composto por cerca de 25 pessoas. Este número é estimado por meio da quantidade de armadores das maqueiras – as redes indígenas –, assim como da quantidade de fogueiras encontradas no acampamento, feitas no interior dos tapiris – um abrigo temporário construído com folhas de palmeira. Cabe ressaltar que a cultura material desse grupo apresenta evidente similaridade com a de outros povos de língua arawá das terras firmes do interflúvio do médio curso dos rios Juruá e Purus, como os Jamamadi, os Banawá, os Deni, os Suruwaha e os Hi-Merimã, outro povo indígena isolado.
Engavetar documentos
Embora pairasse inicialmente a dúvida de que o novo grupo indígena, que passou a ser chamado de "Isolados do Mamoriá Grande", pudesse ser uma parte do grupo Hi-Merimã, logo essa possibilidade foi descartada em virtude de suas distintas territorialidade e formas de mobilidade. Os isolados do Mamoriá Grande, à época, estavam acampados em quatro tapiris diferentes, distantes cerca de 300 metros um do outro, ao longo das margens de um igarapé localizado no interior da Resex Médio Purus, uma Unidade de Conservação sob gestão do ICMBio. A datação dos vestígios revelou que este grupo isolado vem ocupando de forma cíclica a região, informação reiterada por moradores da área que relatam a presença de vestígios desse grupo indígena desde a época em que se mudaram para lá, há mais de 40 anos.
A inação do governo com a situação dos isolados do Mamoriá Grande deixa evidente sua postura anti-indígena, conforme foi amplamente documentado no dossiê Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro (2022), produzido pelo Inesc e pela INA, a associação que representa servidores e indigenistas da Funai. No caso dos povos em isolamento, ademais dos retrocessos e ameaças constantes às bases da política do não contato, desenvolvida e adotada pelo órgão desde os anos 1987, o que se viu foi a adoção de uma clara política de engavetamento de relatórios e documentos que se somaram ao descrédito e perseguição dos servidores.
Se a imprensa tornou explícita a relevância dos documentos e dados obtidos em campo, a Funai, por seu turno, seguiu questionando a substancialidade dos documentos e, com isso, a existência de um novo registro de povo indígena isolado. Aqui, usamos o termo "novo" não no sentido de descoberta ou novidade, mas do reconhecimento de nova demanda de proteção territorial relativa a grupos em isolamento no Brasil, o que, do ponto de vista jurídico, implica na criação de um novo registro – ou seja, a atribuição de um "novo número" com a confirmação de uma nova referência, nos termos burocráticos da Funai.
Por meio da burocracia negligente, o Estado brasileiro tem se furtado a sua responsabilidade de proteger o território deste povo indígena. Ao rejeitar a existência de um grupo anteriormente desconhecido pelo órgão indigenista, rejeita-se igualmente reconhecer qualquer nova demanda fundiária, de proteção territorial e, mais importante, de demarcação de TIs.
Ainda por cima, a Covid-19
Acompanhando os dados relativos à localização dos Isolados do Mamoriá Grande, os relatórios também alertavam sobre os riscos aos quais estavam expostos, sobretudo, por conta da grande proximidade entre seus acampamentos e uma das muitas comunidades ribeirinhas localizadas no interior da Resex Médio Purus. Num contexto de pandemia, tal proximidade aumentava sobremaneira o risco de contágio por Covid-19, ainda mais porque as comunidades extrativistas da região apresentavam, na época, menos de 30% de cobertura vacinal.
Seguiram-se às matérias jornalísticas uma série de medidas articuladas pelos movimentos indígenas estadual e nacional, instituições indigenistas e Ministério Público Federal (MPF), a fim de pressionar a Funai e a Sesai a adotarem medidas protecionistas concretas, tais como: a instalação de um posto de controle de acesso na região e a criação de um “cordão sanitário” a partir da vacinação em massa dos moradores da unidade de conservação vizinha. Medidas que, até o momento, não foram implementadas.
Contribui para o cenário turbulento a ausência de coordenação entre a Funai e o ICMBio. A postura anti-indígena de ambas as instituições acirrou os conflitos no contexto do médio Purus, conforme se ouve em comentários frequentes: “A Resex foi demarcada para os ribeirinhos, e não para indígenas”; “A Funai não tem gerência sobre Unidades de Conservação”; “Não é preciso se preocupar com esses índios. Eles foram parar na Resex, mas logo devem seguir para alguma terra indígena da região”. Esses exemplos, apesar de sumários, demonstram o tamanho do desafio de articular os órgãos de controle ambiental e indigenista a fim de proteger os territórios dos povos indígenas isolados na Amazônia brasileira.
No sul do estado do Amazonas, em especial, a grande maioria dos registros de povos indígenas isolados estão no interior de UCs, estaduais e/ou federais, ou de terras públicas ainda sem destinação específica, as conhecidas “áreas devolutas”. Os Katawixi, por exemplo, vivem nas matas de palhal com grande concentração de babaçu (Attalea speciosa) presentes nas cabeceiras dos igarapés que drenam áreas do Parna Mapinguari, Resex do Ituxi e TI Caititu; os grupos Juma isolados estão na Flona Balata-Tufari; os grupos tupi kagwahiva isolados vivem no Parna Campos Amazônicos e na Flona de Humaitá. É no interior desta Flona que estão as capoeiras das malocas onde aconteceram algumas das chacinas mais recentes dos grupos juma. Até pouco tempo antes da sua morte, Arucá Juma costumava visitar esta região para coletar tabocas para produzir suas flechas.
Reorganização política
O acelerado processo de destruição da floresta e a interrupção dos processos de demarcação dos territórios dos povos indígenas tornaram, no presente, as UCs áreas de refúgio para muitos dos grupos isolados. Dados preliminares de pesquisadores do Laboratório Sistemas Socioecológicos da UFMG apontam que mais de 50% dos registros relacionados à presença de povos indígenas isolados no Brasil estão localizados no interior de UCs. Não obstante, os técnicos do ICMBio não recebem treinamento para lidar com estas demandas recentes e sequer há legislação específica que permita conduzir esta política de modo interinstitucional. Tal cenário coloca em xeque a própria cultura institucional de um dos principais órgãos de controle ambiental do país que se verá responsável por também garantir a proteção de populações humanas que requerem políticas bastante diferentes das destinadas às populações extrativistas das unidades de uso sustentável.
Conforme mostramos para o sul do Amazonas, pensado aqui como uma situação exemplar, estamos diante de uma importante questão para a política de gestão de áreas protegidas no Brasil, e que implica repensar profundamente a lógica protetiva e o papel das Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE) da Funai. Diante deste cenário, urge pensar modelos mais integrados de proteção territorial – a exemplo do que acontece em outros países da América do Sul que consideram a relevância dos mosaicos e dos corredores ecológicos – a fim de proteger, de forma articulada, a biodiversidade, as comunidades extrativistas e indígenas.
Se há algo que aprendemos nos últimos quatro anos é o quanto pode ser perigoso deixar toda uma política indigenista centralizada no governo e, pior, em um único departamento, sem abertura ou interlocução com os movimentos indígenas e instituições organizadas da sociedade civil; e que os governos brasileiros são historicamente anti-indígenas, embora uns mais do que outros. Até o momento, a Funai não reconhece a existência do novo registro dos isolados do Mamoriá Grande, o grupo continua desprotegido e os servidores locais da Funai, sendo ameaçados por invasores dos territórios indígenas e por dirigentes do próprio governo.
A vitalidade política da Apib e Coiab e protagonismo destas na proteção dos direitos dos povos isolados, sobretudo nos recentes embates judiciais para a definição das medidas de isolamento e segurança devido à pandemia causada pelo Covid-19, dão sinais de uma mudança drástica e necessária dos principais atores que atuarão nas tomadas de decisões acerca desta política indígena/indigenista no Brasil. (julho, 2022)
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Indígenas respondem como recuperar a floresta em filme sobre o V Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana
Com participação do governo federal, encontro fez balanço das ações e discutiu retirada de invasores e reestruturação da saúde e da educação
"Para começar a fazer um bom diálogo, começaria no setor de Educação, dentro das escolas", responde a liderança Maurício Ye’kwana à pergunta “como a floresta vai se recuperar?”, que conduz o filme do V Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana lançado nesta quarta-feira (11) no Youtube do Instituto Socioambiental (ISA).
Com relatos de lideranças e entrevistas com a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, e do chefe da Casa de Governo, Nilton Tubino, o minidoc de 13 minutos conta ainda com imagens inéditas de um sobrevoo feito em outubro sobre as regiões mais afetadas pelo garimpo ilegal, como Alto Rio Catrimani, Rio Couto Magalhães, Xitei e Rio Parima.
Assista ao filme:
A reunião ocorreu após as cicatrizes deixadas pela gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022), descrita como um período de “pesadelo para os povos indígenas” por Maurício, e um ano e oito meses após presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretar uma ação emergencial para retirar invasores e estruturar a Saúde na Terra Indígena Yanomami.
“Começou a diminuir a questão da invasão. Hoje diminuiu muito, a gente quase não vê muitos garimpeiros, nem muitos movimentos principalmente nos rios, subindo rio e descendo rio. E os rios também eram barrentos e hoje tá quase limpando”, diz Júlio Ye’kwana, presidente da Wanasseduume Ye’kwana (Seduume).
O V Fórum de Lideranças Yanomami ocorreu de 23 a 27 de setembro na comunidade Fuduuwaaduinha, em Auaris, onde vivem os Ye’kwana. O evento reuniu lideranças de todas as regiões da Terra Indígena Yanomami e contou com a presença de representantes do governo federal para prestar contas aos indígenas sobre as ações no território.
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V Fórum reuniu lideranças de todas as regiões da Terra Indígena Yanomami|Fabrício Marinho/Platô Filmes/ISA
“A gente queria escutar o plano do governo, o que eles estão trazendo para nos informar, qual é a estratégia que estão arrumando para melhorar a Terra Indígena Yanomami. É para isso que trouxemos o governo federal para dialogar e cobrar também”, conta Júlio Ye’kwana.
Nilton Tubino mostrou resultados de prejuízos ao garimpo que já havia atingido o valor de R$209 milhões. Tubino afirma que operações e sobrevoos noturnos continuarão sendo feitos para combater a invasão do território e expulsar os garimpeiros insistentes.
“Na parte da saúde, que era o nosso compromisso quando a gente chegou, tinha sete unidades de saúde fechadas e hoje todas estão funcionando. A nossa estratégia a partir de agora é fazer um pente fino no território, repassando por todas as áreas que historicamente tiveram garimpo para fazer um levantamento”, afirmou Tubino.
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Davi Kopenawa Yanomami, xamã e liderança indígena, na cerimônia de abertura do V Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana|Fabrício Marinho/Platô Filmes/ISA
Davi Kopenawa e Dário Kopenawa, pai e filho e representantes da Hutukara Associação Yanomami (HAY), também deram depoimentos para o filme. Davi foi enfático ao dizer que os Yanomami desejam continuar no caminho que Omama construiu para o seu povo, enquanto Dário alertou para a necessidade de respeitar a natureza.
“Queremos respeitar a nossa mãe natureza, se não respeitarmos a nossa mãe natureza, onde vamos viver? Onde vamos tomar água? Que vida boa vamos viver? Por isso queremos os dois mundos: Yanomami e da cidade. Queremos proteger a nossa terra que é única e não tem plano B”, expressou Dário.
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Dário Kopenawa nos bastidores da entrevista para o filme|Fabrício Marinho/Platô Filmes/ISA
Como a comunidade Fuduuwaaduinha fica a cerca de 10km da Venezuela, indígenas Yanomami e Ye’kwana do país vizinho puderam participar do evento. Desde 2008, o governo venezuelano não demarca terras indígenas. Além disso, os Ye’kwana relatam forte presença de garimpeiros e pescadores nas terras indígenas.
“No meu povo, não existe educação para a saúde. Não há médicos específicos, com mais sabedoria, então estão falecendo muitos familiares”, diz Lavi Hernandez, Yanomami da Venezuela.
O filme, assim como a carta final do V Fórum, é assinado pelas nove associações da Terra Indígena Yanomami. A HAY e o ISA são os responsáveis pela realização do minidoc, que teve produção da Platô Filmes.
Thiago Briglia assina a produção executiva, enquanto a produção é de Fabrício Araújo, que também assina o roteiro junto com Yare Perdomo. O filme tem imagens e direção de fotografia de Lucas Silva, assistência de fotografia de Fabrício Marinho e edição de Yare Perdomo.
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Mulheres da Terra indígena Yanomami criam cartilha de Direitos Humanos
Documento é resultado de oficina que discutiu saúde, violência e cultura com 24 mulheres Yanomami, Sanoma, Ninam e Ye’Kwana, em Boa Vista
Ariane Yanomami em discussão sobre os aprendizados da oficina de Direitos Humanos|Fabrício Araújo/ISA
Vinte e quatro mulheres Yanomami (Yanomam, Yanomami, Sanöma e Ninam) e Ye’kwana criaram uma cartilha sobre Direitos Humanos para as mulheres da maior terra indígena do Brasil, a Terra Indígena Yanomami. A publicação é resultado de uma oficina sobre Direitos Humanos, ministrada na última semana de novembro, em Boa Vista.
O documento reflete os aprendizados de combate a violência contra mulher, explicando as leis Maria da Penha e do Feminicídio, além de abordar aspectos culturais da convivência Yanomami, como o direito ao casamento, direitos de serviço do genro e de recursos da floresta. Durante a oficina, as mulheres apresentaram diversas preocupações sobre saúde e as violações do direito à atenção diferenciada, reflexões que também foram transmitidas no material final.
“Nós indígenas queremos ficar em paz vivendo na nossa comunidade, sem ter nem um conflito com os nossos idosos e as nossas crianças. Queremos que os brancos entendam que a gente também precisa viver feliz, assim como eles vivem”, diz um dos poucos trechos em português do material escrito predominantemente em Yanomami e ilustrado com artes indígenas pintadas durante a oficina.
A oficina começou refletindo sobre as regras, direitos e deveres de convivência entre as diferentes comunidades, em seguida os indígenas foram apresentados aos conceitos e história dos Direitos Humanos e Direitos Indígenas. A partir do terceiro dia, a formação se aprofundou nos direitos das mulheres e direito à saúde da mulher.
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Ana Lúcia, representante da Associação das Mulheres Kumirayoma (AMYK), apoiou como tradutora durante a oficina|Fabrício Araújo/ISA
Ana Lúcia Paixão Vilela, representante da Associação das Mulheres Kumirayoma (AMYK), apoiou com a tradução para as indígenas que não falam português e se sentiu entusiasmada para dividir o que aprendeu com as mulheres de Maturacá. O que mais surpreendeu a ela durante a formação foi como as mulheres passaram a ser inseridas nos Direitos Humanos.
“Antes não havia algo específico para o direito das mulheres porque eram os homens que faziam os direitos, só eles falavam e não éramos totalmente contempladas, mas fomos evoluindo e foi pensada a criação de direitos para as mulheres”, disse.
Conforme Manuela Otero Sturlini, assessora do Instituto Socioambiental (ISA), a participação das mulheres em formações políticas e formação sobre Direitos Humanos era um pedido das Yanomami durante a invasão garimpeira e sequência de ataques do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Ao mesmo tempo, as mulheres Yanomami pediam, durante o Encontro de Mulheres Yanomami, por uma estruturação de uma linha de cuidado e a reestruturação do Programa de Saúde da Mulher.
“Em 2023, apresentamos o Programa de Saúde da Mulher e foi muito profundo como elas colocaram que havia uma necessidade de respostas. Então, no último ano fizemos uma consolidação de uma rede de atores envolvendo universidades, associações, órgãos públicos e organizações não governamentais para responder a esta necessidade”, explicou Manuela.
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Luiza Xirixana fazendo anotações sobre a oficina|Fabrício Araújo/ISA
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Adailsa Yanomami, também participou da oficina|Fabrício Araújo/ISA
Como os cantos Ye’kwana preservam saúde, roças e os Direitos Humanos
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Jucélia e Elisa, neta e avó Ye’kwana, também participaram da oficina de Direitos Humanos|Fabrício Araújo/ISA
Para Jucélia Magalhães Rocha, uma jovem Ye’kwana que participou da oficina e atua como Agente Indígena de Saúde (AIS) na região de Auaris, a parte da oficina focada em saúde irá lhe possibilitar a oportunidade de melhorar os atendimentos que faz junto aos psicólogos da região.
“Eu sou AIS na minha comunidade, acompanho as psicólogas e fazemos reuniões com mulheres. Então, nestas reuniões poderei falar sobre os direitos das mulheres na saúde e na segurança”, disse a jovem Ye’kwana.
Jucélia foi acompanhada por Elisa Ye’kwana, que tem um forte papel entre as comunidades Ye’kwana, sendo conhecedora de cantos que mantém as roças fortes e os indígenas bem nutridos.
A antropóloga Karenina Vieira Andrade, que participou da oficina e que faz parte do corpo docente da UFMG, trabalha com os Ye’kwana e resumiu parte da história de Elisa. Ela explicou que a anciã vivia em Fuduuwaaduinha, onde ocorreu o V Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, mas em 2008 se mudou para Kuratanha.
Conforme Karenina, as comunidades são muito próximas e os parentes se visitam constantemente, o que ajuda a preservar e repassar aos mais jovens conhecimentos que os anciãos, como Elisa, conhecem profundamente.
“Ela conhece um conjunto de cantos associado às roças para quando eles abrem as roças porque as mulheres Ye’kwana são as donas das roças, são como se fossem filhos, e elas precisam ter um cuidado constante porque a roça é viva”, explica a antropóloga.
Como a roça é considerada um ser vivo pelos Ye’kwana os cantos associados a rituais de cuidado, mantém o ser agradado para gerar bons alimentos. Cada etapa da roça - plantação, cultivo, cuidados e colheita - está associada a um conjunto de cantos e cuidados diferentes, dos quais Elisa executa com maestria.
“Isso é a garantia de saúde das pessoas. Se esse conhecimento se perde, a comunidade inteira fica sob risco de não ter um bom alimento. Garantir que esse conhecimento das mulheres passe de geração para geração é referendar o que está nos dispositivos constitucionais de que os povos indígenas têm direito a viver de acordo com os seus usos e costumes”, disse Karenina.
O conjunto de conhecimentos mantém Elisa como uma figura forte e extremamente respeitada entre os Ye’kwana. Além disso, há um forte interesse da parte dela para que meninas jovens aprendam os rituais para manter as comunidades Ye’kwana fortes.
XV Encontro de Mulheres
A Oficina de Direitos Humanos para Mulheres da Terra Indígena Yanomami também foi uma atividade de continuação do XV Encontro de Mulheres Yanomami, que ocorreu na segunda semana de outubro. Esta foi a maior edição do evento, discutindo temas como a gestação, o parto, o planejamento reprodutivo, os rastreamentos de câncer de colo do útero, soberania alimentar e os atendimentos na Casa Indígena de Saúde (Casai) e na maternidade.
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A professora-adjunta da UFMG esteve presente na oficina e no XV Encontro de Mulheres Yanomami|Fabrício Araújo/ISA
Para Érica Dumont, professora-adjunta da Escola de Enfermagem da UFMG, que ministrou parte da oficina e esteve no XV Encontro de Mulheres Yanomami, os eventos consolidaram o desejo das indígenas de reestruturar o que foi perdido durante a pandemia de Covid-19 e de resgatar as relações desgastadas durante o governo de Jair Bolsonaro.
“A gente escutou tanto nesta oficina, quanto no Encontro de Mulheres, relatos de violações ao longo dos anos no acesso à maternidade e à Casai no respeito aos costumes, aos hábitos e alimentação, além dos lugares de repouso e de receber comunicação sobre o tipo de tratamento que recebem com um intérprete”, pontuou.
Érica explicou ainda que as violações ocorrem mesmo no território com atendimento precário e falta de exames. “Mas é importante destacar que há uma melhora nesta gestão, elas estão felizes e confiantes com a atuação do DSEI”, destacou.
Ainda conforme a especialista, a atenção diferenciada é um direito garantido na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, isto quer dizer que os indígenas têm o direito de ser atendimento de um jeito que considere os modos de vida, os costumes, e as perspectivas de saúde deles, como por exemplo, o respeito aos xamãs e as parteiras.
“Essas violações muitas vezes estão ligadas ao desrespeito aos costumes, mas há casos que extrapolam e são desrespeitos que seriam ofensas a qualquer ser humano”, afirmou.
A atenção diferenciada inclui, além dos aspectos do modo de vida, a questão logística. No contexto da Terra Indígena Yanomami, Érica explica que para atender uma mulher Yanomami é preciso uma escala de voos e há uma dinâmica diferente para acessar os lugares, pois cada comunidade tem as suas especificidades.
“A atenção diferenciada pode, ainda, incluir tecnologias diferenciadas. Muitas das mulheres Yanomami seriam classificadas, de acordo com o atual protocolo de pré-natal, como alto risco gestacional por terem baixo, peso, pela idade e pela relação com a malária, tudo isso, implicaria que elas fossem removidas da floresta para a cidade, mas sabemos que é inviável e, de fato, não desejamos que isso aconteça. É preciso incorporar um atendimento de alto risco na floresta”, avalia.
A oficina de Direitos Humanos faz parte de um projeto de extensão da UFMG e tem o financiamento do MDHC, o ISA é parceiro desta iniciativa. O objetivo é formar grupos indígenas Yanomami em Direitos Humanos. Além do grupo de mulheres, jovens diretores das 10 associações da Terra Indígena Yanomami já passaram pelo processo de formação de Direitos Humanos.
Oficinas para os diretores das associações
A I Oficina de Formação em Direitos Humanos para Jovens Diretores Yanomami e Ye’Kwana durou seis dias e contou com a participação de todas as 10 associações que representam a Terra Indígena Yanomami. As lideranças estiveram reunidas em Boa Vista durante a primeira quinzena de julho.
“A água limpa é parte dos Direitos Humanos. Se você fica doente, precisa ter acesso a remédios que também são Direitos Humanos. Tudo que defende a nossa vida, como a água limpa, a floresta conservada, são Direitos Humanos. Enquanto tudo que ataca a vida, como o garimpo, a guerra, a agressão contra crianças e mulheres, são violações dos direitos humanos”, explicou Marcelo Moura, antropólogo consultor do Ministério de Direitos Humanos, aos indígenas durante a oficina.
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Dário Kopenawa durante oficina de Direitos Humanos|Fabrício Araújo/ISA
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Edmilson Estevão Damião, representou a Seeduume|Fabrício Araújo/ISA
A Hutukara Associação Yanomami (HAY), associação com duas décadas de atuação, enviou novas lideranças para participar e aprender sobre o tema, mas líderes com mais experiência, como Dário Kopenawa discursaram durante a oficina. O vice-presidente da HAY apresentou o PGTA e Protocolo de Consulta da Terra Indígena Yanomami aos diretores das outras nove associações.
“Isso é um compromisso nosso, dos povos Yanomami e Ye’kwana. É nossa responsabilidade e tem tudo aqui sobre o que pensamos sobre saúde, língua, educação e geração de renda”, disse durante a explicação.
Para Edmilson Estevão Damião, primeiro secretário da Associação Wanasseduume Ye'kwana, ouvir lideranças como Dário Kopenawa e Maurício Ye’Kwana o inspirou a manter a proximidade entre todas as associações da Terra Indígena Yanomami.
“Achei muito importante a apresentação dos diretores que estão na luta por nós há mais tempo. Foi muito bom ouvir o Maurício e o Dário, eles inspiraram muito as novas lideranças. Também achei bom a união e a aproximação entre todas as associações da Terra Indígena Yanomami”, declarou ao ISA.
Conforme Lídia Montanha Castro, coordenadora do Programa Rio Negro do ISA, a ideia de juntar lideranças experientes com novos líderes é justamente para que haja troca de informações e que os novos diretores possam estar mais capacitados. Montanha e Manuela Otero, estiveram como consultoras representando o ISA.
“O objetivo deste trabalho é alcançar as associações da Terra Indígena Yanomami, por isso há participação de representantes das 10 associações que existem atualmente. Além de ser direcionado às 10 associações, há outra característica mais específica, que é formar novos diretores”, declarou Montanha.
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Francilene Pereira representou a AMYK na formação|Fabrício Araújo/ISA
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Roni Raitateri, Tesoureiro da Associação Kurikama Yanomami|Fabrício Araújo/ISA
Para além de compartilhar os problemas, as lideranças conseguiram assimilar como o conhecimento sobre Direitos Humanos pode funcionar como uma ferramenta de defesa do território e pretendem fazer o conhecimento ecoar em suas respectivas comunidades, como pontua Francilene dos Santos Pereira, moradora de Maturacá e articuladora da Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK).
“Eu gostei muito de descobrir mais ferramentas para que possamos defender o território. Acho que é um tema importante para trabalhar com mulheres e a juventude, é isso que vou levar daqui para a minha comunidade”, afirmou.
Uma das questões recorrentes levantadas pelos indígenas foi a violação dos Direitos de crianças e mulheres Yanomami. Os relatos corroboram as informações de que mulheres são abusadas por garimpeiros, enquanto crianças morrem ou são retiradas de maneira ilegal do território por invasores.
“É importante que estejamos todos ligados, juntos e unidos para enfrentar os problemas, principalmente os abusos contra nossas mulheres e mortes de nossas crianças causadas pelos garimpeiros, assim como evitar que governantes violem os nossos direitos”, declarou o segundo tesoureiro da Associação Kurikama Yanomami, Roni Raitateri Yanomami.
Daniel Jabra, Lídia Montanha Castro e Marcelo Moura explicaram aos Yanomami os conceitos de colonização e escravidão contextualizando com casos atuais e relacionando as situações em que garimpeiros obrigam os indígenas a trabalhar após receberem itens como cobertor, bebida alcoólica e comida.
“Isso é a colonização, eles vão comendo o território, a cultura e tudo mais até não sobrar nada”, disse Jabra ao explicar sobre como a colonização ocorre pela igreja, pelos garimpeiros e até mesmo pelo governo.
Esta primeira oficina foi a primeira iniciativa da parceria UFMG e ISA, com apoio do MHDC, com o objetivo de formar as 10 associações da Terra Indígena Yanomami através de dois públicos: os jovens diretores e as mulheres.
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