"Cada povo tradicional tem uma identidade, uma história, uma memória partilhada e um território"
Neide Esterci, antropóloga, ex-presidente do ISA
Comunidades Tradicionais são, de acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, os “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. Assim, podem ser consideradas Comunidades Tradicionais os quilombolas, seringueiros, ribeirinhos, caiçaras, ciganos, beradeiros, quebradeiras de coco babaçu, geraizeiros, sertanejos, entre outros. Todas estes povos e comunidades são parte fundamental da enorme pluralidade e diversidade sociocultural da sociedade brasileira.
O ISA atua com Comunidades Tradicionais na região do Xingu, no Pará e Mato Grosso, e no Vale do Ribeira, desde o final da década de 1990. No Ribeira, atuamos em parceria com associações quilombolas locais, prefeituras e organizações da sociedade civil, visando a implementação de projetos de desenvolvimento sustentável, geração de renda, conservação ambiental e melhoria da qualidade de vida das comunidades tradicionais da região. Vale destacar nosso apoio às atividades produtivas da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), que têm contribuído para o fortalecimento e valorização do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola. O ISA tem também apoiado o Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira, que defende os direitos das comunidades da região e resiste contra as pressões e ameaças a estes territórios.
No Xingu, trabalhamos com comunidades ribeirinhas, conhecidas também como beiradeiras, e que vivem na região da Terra do Meio, em Altamira, no Pará. As famílias e comunidades beiradeiras são descendentes de seringueiros e de indígenas e têm seu modo de vida baseado em um conhecimento profundo da floresta e rios que habitam. Nossas linhas de atuação incluem estruturar alternativas de renda baseadas no extrativismo, apoiar a organização comunitária e o aumento de protagonismo de associações locais, e implementar projetos de desenvolvimento sustentável. O ISA ainda trabalha junto às associações e famílias beiradeiras, no desenvolvimento de pesquisas colaborativas sobre o modo de vida local, e promove a articulação entre beiradeiros e indígenas para produzir e comercializar os produtos florestais tradicionais desses povos, em bases justas, e que garantam qualidade de vida para as famílias, continuidade das culturas e do modo de ser beiradeiros e indígenas.
Em nível nacional, o ISA também apoia a luta das comunidades tradicionais na defesa de seus direitos - temos orgulho da nossa parceria com Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, a Conaq - por meio de mobilizações públicas e intervenções políticas nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
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Quilombolas comprovam papel de territórios para conservação da Amazônia na COP 16
Dados apresentados pela Conaq e produzidos pelo ISA mostram que, em 20 anos, quilombos perderam apenas 1,4% de florestas, ou 82% a menos que o entorno
'A Amazônia é a Amazônia, porque lá resistem e sobrevivem populações tradicionais que cuidam, que têm compromisso com a biodiversidade.' Valéria Carneiro | Ester Cezar / ISA
Durante participação na 16ª Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP 16), em Cali, Colômbia, a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) apresentou dados que comprovam o papel dos territórios dessas populações tradicionais na conservação da diversidade biológica da Amazônia.
De acordo com eles, de 2003 a 2022 os quilombos perderam apenas 1,4% de florestas, ou 82% a menos que o entorno, segundo análise do Instituto Socioambiental (ISA). A conservação e a regeneração da vegetação nativa nessas áreas também são maiores do que nas áreas privadas.
Clique aqui e baixe o material produzido pelo ISA em parceria com a Conaq
Os dados foram apresentados na mesa de debates “Territórios Quilombolas na Defesa da Vida e da Biodiversidade na Amazônia”, no dia 21, que também contou com a participação do ISA e do Processo de Comunidades Negras da Colômbia (PCN). O evento aconteceu na chamada “Zona Verde” da COP, onde ocorreram atividades paralelas da sociedade civil.
“A Amazônia tem floresta, mas a Amazônia é a Amazônia porque lá resistem e sobrevivem populações tradicionais que cuidam, que têm compromisso com a biodiversidade”, afirmou Valéria Carneiro, integrante da diretoria da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu) e da coordenação da Conaq. Para ela, o espaço da COP 16 é essencial para expor as agressões ao bioma e aos seus povos tradicionais.
“Eu venho de uma região que está sendo engolida pelo agronegócio e chegar até aqui também é um momento oportuno de trazer os desafios que nós, quilombolas da Amazônia, vivenciamos lá”, apontou. Carneiro é do território quilombola de Pau Furado, na Ilha do Marajó (PA).
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Titulação garante mais proteção
Ainda de acordo com a análise do ISA, a regularização fundiária é essencial para garantir a preservação dos territórios quilombolas e da biodiversidade na Amazônia. As áreas tituladas, ou seja, com a regularização concluída, apresentaram 12% de carbono florestal a mais do que as não tituladas.
No entanto, dos 506 territórios quilombolas com limites oficialmente reconhecidos em toda a Amazônia brasileira, apenas 116 estão titulados e 390 estão em alguma das fases anteriores à titulação. Os dados são do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar).
“Os territórios quilombolas não titulados ainda são a maioria no Brasil e isso representa uma ameaça à conservação da biodiversidade. Quando as áreas dos nossos biomas são protegidas pelo manejo tradicional que as comunidades quilombolas fazem, as florestas, os manguezais, as restingas, matas ciliares, a fauna, toda biodiversidade ganha proteção e cuidado”, comentou Raquel Pasinato, assessora técnica do ISA, durante a COP 16.
“Se as comunidades ainda não têm o domínio fundiário dos territórios, eles ficam ameaçados pelo agronegócio, exploração minerária, pecuária extensiva e tantos outros usos que ameaçam a biodiversidade, exaurindo os recursos naturais e trazendo impactos socioambientais para nossa sociobiodiversidade. Por isso, titular é proteger!”, enfatizou.
Quilombos ainda são invisíveis
Os territórios quilombolas titulados somam 8,9 mil km², o que representa apenas 30% dos 28 mil km² desse tipo de área protegida já oficialmente identificado na Amazônia brasileira ‒ 1 km² é igual a mais ou menos 100 campos de futebol. Para se ter uma ideia, os quilombos oficialmente identificados representam apenas 0,4% dessa região, que soma cerca de 5 milhões km².
É preciso ressalvar ainda que 79% desses territórios não tiveram limites reconhecidos oficialmente na Amazônia brasileira, ou seja, permanecem invisíveis nas bases de dados oficiais e, logo, impedidos de se beneficiar com políticas públicas e ainda mais vulneráveis a pressões e ameaças, como o desmatamento ilegal e o roubo de terras.
“Não existe população quilombola sem território, sem biodiversidade”, afirmou Fran Paula, quilombola do Pantanal de Mato Grosso, integrante do coletivo de Meio Ambiente e Agricultura da Conaq e pesquisadora em agrobiodiversidade. “É muito importante a gente traçar estratégias desde o nível local, de proteção das nossas florestas, águas, dos nossos sistemas alimentares tradicionais, que são únicos no planeta, até estratégias globais, como a participação nessa COP”, complementou.
Fran destacou que o reconhecimento dos povos quilombolas para a conservação da biodiversidade “não é só como sujeitos de direitos, mas da nossa trajetória de luta, de resistência, de organização social. Há muito processo de articulação e mobilização de todos nós que estamos aqui, mas também de todas as pessoas que vieram antes da gente e que lutaram, inclusive, para que a gente pudesse estar hoje ocupando esse espaço na COP16”, finalizou.
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(E-D) Kátia Penha, da coordenação da Conaq; Raquel Pasinato, do ISA; e Valéria Carneiro, da coordenação da Conaq | Ester Cezar / ISA
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Povos indígenas e comunidades tradicionais caminham lado a lado em encontro histórico em Paraty (RJ)
1º Encontro Internacional de Territórios e Saberes defendeu garantia de direitos fundamentais e apontou conhecimento ancestral como solução climática em redação conjunta de carta para COP 30
Crianças conduziram a marcha que reuniu povos indígenas e comunidades tradicionais em Paraty (RJ) em setembro|Taynara Borges/ISA
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Representantes de povos indígenas e comunidades tradicionais de todo o Brasil caminharam lado a lado no ato “a luta para o Bem Viver”, que percorreu as ruas de Paraty (RJ) durante o 1º Encontro Internacional de Territórios e Saberes (EITS), ocorrido no mês de setembro.
Evidenciando propositalmente um contraste com os fortes resquícios coloniais do centro histórico da cidade, a caminhada em defesa da garantia de direitos fundamentais foi uma das mais de 70 atividades realizadas entre os dias 09 e 13 de setembro no encontro avaliado pelos movimentos e por parceiros como “histórico”.
Ao longo de uma semana, mais de 1.500 pessoas, dentre representantes de povos originários e comunidades tradicionais vindos de 22 países dos cinco continentes, compartilharam conhecimento, fortaleceram a resistência e expuseram a riqueza cultural de seus modos de vida e territórios, especialmente no que se refere aos caminhos para a conservação da vida no planeta.
O encontro foi marcado por denúncias acerca “dos imensos danos que o modelo colonialista capitalista gerou e continua gerando” em cada território originário e tradicional pelo Brasil.
E teve como objetivo a redação de uma carta com a apresentação de soluções que já são praticadas nos territórios pelas mãos e mentes dos povos e comunidades tradicionais, visando sua incidência na COP 30, a ser realizada no Brasil, em Belém (PA), em 2025.
A Carta Final do 1º Encontro Internacional de Territórios e Saberes (EITS) é explícita: “No fundo, as soluções para adiar o fim do mundo já́ existem nos territórios. Para conhecê-las, é preciso sair dos gabinetes, pisar nas terras onde os saberes tradicionais resistem, preservados. [...] O território fala. Pois, escutemos! Aprender com o que os territórios tradicionais falam é urgente”.
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Vaniely dos Anjos França Dias, do Quilombo São Pedro (Eldorado-SP), lê trecho da carta final do EITS no encerramento do evento, durante anúncio da criação do grupo "juventude tradicional"|Taynara Borges/ISA
A missiva e todas as demais atividades propostas pelo EITS tiveram um protagonismo muito bem demarcado. Foram as organizações dos povos e comunidades tradicionais que convidaram as universidades, os institutos de pesquisa, as instituições da sociedade civil e representantes do governo, em particular do Executivo Federal, a ouvir e aprender com quem, há séculos, preserva e aponta os caminhos para um Brasil mais verde e diverso.
“É excelente. Nós precisávamos mesmo de algo tão grandioso assim. Porque precisamos garantir que haja uma construção transversal de políticas para povos e comunidades tradicionais. Nossas culturas, territórios e modos de vida estão sendo atacados por mineradoras, por grandes empreendimentos ou por unidades de conservação integral que acabam com as comunidades”, denuncia Dauro Marques do Prado, morador da Jureia e integrante da Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC) e do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira.
Na avaliação da organização do encontro, o EITS cumpriu com a proposta de estabelecer um marco histórico na articulação entre os movimentos e de demarcar a importância de seus saberes tradicionais e ancestrais para o conhecimento científico, especialmente no contexto das mudanças climáticas que empreendem eventos extremos ao redor do mundo.
O 1º Encontro Internacional de Territórios e Saberes partiu de uma iniciativa do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT) e do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Colégio Pedro II.
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Reunidos, participantes do encontro celebram a construção conjunta da carta para incidência dos povos e comunidades tradicionais na COP 30 | Taynara Borges/ISA
Força, articulação e estratégia
Tendo por pano de fundo a finalização da carta de incidência na COP 30, o encontro foi uma tentativa de amplificar o que os povos e comunidades tradicionais da região fizeram lá em 2007 quando da criação do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), uma união entre indígenas, caiçaras e quilombolas na resistência por seus territórios e na luta pelos tantos direitos comuns historicamente negados a estes coletivos.
Paraty é o primeiro Patrimônio Mundial Misto (natural e cultural vivo, não em ruínas) reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na América Latina. Para a coordenadora cultural da Unesco no país, Isabel de Paula, a realização do encontro na cidade “é de uma representatividade internacional única”.
“É de imensa relevância este encontro neste momento, quando um em cada três sítios do patrimônio cultural está sendo afetado pelas mudanças climáticas. E não é possível enfrentar esta realidade sem a valorização dos saberes e dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais. Precisamos reforçar que ao perder a terra as pessoas perdem sua cultura e seus modos de vida. Vamos nos lembrar do lema da ONU: não deixar ninguém para trás”, defende a coordenadora.
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Cristiano Braga apresenta aos visitantes o manejo agroflorestal que ele e seus mais velhos cultivam no Quilombo da Fazenda (Ubatuba-SP)|Taynara Borges/ISA
Uma das estratégias propostas pela organização foi a sensibilização por meio da experiência. Por isso, os dois primeiros dias foram dedicados a vivências nos territórios indígenas, caiçaras e quilombolas da região que deram oportunidade para que todos os “não comunitários” experienciassem a riqueza cultural, a diversidade produtiva e os acúmulos de saberes dos quais os povos e comunidades tradicionais são detentores.
Nos demais dias, as discussões da programação se deram em torno de cinco eixos temáticos estratégicos: “Articulação em Redes”, “Educação, cultura e modos de vida”, “Ecologia de Saberes para a promoção do Bem Viver”, “Oceanos e Rios - redes de vida e saberes” e “Saúde, resiliência e organização social”.
Ao propor 76 atividades simultâneas, que ocorreram em três espaços montados em diferentes pontos da cidade, o FCT intencionou demonstrar a força da capacidade de articulação quando da união dos comunitários. A infraestrutura contou com auditório, cozinha com refeitório, tendas para os encontros e espaços de descanso, além de palcos para apresentações culturais e feira com venda de produtos artesanais.
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Cozinha das Tradições organiza “Banquetaço” com pratos tradicionais preparados com alimentos produzidos pelas comunidades|Taynara Borges/ISA
Todos os participantes se alimentaram gratuitamente com refeições preparadas pela Cozinha das Tradições, uma organização de mulheres do FCT que se dedicam ao fortalecimento das culturas alimentares tradicionais e destacam a riqueza e a diversidade produtiva dos territórios mantendo vivos pratos típicos preparados com ingredientes locais e técnicas ancestrais.
Território: vida, cultura e abundância
“O território é onde a gente produz a vida. Para nós, a terra não é comércio. Essa é a proposta do sistema capital. Ele empobrece as pessoas. Nós moramos numa região onde preservamos a maior área contínua de Mata Atlântica que resta no Brasil. Mas, para o capital, é a região mais pobre do estado de São Paulo. Nós não somos pobres. Ali há uma riqueza abundante. Então tudo isso está ligado: a manutenção deste espaço, a manutenção da vida, a manutenção da cultura e manutenção das gerações futuras.”
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Dona Diva e Laudessandro, lideranças quilombolas do Vale do Ribeira, debatem em mesa sobre território e patrimônio|Taynara Borges/ISA
A fala é de Laudessandro Marinho da Silva, liderança do Quilombo Ivaporunduva (Eldorado-SP), durante a discussão “Cultura e identidade: preservação e salvaguarda do patrimônio cultural como estratégia de defesa dos territórios tradicionais”.
“Nós estamos aqui dando subsídios para que aqueles que vão lá para os governos saibam o que cada comunidade precisa. Nós sofremos muita opressão. O Brasil foi fundado em cima disso. Precisamos nos libertar! Mas desde o nível municipal, os governantes não aceitam nossa presença, não dialogam, não nos recebem em seus gabinetes. Eles querem nos vencer pelo cansaço. Mas não vamos desistir.”
Assim enfatizou Edvina Silva, a Dona Diva, do Quilombo Pedro Cubas de Cima (Eldorado-SP) que, ao lado de Laudessandro, comentou a experiência das comunidades quilombolas da região do Vale do Ribeira (SP) cujo Sistema Agrícola Tradicional (SAT) fora reconhecido enquanto Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan).
“Estas sementes modificadas que estão nas casas de agricultura exigem muitos insumos para serem cultivadas. Mas as nossas sementes crioulas, que preservamos há mais de 400 anos, não. Elas são resistentes ao nosso manejo. É por isso que fizemos em agosto nossa 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, para poder resgatar nossa cultura. Isso faz parte da garantia dos quilombolas no território. Essa é a importância do patrimônio”, reforçou Laudessandro.
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Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba lança Rede Nhandereko de Turismo de Base Comunitária e inaugura loja no centro histórico de Paraty|Taynara Borges/ISA
Rede Nhandereko de Turismo de Base Comunitária
Com o encerramento das atividades, ao final de semana os participantes puderam conhecer parte dos roteiros turísticos que serão oferecidos pela Rede Nhandereko de Turismo de Base Comunitária, que reúne visitas guiadas, alimentação e hospedagem em territórios indígenas, caiçaras e quilombolas no litoral sul do Rio de Janeiro e litoral norte de São Paulo.
Idealizada pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), a rede é inteiramente articulada e gerida pelas comunidades e foi lançada durante o EITS como o primeiro produto a ser comercializado no Armazém do Território, uma loja física localizada no centro histórico de Paraty, também inaugurada na ocasião, para comercialização de produtos das comunidades, desde alimentos até o artesanato.
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Organizadores e participantes celebram encontro que fortaleceu a resistência e apresentou a riqueza cultural dos territórios|Taynara Borges/ISA
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Exposição quilombola “Roça é Vida” chega ao Vale do Ribeira
Aquarelas, ferramentas e artesanatos que representam o modo de vida do Quilombo São Pedro chegam ao Sesc Registro (SP) após passagem pelo Museu Afro, em São Paulo
Amanda Nainá dos Santos / Título: Contemplando território / 2022 / Aquarela sobre papel
A chegada da exposição Roça é Vida ao Sesc Registro (SP), no dia 21 de setembro, dará ao público do Vale do Ribeira a oportunidade de entrar em contato com o modo de vida e conhecer a história de uma importante comunidade tradicional dessa região: o Quilombo São Pedro, localizado no município de Eldorado (SP).
Com aquarelas, fotografias, ferramentas e artesanato, a exposição foi construída com o objetivo de contribuir para com o fortalecimento da valorização da cultura e memória dos quilombos do Estado de São Paulo.
Além disso, ela é uma importante estratégia de salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SATQ), reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Brasileiro.
O acervo de pinturas é composto pelos originais e por reproduções das ilustrações dos livros “Roça é Vida” (2020) e “Na companhia da produção do Dona Fartura: uma história sobre cultura alimentar quilombola” (2022), ambos ilustrados pelos artistas visuais Amanda Nainá dos Santos e Vanderlei Ribeiro e escritos por Laudessandro Marinho da Silva, Luiz Marcos de França Dias, Márcia Cristina Américo e Viviane Marinho Luiz, pesquisadores e educadores quilombolas e aquilombados do território.
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Amanda Nainá dos Santos / Título: Crianças árvore / 2022 / Aquarela sobre papel
Ilustração para o livro “Na companhia de Dona Fartura, uma história sobre cultura alimentar quilombola”
As obras, assim como toda a exposição, retratam a riqueza cultural, a diversidade produtiva e possibilitam um olhar mais aprofundado acerca do modo de vida das comunidades negras rurais quilombolas, detentoras de saberes deste e de outros tempos, guardiãs das florestas e aquelas que, ao lado de demais povos e comunidades tradicionais, possuem a chave para um desenvolvimento socioambiental que alie o bem viver a uma economia ambiental e socialmente sustentável e justa.
A itinerância da exposição “Roça é Vida” é resultado de uma parceria entre a Associação dos Remanescentes de Quilombo de São Pedro, a Associação Museu Afro Brasil Emanoel Araujo e o Sesc São Paulo.
Vídeo documentário “Quilombo São Pedro: Modo de ser e viver”, elaborado especialmente para a mostra:
(Com informações do Sesc São Paulo)
Serviço
Exposição “Roça é Vida”
Abertura: 21 de setembro de 2024, às 13h
Visitação: 21 de setembro de 2024 a 02 de fevereiro de 2025
Horário: De terça a sexta, das 13h às 21h30; sábados, domingos e feriados, das 10h às 19h
Local: Sesc Registro
Endereço: Avenida Prefeito Jonas Banks Leite 57 Prédio KKKK – Centro, Registro – SP
Entrada gratuita
Exposição Roça é Vida no Museu Afro Brasil Emanoel Araújo|Foto: Henrique Luz
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As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Nota de pesar pelo falecimento de Jaime Maciel de Pontes, liderança quilombola
Jaime ancestralizou sem ver materializado o resultado da luta de uma vida inteira: o Quilombo Cangume segue sem titulação
Na última sexta-feira (13/09) o estado de São Paulo perdeu uma de suas grandes figuras na luta e resistência das comunidades negras rurais quilombolas. Jaime Maciel de Pontes, 59 anos, foi uma importante liderança do Quilombo Cangume, no município de Itaóca, e de todas as comunidades quilombolas da região paulista do Vale do Ribeira.
Agricultor e articulador político, Jaime dedicou a vida à busca pelos direitos coletivos dos territórios quilombolas, em especial do Quilombo Cangume, sua comunidade, onde vivia e deixa esposa, filhos, netos e bisnetos, e também a mãe, Dona Antônia de Pontes, a mais velha Griô do quilombo, com 90 anos de idade.
E embora tenha trilhado uma trajetória de luta e obtido diversas conquistas para sua comunidade, Jaime retornou à ancestralidade sem vivenciar a maior delas: ver seu território, enfim, titulado.
Jaime chegou a acreditar que poderia ver este direito materializado quando, no mês de maio, o governo federal convidou a Associação do Quilombo Cangume para ir até Brasília presenciar a assinatura do decreto que daria início ao último passo para a titulação definitiva do quilombo, ato que ocorreria durante o evento Aquilombar.
"O maior sonho dele era ver a titulação do território, o resultado de tudo o que ele correu atrás e lutou por toda a vida. Mas, infelizmente não chegou a alcançar", lamenta o primo e atual coordenador da Associação do Quilombo Cangume, Odair Dias dos Santos.
"Nós perdemos um grande companheiro. O Jaime correu muito atrás dos direitos dos quilombos, do nosso território. Ele buscava recursos e todas as maneiras para chegar onde chegamos hoje: no reconhecimento do território, da nossa identidade quilombola. Estamos todos muito abalados.”
Mas a luta e a resistência de Jaime de Pontes seguirão reverberando.
O Instituto Socioambiental se solidariza com sua família, amigos e com o movimento quilombola neste triste momento.
Descanse em paz, Sr. Jaime.
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Jaime Maciel de Pontes na 12ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, em 2019|Cláudio Tavares/ISA
Liderança do Quilombo Cangume faleceu sem ver o sonho da titulação realizado|Anna Maria Andrade/ISA
Jaime descarrega caminhão com alimentos na 12ª Feira de Trocas de Sementes e Mudas dos Quilombos do Vale do Ribeira|Claudio Tavares/ISA
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Legado de Mãe Bernadete cresce como raiz de luta no Quilombo Pitanga dos Palmares (BA)
Movimento quilombola exige justiça e direito à terra no aniversário de assassinato da liderança; estudo da Conaq revela aumento nas execuções de quilombolas
Um ano após o assassinato de Mãe Bernadete, a casa onde ela viveu, no Quilombo Pitanga dos Palmares (BA), grita por justiça|Ester Cezar/ISA
No Quilombo de Pitanga dos Palmares (BA), o primeiro aniversário do assassinato de Mãe Bernadete Pacífico foi marcado por saudade e emoção, mas sobretudo pelo grito coletivo por justiça e pela garantia do direito à titulação dos territórios quilombolas.
Na terra sagrada que deu origem à liderança, no município de Simões Filho, sua memória se tornou raiz da luta ancestral quilombola, que orienta e acompanha as sementes da resistência a seguirem firmes na defesa de seus direitos.
“Nós não vamos associar o assassinato de Dona Bernadete ao tráfico, porque a morte de Dona Bernadete foi por terra nesse país!”.
Em discurso no 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola – Fé, Cultura e Resistência, que organizou uma série de homenagens pelo aniversário de falecimento da liderança quilombola, a articuladora política da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Selma Dealdina, falou que a família, amigos, filhos de santo e o movimento nacional quilombola não irão aceitar a versão da Polícia Civil do Estado da Bahia, que aponta o tráfico de drogas como mandante da morte de Mãe Bernadete.
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Selma Dealdina: “Nós não vamos associar o assassinato de Dona Bernadete ao tráfico, porque a morte de Dona Bernadete foi por terra nesse país!"|Ester Cezar/ISA
Na noite de 17 de agosto de 2023, Maria Bernadete Pacífico Moreira foi assassinada em sua casa, no Quilombo Pitanga dos Palmares, aos 72 anos. Apesar de estar no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), ela foi alvejada por 22 tiros, em um caso que chocou o país e evidenciou a vulnerabilidade das lideranças quilombolas no Brasil.
Após Mãe Bernadete, 12 pessoas quilombolas foram assassinadas no país no período de um ano. Um levantamento inédito feito pela Conaq mostrou aumento exponencial dos crimes nos últimos cinco anos.
Foram 46 execuções registradas de janeiro de 2019 a julho de 2024, uma média anual de 8 assassinatos. A cada um mês e meio, uma vida quilombola foi eliminada violentamente. Destacam-se 2021 e 2023 como anos com número de assassinatos superior à média anual.
Há décadas, o Quilombo de Pitanga dos Palmares enfrenta graves conflitos fundiários, agravados pela especulação imobiliária desenfreada e pela instalação de empreendimentos públicos e privados que põem em risco sua sobrevivência.
“O tráfico não pode levar os créditos de uma luta que Dona Bernadete travou enquanto denunciava desmatamento, enquanto denunciava a não titulação de terras e enquanto cobrava pela morte do Binho [seu filho, também assassinado]. É preciso que o sangue derramado pela luta por terra nesse país seja respeitado! Não vão desonrar o sangue de Dona Bernadete”, afirmou Selma Dealdina.
“Mãe Bernadete era mãe, mãe do quilombo, a griô que dava conta do estado dentro do quilombo", lembra Mãe Jaciara, amiga e moradora de Pitanga dos Palmares. "Mas não era ialorixá", apesar de iniciada no candomblé, explica. Por isso, a acusação de racismo religioso para o crime não pode ser considerada. “Quando [a mídia] fala ‘a ialorixá foi assassinada no terreiro', isso também deixa a gente de candomblé vulnerável. Então pode chegar em qualquer terreiro e matar?”, questionou.
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Mãe Jaciara: “Mãe Bernadete era mãe, mãe do quilombo, a griô que dava conta do estado dentro do quilombo”|Ester Cezar/ISA
Legado continua
O 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola foi realizado entre os dias 16 e 18 de agosto pelo Quilombo Pitanga dos Palmares e pela Associação de Etnodesenvolvimento Muzanzu. Sete comunidades quilombolas da região e lideranças de todo o país se reuniram para celebrar o legado de Mãe Bernadete com visitas guiadas, apresentações musicais, danças tradicionais, oficinas culturais e feira de produtos artesanais e gastronômicos.
“Esse festival retrata a história de luta, resistência e ancestralidade de Mãe Bernadete. Era tudo que ela fazia quando estava aqui entre nós e eu tô dando continuidade a esse legado tão corajoso e maravilhoso”, contou Jurandir Pacífico, filho da matriarca.
Atuante em várias frentes de luta, Mãe Bernadete defendia o empoderamento feminino, a criação e aplicação de políticas públicas e uma educação de qualidade – um de seus sonhos era colocar universidades dentro dos quilombos.
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Grupo capoeirista do Quilombo Pitanga dos Palmares|Ester Cezar/ISA
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Oficina de produção de acarajé durante o festival|Ester Cezar/ISA
Além disso, fez parte da coordenação e do coletivo de mulheres da Conaq, atuou como Secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho (BA), foi mestra de cultura popular, artesã e uma referência também como sambadeira, sendo da primeira coordenação da Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba).
“O desejo da minha mãe é esse, ver os irmãos quilombolas juntos. Essa troca de saberes e fazeres de sete comunidades quilombolas envolvidas nesse Festival é de suma importância”, completou Jurandir Pacífico.
Durante o festival, foi inaugurado o Museu Rústico Mãe Bernadete. Criado para homenagear a liderança e seu filho Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, mais conhecido como Binho do Quilombo, assassinado em 2017. O espaço é uma tradicional casa de pau a pique e foi construído em uma semana, com barro, bambu, ripas, pau-brasil e muitas mãos.
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Museu Rústico de Mãe Bernadete lembra um santuário, com objetos, roupas, fotos e artigos religiosos|Ester Cezar/ISA
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Ao som de tambores, Jurandir Pacífico anunciou a inauguração do museu, mas se permitiu ficar do lado de fora. “Eu não tenho condição de entrar hoje. Eu vou abrir, mas não vou entrar. Não estou preparado para entrar agora”, desabafou.
“O museu traz a preservação da memória e da história das pessoas que lutam. Ali tem a memória do Binho, tem a memória da Mãe Bernadete e a perspectiva de que a gente não perca essas histórias”, exaltou a ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves.
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Jurandir e Wellington Pacífico, filho e neto de Mãe Bernadete|Ester Cezar/ISA
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Antes da inauguração, Jurandir pediu um minuto de silêncio|Ester Cezar/ISA
Fé e ancestralidade
“No candomblé, quando uma mulher de candomblé morre, ela se torna uma ancestral. Então Mãe Bernadete aqui é uma força que está com nós”, relembrou Mãe Jaciara.
O Quilombo Pitanga dos Palmares é o único do Brasil que possui uma rua de terreiros, e é nesse cenário que Mãe Bernadete cultuava sua fé. Apesar de não ter o título de ialorixá, ela era uma mulher de terreiro, filha de Oxumarê, iniciada na década de 1970 no terreiro Ilê Axé Kalé Bokum, em Salvador.
“A espiritualidade acaba sendo a tecnologia que mais protege a gente”, comentou Wellington Pacífico, neto de Mãe Bernadete e que estava com ela quando foi assassinada.
“É o búzio que vai orientar, é o Exú, é o Caboclo que vai orientar para quais caminhos seguirmos e quais pessoas confiarmos. Acaba sendo importante para nós, porque quando a gente escuta, a gente acaba tendo resultado. No final das contas, tem um avanço nas lutas em relação à defesa do território e também tem a nossa proteção enquanto pessoa, a integridade física da gente”, explicou.
Mulheridade quilombola
O II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas foi uma das últimas agendas públicas da Conaq à qual Mãe Bernadete esteve presente, em junho de 2023. O tema era “Quando uma mulher quilombola tomba, o quilombo se levanta com ela”.
“Mãe Bernadete é fundadora, é integrante, porque ela não deixa de existir porque não está mais aqui no plano carnal. Ela continua entre nós. Uma das fundadoras do coletivo de mulheres da Conaq”, recordou Selma Dealdina, que juntamente com outras mulheres da instituição e do coletivo, promoveu uma oficina de mulheres quilombolas no festival para honrar também essa parte da luta de Mãe Bernadete.
“A dor que doeu aqui doeu em todas nós. Então esse é um momento único, em que a gente pode vivenciar pelo menos um pouco de justiça. É uma reafirmação de direito, de luta, de resistência e de dizer que o legado dela não morreu. Pelo contrário: o legado dela continua. Ela não lutava só pelo território dela, ela lutava por todos os territórios”, reforçou a coordenadora executiva da Conaq e membro do Coletivo de Mulheres, Laura Silva.
O coletivo se uniu a mulheres do Quilombo Pitanga dos Palmares e de Salvador para uma oficina de reflexões políticas, onde foram abordados temas como racismo, regularização fundiária, abandono, feminicídio e adoecimento psicológico. As mulheres também escreveram sobre Mãe Bernadete. "Um legado de luta, fé e resistência. Uma revolução ancestral e visceral. Eternamente presente!”, dizia uma das mensagens.
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Coletivo de Mulheres da Conaq somou-se às mulheres do quilombo Pitanga dos Palmares e outras aliadas de Salvador para promover uma oficina de reflexões políticas sobre suas vivências e que foi marcada por emoção e afeto entre as participantes|Ester Cezar/ISA
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Laura destacou que o coletivo de mulheres trabalha de forma conjunta na luta por políticas públicas adequadas à realidade quilombola, debatendo pautas a nível nacional e principalmente fazendo incidências nos ministérios, “para que a gente possa ter uma política pública que venha de encontro com a nossa realidade”, comentou.
“Tem um ódio instituído no país, que acirra a violência contra as mulheres. Mãe Bernadete, com os três primeiros tiros, já estava morta. Mesmo assim, deram mais 19. Isso não é um crime que caracteriza o tráfico, como estão querendo dizer. Não. Isso é um crime de ódio”, ressaltou a ministra.
Segundo ela, o governo está implementando um protocolo nacional para proteger as mulheres quilombolas, com políticas públicas voltadas à sua segurança, autonomia e combate à violência. No âmbito do ministério, foi instituído o Fórum Permanente das Mulheres Quilombolas – uma demanda do último Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas –, onde debates bimestrais são realizados para definir as linhas dessas políticas a serem investidas nos quilombos.
“Talvez eu não tenha elementos para dizer todos [os motivos], mas eu digo preponderantemente: sim, a questão fundiária é adjacente a toda essa violência que as comunidades tradicionais têm sofrido, especialmente as comunidades quilombolas”, disse o promotor de justiça e coordenador da área de direitos humanos do Ministério Público da Bahia, Rogério de Queiroz.
O avanço do agronegócio, das instalações eólicas e das fazendas de energia solar, juntamente com suas linhas de transmissão, está pressionando os territórios quilombolas. Além disso, o interesse do setor imobiliário em áreas valorizadas pelo turismo e por empreendimentos litorâneos intensifica a pressão. O mais preocupante, no entanto, é o avanço do crime organizado sobre os territórios quilombolas, dos geraizeiros e de outras comunidades tradicionais.
“O estado da Bahia não pode vivenciar outra situação como a que aconteceu com Binho, com Mãe Bernadete. Nós não podemos vivenciar nova situação de agressão, de violência contra defensores dos direitos humanos e nós precisamos aprimorar esses mecanismos de proteção e de prevenção”, alertou.
Segundo o promotor de justiça, o Ministério Público é responsável por apontar quais são os erros identificados nesses casos. “O MP atua quase como uma atuação subsidiária à omissão dos entes públicos. Por isso, que a gente é chamado. A rigor, nós não deveríamos nem mesmo estar diante de situações como essas. Acaba havendo esse destaque da atuação do MP por conta do vazio que é criado nesse cenário dessa política pública de proteção a essas pessoas.”
Titulação de Pitanga dos Palmares
Chefe de gabinete da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi-BA), Alexandro Reis destacou a importância da titulação dos territórios quilombolas para o fim dos conflitos. “Primeiro, porque dá segurança às comunidades em relação a ter o seu território e a sua terra garantidos para produzir, para preservar sua cultura, para se reproduzir.”
Em segundo lugar, a preservação do meio ambiente. “As comunidades quilombolas têm esse papel importante de preservar o meio ambiente. Sua produção não degrada os biomas, além de história, memórias afetivas e culturais, e de funcionamento da comunidade. Além disso, é uma determinação da nossa Constituição Federal, é uma questão de direito fundamental que é responsabilidade do Estado garantir isso”, pontuou.
A Sepromi atua junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para fazer o reconhecimento dos territórios quilombolas. O Quilombo Pitanga dos Palmares foi certificado em 2004 pela Fundação Cultural Palmares.
Alexandro Reis explica que há uma força tarefa junto com Incra, Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Advocacia Geral da União (AGU) e Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE-BA) para fazer a desintrusão da área, que tem 854 hectares. Os imóveis de pessoas não quilombolas foram identificados e notificados. Agora, o governo federal deve negociar as indenizações para a saída das famílias.
Novas estratégias de proteção
De acordo com o último Censo do IBGE, a Bahia é o estado que tem o maior número de quilombolas do Brasil. São 397.059 e apenas 5% vivem em territórios demarcados.
O estado lidera com Maranhão e Pará o ranking de mortes por conflitos de terra. Só na Bahia, foram pelo menos 11 quilombolas assassinados em dez anos.
Apesar de uma luta firme e sólida pela titulação de territórios quilombolas, inclusive o seu, Mãe Bernadete temia pela própria vida. Entrou para o PPDDH e estava inserida no programa desde 2017. Entretanto, não foi o suficiente.
“Cada vez que se avança no direito dessas comunidades, a resposta vem mais violenta por parte de quem não tem interesse que essas comunidades tenham a posse do seu território. São territórios ricos, que têm água, que têm minérios, e os poderes, as forças econômicas questionam.”, afirmou a Superintendente de Direitos Humanos no Estado da Bahia, Trícia Calmon.
Ela defende a revisão das estratégias de proteção para pessoas que lutam por territórios, destacando a necessidade de organizar processos que acelerem a regularização fundiária. Segundo Trícia Calmon, é crucial identificar e eliminar as ameaças originadas pela insegurança na posse da terra.
“É necessário chegar com políticas públicas fortemente nos territórios, porque passa uma mensagem que aquele território existe e está no mapa de ações dos governos. Outra via é o fortalecimento das próprias comunidades e dos movimentos sociais, para que eles construam também suas soluções de proteção. Todas as esferas de governo precisam dialogar permanentemente.”, alertou.
Vou fazer minha oração pra que?
Comi fogo quem me deu
Se a minha oração terminou, meu Zumbi,
Os inimigos não me venceram
Se a nossa oração terminou, meu Zumbi
Os inimigos não nos venceram.
Composição de Ananias Viana, amigo de Mãe Bernadete
O encontro-homenagem chega ao fim, mas a vida em Quilombo Pitanga de Palmares continua, não se interrompe. A luta pela terra, direitos e memória persiste, invencível, como Mãe Bernadete, que se eternizou em raiz e agora se eleva como tronco forte entre os ancestrais, zelando por aqueles que caminham sob sua proteção.
Em cada quilombola, Mãe Bernadete segue viva.
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|Walisson Braga/Conaq
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|Ester Cezar/ISA
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"Sabemos que esta morosidade é uma estratégia para que um dia a história quilombola se acabe"
15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira debate racismo institucional, titulação de territórios e injustiça climática
Elementos da mística da abertura da 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
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Malvina Silva, do Quilombo Nhunguara, mostra plantas tradicionais na feira|Júlio César Almeida/ISA
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Visitantes puderam conhecer a variedade do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
A morosidade e a falta de interesse político na titulação de territórios quilombolas deram a tônica da abertura da 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
Como já é tradição, a feira ocorreu neste mês de agosto, no município paulista de Eldorado, onde as comunidades da região receberam comitivas de outros municípios e estados para compartilhar saberes, debater com a sociedade e questionar o poder público acerca da ineficiência na execução de políticas públicas e no cumprimento da Constituição na garantia da regularização fundiária dos quilombos no Vale do Ribeira e em todo o país.
Para além da cobrança pela garantia de direitos e pelo estrito cumprimento da lei, como ocorre todos os anos a Feira também celebrou a riqueza cultural quilombola, com apresentações culturais de música, dança, capoeira e poesia.
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Seu Hermes Modesto Pereira, do Quilombo Morro Seco|Júlio César Almeida/ISA
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Apresentação do Quilombo Morro Seco na 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais |Júlio César Almeida/ISA
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Grupo dançou fandango, dança introduzida pelos portugueses, mas aquilombada por seus praticantes no Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
E exibiu parte da diversidade produtiva das comunidades a partir da venda de produtos in natura e processados e da oferta de mudas e sementes crioulas, habilmente conservadas ao longo de gerações, como uma maneira de manter vivas as variedades de alimentos e espécies medicinais que são cultivadas na região desde a Diáspora e que tiveram seus usos aprimorados no decorrer dos séculos.
Dois outros assuntos dominaram as discussões em encontros temáticos organizados pelas comunidades do Vale do Ribeira em momentos de trocas e debates. Um deles foi a implementação da Resolução nº 08/2012 do Ministério da Educação que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Que, embora tenha sido publicada em 2012, segue distante de ser implementada pelos municípios, como no caso de Eldorado, cujas autoridades insistem em evasivas e isenção de responsabilidade.
O outro foi a emergência climática que assola o planeta e que atinge, de maneira mais incisiva e desproporcional, povos e comunidades tradicionais (PCTs), como é o caso das comunidades quilombolas. Estas vivem mudanças severas em seus territórios e possuem menos recursos e poder político para ações de mitigação e adaptação.
Numa demonstração prática de como as mudanças climáticas têm ocorrido de maneira mais acelerada e contundente, Eldorado atingiu a temperatura de 35ºC no sábado, dia 17, dia da venda e troca de produtos, em pleno inverno. O que surpreendeu os participantes vez que, tradicionalmente, o dia de feira é um dia frio e chuvoso, como foi no ano passado e nos anos anteriores.
Racismo impede avanço em titulações
“A péssima situação das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira – e de todo o estado de São Paulo – no acesso à terra só reforça que a escravidão nunca acabou de fato. Os governos, tanto estadual quanto federal, estão muito ruins em resolver os problemas de quem ajudou e segue ajudando a construir este país.”
A fala é do articulador da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), André Luiz Pereira de Moraes, liderança do Quilombo André Lopes, localizado em Eldorado.
“Estamos perdendo nossa identidade, o nosso sustento. E sabemos que esta morosidade é uma estratégia para que um dia a história quilombola se acabe. Já que não podem queimar os quilombos, eles fazem isso. Só os métodos que vão mudando ao longo do tempo. A estrutura estatal oprime as comunidades, sempre indo contra os nossos direitos. Todos os territórios do Vale do Ribeira vivem conflitos: ou com terceiros ou com o Estado. Assim, as pessoas vão deixando seus territórios, especialmente os mais jovens. Isso é a opressão que nunca acabou.”
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André Luiz Pereira de Moraes, liderança do Quilombo André Lopes e articulador da Eeacone, critica demora nas titulações: "estamos perdendo nossa identidade"|Júlio César Almeida/ISA
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Seminário "Titulação de Territórios Quilombolas - Pelo direito de semear o presente e o futuro" abriu a programação|Júlio Cesar Almeida/ISA
A morosidade à qual André se refere foi contabilizada e resultou em números alarmantes. Segundo levantamento da Terra de Direitos, no ritmo em que o Estado opera historicamente, seriam necessários 2.708 anos para finalizar a titulação dos 1.857 quilombos com processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Isso sem levar em conta os dados apresentados pelo Censo 2022, que dão conta da existência de 7,6 mil comunidades quilombolas no Brasil, estabelecidas em mais de 8,4 mil localidades, que passam por longos processos de reconhecimento antes da abertura dos trâmites junto ao Incra.
“Eventos como este são fundamentais para que a gente some esforços no sentido de cobrar que Executivo e Judiciário assumam compromissos coletivos junto às comunidades para que as titulações dos territórios quilombolas aconteçam em um prazo razoável, como diz a Constituição Federal”, pontua a assessora jurídica da Eaacone, Rafaela Santos, jovem liderança do Quilombo Porto Velho, em Iporanga.
“Sem o território titulado nós continuamos num estado de alerta e insegurança constantes, por razões que vão desde os conflitos fundiários e as invasões, até o etnocídio, a dizimação de um povo. Não dá para esperar milhares de anos para que isso aconteça. Isso tem que acontecer logo.”
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (Constituição Federal – Artigo 68 – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias)
Aos presentes, Oriel Rodrigues, reforçou que abandonar a luta nunca será uma opção para os quilombolas do país. “Todos os direitos que adquirimos são fruto de muita luta. Nada nos foi dado, em momento algum. É por isso que trabalhamos com esperança, esperança na luta de homens e mulheres que nunca esmoreceram.”
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Oriel Rodrigues, do Quilombo Ivaporunduva e integrante da Rede Nacional de Advogados Quilombolas|Júlio César Almeida/ISA
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Rafaela Santos, advogada, assessora jurídica da Eaacone e jovem liderança do Quilombo Porto Velho|Júlio César Almeida/ISA
Oriel é integrante da Rede Nacional de Advogados Quilombolas (Renaq) e uma das lideranças do Quilombo Ivaporunduva, localizado em Eldorado, o único território quilombola da região que é integralmente titulado e registrado.
“A nossa luta mais importante é pela garantia da terra. Muitos tombaram pelo caminho. Mas nós não iremos, em momento algum, fraquejar”, asseverou, recordando o marco de um ano do assassinato de Mãe Bernadete, morta a tiros em seu próprio território no dia 17 de agosto de 2023, em meio a uma vida dedicada à luta pela titulação.
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RTC (Relatório Técnico-Científico|Fonte: Itesp
“Estas lutas históricas parecem lutas invisíveis, porque o Estado não as reconhece. Mas são lutas árduas, trabalhosas e complexas. E nós temos a certeza de que vamos vencer. Nós estamos aqui por um mundo melhor, mais justo e igualitário. O Estado precisa se organizar mais. Se precisar, pode aprender com a gente”, complementou Luiz Francisco Melo, liderança do Quilombo Espírito Santo da Fortaleza de Porcinos, localizado em Agudos (SP).
Também participaram do encontro o representante do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), Ronaldo Pereira Muniz, promotor de Justiça regional de Direitos Sociais do Vale do Ribeira; o representante da Defensoria Pública da União (DPU), defensor regional de Direitos Humanos em São Paulo, Érico Oliveira; e o representante da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP), Andrew Toshio, responsável pelas demandas coletivas de comunidades tradicionais da região do Vale do Ribeira.
Servidores da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), órgão estadual que possui dentre suas atribuições a de “reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos e a regularização de suas áreas”, foram convidados e estiveram presentes, acompanhando o debate. Já o Incra não enviou representantes.
Guardiões da floresta x injustiça climática
A injustiça climática e o protagonismo de povos e comunidades tradicionais na mitigação dos efeitos causados pelos extremos do clima também ganharam espaço para debate durante a Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
“Nós somos pioneiros. Aprendemos o abecedário lá atrás. Nossos mais velhos já sabiam de tudo e nos ensinaram. Mata virgem, capoeira, nascentes, rios... todo o cuidado com a floresta faz parte do modo de vida quilombola. E esta também é nossa luta. Quando protestamos contra as barragens no Rio Ribeira de Iguape sempre é este o nosso intuito. Não é por acaso que nossa região é o pulmão do estado”, diz Maíra da Silva, bióloga e pesquisadora, coordenadora da área de Combate ao Racismo Ambiental do Instituto de Referência Negra Peregum, articuladora da Eaacone, quilombola do Quilombo Ivaporunduva.
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Maíra da Silva, do Quilombo Ivaporunduva, articuladora da Eaacone e do Instituto de Referência Negra Peregum|Júlio César Almeida/ISA
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Integrantes da Mesa "Emergência Climática e restauração ecológica - o que isso tem a ver com a gente?"|Júlio César Almeida/ISA
No entanto, ainda que cultivem um modo de vida sustentável que, ao longo dos últimos 400 anos, preservou o maior remanescente de Mata Atlântica do país, os territórios quilombolas têm sofrido com as variações do clima que afetam diretamente seus modos de vida atrelados a ciclos de roça cada vez mais imprevisíveis. Assim pontua o coordenador da Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, Nilzo Dias, representante do Quilombo André Lopes.
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"A gente sempre soube quando plantar. Mas agora está difícil", diz Nilzo Dias|Júlio César Almeida/ISA
“A gente sempre soube quando plantar. Mas agora está difícil.
Não conseguimos mais fazer como nossos mais velhos fizeram e nos ensinaram.
Nestes dias as lavouras de feijão secaram no frio. Era para estar fazendo só calor, mas fez dias de muito frio. Secou.
É difícil porque não conseguimos prever nem controlar. Seguimos o que sempre fizemos e acontecem estas coisas.”
Kátia Penha, liderança da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e do Quilombo Divino Espírito Santo, localizado na região de Sapê do Norte no estado do Espírito Santo, apontou como a realidade vivida no Vale do Ribeira é semelhante à de seu território e aos demais territórios pelo Brasil.
“Como diz meu pai: o tempo está destemperado. Lá, como aqui, mais da metade de floresta preservada está em territórios de PCTs. E, também como aqui, lá ninguém mais consegue se basear pelo ciclo lunar. Nosso estado foi devastado pelas plantações de eucalipto e pela exploração de petróleo e gás.”
E conclama: “Este modo desenvolvimentista tem que parar de recair sobre nós!”.
Ciro Brito, analista de políticas climáticas do Instituto Socioambiental (ISA), é enfático: “Tudo isso está atrelado ao racismo”.
Brito explica que, embora os negacionistas utilizem do argumento raso de que o meio ambiente não pode ser racista, numa tentativa de descredibilizar a pauta, existe uma relação direta entre a vulnerabilidade e a exposição de populações racializadas às consequências da crise climática.
“As comunidades que têm relação com o meio ambiente sofrem mais com as mudanças climáticas por causa do racismo estrutural. Porque não têm seus territórios garantidos ou vivem nas baixadas e periferias, em contextos de cidades. Essas populações ficam mais vulneráveis às consequências das mudanças climáticas.”
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Kátia Penha, liderança da Conaq e do Quilombo Divino Espírito Santo: “este modo desenvolvimentista tem que parar de recair sobre nós!”|Júlio César Almeida/ISA
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Ciro Brito: "comunidades que têm relação com o meio ambiente sofrem mais com as mudanças climáticas por causa do racismo estrutural"|Júlio César Almeida/ISA
O que quilombolas e especialistas enfatizaram, entretanto, é que para além de vítimas, os povos e comunidades tradicionais são a grande solução para a crise climática e suas intempéries.
Brito recorda que, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), estamos na década da restauração ecológica e destaca como esta ação é fundamental no enfrentamento à questão do clima.
“Para combater esta crise, segundo a ONU, são necessárias soluções baseadas na natureza. E a restauração é uma das mais importantes soluções neste sentido, porque captura carbono durante o seu crescimento e em sua preservação. O Vale do Ribeira não é a região mais degradada. Ao contrário, vocês estão em um santuário, vocês são líderes de combate às mudanças climáticas. E a iniciativa da Rede de Sementes oferece uma solução importantíssima e de extrema relevância.”
Educação não sai do papel
Uma conquista de décadas de luta do movimento negro, no ano de 2003 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.639 tornando obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares no Brasil.
“O conteúdo programático incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”, diz o texto oficial.
Quase mais dez anos de luta depois, em 2012, o Conselho Nacional de Educação considerou um recorte quilombola por meio da Resolução nº08, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.
E agora, em 2024, a luta pela implementação destes dispositivos segue a mesma, vez que, como aponta o movimento, há um abismo entre as normativas legais e a efetivação do direito nos territórios.
“É uma vergonha que o município que tem a maior concentração de quilombolas do estado de São Paulo não tenha implementado até hoje a Resolução nº08”, questiona a educadora, doutora em educação, Márcia Cristina Américo, residente no Quilombo São Pedro, em Eldorado.
Mas não só os desafios, como também os acúmulos e a riqueza da Educação Quilombola foram o terceiro tema em discussão durante a 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
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Luiz Ketu e Márcia Cristina Américo, lideranças do quilombo São Pedro e autores de livros sobre a cultura quilombola|Júlio César Almeida/ISA
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Oficina "Educação quilombola - território de saberes" começou com mística de integração afetiva e muitos abraços|Júlio César Almeida/ISA
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Grupos foram formados para aprofundar os pontos trazidos pelos educadores e participantes|Júlio César Almeida/ISA
O debate partiu de um pensamento do escritor, filósofo e professor quilombola Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo: “Eu vou falar de nós ganhando, por que pra falar de nós perdendo eles já falam”.
E assim todos discutiram a importância da sabedoria tradicional na educação das crianças quilombolas: a beleza do fazer roça, das garrafadas, do conhecimento das ervas medicinais, a história de seus territórios e comunidades, os modos de vida de seus quilombos, a importância da roça na manutenção da vida e da cultura, as brincadeiras e a alimentação tradicional nas escolas.
Tudo o que hoje não é abordado em uma sala de aula que parece estar descolada da realidade de suas crianças, mantendo um currículo não-condizente com o que de fato importa no aprendizado dentro das comunidades.
“O que os professores enviados para os territórios pregam é que as crianças precisam estudar para ‘serem alguém’ e não precisar fazer roça. Mas o quilombola é aquele que faz a roça. A lógica não pode ser descolar estas crianças do território, mas sim despertar nelas o olhar para a riqueza cultural que há dentro de suas comunidades e todas suas possibilidades”, reforça Américo.
Liderança do Quilombo São Pedro, Aurico Dias resume: “Nossa intenção nunca foi desbravar a natureza, mas sim preservar a natureza”.
Tradição, fartura e resistência
Depois de um dia de discussões, o dia seguinte foi dedicado à celebração, com a venda e troca de produtos e apresentações culturais de comunidades quilombolas não só do Vale do Ribeira, mas também de outras regiões do estado.
Dia de celebrar a riqueza cultural dos quilombos e a diversidade produtiva que representa a fartura cultivada e colhida pelas mãos quilombolas de diferentes gerações. Logo cedo, começou a ser preparado o almoço tradicional quilombola, com uma ampla variedade de produtos do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola.
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Temperos da roça tradicional quilombola para a mesa dos participantes da 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais|Júlio César Almeida/ISA
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Palmito, um dos alimentos cultivados no Sistema Agrícola Tradicional dos Quilombolas do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
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Preparo do almoço tradicional quilombola começou cedo e envolveu lideranças de diversas comunidades do Vale do Ribeira|Júlio César Almeida/ISA
Já na Praça Nossa Senhora da Guia, no centro de Eldorado, no canto de Elvira Morato, do Quilombo São Pedro, ao lado do Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim, a representatividade, a luta:
“Ontem foi o seminário
Na cidade de Eldorado
Os quilombos se reuniram
Com várias entidades
Pra discutir os direitos
Das nossas comunidades
Vamos, vamos trabalhar
Sem punição
Quilombo está garantido
Na lei da Constituição
Nossa Feira de Sementes
Ela é muito importante
Os quilombos trazem aqui
Os produtos lá da roça
Os produtos pra vender
E as mudas para troca”
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Elvira Morato, liderança do Quilombo São Pedro, abraça o esposo na apresentação com o Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim|Júlio César Almeida/ISA
Para Osvaldo dos Santos, liderança do Quilombo Porto Velho, este momento da Feira de Sementes “traz várias importâncias: a troca de saberes e das sementes e mudas para a manutenção do conhecimento, a inserção dos jovens nesta tradição, a reunião de amigos que às vezes só se encontram nesta ocasião e o reforço da sintonia entre os territórios que reforçam suas conexões para a celebração e para a luta”.
Santos ressalta que toda a família se envolve neste momento de apresentação dos produtos durante a Feira e conta levou cerca de 15 variedades para venda, sendo alguns deles processados: a farinha de mandioca, a rapadura e a taiada (uma espécie de rapadura com gengibre, cana-de-açúcar e farinha de mandioca), a cocada, o mel e a apressada (um bolinho à base de polvilho, rapadura e ovos).
Outra liderança do Quilombo Porto Velho, Vanilda Donato entende a Feira de Sementes como um momento estratégico em diversas frentes.
“Esta feira é uma educação para as nossas crianças na luta das comunidades. Mostra que estamos preparando um solo bom. É uma das maiores organizações das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. Reunimos não só as populações dos territórios, mas também grandes parceiros que estão com a gente nesta estratégia de fortalecimento.”
“Assim, mantemos a tradição e, mais do que isso, mantemos os quilombolas em seus territórios, que é o que busca nossa luta”, reforça Laudessandro Marinho da Silva, do Quilombo Ivaporunduva.
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Leonila Pontes (ao centro), do Quilombo Abobral Margem Esquerda, apresenta seu livro de poesia "Mulheres não podem esperar"|Júlio César Almeida/ISA
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Laudessandro Marinho da Silva, liderança do Quilombo Ivaporunduva, recebe visitantes em seu estande|Júlio César Almeida/ISA
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Mel de abelhas, farinha de mandioca e diversos outros produtos levados por Vandir dos Santos do Quilombo Porto Velho|Júlio César Almeida/ISA
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Todos os anos, em agosto, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira trazem sua luta e diversidade para Eldorado|Júlio César Almeida/ISA
Assessora técnica do ISA, Raquel Pasinato recorda que a Feira nasceu antes de o Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SATQ) ser reconhecido Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2018. E considera que hoje ela se tornou um forte instrumento para sua salvaguarda.
“A Feira representa a manutenção da agrobiodiversidade desse sistema secular e ancestral quilombola e contribui para manter esse sistema vivo e biodiverso para produzir alimento que nutre corpos e mentes das comunidades e de quem acessa essa fartura alimentar compartilhada pelos quilombolas do Vale do Ribeira.”
A 15ª edição da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira foi uma realização do Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça); das Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira; da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone); da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale); da Rede de Sementes do Vale do Ribeira; do Instituto Socioambiental (ISA) e da Associação Slow Food do Brasil, com apoio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo por meio do Programa de Ação Cultural (ProAc).
Também apoiaram o evento o Sesc Registro; as Prefeituras de Eldorado, Iporanga e Itaoca; a Iniciativa Verde; a Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo; o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus Registro;e a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp).
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Terceiro episódio do "Vozes do Clima" aborda debate sobre mudanças climáticas e mercado de carbono durante assembleia da Rede Xingu+
Programa traz relatos de lideranças indígenas e ribeirinhas que participaram do encontro na Resex Rio Iriri
Pedro de Castro trabalha na extração de castanha na Terra do Meio (PA), território ribeirinho onde aconteceu a 6ª Assembleia da Rede Xingu+|Rogério Assis/ISA
Já está disponível em todas as plataformas de áudio o terceiro episódio do "Vozes do Clima", boletim de áudio produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA), com o objetivo de levar informações a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais sobre os temas relacionados à pauta climática.
A terceira edição é apresentada por Joelmir Silva, integrante da rede de comunicadores da Rede Xingu+ e morador da comunidade extrativista Maribel, e ouviu diversas lideranças indígenas e ribeirinhas durante a 6ª Assembleia da Rede Xingu+, que aconteceu em maio deste ano, na Reserva Extrativista Rio Iriri, na Terra do Meio (PA), sobre questões relacionadas às mudanças climáticas e ao mercado de carbono.
Escute!
Cerca de 350 defensores e defensoras da Bacia do Xingu, representando 53 organizações indígenas e ribeirinhas, discutiram estratégias para enfrentar as ameaças à região, incluindo os efeitos da emergência climática e o assédio sobre as comunidades para firmar contratos de créditos de carbono, além das antigas preocupações com os impactos do desmatamento, da grilagem de terras, do garimpo, do roubo de madeira e dos megaprojetos de infraestrutura.
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Joelmir Silva, comunicador da Rede Xingu+|Claudio Tavares/ISA
“A gente tá muito preocupado com tudo isso, por causa da mudança do clima, do sol também. O ano passado foi pouca chuva. Até a castanha foi pouca", contou Maria Laura Mendes da Silva, a Dona Laura, da comunidade São Francisco, na Reserva Rio Iriri.
Ela relatou ao "Vozes do Clima" que além das perdas que afetam o modo de vida da população local, a seca intensa que atingiu a região no ano passado provocou a proliferação de insetos. “A água veio assim, tipo uma lama. Aí, quando ela chegava, entrar dentro da água, a gente não aguentava com tanto bichinho nas pernas da gente. Aí a gente deixou até de banhar no rio”, disse.
Além dos graves problemas surgidos com as mudanças do clima, o novo episódio do "Vozes do Clima" também repercute as plenárias que abordaram, durante a assembleia, temas como mercado de carbono e projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, Manejo Sustentável e Aumento do Estoque de Carbono (REDD+).
Sobre as pressões exercidas por empresas certificadoras de crédito de carbono em cima das comunidades, o secretário executivo da Rede Xingu+, André Villas Boas comentou: "O grande problema é de entendimento e informação. Pouca informação disponível e acessível para as comunidades. E as informações chegam através de empresas e de interessadas em fazer projetos de uma maneira muito manipulada, colocando a possibilidade de ganhar grandes recursos na frente, como sendo o único argumento que justificasse fazer um projeto de carbono. Sem que as comunidades consigam entender, de fato, o quê que é um projeto de carbono”, destacou.
Os mecanismos de REDD+ foram criados para incentivar os países em desenvolvimento, como o Brasil, a contribuírem para o equilíbrio climático através da redução de emissões de gases de efeito estufa e da conservação e aumento dos estoques de carbono. No caso do Brasil, as comunidades indígenas, quilombolas e de povos tradicionais detém grandes áreas de estoques de carbono. Mas nem sempre estes mecanismos são implementados a partir de um diálogo transparente com estas comunidades.
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Comunidade São Francisco, na Reserva Extrativista Riozinho Iriri, no Pará, recebeu em maio a 6ª Assembleia da Rede Xingu+|Kamikiá Kisêdjê/Rede Xingu+
“Algumas empresas me procuraram diretamente, como assessor, tentando buscar uma conversa para falar sobre carbono. E a gente achou que não era o momento oportuno para a gente conversar porque a gente precisava entender o que que era carbono, o que que era tudo isso que estava sendo falado”, relatou Francinaldo Lima, assessor técnico das associações de moradores das reservas extrativistas da Terra do Meio e da comunidade extrativista Maribel, no Pará. Ele contou que o assédio às comunidades por projetos de carbono começou há muito tempo e há cerca de dois anos eles aceitaram conversar com duas empresas e conhecer as propostas.
O Congresso Nacional está debatendo o Projeto de Lei 182, de 2024, que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa. A proposta foi aprovada em dezembro do ano passado pela Câmara dos Deputados e agora está no Senado Federal.
Ciro Brito, analista de políticas climáticas do ISA, explicou a importância da regulamentação. “Esse projeto também vai definir quais os critérios para o desenvolvimento desses projetos e programas de geração de créditos de carbono. Qual o papel dos órgãos gestores de áreas públicas e das entidades representativas de povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais”, pontuou.
A abertura e o fechamento do terceiro episódio do "Vozes do Clima" ficaram por conta de Chico Preto, poeta beiradeiro que vive na Reserva do Rio Iriri. Com seus versos, ele deu a dimensão das dificuldades e dos dilemas enfrentados pelos povos que vivem no corredor da Bacia do Xingu.
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Francisco dos Santos, o seu Chico Preto, poeta e liderança da Resex Riozinho do Anfrísio, na Terra do Meio (PA)|Claudio Tavares/ISA
"Um dia eu saí de casa somente pra trabalhar. Logo eu voltei correndo pra minha família avisar, contando logo pra elas que a nossa floresta iria se acabar. Minha mulher saiu correndo, sem pisar logo no chão, pra avisar os nossos filhos que tava na região, contando logo pra eles que a nossa floresta, ela ia toda pro chão. Os meu neto já chegaram muito cheio de pavor. Uns gritava ‘Ô meu pai’, outros gritava ‘Ô meu avô’. Se nós ficar sem a nossa floresta, nós vamos sentir a dor”, versou Chico Preto, mostrando a preocupação cotidiana com o futuro da floresta diante de tantas ameaças.
O boletim de áudio “Vozes do Clima” é uma realização do ISA, com produção da produtora de podcasts Bamm Mídia e apoio da Environmental Defense Fund (EDF). A identidade visual foi concebida pelas designers e ilustradoras indígenas Kath Matos e Wanessa Ribeiro. Além de ser distribuído via Whatsapp e Telegram, o programa também poderá ser ouvido nas plataformas de áudio Spotify, iHeartRadio, Amazon Music, Podcast Addict, Castbox e Deezer.
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Selma Dealdina: identidade, luta e escrevivências quilombolas
Elas Que Lutam! No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela, liderança da Conaq conta como militância e escrita orientam sua ação política
Capricorniana, ativista, candomblecista, torcedora do Vasco da Gama e da escola de samba Beija-Flor. Mas como ela mesma diz, “a minha maior identidade é quilombola”. Essa é Selma dos Santos Dealdina Mbaye. Uma mulher preta-quilombola, de 42 anos, que adora fazer citações e, apesar de ser muito impaciente — característica que ela mesma não se furta em destacar —, espera pelo dia em que irá se apresentar e se definir para além de seu currículo, que é bem recheado.
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"Minha maior identidade é quilombola", diz Selma Dealdina, articuladora política da Conaq, maior organização quilombola do país|Ester Cezar/ISA
Nascida e criada no território Sapê do Norte, no quilombo Angelim 3, localizado no município de São Mateus, em Conceição da Barra (ES), Dealdina atualmente é articuladora política da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), vice presidente do Conselho do Fundo Casa, conselheira da Anistia Internacional, compõe a Via Campesina, a Coalizão Negra por Direitos e também o coletivo que organiza a Marcha das Mulheres Negras para 2025.
Selma Dealdina tem em sua essência o zelo pelo bem-viver da coletividade. Nascida em uma família de cinco irmãos, sempre esteve envolvida em iniciativas que a conduziram para o caminho da liderança. A luta esteve cotidianamente presente em sua rotina, não apenas porque se envolveu com a defesa dos direitos de seu povo, das mulheres e da população negra, mas pelo simples fato de ser quem é.
“Eu sempre soube que era uma menina negra, não porque sou retinta, mas porque a sociedade, a escola, que é um ambiente extremamente racista, sempre diz qual é teu lugar. E, de uma certa forma, as pessoas sempre deliberaram um lugar para os nossos corpos enquanto mulheres negras”.
Apesar da rotulação social, a identidade negra de Selma contou com uma contribuição fundamental em seu processo. “A minha mãe sempre nos disse qual era o nosso lugar enquanto pessoas negras. Ela tentou colocar a gente o mais próximo possível da nossa cultura e sempre nos disse que nós éramos negros, ela nunca disse o contrário. Então ser forjada num lar assim me deu forças para enfrentar os desafios”.
“A Conceição Evaristo nos diz que as nossas escrevivências são um momento de crescimento, e é muito difícil para nós, mulheres negras, sentarmos e escrevermos sobre nós mesmas.”
“Mas eu acredito que a escrita é um espaço libertador também. Acho que não só para as narrativas verídicas, mas também do que a gente gostaria que fosse. Que a gente possa ter esse momento de loucura, de utopia, de ilusão por um segundo, para a gente poder desarmar esse corpo de militante, esse ‘descansa militante’, para poder fazer uma coisa diferente que não seja só guerrear, guerrear e guerrear”.
Mulheres Quilombolas - Escrevivências entre a Memória e o Coração/Ester Cezar/ISA
O livro Mulheres Quilombolas - Territórios de Existências Negras Femininas, foi organizado por Selma, a convite da filósofa e escritora Djamila Ribeiro, com os selos Feminismos Plurais e Sueli Carneiro. A publicação é uma obra coletiva, feita com 18 mulheres, de 12 estados e reúne depoimentos de mulheres quilombolas em vários temas, como defesa do território, violência doméstica, pluralismo jurídico, saberes tradicionais e trajetória acadêmica.
“O livro vem nessa pegada de contar a nossa história, que é invisível, que às vezes não interessa, que não tem likes, não dá curtida. Mas é o modo de viver daquelas mulheres que estão na academia, na escola, na roça, nos seus lugares de afazeres”.
Autocuidado
O livreto Mulheres Quilombolas - Escrevivências entre a Memória e o Coração é uma publicação organizada após uma dinâmica feita com mulheres quilombolas, onde elas tinham que falar bem de si mesmas. Dealdina conta que uma folha de papel foi entregue para cada uma e até o fim do dia elas precisavam concluir a atividade. “Acabou o dia e todo mundo entregou a folha em branco. Porque a gente sabe das nossas qualidades, mas quando a gente coloca no papel, a gente é arrogante, a gente tá se achando. Então a gente tem medo de falar de nós mesmas”.
Então, ela e Maryellen Crisóstomo – jornalista e integrante da Conaq –, com quem realizou a atividade, resolveram mudar o direcionamento e pediram para que as mulheres escrevessem uma carta de amor endereçada a elas mesmas, “para ver se era mais fácil, mas também era difícil”.
“A gente cuida de tudo e de todos o tempo todo, e aí a gente pergunta quem é que cuida da gente? Quem cuida também precisa ser cuidada. Quem ama também precisa ser amada. Quem deseja também precisa ser desejada. O amor, propriamente dito, também nos é negado, é como se nossos corpos não merecessem ter direito a esse amor. Nós somos muito violentas com nós mesmas, nós somos muito desrespeitosas com nós mesmas, a gente pratica muita violência contra nós. E em um processo da gente ter que se desarmar, tentar não se violentar, também é complicado pra gente”.
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“A gente cuida de tudo e de todos o tempo todo, e aí a gente pergunta quem é que cuida da gente?"|Ester Cezar/ISA
Direito à vulnerabilidade
Os passos de Selma Dealdina foram, e são, forjados com muitas referências de mulheres negras [confira alguns nomes ao final do perfil], que ela poderia passar horas e horas citando. Mas, para quem já viajou pelo mundo, seu lar continua sendo o principal ponto de partida.
“A maior referência pra mim é a minha mãe”, diz a liderança.
Dona Rosa dos Santos Dealdina foi ministra de eucaristia, rezadeira de ladainha e benzedeira. Faleceu em 2020, pouco antes do lançamento do livro “Mulheres Quilombolas - territórios de existências negras femininas”.
“Para mim, pessoalmente, foi um momento muito difícil para terminar o livro, porque a gente descobriu que minha mãe estava com câncer em estado terminal. Eu tinha que fazer a apresentação e eu não consegui escrever. Parei exatamente na frente do nome da minha mãe, porque eu falava com ela do livro, mas não sabia se quando a gente lançasse ela estaria viva ou não. E aí eu não sabia se em frente ao nome dela eu colocava ‘em memória’”.
Esse foi um momento muito duro para Selma. Além do falecimento de sua mãe, ela precisou lidar com os estereótipos impostos às vidas de mulheres negras. A emoção expressada durante a entrevista demonstrou como ainda é difícil pensar no momento em que teve que lidar com a perda da maior referência de sua vida.
“Porque cobram da gente o tempo todo que a gente seja forte, que a gente seja guerreira, que a gente esteja o tempo todo pronta para a luta. A gente não foi ensinada a demonstrar fraqueza. Demonstrar fraqueza, fragilidade, chorar é sinal de que a gente tá se diminuindo e nesse compasso a gente vai pulando várias etapas importantes da nossa vida”.
Militância
Articuladora política e membro do coletivo de mulheres da Conaq, Selma conheceu o movimento por influência da irmã, Domingas Dealdina, que foi a primeira coordenadora da Conaq no estado do Espírito Santo.
“A Conaq para mim é a segunda pele. Ela é mais do que uma organização política. Ela é a bandeira que nos guia, porque todas as políticas públicas que a gente tem são graças a esse movimento, desde a vacina que eu tomei em 2021, à certificação do meu território em 2006, a diretriz curricular das escolas, tudo eu devo a esse movimento”.
“Eu tenho muito orgulho de fazer parte desse movimento [...] uma dinâmica bem importante para cuidar e para ajudar não só a valorização da identidade quilombola, mas também dos territórios, porque a nossa maior luta é pelo resgate dos territórios quilombolas”
A Conaq é um movimento que tem 28 anos, atua em 24 estados, em todos os biomas do Brasil. Além disso, está se expandindo internacionalmente para fortalecimento das comunidades afro rurais e da identidade pela terra, com países como Honduras, Colômbia, Equador, México, Argentina, Chile e Bolívia.
“Eu tenho muito orgulho de fazer parte desse movimento. De estar na articulação política, de contribuir para o seu crescimento. Eu sempre digo que a Conaq é igual a um pão, vai crescendo gradativamente. Por isso que eu acho que a gente tem a nossa pauta bem coesa, uma dinâmica bem importante para cuidar e para ajudar não só a valorização da identidade quilombola, mas também dos territórios, porque a nossa maior luta é pelo resgate dos territórios quilombolas”.
Além do currículo
No decorrer de sua trajetória, Selma Dealdina conquistou diversos títulos e ocupou vários espaços. Hoje, quando se apresenta, ela faz um relato extenso de seu currículo, projetos e atividades em que está envolvida, e em quatro ou cinco palavras alguma característica além desse universo.
Mas a filha de Dona Rosa e do Senhor Manoel carrega beleza, humor, sensibilidade e acolhimento. A irmã de Domingas, Matilde, Célia, Rogério e José Fernando nunca pega a frase de alguém sem dar os devidos créditos. A neta do Senhor Feliciano é uma grande apreciadora de séries policiais. A tia da Isabella, da Kayla, do Luiz Henrique e do Akeen sempre faz referência a outras mulheres negras que vieram antes dela e que também são suas contemporâneas. A esposa do Osmani é transparente com seus sentimentos e é possível saber quase que exatamente o que ela está pensando. A Selma Dealdina já não se contenta mais com pouco.
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"Eu tenho muito orgulho de fazer parte desse movimento", afirma Selma Dealdina, articuladora da Conaq|Antônio Cruz/Agência Brasil
“A gente nunca atravessa a porta e volta da mesma forma, a gente volta diferente, mais empoderada, cobrando mais. Aí a gente entra no time das chatas, né? Que tá sabendo demais, que é demais. Porque a gente se contentou com um pedaço e descobriu que pode ter mais. E a gente vai atrás desse pedaço maior e começa a incomodar. Se a gente tá incomodando então a gente tá fazendo certo”.
“E eu vou me descobrindo. Algumas coisas eu continuo a mesma, não tenho paciência, sou inteiramente sem paciência, paciência zero. A gente vai aprendendo também a lidar com muitas coisas e eu quero ter o direito de não querer lidar, de não querer fazer, de dizer ‘não’. Mas eu tô gostando muito dessa fase que eu tô vivendo agora. Vou me descobrindo para saber quem eu sou. Vou me construindo aos poucos, cada dia um tijolinho”.
Saudações a todas as mulheres negras citadas por Selma Dealdina:
Rosa dos Santos Dealdina, Célia Dealdina, Domingas Dealdina, Matilde Dealdina, Dona Nilma Bentes, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Givânia Maria da Silva, Vercilene Dias, Mãe Sebastiana, Misselen, Marielle Franco, Mãe Bernadete, Ágatha Vitória, Dona Procópia, Rosinha, Dona Teodora, Esther, Carolina Maria de Jesus, Mãe Tiana, Núbia, Jane, Ivone, Adda Caetano, Bárbara Bombom, Sandra Pereira Braga, Isabel Cristina, Jurema Werneck, Lúcia Xavier, Bianca Santana, Regina Adami, Wânia Santanna, Vanda Menezes, Suelane Carneiro, Carla Akotirene, Joice Berth, Ângela Davis, bell hooks, Chimamanda Ngozi, Vilma Reis, Valdecir Nascimento, Dona Zélia Amador, Darlah Farias, Flávia Oliveira, Lucely de Cedro, Conceição Evaristo, Maryellen Crisóstomo.
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Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira apresenta sua 15ª edição
Encontro reunirá festividades e compartilhamento de saberes com oficinas e debates com a sociedade e o poder público nos dias 16 e 17 de agosto, em Eldorado (SP). Programe-se!
Toda a riqueza cultural e a diversidade produtiva derivadas de um acúmulo histórico de saberes e vivências serão o centro da próxima Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, que apresenta sua 15ª edição nos dias 16 e 17 de agosto na cidade de Eldorado (SP).
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Representantes do Quilombo Porto Velho, em Iporanga (SP), comercializam seus produtos tradicionais como rapadura, taiada e farinha de mandioca na 14ª Feira, em 2023|Claudio Tavares/ISA
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Quilombolas do Sapatu fazem apresentação da dança Nhá Maruca, na 14ª edição da Feira |Claudio Tavares/ISA
O evento já se tornou tradição no calendário cultural paulista por reunir diferentes públicos ao redor do protagonismo da pauta quilombola, especialmente daquelas comunidades localizadas nesta porção do sul do estado.
Como é de ocorrer na agenda política de uma população detentora de uma trajetória de lutas e conquistas, a feira se divide entre momentos de festividade e compartilhamento de saberes, mas também de formação e de debate com a sociedade e com o poder público.
E é esta a programação do primeiro dia, que será aberto com o seminário temático “Titulação de territórios quilombolas - pelo direito de semear o presente e o futuro”, que irá propor uma discussão acerca de uma pauta crucial para o movimento quilombola: a titulação de seus territórios, que sofre com um processo deliberada e inexplicavelmente moroso por parte dos governos estadual e federal. Nítido exemplo da manifestação do racismo institucional.
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Participantes do seminário “Culturas perenes e a sustentabilidade dos manejos nos territórios quilombolas”, durante a 14ª Feira|Claudio Tavares/ISA
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Dona Elvira Morato, do Quilombo São Pedro, canta com o Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim, na 14ª edição da Feira|Claudio Tavares/ISA
Além disso, ainda haverá oficinas sobre educação quilombola e a relação entre a mitigação dos eventos extremos exacerbados pela emergência climática e a restauração ecológica, especialmente no bioma da Mata Atlântica.
Já o dia seguinte é dedicado à celebração e aos encontros entre as comunidades, que promovem apresentações culturais, realizam a troca de mudas e de sementes crioulas - aquelas sementes tradicionais que foram preservadas com o passar dos anos, e também realizam a venda dos produtos típicos da região, que cultivam e beneficiam nas comunidades.
Todas as atividades da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira são abertas ao público e gratuitas.
Patrimônio Cultural do Brasil
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Paisagem do Quilombo Praia Grande, localizado em Iporanga (SP), resume integração das comunidades quilombolas com a floresta, a partir de suas residências e de áreas de cultivo de espécies nativas|Fellipe Abreu/ISA
Em razão de suas manifestações festiva, de incidência política e de troca de saberes, a Feira é reconhecida como uma importante ação para a salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional (SAT) das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, reconhecido em 2018 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural do Brasil.
De acordo com o Iphan, o SAT é o conjunto de experiência acumulada que se manifesta em dinâmicas ecológicas, no manejo e no repertório de conhecimentos que remontam gerações ancestrais e que foram transmitidos por meio da oralidade e de vivências práticas. Em suma, diz do modo de vida quilombola a partir de suas trocas, do sentir e do criar que estão conectados ao fazer da roça.
A 15ª edição da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira é realizada pelo Grupo de Trabalho da Roça (GT da Roça), pelas Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, pela Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), pela Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), pela Rede de Sementes do Vale do Ribeira, pelo Instituto Socioambiental (ISA) e Associação Slow Food do Brasil, com apoio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo por meio do Programa de Ação Cultural (ProAc).
Também apoiam o evento o Sesc Registro; as Prefeituras de Eldorado, Iporanga e Itaoca; a Iniciativa Verde; a Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo; o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus Registro;e a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp).
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Serviço
15ª edição da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira
Dias 16 e 17 de agosto, em Eldorado (SP)
Programação
Dia 16 (sexta-feira)
Local: Salão Paroquial na Praça Nossa Senhora da Guia de Eldorado (SP)
Credenciamento e café de abertura
8h30 às 9h30
Seminário: Titulação de territórios quilombolas - Pelo direito de semear o presente e o futuro
9h30 às 12h
Oficinas Temáticas:
14h às 16h30
Educação Quilombola - território de saberes
Emergência Climática e restauração ecológica - o que isso tem a ver com a gente?
10h às 13h e 14h às 17h
Atividades infantis:
Ancestralidades Brincantes - com Cia. Amoras
16h30
Café de encerramento do dia
Dia 17 (sábado)
Local: Praça Nossa Senhora da Guia de Eldorado
9h às 14h
Feira
Trocas de Sementes e Mudas
Venda de Produtos da Roça
Apresentações Culturais
Almoço Tradicional Quilombola
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OIT recomenda que Brasil titule o território quilombola de Alcântara (MA)
Medida inédita responde denúncia sobre descumprimento da consulta livre, prévia e informada para a instalação do Centro de Lançamentos de foguetes. Veja linha do tempo do caso
Centro da cidade de Alcântara (MA) | Ana Mendes / Imagens Humanas
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomendou que o Brasil titule os territórios quilombolas do município de Alcântara, na costa maranhense, e siga em relação ao caso o que está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta livre, prévia e informada sobre projetos e medidas que afetem povos indígenas e comunidades tradicionais (saiba mais nos boxes logo abaixo).
É a primeira vez na história que a organização faz recomendações sobre comunidades quilombolas no Brasil. A medida é resultado da denúncia apresentada, em 2019, contra as violações dos direitos dessas populações e o descumprimento da Convenção 169 por parte do governo brasileiro na implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), na década de 1980. Naquele momento, mais de 300 famílias, de 32 comunidades, foram expulsas de suas casas.
Desde essa época, o governo tenta ampliar a base aeroespacial, o que pode afetar outras centenas de famílias. Ao longo de quatro décadas, uma série de planos foi apresentada com esse objetivo e o Estado brasileiro também cometeu outra série de violações dos direitos dos quilombolas (saiba mais na linha do tempo no quadro ao final da reportagem).
A denúncia foi apresentada pelo Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar de Alcântara, em nome das comunidades quilombolas, do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) e da Associação do Território Quilombola de Alcântara (Atequila).
O que é a Convenção 169 da OIT?
A Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 2002 e entrou em vigor em 2003. A norma é um importante instrumento para povos indígenas e comunidades tradicionais, por assegurar o direito à consulta livre, prévia e informada sobre qualquer medida que afete essas populações, levando em consideração seus modos de vida e cultura. Tendo ratificado a Convenção, o país tem de respeitar o tratado e as determinações de seus órgãos, mas, na prática, não é obrigado a cumpri-las porque não há mecanismos institucionalizados para isso.
“O Estado brasileiro possui um histórico de não cumprimento de decisões internacionais, quer seja no âmbito da ONU, como é o caso da OIT, quer seja no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O Estado não diz que não vai cumprir, mas, na prática, não cumpre. Ou, quando cumpre, cumpre pela metade. E nós vamos nos mobilizar para cobrar o cumprimento dessas recomendações”, promete o quilombola e cientista político Danilo Serejo.
“Espero que o governo faça a titulação, que nenhum empreendimento venha para dentro do território, sem que antes nos consulte. Feita a titulação, teremos segurança jurídica para discutir com qualquer empresa que venha se instalar aqui dentro”, diz a presidente da Atequila, Valdirene Ferreira.
“A recomendação é extremamente importante para fazer com o Estado o que a gente vem tentando fazer, que é construir um processo pedagógico para que ele entenda que é obrigado, que não é simplesmente [dizer] ‘ah, não vou fazer consulta’. É um dever tanto de fazer a consulta, quanto de titular os territórios quilombolas”, aponta a assessora jurídica da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Vercilene Dias.
Segundo o assessor jurídico do ISA Fernando Prioste, as recomendações da OIT são um precedente importante para as políticas de reconhecimento dos territórios de populações tradicionais como um todo. "Em função de seu ineditismo, o informe poderá auxiliar povos indígenas e comunidades tradicionais, em todo o país, a fazer com que o Estado respeite direitos como o de acesso ao território e de consulta livre, prévia e informada”, analisa.
Pescadora na Comunidade de Vista Alegre, território quilombola de Alcântara (MA) | Ana Mendes / Imagens Humanas
O território quilombola de Alcântara (MA)
O município de Alcântara está localizado na costa de São Luís (MA) e concentra a maior população quilombola do país. De acordo com o Censo 2022, são quase 10 mil pessoas e mais de 3 mil famílias moradoras da região. O território ainda não teve seu procedimento de reconhecimento formal concluído. Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) expediu o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das etapas iniciais do processo, indicando uma área de quase 80 mil hectares. Um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol.
Promessa de solução de Lula
Em junho, dias depois da OIT publicar seu informe, o presidente Luís Inácio Lula da Silva disse que o governo comunicaria em breve uma solução para o conflito em Alcântara.
"Estamos perto de concluir um acordo que a gente vai resolver, de uma vez por todas, o quilombo aqui em Alcântara. Está tendo um acordo com a FAB [Força Aérea Brasileira], com a Advocacia-Geral da União, acho que vamos contemplar todo mundo e vai viver em paz aquela região, com as pessoas podendo pescar no mar sem atrapalhar os foguetes e sem o foguetes atrapalharem a gente", afirmou Lula à rádio Mirante News FM, de São Luís. Ele esteve na capital maranhense para participar do anúncio de investimentos federais no estado.
“Em Alcântara a gente tem um princípio que é não abrirmos mais mão de nenhum centímetro de terra do nosso território para a base espacial. Nós não negociamos mais isso. Isso pra gente é ponto pacífico. Então o estado brasileiro vai ter que titular Alcântara em algum momento. Espero que o presidente Lula tenha coragem para fazer isso agora”, aponta Serejo.
Em nota enviada à reportagem do ISA, a Advocacia-Geral da União (AGU) informou que analisa três propostas de conciliação que estão em “estágio avançado”. “A AGU está confiante de que um acordo será firmado nos próximos meses, para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) possa, então, implementar o processo de titulação do território quilombola”, diz o texto.
O órgão coordena o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) criado, em abril de 2023, para resolver o problema. “Na condição de coordenadora do GTI, a AGU tem como missão a compatibilização dessas duas políticas públicas — a titulação de terras quilombolas e o funcionamento do Programa Espacial Brasileiro —, sem que uma inviabilize a outra” , continua o texto. Ainda de acordo com a nota, o relatório do GTI está sendo fechado neste momento.
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Em cerimônia de anúncios de investimentos no Maranhão, Lula disse que acordo para solucionar a situação do CLA nos territórios quilombolas estaria próximo | Ricardo Stuckert / PR
Governo tenta retomar conversas
Em outra nota enviada ao ISA, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) afirmou que irá retomar, no próximo dia 17, o diálogo com as organizações das comunidades quilombolas. A conversa contará com a presença do Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos, Ronaldo dos Santos, e representantes da Controladoria-Geral da União (CGU).
A iniciativa acontece após as organizações quilombolas retirarem-se do GTI, em janeiro, por discordarem da condução dos trabalhos. O colegiado foi criado logo depois de um pedido de desculpas histórico feito pelo governo brasileiro às comunidades quilombolas na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no início de 2023. A manifestação reconheceu a responsabilidade do Estado pelas violações dos direitos dessas populações, inclusive a omissão na titulação de seus territórios.
De acordo com ex-integrantes quilombolas do GTI, o governo não definiu sua posição em relação ao tamanho da área destinada à expansão do CLA e não apresentou informações sobre os impactos socioambientais e econômicos que ela causaria às comunidades. De acordo com o plano mais recente, a expansão da base aeroespacial poderia alcançar 12 mil hectares e expulsar cerca de 800 famílias.
Os quilombolas também argumentam que falta paridade na composição do GTI. O grupo era formado por 13 representantes do governo e apenas 4 representantes das comunidades, que não conseguiam participar ativamente das reuniões por causa do difícil acesso à internet.
“Como o Estado brasileiro não apresentou estudos técnicos e econômicos que justificassem a necessidade de expansão do Centro de Lançamento, nós não tivemos dados nem coisas concretas e materiais para continuar a negociação. Por essa razão, nós nos retiramos do grupo”, conta Serejo, um dos representantes quilombolas no GTI. Ele explica que o encontro do dia 17 não tem caráter formal e ainda não é possível prever quais serão seus desdobramentos. “Não há diálogo formal instituído ou retomado com o governo”, reforça.
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Pescador na comunidade de Iguaiba, território quilombola de Alcântara | Ana Mendes / Imagens Humanas
As recomendações da OIT
- O Comitê confia que se tomem as medidas necessárias, incluindo o marco do Grupo de Trabalho Interministerial, para assegurar que, segundo o disposto no artigo 23 da Convenção, as comunidades quilombolas que sejam deslocadas durante as fases I e II da implantação do CLA, possam realizar suas atividades tradicionais e de subsistência, incluindo a pesca;
- O Comitê pede ao governo que tome sem demora as medidas necessárias para levar a cabo, de acordo com a legislação nacional vigente, os estudos de impactos social, espiritual e cultural, e sobre o meio ambiente que a expansão do CLA teria sobre as comunidades quilombolas de Alcântara, em cooperação com as mesmas, em conformidade com o artigo 7, 3) da Convenção;
- Embora observe que o governo tomou medidas para desenhar um processo de consulta para as comunidades quilombolas que seriam afetadas pela expansão do CLA, o Comitê solicita ao Governo que tome todas as medidas necessárias para realizar um processo de consulta, desenhado com a participação das instituições representativas das comunidades quilombolas para cumprimento do artigo 6º da Convenção. O Comitê sublinha a importância de dar às comunidades tempo suficiente para levarem a cabo os seus processos internos de tomada de decisão e de lhes fornecer todas as informações relevantes em tempo útil;
- Consequentemente, o Comitê insta o governo a que, de acordo com o artigo 16 da Convenção, caso a transferência de comunidades quilombolas seja decidida excepcionalmente, esta só deverá ser realizada com consentimento, dado livremente e com pleno conhecimento dos fatos, das comunidades quilombolas afetadas. Caso não seja possível obter o seu consentimento, a transferência e realocação só deverão ocorrer após a conclusão dos procedimentos apropriados estabelecidos pela legislação nacional, nos quais as comunidades quilombolas tenham a possibilidade de serem efetivamente representadas. Neste caso, as referidas comunidades deverão receber em troca terras cuja qualidade e estatuto jurídico sejam pelo menos iguais às das terras que ocuparam anteriormente, e que lhes permitam satisfazer as suas necessidades e garantir o seu desenvolvimento futuro.
Linha do tempo
1983 - Centro de Lançamento de Alcântara foi criado com o objetivo de executar e apoiar atividades espaciais, provas científicas e experimentos relacionados com a política nacional de desenvolvimento espacial. Na época, um acordo foi estabelecido entre o Ministério da Aeronáutica e as famílias quilombolas que seriam afetadas pela implementação do CLA, no qual o ministério se comprometeu a atender as reivindicações relacionadas ao reassentamento, o que, segundo os denunciantes, não foi cumprido.
“Quando o Centro de Lançamento foi pensado para Alcântara, uma das coisas que foram faladas é que aqui havia um vazio demográfico, sendo que no município tinham mais de 200 comunidades. Então se pra eles era um vazio demográfico, isso significa que as comunidades quilombolas tradicionais não existem. Aos olhos deles não existimos”, comenta a coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), Dorinete Serejo.
1986 a 1988 - 312 famílias de 32 comunidades são retiradas de suas terras e reassentadas em sete agrovilas. Além de não terem recebido assistência técnica agrícola, as comunidades sofreram alteração de seus costumes e práticas e, até hoje, estão privadas de condições adequadas de vida, com falta de saneamento básico e de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social.
“Uma vez que se tira alguém da sua comunidade, sem o seu consentimento, não tem nenhuma orientação, e colocam longe de tudo, inclusive de onde tiram seu meio de sobrevivência, que é o mar e igarapés, os seus direitos já estão sendo violados”, pontua a presidente da Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), Valdirene Ferreira.
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Centro de Lançamentos de Alcântara (MA) | Valter Campanato/Agência Brasil
1991 - Governo decide ampliar para 62 mil hectares a área expropriada destinada ao CLA. A decisão, novamente, não considerou as famílias afetadas para fins de compensação.
2001 - Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE), Justiça Global, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União denunciam a situação para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
2004 - Governo estabelece Grupo Executivo Interministerial para o desenvolvimento sustentável de Alcântara, envolvendo educação, trabalho, saúde, moradia, infraestrutura e participação em benefícios das comunidades quilombolas. As propostas se consolidaram em um plano de ação, que, segundo organizações denunciantes, não foi cumprido.
2006 - Procuradoria-Geral da República e governo federal firmaram acordo estabelecendo que o Incra deveria, em 180 dias, dar continuidade à titulação definitiva das terras ocupadas pelas comunidades de Alcântara. O processo foi iniciado em novembro de 2006 e deveria ser concluído em 31 de outubro de 2007. Porém, somente um ano depois, em novembro de 2008, o Incra publicou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das fases iniciais do procedimento de titulação. O RTID identificou 78,1 mil hectares pertencentes às comunidades quilombolas. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação solicitou a instalação de uma câmara de conciliação e arbitragem para analisar a sobreposição da expansão do CLA ao território o quilombola. Após quatro anos sem resolução, o caso foi arquivado.
2007 - Governo contratou empresas privadas que iniciaram trabalhos de prospecção e demarcação do perímetro da área de expansão da base aeroespacial dentro das terras das comunidades Mamuna e Baracatatiua. As comunidades não foram consultadas e as ações não foram autorizadas pelo IBAMA.
2008 - Lideranças de Alcântara denunciaram o Estado à OIT, por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, devido a mais um descumprimento da Convenção 169. A denúncia veio após uma ação arbitrária no território decorrente do Projeto Alcântara Cyclone Space, resultado de um Acordo de Cooperação Tecnológica entre Brasil e Ucrânia. As empresas contratadas invadiram e depredaram roças das comunidades de Mamuna e Baracatatiua na tentativa de implantar outros três sítios de lançamento de aluguel.
2010 - Ministério da Defesa elaborou um plano de implantação de novos sítios de lançamento na zona de expansão do CLA. O plano incluía um cronograma de expansão entre 2015 e 2020 e propunha a instalação de sítios de lançamento ao longo de toda a costa de Alcântara. Também previa o deslocamento de 226 famílias durante a fase III e de 337 durante a fase IV. De acordo com os denunciantes, a expansão impactaria as áreas de uso coletivo para agricultura, pesca e utilização de recursos naturais.
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Em 2017, o governo tinha intenção de firmar Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os EUA para realizar lançamentos na base espacial. O então Presidente Michel Temer visita do CLA | Marcos Corrêa / PR
2019 - Governo Bolsonaro firmou Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os Estados Unidos, com finalidades comerciais. O acordo ignorou recomendação da CIDH, feita na segunda audiência sobre o caso (2019), para realizar estudo e consulta prévia com as comunidades quilombolas.
2020 - Em meio à pandemia de Covid-19, o governo determinou novas remoções, que afetariam pelo menos 800 famílias, para a realização do projeto. Os despejos foram suspensos pela justiça e após o Senado dos Estados Unidos vetar o uso de dinheiro do país para remoção das comunidades quilombolas. Brasil revogou a resolução.
2021 - Governo expediu títulos individuais de propriedade a 67 residentes quilombolas das agrovilas. A emissão de títulos individuais descumpre o que está previsto no Decreto 4.887 de 2003, que estabelece o procedimento de titulação coletiva de terras ocupadas por quilombolas.
2023 - Governo brasileiro pediu desculpas às comunidades quilombolas de Alcântara e estabeleceu Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para resolução do caso.
2024 - Lula afirma que o governo está prestes a concluir um acordo para resolver de vez a situação entre a Força Aérea Brasileira (FAB) e as comunidades quilombolas de Alcântara.
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