"Cada povo tradicional tem uma identidade, uma história, uma memória partilhada e um território"
Neide Esterci, antropóloga, ex-presidente do ISA
Comunidades Tradicionais são, de acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, os “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. Assim, podem ser consideradas Comunidades Tradicionais os quilombolas, seringueiros, ribeirinhos, caiçaras, ciganos, beradeiros, quebradeiras de coco babaçu, geraizeiros, sertanejos, entre outros. Todas estes povos e comunidades são parte fundamental da enorme pluralidade e diversidade sociocultural da sociedade brasileira.
O ISA atua com Comunidades Tradicionais na região do Xingu, no Pará e Mato Grosso, e no Vale do Ribeira, desde o final da década de 1990. No Ribeira, atuamos em parceria com associações quilombolas locais, prefeituras e organizações da sociedade civil, visando a implementação de projetos de desenvolvimento sustentável, geração de renda, conservação ambiental e melhoria da qualidade de vida das comunidades tradicionais da região. Vale destacar nosso apoio às atividades produtivas da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), que têm contribuído para o fortalecimento e valorização do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola. O ISA tem também apoiado o Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira, que defende os direitos das comunidades da região e resiste contra as pressões e ameaças a estes territórios.
No Xingu, trabalhamos com comunidades ribeirinhas, conhecidas também como beiradeiras, e que vivem na região da Terra do Meio, em Altamira, no Pará. As famílias e comunidades beiradeiras são descendentes de seringueiros e de indígenas e têm seu modo de vida baseado em um conhecimento profundo da floresta e rios que habitam. Nossas linhas de atuação incluem estruturar alternativas de renda baseadas no extrativismo, apoiar a organização comunitária e o aumento de protagonismo de associações locais, e implementar projetos de desenvolvimento sustentável. O ISA ainda trabalha junto às associações e famílias beiradeiras, no desenvolvimento de pesquisas colaborativas sobre o modo de vida local, e promove a articulação entre beiradeiros e indígenas para produzir e comercializar os produtos florestais tradicionais desses povos, em bases justas, e que garantam qualidade de vida para as famílias, continuidade das culturas e do modo de ser beiradeiros e indígenas.
Em nível nacional, o ISA também apoia a luta das comunidades tradicionais na defesa de seus direitos - temos orgulho da nossa parceria com Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, a Conaq - por meio de mobilizações públicas e intervenções políticas nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
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Segundo episódio do “Vozes do Clima” discute impactos da emergência climática em territórios quilombolas
Boletim de áudio também aborda debates do Aquilombar, maior evento do movimento quilombola brasileiro, realizado em maio, em Brasília
O Instituto Socioambiental (ISA) divulgou nesta semana o segundo episódio do “Vozes do Clima”, boletim de áudio lançado no último dia 6 de junho com o objetivo de levar informações a povos indígenas e quilombolas e comunidades tradicionais sobre os temas relacionados à pauta climática. Nesta segunda edição, apresentada por Alex Hadda, da comunidade quilombola Kalunga, de Goiás, lideranças quilombolas abordam os impactos da emergência climática em seus territórios e sugerem ações para enfrentar o problema.
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A cobertura foi realizada durante o 2º Aquilombar, maior evento do movimento quilombola brasileiro, realizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) no dia 16 de maio, com o tema “Ancestralizando o futuro”. Durante o encontro, que culminou numa grande marcha com mais de 3 mil pessoas, o ISA ouviu lideranças de várias regiões do país que demonstraram preocupação com o futuro das comunidades tradicionais frente às recorrentes catástrofes ambientais, como a mais recente ocorrida no Rio Grande do Sul, que deixou 136 comunidades quilombolas em estado de calamidade ou em situação de emergência, segundo dados do Ministério da Igualdade Racial.
“A gente lamenta muito a situação que o Rio Grande do Sul vem passando. Comunidades (quilombolas) estão sendo assoladas por essa catástrofe climática. A gente tinha uma delegação do Rio Grande do Sul ampla para estar aqui, mas não conseguiu chegar devido essa situação”, lamentou Biko Rodrigues, coordenador-executivo da Conaq.
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Entre 15 e 16 de maio aconteceu o Aquilombar 2024, um dos maiores eventos do movimento quilombola no Brasil|Webert da Cruz Elias/ISA
Kátia Penha, integrante do quilombo Divino Espírito Santo, do norte do Espírito Santo, e coordenadora nacional da Conaq, disse ao ISA como as mudanças climáticas interferem no cultivo e na produção de alimentos, principal fonte de renda de muitas comunidades. “A gente investe, vai lá, planta o feijão. Aí vem uma seca danada e o agricultor perde totalmente o feijão, porque não choveu”. Isso é mudança climática”, ressaltou.
“O projeto aprovado definiu que deve haver participação da sociedade civil nas várias etapas desses planos, ou seja, elaboração, implementação e revisão. Que essas revisões devem acontecer de quatro em quatro anos devido ao avançar da emergência climática”, explicou Ciro Brito, analista de políticas climáticas do ISA.
Segundo ele, das 26 capitais brasileiras, somente 11 têm plano de adaptação climática e diversos motivos são apresentados como desafios para que sejam ampliados, como a falta de recursos e de diretrizes de como incluir a sociedade civil nessa discussão. “Com essa possível lei, essas diretrizes vão ser esclarecidas e os mecanismos de financiamento também passam a existir”, ressaltou.
Essa demora se reflete, também, nas diversas ameaças sofridas pelas comunidades. Mesmo estando entre as áreas mais conservadas do Brasil, 98,2% dos territórios quilombolas estão ameaçados por obras de infraestrutura, requerimentos minerários e por sobreposições de imóveis particulares, segundo aponta estudo do ISA em parceria com a Conaq.
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Sandra Maria da Silva Andrade, coordenadora-executiva da CONAQ/MG, durante a marcha Aquilombar 2024|Webert da Cruz Elias/ISA
Chagas de Souza, assessor da Conaq, comentou o problema. “A pesquisa do ISA com a Conaq traz que os territórios titulados são os que mais preservaram. Porque esses territórios estão mais amparados e o grileiro ou o processo de desmatamento, de invasão do território, ficam mais contidos porque aquele território é titulado”, argumentou.
Antonio Oviedo, analista do ISA e responsável pelo estudo, explicou que muitos territórios quilombolas são pressionados por esses três vetores. “Você observa: requerimentos minerários, muitos cadastros ambientais rurais e áreas de influência de obras de infraestrutura dentro do mesmo território, ampliando o grau de vulnerabilidade desses territórios”.
Mesmo o Brasil sendo signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina a necessidade de consulta prévia, livre e informada, muitos empreendimentos são realizados sem que esse direito seja garantido aos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais, conforme destacou Oviedo.
“O Brasil se compromete a fazer a consulta livre, prévia e informada de populações tradicionais, populações mais vulneráveis, no caso da implementação de qualquer política pública, ou obra de infraestrutura, ou contrato, ou projeto que afete a vida dessas pessoas. E o que a gente percebe é que as obras de infraestrutura no Brasil não fazem essa consulta adequada aos moradores. E no final o que acontece? A degradação ambiental fica no local, e as riquezas vão embora”.
O boletim de áudio “Vozes do Clima” é uma realização do ISA, com produção da produtora de podcasts Bamm Mídia e apoio da Environmental Defense Fund (EDF). A identidade visual foi concebida pelas designers e ilustradoras indígenas Kath Matos e Wanessa Ribeiro. Além de ser distribuído via Whatsapp e Telegram, o programa também poderá ser ouvido nas plataformas de áudio Spotify, iHeartRadio, Amazon Music, Podcast Addict, Castbox e Deezer.
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ISA lança “Vozes do Clima”, boletim de áudio com informações sobre a pauta climática para povos e comunidades tradicionais
Primeiro episódio ouve lideranças indígenas sobre os impactos da emergência climática, durante o 20º Acampamento Terra Livre
O Instituto Socioambiental (ISA) lança neste dia 6 de junho o boletim de áudio “Vozes do Clima”, com o objetivo de levar informações a povos indígenas e quilombolas e comunidades tradicionais sobre os temas relacionados à pauta climática. Em formato de boletim de notícia e com duração média de 8 minutos, o novo projeto de comunicação do ISA será distribuído via Whatsapp e Telegram e tem como público alvo comunidades, movimentos sociais e organizações da sociedade civil que atuam na área socioambiental.
Temas como emergência climática, mercado de carbono e economias da sociobiodiversidade, além das agendas da incidência política do ISA e parceiros em Brasília e nos estados, serão abordados na série. Com o “Vozes do Clima”, o ISA pretende compartilhar informações com diferentes atores sobre iniciativas relacionadas ao enfrentamento da crise climática e sua incidência política nas instâncias do poder público.
Demarcação das Terras Indígenas como saída para a crise
O primeiro episódio do “Vozes do Clima” traz como pauta o 20° Acampamento Terra Livre (ATL), realizado de 22 a 26 de abril, em Brasília, com o tema “Nosso Marco é Ancestral: nós sempre estivemos aqui” e é apresentado pela estudante indígena Thaine Fulni-ô. Conta com depoimentos de lideranças indígenas, todas mulheres, sobre a realidade de seus territórios com o acirramento da crise climática e aponta caminhos para enfrentar o problema, como demarcação e preservação das Terras Indígenas, valorização dos saberes ancestrais e luta pela valorização das mulheres, principais protetoras dos biomas.
“Nós temos territórios que, num período em que chovia muito, hoje eles pegam fogo. Nós temos sentido que, cada vez mais, o calor impacta porque a gente tá o tempo todo pensando como vai ficar a estrutura das nossas casas, que são de acordo com os nossos costumes e que vão precisar ser modificadas, porque a gente não suporta mais ficar ali”, ressaltou Joziléia Kaingang, secretária executiva da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
Além dela, também estão presentes no programa Elisa Pankararu, coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme); Braulina Baniwa, ex-secretária executiva da Anmiga; Fernanda Kaingang, diretora geral do Museu dos Povos Indígenas; e Cristiane Julião, co-fundadora da Anmiga e liderança do povo Pankararu.
“A gente tinha um calendário, que sabia que março era hora de preparar a terra, para maio e junho colher o milho e o feijão. Hoje a gente não sabe. Não sabe quando é que planta, não sabe quando é que colhe, não sabe nem se vai plantar”, disse Cristiane Julião, explicando que seu território já sente os efeitos da crise climática.
Segunda temporada
Escute o primeiro episódio de 2025, que fecha as ações do mês de março, trazendo o olhar de lideranças mulheres sobre a COP30 (Conferência das Nações sobre Mudanças do Clima), que será realizada em novembro, em Belém (PA):
Protagonismo dos povos indígenas na COP30
Articulação do movimento indígena rumo à conferência do clima foi tema do 21º ATL e teve como ponto alto o lançamento da Comissão Internacional Indígena para a COP30.
Mercado de carbono jurisdicional no Pará
O programa jurisdicional de REDD+ (sigla para Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, Manejo Sustentável de Florestas e Conservação e Aumento dos Estoques de Carbono Florestal), em discussão no estado do Pará, é o tema deste episódio do "Vozes do Clima".
Primeira temporada
Ouça agora o primeiro episódio!
Resistência quilombola
O segundo episódio do “Vozes do Clima” vai abordar o 2º Aquilombar, o maior evento do movimento quilombola brasileiro, realizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) no dia 16 de maio, com o tema “Ancestralizando o futuro”. Durante o encontro, que culminou numa grande marcha com mais de 3 mil pessoas, o ISA ouviu lideranças quilombolas sobre os impactos da emergência climática em seus territórios.
A tragédia ambiental no Rio Grande do Sul é um triste exemplo de como essa pauta precisa estar no centro das discussões. Mais de 20 dos 147 quilombos gaúchos e mais de 2,5 mil dos 17,6 mil quilombolas foram severamente atingidos, segundo o Ministério da Igualdade Racial (MIR). A perspectiva do segundo episódio, portanto, é abordar essas e outras preocupações presentes nas discussões do movimento quilombola.
O Xingu é um só
O terceiro episódio do "Vozes do Clima" aborda debate sobre mudanças climáticas e mercado de carbono durante assembleia da Rede Xingu+, que aconteceu em maio, na Resex Rio Iriri. Apresentado por Joelmir Silva, integrante da rede de comunicadores da Rede Xingu+ e morador da comunidade extrativista Maribel, o episódio e ouviu diversas lideranças indígenas e ribeirinhas.
Programas jurisdicionais de REDD+
Quarto episódio repercute oficina de intercâmbio entre organizações indígenas, quilombolas e extrativistas, que debateu a regulação do mercado de crédito de carbono de Mato Grosso e Pará. Foram três dias de debates intensos à beira do Rio Guamá, que desaguaram no consenso de que é fundamental que povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais se articulem para o diálogo sobre as ações e iniciativas que envolvem o mercado de crédito de carbono no Brasil e as formas de enfrentar a emergência climática.
Salvaguardas
Quinto episódio do “Vozes do Clima” discute salvaguardas para garantir direitos em projetos de crédito de carbono. Programa traz avaliações de lideranças que participaram de seminário organizado pelo ISA e que acompanham discussões sobre tema na Conaredd.
Uma conversa rumo à COP 30
No sexto e último episódio da primeira temporada do Vozes do Clima, ativistas socioambientais e lideranças de povos e comunidades tradicionais discutem os resultados frustrantes da COP29 e os caminhos para a participação efetiva de povos e comunidades tradicionais na COP30, em Belém (PA).
O boletim de áudio “Vozes do Clima” tem periodicidade quinzenal e é uma realização do ISA, com produção da produtora de podcasts Bamm Mídia e apoio da Environmental Defense Fund (EDF). A identidade visual foi concebida pelas designers e ilustradoras indígenas Kath Matos e Wanessa Ribeiro. O programa também poderá ser ouvido nas plataformas de áudio Spotify, iHeartRadio, Amazon Music, Podcast Addict, Castbox e Deezer.
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Karoline Bezerra Maia: conheça a primeira quilombola promotora de Justiça do Brasil
#ElasQueLutam! Mesmo tardia, nomeação no Ministério Público do Estado do Pará é fruto direto da luta coletiva do movimento quilombola
Na contramão da cultura individualista da sociedade moderna, os modos de vida de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) demonstram que as vivências nunca são somente individuais. O que se vive, se vive junto. O que se luta, se luta junto. E o que se conquista, se conquista junto.
O anúncio da nomeação de Karoline Bezerra Maia como Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará, “a primeira quilombola promotora de Justiça da história do Brasil”, é evidência disso.
Maranhense, remanescente do Quilombo Jutaí, localizado no município de Monção, Karoline Maia foi aprovada para um dos cargos mais desejados da carreira jurídica aos 34 anos de idade.
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Nomeação de Karoline Bezerra Maia é simbólica para o movimento quilombola|Arquivo Pessoal
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Karoline em cerimônia de nomeação para Promotoria de Justiça do Ministério Público do Pará|Arquivo Pessoal
Uma conquista improvável aos olhos de parte da sociedade branca descendente daqueles que escravizaram pessoas como os avós de Karoline, ou que até hoje mantêm em suas propriedades trabalhadores em regime análogo à escravidão, como ocorreu com seu pai, Erozino Bezarra Maia, que trabalhou a troco de comida e abrigo.
No entanto, se trata sobretudo de uma conquista real, desejada e muito aguardada pela comunidade quilombola, que há muitos anos vem abrindo caminhos para que esta nomeação fosse possível e, mais do que isso, realizada.
“Maravilhosa! Realização de sonhos e articulações coletivas. Primeira de muitas Promotoras Quilombolas. Você é um arraso, mulher! Inspiração!”, disse a assessora jurídica da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), Rafaela Miranda, jovem liderança do Quilombo Porto Velho, localizado no município de Iporanga (SP).
“Eu fico emocionada por chegar até onde cheguei. E não quero ser a primeira e única. Eu quero que, a partir deste movimento e toda esta repercussão, venham muitos e muitos mais quilombolas, mulheres, pessoas pretas para que a gente possa, de fato, fazer as instituições mais diversas. Para que, assim, a gente possa ter uma atuação mais eficaz. Que toda esta movimentação possa servir de inspiração para outras meninas pretas, pobres e quilombolas. Não é fácil. Vai ser difícil. Mas é possível”, comemorou Karoline.
Um propósito familiar
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Karoline Maia e o pai, Sr. Erozino|Arquivo Pessoal
Apesar das dificuldades, o pai de Karoline sabia ler e escrever. Ao contrário de sua mãe, Raimunda Bezerra Maia, que não frequentou a escola, integrando a estatística dos quase 10 milhões de brasileiros analfabetos, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua: Educação 2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Meus pais foram muito humildes, muito simples. Minha mãe assinava com a digital. Os pais dela foram escravizados. Ela trabalhava na roça”, recorda Karoline para pontuar que, mesmo sem terem vivenciado a educação regular, os pais fizeram de tudo para que ela frequentasse a escola. “Hoje eu vejo que eu poder estudar foi um propósito ao qual se dedicou a minha família”, avalia.
Isso porque não é um caminho óbvio para a realidade dos quilombolas no Brasil, como é para as famílias brancas de classe média, uma criança frequentar a escola regularmente até a graduação. Por isso, os pais de Karoline enfrentaram dificuldades ao longo da busca da filha pelos estudos.
Uma delas foi o distanciamento do território, a saída do quilombo para a cidade para ter acesso ao direito constitucional da educação – problema real e muito presente no cotidiano dos quilombolas e dos moradores do campo, principalmente dentre os povos e comunidades tradicionais.
No Brasil, existem cerca de seis mil “localidades quilombolas”, conforme grafa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que contabiliza territórios oficialmente reconhecidos, agrupamentos quilombolas, dentre outras denominações. Mas o Censo Escolar mostra que há 2.526 escolas quilombolas em todo o país. Ou seja, menos da metade destas localidades possui unidade de ensino. Os dados são referentes a 2023.
“Para que eu estudasse, passamos por um processo de desterritorialização. Infelizmente, o poder público não tem políticas públicas efetivas para nossa permanência em nossos territórios. No ano passado mesmo, uma escola quilombola foi fechada em minha comunidade. E isso porque estamos falando de ensino fundamental, porque a partir disso não há outra realidade senão a desterritorialização. É ir morar em casa de parente”, diz Karoline Maia.
Não por acaso, relatório do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) aponta que 75% dos quilombolas concluíram o ensino fundamental até 2019, mas apenas 10% completaram o ensino médio até aquele mesmo ano.
Quase desistência
Os pais de Karoline são os personagens centrais da trajetória da promotora. Para que ela estudasse, além de se mudarem para a capital, São Luís, eles também se empenharam para conseguir bolsas de estudos para a filha porbom desempenho escolar, ainda que tivesse de conciliar com trabalhos informais para compor a renda familiar.
“Além de estudar, eu nunca pude deixar de trabalhar. A gente fazia doces para vender na rua, sempre tinha alguma produção em casa que a gente conseguia vender. Meu pai vendia galinha na feira e a gente ia ao Ceasa [Central de Abastecimento] coletar alimentos que o pessoal não conseguiria comercializar, que seriam descartados”, lembra.
E, para garantir a rematrícula e comprar os materiais escolares no início do ano, o Sr. Erozino recorria a empréstimos subsequentes, muito bem calculados para que o próximo ano estivesse assegurado. “O empréstimo terminava em novembro, que era quando ele quitava e fazia outro para garantir as despesas do próximo ano. E assim os anos se seguiam”, conta a promotora.
Quando se formou em 2013, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Karoline foi trabalhar em um escritório de advocacia, mas o trabalho não a completou, assim como os estágios que fez nos Ministérios Públicos Estadual (MPE-MA) e Federal (MPF-MA), que era de onde carregava as melhores memórias de realização profissional.
“[Foi] quando tive contato com ações quilombolas e indígenas. Aquilo tudo ficou em mim. Então eu trabalhava e estudava para concurso, acordando de madrugada e indo dormir bem tarde para conseguir estudar. Mas essa rotina é cansativa. E ainda tem a questão psicológica, porque as reprovações abalam a gente. Então chegou um momento em que eu desisti”, conta.
Foi só durante a pandemia, após o falecimento do pai, que Karoline retomou a rotina de estudos e a coragem para enfrentar os concursos. A mãe já havia falecido quando ela tinha 15 anos de idade em razão de uma complicação pós-cirúrgica. Não a viu formada.
“Meu pai é a minha maior referência, minha grande inspiração. Ele não tinha nada, mas o que tivemos foi ele quem conseguiu. Morávamos numa casa muito precária em São Luís, mas daí ele ganhou no bolão da Quina e pudemos nos mudar para uma casa em melhores condições. Foi tudo isso junto que fez com que eu chegasse até aqui”, remonta Karoline.
Advocacia por necessidade
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Karoline Maia em seu gabinete no Ministério Público do Pará|Arquivo Pessoal
Mas, ao contrário do que parece, cursar Direito não era um sonho, um desejo de infância. Foi a possibilidade de atuar pela causa quilombola que a fez prestar vestibular e investir nesta carreira.
“Fiz Direito influenciada por lutar. Advogar para a comunidade era um sonho do meu pai. E eu acompanhava desde muito pequena toda a luta do movimento, as discussões nas reuniões que eles me levavam. Então, para mim, aquilo era uma necessidade”, conta.
Karoline se lembra das reuniões da comunidade em torno da titulação definitiva do território. “A primeira reunião foi em 2010 e dali para a frente todas as conversas eram sobre o processo emperrado. Nós sempre ficamos por conta da Defensoria Pública Estadual. Mas as coisas não caminhavam.”
Quando começou a compreender melhor do que se tratava a luta de sua comunidade, ela então decidiu se tornar uma operadora do Direito. E foi no estágio que seus olhos se abriram para a carreira de Promotora de Justiça. “É como se a gente pudesse ter voz, se eu pudesse devolver algo para a minha comunidade.”
Uma conquista coletiva
E não foi só a comunidade de Jutaí que comemorou a nomeação de Karoline para o Ministério Público do Estado do Pará. Ao tomar conhecimento da cerimônia de posse para o cargo de Promotora de Justiça, imediatamente as redes sociais se inundaram de publicações em perfis por todo o País. Era a celebração pela conquista coletiva materializada na conquista individual de Karoline.
Uma destas manifestações foi a de Vercilene Dias, assessoria jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
"Mais uma mulher quilombola pioneira. Nossa companheira de luta é a primeira mulher quilombola Promotora de Justiça do país. Quero aqui parabenizá-la e também agradecer pelo esforço para chegar até aqui. Sei que não foram poucos os desafios. E desejar muito sucesso na nova jornada que se inicia. Sua conquista, apesar de tardia, adiada por uma estrutura social e de Estado que nos exclui e invisibiliza, nos traz esperança, esperança para as mais de 6 mil comunidades quilombolas do país. Importante para que outras milhares de mulheres e meninas quilombolas possam sonhar e acreditar que é possível", disse.
Natural do território Kalunga, no Estado de Goiás, Vercilene foi a primeira quilombola a se tornar mestre. Hoje doutoranda, é uma referência não só para Karoline, como para inúmeros outros quilombolas que ocuparam espaços no universo acadêmico brasileiro. “É isso, um caminho, um movimento que vai mudando a estrutura de toda uma sociedade em razão do aquilombar”, aponta Karoline.
Uma prova de como a luta abre caminhos e altera as estruturas da sociedade foi a ação afirmativa do Ministério Público do Pará, o primeiro a garantir cotas para quilombolas e indígenas no concurso para Promotores de Justiça, não por livre e espontânea vontade, mas após uma forte incidência do movimento, especialmente da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), cujos representantes chegaram a ocupar o prédio da instituição pública para pressionar pela garantia do espaço, em conjunto com a Associação dos Discentes Quilombolas da Universidade Federal do Pará, conforme recorda a assessora jurídica da Malungu, Flávia Santos.
Vercilene reforça como todas estas são conquistas de luta do movimento que vêm de seus antepassados. “Luta para que a gente conquistasse um espaço no ensino público, para que fizéssemos uma graduação no ensino público, para que tivéssemos ações afirmativas de permanência na universidade, para que ocupássemos um espaço na carreira pública. Do ponto de vista coletivo, é uma conquista importante. Fico muito feliz de ter atuado nesta luta no coletivo.”
Karoline Maia (ao centro) em evento de posse dos Promotores de Justiça do Pará|Arquivo Pessoal
Outra conquista que todas estas mulheres sustentam, em uníssono, é que uma composição mais diversa nas instituições públicas, desde as universidades até os órgãos de Justiça, é a garantia da ampliação da efetivação de direitos no país, contemplando toda sua diversidade.
“A chegada da Karoline neste espaço aumenta a perspectiva do que a Conaq já vem reivindicando sobre o sistema de Justiça, que é um olhar mais sensível e mais atento. Porque o sistema de Justiça que temos hoje é composto majoritariamente por homens héteros brancos. Então ela rompe com isso. E é também um olhar sensível a partir da vivência de quem passou por desafios, que saiu de um lugar de vulnerabilidade para ocupar um espaço de decisão. Isso é extremamente importante sob esta perspectiva de vida, sob o olhar de quem vem da base”, defende Vercilene.
E é o que reconhece a promotora. “Não é só a Karoline Maia que se tornou promotora. Mas é o quilombo, é o aquilombar. É ter um representante de nós. É fazer ser ouvido, fazer ser percebido. É demonstrar que todo este movimento não é por acaso, ele tem um motivo, um propósito e está no caminho certo. E que, aos poucos, a gente está quebrando as barreiras para que mais e mais pessoas quilombolas possam chegar a diversos cargos de diversas instituições.”
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Mulheres quilombolas lutam contra violência de gênero nos territórios
Feminicídio é o segundo principal fator de morte entre quilombolas, aponta estudo da Conaq e Terra de Direitos
Marcha de mulheres quilombolas em 2020, em Brasília. Lideranças femininas querem debater machismo nas comunidades|Ana Carolina Fernandes/CONAQ
No dia 8 de março, em que se comemora a luta e resistência das mulheres em todo o mundo, mulheres quilombolas trazem para o centro do debate a necessidade de se enfrentar o machismo e a violência de gênero nos territórios.
Dados de pesquisa realizada pela Terra de Direitos e pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, que está em sua segunda edição, mostra dados de diversos tipos de violência contra quilombos no período entre 2018 a 2022, entre eles o aumento do número de feminicídios, o segundo principal fator de morte entre quilombolas.
Dos 32 assassinatos registrados, nove são de mulheres que foram mortas pelo atual ou ex-companheiro. Segundo o levantamento, “a análise do tipo de motivação do crime revela que os conflitos fundiários rurais são a principal causa de assassinato de quilombolas. Ser mulher é a segunda principal causa”.
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Vercilene Dias, advogada e membro do coletivo de mulheres da Conaq, também é voz ativa contra a desigualdade de gênero entre quilombolas. “O machismo, o patriarcado, essa construção social de que o homem é o chefe da casa, o chefe da família. Acho que essa é uma das grandes questões que influenciam isso e que precisa ser desconstruída nas comunidades”, reflete.
“A gente precisa entender que nós estamos em uma sociedade machista e os quilombolas não estão fora disso, porque também cresceram nesse mesmo contexto social. Tudo isso é herança do que os brancos colocaram na nossa cabeça. A gente discute muito isso, como, por exemplo, a questão da punição por você ser um rebelde, a questão das surras, que no tempo da escravidão eram utilizadas como punição pra quem ia contra o sistema, quem ia contra os seus senhores. Então, tudo isso é herança que a gente tem e que a gente precisa corrigir”, reforça.
A pesquisa realizada por Conaq e Terra de Direitos mostra que a proporcionalidade de mulheres quilombolas assassinadas neste período dobrou desde a última edição, realizada entre 2008 e 2017, que registrou a morte de oito mulheres no período de dez anos. As organizações compreendem que as violências contra as mulheres são reflexo da luta política desempenhada por elas nos quilombos em defesa do território e da sobrevivência das comunidades.
“Na verdade, nada justifica a violência praticada contra nenhum ser humano e, no caso em questão, contra as mulheres. Mas a gente fica se perguntando de onde vem esse sentimento tão cruel que letrado ou não, estudante ou não, tem no seu comportamento esse desejo de resolver o que julga ser problema, o que acha que tem que ser resolvido, na base da violência, na base da agressão, na base da desvalorização da mulher”, diz a ativista quilombola Maria Aparecida Mendes, que investigou as manifestações do machismo em territórios tradicionais em sua dissertação de mestrado “Marias Crioulas: Emancipação e Alianças entre Mulheres no Enfrentamento à Violência Doméstica em Comunidades Tradicionais”.
Durante sua pesquisa para a dissertação, e em sua própria vivência, ela identificou a influência da religião na manutenção dos papéis de gênero e de violência doméstica. “Eu lembro que muitas pessoas chegavam lá em casa, especialmente as senhoras que estavam na igreja, e falavam: ‘é, minha filha, a gente sofre muito, mas a gente tem que ter fé em Deus, porque Ele quer assim. Entender que Deus vai cuidar e que é o único jeito que a gente tem de alcançar o reino dos céus’. Então quando eu escuto as pessoas com esse discurso conformista, eu vejo aí a influência da religião mesmo”.
Perfil dos casos e das vítimas
O mapeamento identificou que a maioria dos casos dos assassinatos de mulheres quilombolas foram cometidos com armas brancas (faca, foice, machado ou chave de fenda) ou com métodos de tortura, indicando um componente de crueldade nas mortes. Também apontou que a região com o maior número de casos foi o Nordeste, onde está o maior número de quilombos do país. Foram seis casos registrados nos estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco, Maranhão e Bahia. Além disso, a maioria dos crimes foi cometida na casa das próprias vítimas.
Dados do Painel de Violência contra a Mulher, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2023, mostraram que, no Brasil, 49,9% dos feminicídios são cometidos por meio de armas brancas; 69% são cometidos em residência; 53,6% pelo companheiro e 19,4% pelo ex-companheiro, e 61,2% são cometidos contra mulheres negras.
Múltiplas violências
A pesquisa realizada por Conaq e Terra de Direitos aponta que territórios em situação de conflito e vulnerabilidade estão mais suscetíveis a situações de violência.
“Um território em situação de vulnerabilidade, que vive em conflito com interesses de terceiros sobre a posse da terra, dizimado cotidianamente por ameaças de desintegração, como poluição dos rios, comprometimento das atividades de subsistência, falta de acesso à educação e a serviços básicos de saúde, possivelmente terá situações de violências a multiplicarem-se em seu interior. A violência institucional, ao bloquear sistematicamente o acesso a bens e recursos, gera formas endêmicas de violência das quais a violência doméstica faz parte.” (Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil - Volume 1, 2023).
Além do racismo estrutural e institucional, as mulheres quilombolas também precisam lidar com o machismo. Muitas vezes a sua vontade de estar à frente da luta acaba sendo abafada porque o companheiro não aceita.
“Pelo simples fato de serem mulheres, as quilombolas que assumem posições de liderança política nos seus territórios expõem-se mais facilmente à violência doméstica ao desequilibrarem o que seriam considerados papéis de gênero tradicionais nos relacionamentos. Não à toa, relatos dos assassinatos indicam situações de raiva ou ciúme, demonstrando também a violência como exercício desmedido de controle sobre o corpo e a liberdade das mulheres”. (Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil - Volume I, 2018).
O fato de desafiarem a lógica patriarcal no que diz respeito às posições de liderança dentro dos territórios também esbarra no trabalho fora do ambiente doméstico. Dados divulgados pelo IBGE nesta sexta-feira sobre a 3ª edição da pesquisa “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil” mostram que 26,6% de mulheres pretas ou pardas não estavam em treinamento, ocupadas ou buscando trabalho.
Esse dado indica uma relação direta com as horas dedicadas aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos. Em 2022, foram 21,3 horas semanais que as mulheres gastaram nessas atividades, quase o dobro do tempo dos homens. Também verificou-se 1,6 hora a mais por semana nessas tarefas no grupo de mulheres pretas ou pardas em contraste com as mulheres brancas.
Medo como fator predominante
Apesar do alto índice de violência doméstica e de feminicídios, os números ainda não traduzem a realidade, e o medo é o principal fator para as subnotificações. De acordo com Vercilene Dias, muitas quilombolas não denunciam por medo da violência do Estado.
“Muitas vezes, as mulheres chegam nas delegacias e recebem um tratamento de mais violência. Também, tem as situações que muitas vezes ficam ali acobertadas porque elas não querem ficar mal faladas na sociedade, e isso é um contexto muito geral em relação às mulheres que passam por isso nas comunidades. É muito mais violento, porque você sofre em silêncio, e o silêncio é mais uma forma de violência”, lamenta.
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Ausência de uma abordagem institucional pensada para mulheres quilombolas gera receio na hora de denunciar casos de violência|Loiro Cunha/ISA
Em sua dissertação, Maria Aparecida Mendes também apontou o medo como fator comum entre as mulheres quilombolas. Ela entrevistou mulheres do Quilombo Conceição das Crioulas e de comunidades em outras regiões do país também, como Bahia, Pará e Goiás. “Todas têm medo de denunciar. Todas têm resistência. Esse é um comportamento comum de todas elas. As mulheres em contexto comunitário não denunciam seus agressores”, confirma.
“Pessoas quilombolas vivem em comunidade, então têm o receio de denunciar o companheiro e a polícia chegar lá e ter mais violência, não ter o tratamento adequado, ainda mais por se tratar de território quilombola, que é território de conflito”, conta.
Segundo Dias, “muitas vezes as mulheres até querem denunciar, mas não vão à delegacia. Elas vão na promotora de justiça no fórum, porque elas acham que o recebimento delas pode ser melhor do que ir em uma delegacia, que tem um contexto muito machista. Geralmente, os encaminhamentos desse tipo são muito ruins, porque não tem um procedimento específico, aplicam a Lei Maria da Penha de forma geral, sem abarcar o contexto da comunidade”.
Particularidades dos quilombos
Além do medo de passar por violência institucional e por constrangimento, as mulheres quilombolas também enfrentam uma situação muito particular: a vivência em comunidade.
“De certa forma, nas comunidades você tem um contexto diferente. Você vive em comunidade. Como você vai manter o distanciamento, por exemplo? Como vai colocar uma medida protetiva pro companheiro de não ir na sua casa ou encontrar com você, se vocês vivem dentro da mesma comunidade? A comunidade é a nossa casa. O quilombo é a nossa casa. Como vai manter o distanciamento sendo que tá todo mundo ali na mesma família, participando das mesmas festas tradicionais?”, questiona Dias.
“São várias situações que simplesmente uma abordagem policial não dá conta. Aí tem as casas abrigo, mas como que tira uma pessoa da comunidade? Como tirar uma liderança da comunidade e levar pra uma casa onde ela vai sair do convívio da família, aí como fica num caso desse? É preciso que levem em consideração essas situações”, pondera Mendes.
Vercilene Dias faz parte do coletivo de mulheres quilombolas da Conaq, que reúne mulheres quilombolas do Brasil todo e pretende ampliar a discussão sobre a Lei Maria da Penha dentro dos territórios.
“Pra justamente colocar essas questões, discutir com as mulheres que passam por essa situação o que pode ser feito. Fazer com que elas conheçam a lei e o que que pode ser feito pra melhorar ou especificar o contexto das mulheres quilombolas.”
Redes de apoio
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Maria Aparecida Mendes tem 53 anos, é quilombola de Conceição das Crioulas (PE), mãe de uma filha, avó de dois netos e filha de agricultores. Faz parte da luta quilombola de forma mais intensa desde o final dos anos 1990, e começou no ativismo no Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central (MMTR).
A ativista se casou aos 18 anos e, durante 20 anos, sofreu diversas violências domésticas, como conta em sua dissertação. “Durante vinte anos da minha vida, eu sofri todo tipo de violência física e psicológica que se possa imaginar. Das cinco vezes de gestação, somente a primeira filha sobreviveu, os dois seguintes eu perdi em virtude das agressões físicas e, nas duas últimas gestações, sofri abortos espontâneos. Entre todas as lembranças, as mais dolorosas são as perdas dos meus bebês, além das muitas vezes em que fui espancada e em seguida estuprada”.
O processo de libertação de ‘Cida’, como gosta de ser chamada, começou por meio da leitura. “Eu gostava muito de ler. Eu lembro que li duas histórias que me marcaram demais, a história de Benedita da Silva, que eu desenvolvi uma admiração muito grande por ela. Uma mulher aguerrida, determinada, que passava por todo tipo de situação, mas nada fazia com que ela desistisse”, recorda.
“Depois eu também fiz a leitura de Machado de Assis, que me ajudou demais. Então eu fui procurando ouvir pessoas, ouvir histórias de pessoas que superavam dificuldades. Então nas dificuldades que eu passei, sempre tive expectativa de que um dia iria superar. Mas quem me deu força mesmo, quem me ajudou mesmo a enfrentar as situações de violência que eu vivia, foi o movimento de mulheres trabalhadoras rurais do sertão pernambucano. Eu tenho o costume de dizer que essas mulheres me salvaram.”
Cida começou a participar dos encontros e com isso passou a enfrentar mais situações de machismo, porque o ex-marido não permitia que ela saísse de casa. “Eu fui me rebelando e tomei uma decisão. Se eu saísse de casa eu ia sofrer agressão, se eu ficasse em casa eu ia sofrer agressão. Então eu saí”.
Diferente de muitas mulheres, o medo foi motivador para que ela saísse da situação de violência. Também o contato com as histórias das outras mulheres, a fez enxergar que não estava sozinha. “Quando a gente se isola dentro de casa, a gente acha que o nosso problema é o único problema do mundo, mas quando eu saí e comecei a ouvir outras histórias, apesar dos absurdos, também eram histórias de superação, cheias de altivez, de potência. E eu ali, caladinha, só me espelhando”, afirma.
“Depois de 20 anos de casada eu me separei, casei de novo e hoje tô solteira. Mas eu saí de todas essas situações de relacionamento abusivo porque eu fui acolhida. Eu digo que eu só consegui porque fui acolhida. E é isso que a comunidade tem que fazer, é isso que a sociedade tem que fazer, é isso que o Estado tem que fazer. É acolher e adotar estratégias para que a mulher se sinta encorajada a enfrentar de forma inteligente”.
Dias também destaca a importância da construção de redes, para que as mulheres não precisem passar pela situação de violência sozinhas. “E a gente tem feito muito isso também pelo coletivo de mulheres, tem feito esse socorro nesse sentido. Não deixá-las passar por esse momento sozinhas, de estar junto, de buscar o melhor caminho, inclusive pro próprio violentador, que muitas vezes não tem o conhecimento específico do que é a violência doméstica”, diz.
“Rede, orientação, formação são caminhos importantes. Mas acho que o principal é o cuidado das redes de mulheres. Então eu acho que a melhor forma de tratar isso é formação, é educação, porque a questão do machismo é uma questão social. Não é só um problema de quilombola, um problema da mulher, e a gente precisa tratar disso como uma questão social que precisa ser resolvida”.
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Nota de pesar pelo falecimento de Antônio Bispo dos Santos
Do Quilombo Saco-Curtume (PI), se tornou ao longo de sua trajetória um pilar nas frentes de disseminação do conhecimento e da luta quilombola
Antônio Bispo dos Santos, originário do Quilombo Saco-Curtume, em São João do Piauí (PI), se encantou no dia 3 de dezembro|Alexia Melo/Conaq
O Instituto Socioambiental (ISA) se solidariza com seus parceiros da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e lamenta profundamente o falecimento de Antônio Bispo dos Santos, mestre Nêgo Bispo, liderança quilombola e um dos principais intelectuais de nossa era.
Em 2022, Nêgo Bispo ofereceu generosamente suas palavras aos colaboradores do ISA em um evento de formação interna, e deixou sua marca com reverberações fundamentais sobre o pensamento de povos e comunidades tradicionais.
Quilombola do Quilombo Saco-Curtume, em São João do Piauí (PI), ele tornou-se ao longo de sua trajetória um pilar nas frentes de disseminação do conhecimento e da luta quilombola.
Sua retórica marcante reverencia seus mestres e mestras, faz críticas contundentes à colonialidade e deixa um legado de valorização dos quilombos e seus territórios, indissociáveis em sua essência.
Em nota, o Coletivo de Educação da Conaq afirma que aprendeu muito com o pensador. “Continuaremos preservando os saberes orgânicos que ele se dedicou a construir e defendendo uma educação quilombola pautada na vivência dentro do território quilombola.”
E encerra a homenagem com duas de suas frases lapidares:
“Somos o começo, o meio e o começo”. “Precisamos aprender a voltar pra casa.” – Nêgo Bispo.
Assista à homenagem da delegação da Conaq na COP28:
Símbolo de concretização da luta política quilombola, o Decreto 4.887/2003, que “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, completa duas décadas neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
Para Vercilene Dias, advogada da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), o decreto “traz conceitos importantes sobre a política quilombola, sobre quem são os quilombolas”.
“[São] Direitos que são reconhecidos também em tratados internacionais, como o direito à autodeterminação, à autonomia das comunidades. Uma outra questão que é muito marcante no decreto é que ele rompe com a lógica do direito capitalista, ou seja, o direito ao território é coletivo, o direito à propriedade é coletivo. No direito civil só existe a propriedade individual, então ele rompe essa lógica do capital, da terra-mercadoria e traz a terra-coletividade”.
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Vercilene Dias, advogada da Conaq|Matheus Sant'Ana (@maatheox)
“Uma outra questão que é muito marcante no decreto é que ele rompe com a lógica do direito capitalista, ou seja, o direito ao território é coletivo, o direito à propriedade é coletivo. No direito civil só existe a propriedade individual, então ele rompe essa lógica do capital, da terra-mercadoria e traz a terra-coletividade.”
Direito em xeque
Desde antes de ser instituída formalmente, até se tornar o Decreto 4.887 propriamente dito, a política de titulação foi questionada várias vezes em diversas instâncias. Primeiramente na forma do Decreto 3.912/2001, do presidente Fernando Henrique Cardoso. O problema com esse decreto era que ele estabelecia um marco temporal para o reconhecimento das comunidades quilombolas.
“Como entrar em um marco temporal se a gente estava na terra, mas não tínhamos o direito de ter o documento dela? Não era permitido dar título e nem regularizar cartorialmente as terras das comunidades quilombolas”, conta Sandra Andrade da coordenação executiva da Conaq.
O Decreto 3.912 foi revogado passando a vigorar o 4.887, que foi a primeira legislação feita por um governo com a participação das comunidades quilombolas.
“Acho que é uma das legislações construídas no Brasil mais legítima para a população quilombola até hoje. Acho que para construir um instrumento os destinatários devem participar da discussão da construção desse instrumento e acho que o decreto inova nesse sentido”, comenta Vercilene.
Apesar da construção coletiva e favorável às comunidades quilombolas, alguns setores continuaram a deslegitimar o 4.887. Na época, o partido Democratas (DEM), antigo Partido da Frente Liberal (PFL), entrou com a Ação de Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239 no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade do decreto.
“Assim que foi publicado, eles entraram com a inconstitucionalidade do decreto, o que nos deixou muito revoltados, porque quem pediu o decreto foram eles. E aí, no mesmo ano, entrou no STF e ficou por 15 anos. Foram 15 anos de muita luta e sofrimento, mas o movimento estava unido e firme na garantia de proteção desse decreto que daria condições para implementação da política nas comunidades quilombolas”, relembra Andrade.
Um ponto específico levantado pela ADI 3.239 foi a conceituação de quem eram os remanescentes de comunidades quilombolas e os requisitos para a autodeterminação desses povos.
“O decreto traz o critério da auto identificação coletiva. E aí eles questionavam se todo mundo que dissesse que era quilombola poderia ser reconhecido enquanto quilombola. Não é assim. Tem os critérios estabelecidos ali no artigo 2 e as comunidades quilombolas, que vão decidir se o indivíduo que se declarar quilombola é quilombola ou não”, explica Dias.
Além disso, foi questionada também a formalidade, sob o argumento de que o decreto não era o instrumento que deveria regulamentar o artigo 68 do ADCT, que deveria ser feito por meio de lei.
Consolidação do marco jurídico
Em 2018, a ADI 3.239 foi julgada e rejeitada pela maioria dos ministros do STF que entendeu que o Decreto 4.887 era constitucional e estava de acordo com o que diz o artigo 68 do ADCT.
Apesar de todas as complicações e dos questionamentos de direitos quilombolas, Vercilene considera que todos os entraves vividos no sistema de justiça colaboraram para dar visibilidade a um povo excluído que precisava ter seus direitos reconhecidos e garantidos
“Eu acho que a gente teve avanços significativos do ponto de vista de reconhecimento do sujeito quilombola enquanto sujeito de direito, avanço na política pública em geral para a população quilombola. No entanto, acho que um dos principais direitos escritos nesse decreto, que é o direito ao território coletivo titulado das comunidades, pouco avançou nesses 20 anos”, pondera.
Titulação de territórios no Brasil
Segundo dados do último censo demográfico do IBGE, o Brasil possui mais de 1,3 milhão de quilombolas, dos quais menos de 5% estão em territórios demarcados. São quase 6 mil comunidades quilombolas espalhadas pelo país e apenas 147 tiveram seu título emitido.
“20 anos da política, uma política totalmente desestruturada, que não teve recurso, não teve investimento, teve apagamento das políticas públicas em relação aos territórios. Agora, a gente tá vivendo um processo de reconstrução, mas dentro desse processo é importante pensar que a gente não reconstrói nada se não tiver dinheiro, se não tiver infraestrutura, não tiver servidores competentes pra trabalhar naquela pauta”, aponta Biko Rodrigues, coordenador nacional de articulação da Conaq.
“Essa não regularização tem causado muitos conflitos com mortes, com assassinatos. Tudo isso é parte dessa morosidade do Estado, que não regulariza aquilo que tá na Constituição, que não garante terra às comunidades quilombolas.”
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Biko Rodrigues, da Conaq: "não regularização [do decreto] tem causado muitos conflitos com mortes"|Conaq
Principais desafios
Biko acredita que um dos grandes problemas para a efetivação da política de titulação é o sucateamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e responsável por executar a reforma agrária, realizar o ordenamento fundiário nacional e emitir títulos de territórios quilombolas.
“Ao longo desses anos o Incra não se capacitou, não se profissionalizou para dar conta da demanda dos territórios quilombolas e isso é uma das grandes dificuldades. Há um certo engessamento da política quilombola dentro do Incra”.
Para o assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA) Fernando Prioste, o “Estado brasileiro precisa elaborar e colocar em prática um plano nacional de titulação dos territórios”. Para o advogado, se não houver uma noção mais precisa da demanda por titulação e dos gargalos existentes, não será possível avançar de forma significativa. “Mas apenas o plano não adianta, é preciso enfrentar o racismo dos ruralistas, que historicamente impede a titulação quilombola”, complementa.
O Incra foi perguntado sobre os principais desafios em relação à titulação de territórios quilombolas no Brasil e como os Três Poderes e o Estado podem colaborar para facilitar e dar celeridade a esse processo. Entretanto, até o momento, nenhuma resposta foi dada.
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Givanilda Aguiar Rocha: compartilhando conhecimento pela proteção da floresta
Elas Que Lutam! Professora faz da educação uma ferramenta de luta pelo território ribeirinho e pela igualdade de gênero
Givanilda dá aula de geografia na escola da comunidade Praia Grande, Resex Riozinho do Anfrísio|Acervo Pessoal
Givanilda Aguiar Rocha (Gigi), de 39 anos, é professora de alunos com necessidades especiais na comunidade Praia Grande, Reserva Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio, distante há mais de dois dias de barco da cidade de Altamira (PA).
Criada apenas pela mãe, Dona Francineide, ela precisou trabalhar desde cedo para ajudar a sustentar a família. Em casa, aprendeu a manejar os produtos da floresta, extraindo o óleo do coco e da andiroba, e a fazer artesanato.
Foi apenas em 2016, com 31 anos, que conseguiu cursar o ensino médio por meio do ‘magistério’, um projeto da Universidade Federal do Pará (UFPA) para formação da primeira geração de professores ribeirinhos na Resex.
A lembrança do caminho percorrido é carregada de orgulho, mas também de tristeza. Apesar de ter aprendido a ler e escrever com os familiares, teve dificuldade nos estudos. Quando se formou, ingressou na universidade em Altamira, onde hoje cursa Etnodesenvolvimento.
Gigi conta que para estudar precisou enfrentar o preconceito por ser mulher em um espaço tradicionalmente ocupado por homens.
“Muitas das vezes as pessoas falavam assim ‘Vai para cidade e não vai mais voltar. Não quer saber da família’. E eu não enxergo dessa forma. Eu enxergo que a mulher tem direito de fazer o que quiser. Ela tem direito de estudar. Ela tem direito de trabalhar. Ela tem direito de ir aonde ela quer”.
A professora reconhece que, apesar da sociedade ter conquistado importantes avanços na busca pela igualdade de gênero, essas tensões ainda são bastante latentes. Na faculdade, ela divide o espaço com outras três mulheres, em uma sala de vinte alunos, e conta que viu muitas das colegas escolherem entre o casamento e a faculdade.
“Hoje, graças a Deus, (elas) tão se formando, trabalhando, mas ainda é muito comum essa história, né? [...] Pra chegar onde eu cheguei, a gente sofre. Sofre pelo fato da gente ser mulheres ribeirinhas, da gente ser tradicionais, sabe? Até o jeito da gente falar incomoda algumas pessoas.”
As memórias de sua trajetória de vida são também um sinal alerta para a dificuldade de permanência dos povos e comunidades tradicionais no ensino superior. Para se manter em Altamira, Gigi e uma colega, Luziane Pereira Matos -conhecida como ‘Vovózona’ -passaram fome e contaram com doações de alimentos para seguir os estudos.
No cargo de professora, Givanilda encontrou uma forma de conquistar autonomia financeira para poder terminar a faculdade, e assim realizar um sonho antigo. Com a voz embargada, ela agradeceu pela oportunidade de inspirar as novas gerações da Resex.
“Quando eu penso em tudo que eu passei para chegar onde eu cheguei, eu me emociono muito. Pensar em tudo que eu já passei e hoje poder estar passando essa minha força para as crianças, né? Não tem preço”.
Com a sabedoria de quem reconhece que uma conquista fica ainda melhor quando compartilhada, ela sonha com a criação de um ensino médio dentro do território tradicional, para que a juventude não precise abandonar os estudos ou passar dificuldades em Altamira.
“Se não tiver o ensino médio, todo esse povo que tá saindo do nono ano vai ficar parado. Não tem condição de ir para cidade. Então o meu sonho é que tenha um ensino médio para ele que eles não parem (os estudos)”.
Givanilda divide a rotina entre a faculdade, em Altamira (PA) e o trabalho perto da família, na Resex Riozinho do Anfrísio|Acervo pessoal
Nas salas de aula da universidade, Gigi se aprofundou no estudo da Constituição e das leis que amparam as populações tradicionais na busca por direitos. Esse conhecimento, somado à memória de tantas lideranças importantes para a comunidade, fortalece a resistência de quem ainda tem muito pelo que sonhar.
Com carinho, ela lembra de Herculano Porto de Oliveira, conhecido como Seu Herculano, primeiro presidente da Associação de Moradores da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio (Amora).
A liderança da comunidade Bom Jardim teve um papel central no período de criação da Resex e recebeu, em 2005, o Prêmio Chico Mendes na categoria Associações Comunitárias.
“Eu me inspiro muito nele. Ele foi uma pessoa que não teve medo de morrer, não teve medo de lutar. E se hoje eu tenho essa formação, eu devo muito a ele”.
Givanilda conta que, apesar de ainda existir pressão contra a comunidade, a entrada de invasores diminuiu bastante em relação ao cenário vivido no início do século, antes da criação da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio.
“A gente foi no rio. Quando chegou lá, a gente se deparou com um barco cheio de arma. Arma de tudo quanto era a qualidade. [...] A gente tentava não ter medo, mas não tinha jeito, né? Era barco por cima de barco, eles vinha e voltava, entrando nos igarapés. A gente não tinha paz”.
Há três anos, ela participou de um encontro de mulheres do Movimento Xingu Vivo para Sempre, no Rio de Janeiro. Gigi relata que a experiência ajudou a dimensionar o desafio enfrentado por lideranças femininas de populações tradicionais em outras partes do país.
“Quando a gente sai daqui para outros territórios, a gente vê que a luta das mulheres são as mesmas. Eu me segurei muito para não chorar. [...] Não é pelo fato de eu ter meu dinheirinho que eu vou ficar acomodada. Eu enxergo que todas nós tem que trabalhar. Eu vou ficar muito orgulhosa de ver outras mulheres, guerreiras, trabalhar e ter sua renda”.
Hoje, ela já não participa de reuniões em outros territórios, mas segue atuando pela defesa das populações ribeirinhas nas salas de aulas da universidade e da escola da comunidade Praia Grande.
Mãe de quatro filhos, Givanilda defende a mobilização das novas gerações de ribeirinhos pelo futuro do Xingu.
“A minha luta é tanto pelo território, como por esses jovens. [...] A gente não tem que ter medo de falar. É direito nosso! A gente tem que perder esse medo de falar e correr atrás dos nossos direitos”.
Magistério permitiu a formação da primeira geração de professores do território ribeirinho|Acervo Pessoal
Givanilda acompanha entrega de freezer na cantina da escola em que trabalha|Acervo Pessoal
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Mesa Quilombola é retomada em São Paulo com esperança de avanço na questão fundiária
Anfitrião, Incra reconhece que lentidão reflete o racismo institucional e promete trabalhar por celeridade nos processos de titulação
Mesa Permanente de Regularização Fundiária Quilombola de São Paulo reúne atores públicos que atuam diretamente na titulação de territórios no estado|Taynara Borges/ISA
Denúncias de violência e negligência por parte do setor público, ameaças das mais diversas naturezas, morosidade burocrática, racismo institucional e racismo ambiental são apenas alguns dos assuntos abordados durante a Retomada da Mesa Permanente de Regularização Fundiária Quilombola de São Paulo pela Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Desativada no estado há cerca de oito anos, a Mesa reúne diversos atores públicos, nos âmbitos federal e estadual que, de alguma forma, assumem responsabilidade social e têm obrigação jurídica de atuação junto às comunidades quilombolas, seja no que se refere à questão socioambiental, agrária ou de quaisquer outras frentes.
Interrompida no último ano do Governo Dilma, em meio ao caos institucional provocado durante a pavimentação do Golpe que a removeu da Presidência da República, a retomada da Mesa Quilombola, como é chamada extraoficialmente, tem sido uma forte reivindicação das lideranças quilombolas do Estado de São Paulo, que compareceram em peso à reunião, tornando pequeno o auditório do Incra na capital paulista.
“Essa retomada é fundamental para que a gente possa articular esforços e cooperar para a regularização fundiária quilombola”, reforça a advogada Rafaela Miranda, jovem liderança do Quilombo Porto Velho, localizado no município de Iporanga, que na ocasião representou a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), da qual é assessora jurídica.
Regularização Fundiária Quilombola
Embora diversas questões burocráticas tenham sido levantadas pelas lideranças enquanto demandas urgentes para as comunidades, como a dificuldade para o licenciamento de roças ou mesmo os atrasos e outros problemas nas emissões do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), as dificuldades em torno da Regularização Fundiária Quilombola em São Paulo dominaram a pauta.
Os relatos se deram no sentido de enfatizar como a morosidade das instituições públicas nos processos de titulação, que têm levado décadas para se concluir, abre espaço para episódios de ameaças e violências praticadas por grileiros que ocupam ou especulam terra em territórios em processo de Identificação e Delimitação; e como a falta de documentação dificulta o acesso das comunidades a políticas públicas que, embora sejam destinadas aos quilombolas, exigem papéis e documentos que, em geral, eles têm dificuldade para obter.
Leia parte dos depoimentos das lideranças quilombolas ao longo da reportagem:
"Fico feliz de estarmos aqui. A gente espera que esta mesa continue por quatro, oito, dez anos. Que a gente não tenha aquele corte que tivemos nos últimos anos, com um desmanche de tudo o que foi construído com a força do nosso povo. Trabalhamos muito para construir muitas das demandas que aqui estão. Por isso, esse retrocesso a gente desmonta com força de vontade e com união. Ali na nossa comunidade as maiores ameaças são por mineração e por Pequenas Centrais Hidrelétricas. E a demora na titulação influencia bastante nestas questões. Eu trago isso aqui porque está saindo uma ponte, iniciada no governo Bolsonaro, que liga Itaóca ao Paranã. E eu acredito que isso vai aumentar muito o assédio das mineradoras."
"A luta dos Quilombos não para. Ela é no dia a dia. Todos temos a necessidade da segurança da titulação das nossas terras. Nossos antepassados viveram sem título, mas não tinha tanto conflito como tem agora. Hoje, para termos segurança, dependemos muito deste título. A nossa comunidade vem sofrendo afrontas por contas de terceiros que estão sendo indenizados por estes dias. Eles vêm ameaçando a Associação. Eles entraram numa área pequena, mas já formaram uma área maior. E nossas comunidades sofrem muito com isso e com os grandes fazendeiros de bananas que usam muito agrotóxico e trazem doenças para as populações quilombolas."
"Recebi e recebo muitas ameaças de terceiros. Me ligam e falam: “a senhora fica na tua! Se liga! A senhora vai ver o que vai acontecer com a senhora.” Os terceiros oprimem as lideranças das comunidades, mesmo depois de serem notificados para deixarem nossas terras. Tivemos o caso da Dona Bernadete. Na minha comunidade isso já aconteceu também e ninguém fez nada. Foi enterrado e pronto. Queremos ficar livres. Não ficar com a terra titulada e continuar sendo oprimidos."
"Precisamos levar eletricidade para as comunidades. Algumas casas têm luz e outras não. As pessoas que compraram por ali recentemente conseguiram colocar energia elétrica. Só os quilombolas que não conseguem. Fomos até a Prefeitura, levamos toda a documentação que precisava, o reconhecimento da Associação, mas eles pedem um número que só o Incra pode nos fornecer."
"O Quilombo, a partir da titulação, tem dono. O quilombo é um território que não é particular, mas é de posse coletiva da comunidade. Está protegido por lei federal. Nós temos ciúmes dos mananciais, porque somos nós que preservamos. Como uma mineradora vai chegar e explorar no nosso território?!"
Um dos representantes estaduais da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Neimar Lourenço destacou a importância da Mesa e avaliou como uma “conquista” sua retomada pelos quilombolas. “Esta Mesa é nossa. A gente está dentro do prédio do Incra que estava fechado para nós há muitos anos. Estar aqui agora é muito importante. A força de vocês é o que move tudo isso. A gente está aqui para ser o fogo da chaleira que vai fazer isso ferver e a gente conseguir nossas titulações.”
A representatividade da presença maciça de quilombolas na retomada da Mesa também foi destacada pela Superintendente Regional do Incra em São Paulo, Sabrina Diniz. “A presença das comunidades é o principal. A Mesa Quilombola existe justamente para garantir que as comunidades quilombolas acompanhem seus processos de titulação, para que possam pressionar e apontar quais são os problemas que a gente está enfrentando no avanço deste processo de titulação.”
A superintendente ainda reforçou como o diálogo entre governos federal e estadual é fundamental, já que depende dos dois a titulação dos quilombos.
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Superintendente Regional do Incra em São Paulo, Sabrina Diniz enfatiza que seguirá no enfrentamento do desmonte provocado pelo governo anterior na pauta quilombola, não só em São Paulo, mas em todo o País|Taynara Borges/ISA
Presente representando o Governo Estadual, a assessora especial para Quilombos e outras Comunidades Tradicionais da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), Andrea João, se manifestou no sentido de ressaltar os resultados que podem advir de um trabalho conjunto. “Nós sabemos desta necessidade para promover a legitimação das terras quilombolas no Estado de São Paulo. Espero que nosso trabalho se desenvolva e que a gente consiga avançar.” Fala que foi corroborada pela representante do Núcleo de Regularização Fundiária da Fundação Florestal, Maria Aparecida Salles Resende. “Apesar de muita coisa lenta que a gente gostaria que fosse mais acelerada, houve avanços, principalmente depois que passamos a trabalhar junto ao Itesp.”
As declarações do Itesp, no entanto, ainda reverberaram o mal-estar generalizado causado pelo pouco comprometimento da instituição na ocasião do encontro realizado em junho deste ano, durante a apresentação das pautas das comunidades quilombolas de São Paulo ao Itesp, agora vinculado à Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo.
Com uma legislação própria para a titulação de territórios quilombolas desde 1999, as lideranças recordaram que o estado titulou, parcialmente, apenas seis comunidades e mantém outras 36, oficialmente reconhecidas, na fila para garantia do direito à terra, sem devolutivas acerca do desenrolar do processo de cada uma delas.
Na avaliação do coordenador do Programa Vale do Ribeira, do Instituto Socioambiental (ISA), Frederico Viegas, a Mesa é um momento muito importante exatamente para a retomada de diálogos. “O Incra é o órgão de referência para a titulação dos territórios quilombolas, apesar do Estado de São Paulo ter um órgão que faz uma parte da titulação das terras públicas estaduais. E ele também tem um papel na assistência técnica a nível federal. Então, essa Mesa é o lugar onde essas comunidades podem falar e alinhar o que pode ser feito. Essa retomada recoloca o espaço de participação social no âmbito das políticas de Estado.”
Governo Federal reforça ação por política quilombola
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Paulo Teixeira, Ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, esteve presente para garantir que a regularização fundiária quilombola é uma prioridade do Governo Federal|Taynara Borges/ISA
Durante a plenária, a Mesa Quilombola recebeu a visita do Ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Paulo Teixeira, que na ocasião reforçou o protagonismo da pauta que vem sendo articulada pelo Governo Federal no âmbito das políticas públicas voltadas às comunidades tradicionais.
“O saber ancestral é que deveria guiar a nossa sociedade, porque esse saber é mais equilibrado, é mais includente, é mais solidário, é mais ambiental. Tanto que nos quilombos você não dá o título para a pessoa, individualmente. Os Quilombos querem títulos coletivos, querem continuar como comunidade. Por isso nós queremos que os quilombos do Brasil sejam todos demarcados”, ressaltou o ministro.
No entanto, apesar do Ministro demonstrar amplo apoio à pauta quilombola, o assessor jurídico do ISA, Fernando Prioste, recorda que o Incra não avançou na desburocratização do procedimento de titulação das comunidades, assim como não revogou normas de Bolsonaro que atacam os direitos de quilombolas. “Segundo a Conaq, é urgente que o Incra nacional revise, por meio de consulta prévia, a Instrução Normativa nº 57/2009 e a Instrução Normativa nº 111/2021, que tratam, respectivamente, do processo de titulação dos territórios e do procedimento de consulta prévia às comunidades em casos de licenciamento ambiental”, pontua.
Representante do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Luís Gustavo Magnata apontou que a pauta tem sido tratada de maneira transversal dentro do Governo Federal. “Este Governo sabe receber críticas e irá responder a elas com políticas públicas. Este é um dos papeis do MIR: sentar com vários ministérios e instituições e dialogar sobre as políticas para Quilombos. Políticas estas que não só tragam a titulação, mas que conectem o desenvolvimento dos territórios junto a elas. Estamos num ritmo muito lento da agenda nacional de titulação de quilombos, que vem de 2003. Por isso, precisamos de uma orquestração que já está sendo construída. Cada quilombo tem sua característica, mas a gente não pode ir por um de cada vez. Precisamos organizar tudo isso.”
"Nós não fazemos roça sem autorização. Na pandemia nós conseguimos autorização para fazer a roça e informar posteriormente. Mas a Florestal não quer saber. Eles chegam na comunidade e exigem que a gente informe de que é aquela roça. E eles ameaçam, que se eu não contar vou ser autuado ou preso. É um abuso de autoridade e isso não pode acontecer. Como vocês podem atuar para que eles cheguem com mais calma e conheçam a resolução?"
"As pessoas ficam por aí falando em família tradicional... Famílias tradicionais somos nós que fomos escravizados para enriquecer os exploradores e seguimos resistindo até hoje."
"Vejo aqui muitos órgãos do meio ambiente dizendo que nos protegem, que dialogam com os quilombolas. Mas o que eu vejo é polícia florestal apontando arma para criança que está brincando no rio, algemando menor que pegou um pedaço de madeira seca para fazer artesanato. Eu acho que isso é muito ruim. Afinal de contas, não precisa ser parque nem ter empresa particular armada dentro destes territórios para preservar, porque somos nós que preservamos. Não tem cabimento de nós termos conservado até hoje e sermos tachados de criminosos. Quantos líderes têm que ser assassinados para sermos reconhecidos? Nós todos estamos ameaçados. E o Governo é um jumento, se você não cutucar, ele não anda. E a Justiça é lenta. Até ela tomar uma decisão, quantos foram mortos?!"
No âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA), o representante do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Anderson Soares assegurou o empenho da instituição com o diálogo para a construção de uma política de escuta junto às comunidades quilombolas. “A gente tem falado muito da compatibilização e da dupla proteção dos territórios. Onde uma comunidade tem seu território sobreposto por Unidade de Conservação (UC), entendemos que ela tem todo o direito de manter seu modo de vida, com seus arranjos produtivos locais, fazendo o uso direto de recursos naturais. Sabemos que houve muita intransigência no passado com a demanda quilombola, de demarcação e titulação. Mas, atualmente, no âmbito deste novo Governo, há o entendimento de que as contestações feitas lá atrás precisam ser revistas, buscando corrigir este posicionamento e viabilizar a titulação dos quilombos.”
“O presidente Lula estava preocupado porque, com o ritmo em que as coisas estavam caminhando, seria quase impossível a gente titular todas as comunidades quilombolas do nosso país”, explicou Sabrina Diniz. Segundo ela, por entender que esta é uma das questões prioritárias do Governo Federal, o Incra em São Paulo resolveu se articular com a Conaq, Eaacone, ISA, MIR, MDA, ICMBio e com o Governo Estadual, via Itesp e Fundação Florestal, para que a regularização fundiária quilombola realmente tenha encaminhamentos efetivos a partir da Mesa Quilombola.
Racismo institucional e Racismo Ambiental
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“Essa retomada é fundamental para que a gente possa articular esforços e cooperar para a regularização fundiária quilombola”, defende a advogada Rafaela Miranda, assessora jurídica da Eaacone|Taynara Borges/ISA
A assessora jurídica da Eaacone, Rafaela Miranda, pontua o cenário histórico de morosidade para o enfrentamento de todas estas graves situações. “A gente busca que os órgãos possam depreender esforços, cooperar para a gente enfrentar isso. Porque ainda hoje essa é a realidade da maior parte dos mais de 6 mil quilombos do Brasil, de graves questões de vulnerabilidade, de insegurança fundiária, do acesso a políticas públicas e da permanência no território.”
A superintendente do Incra em São Paulo reconhece que a lentidão dos processos de titulação dos quilombos ocorre “por conta do racismo institucional que existe nas nossas instituições”. Sabrina Diniz pontua como todas estas dificuldades vêm do racismo presente, arraigado nas instituições brasileiras. “A gente precisa romper com isso. E uma das formas é admitir que esse racismo institucional existe. E a presença de vocês aqui é a maneira que temos para mudar isso. Não é com discurso que a gente muda. É com a prática. É com a presença do povo nos espaços de decisão e participação.”
Nilto Tatto, deputado federal pelo estado, também falou às lideranças quilombolas presentes na ocasião e recordou que São Paulo só avançou na pauta quilombola quando foi instalada a Mesa Permanente de Regularização Fundiária. “Foi preciso muita mobilização quilombola para isso. O Incra sequer tinha equipe aqui. Isso tem a ver com o racismo nas estruturas. E nós só vamos enfrentar o racismo estrutural com a presença permanente aqui. Tudo é fruto de luta. Nós sabemos disso.”
"Nós, quilombolas, somos a chave deste território de Mata Atlântica. Se não fosse por nós estarmos vivendo e cuidando dali, já tinha acabado tudo, a mata, a água. E sem isso não tem vida, não tem saúde. Eu vivo com o que tem na mata e nunca me sentei numa cama de hospital. Além disso, estamos com bastante receio do assédio das mineradoras. Já tem até gente visitando os territórios."
"Eu queria saber por que não há um representante da Procuradoria Geral do Estado aqui. Nós temos documento de propriedade registrado em cartório. E por que o governo não reconhece essa propriedade? Afinal de contas, que democracia a mesa está defendendo? Que tipo de democracia é essa que não reconhece documento registrado em cartório? Eu espero um entendimento melhor nesta questão da Regularização Fundiária dos Quilombos."
"Pedimos que vocês olhem pela vida das comunidades tradicionais, dos quilombolas. Nós somos os protetores da natureza. Queremos nosso direito de viver em paz, de viver da terra. O parque chegou derrubando casa em cima das pessoas, colocando o povo na rua. Estão acabando com a nossa vida, com a nossa cultura, com a nossa religião, destruindo tudo. A especulação imobiliária está entrando e está destruindo tudo. E nós, que sobrevivemos cuidando daqueles territórios, somos discriminados todos os dias."
“Neste ritmo que está, não dá mais para esperar. Mapeadas temos mais de 60 comunidades para serem tituladas. Levaria centenas de anos. A quantidade de documentos para a obtenção do título é uma coisa fora de sério, é para não funcionar mesmo. A gente está reinaugurando a mesa, mas as demandas não pararam. A Eaacone atualizou todas as demandas que surgiram nesta lacuna de desgoverno e entregamos este documento ao Incra. Entendi que o panorama de conflitos aumentou. E tem documentos parados há anos e não sabemos qual é o gargalo que está fazendo isso ficar parado”, asseverou Rodrigo Marinho, articulador da Eaacone.
Rodrigo acredita que o movimento saiu com uma perspectiva positiva em relação às possibilidades de encaminhamentos a partir da Mesa. E avalia que será preciso “reorganizar todas as políticas para quilombos no sentido de avançar nesta pauta. Pensar neste gargalo a curto e médio prazos.”
Guardiões da Mata Atlântica, quilombolas auxiliam no freio da crise climática
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Coordenador do MDA em São Paulo, Elvio Motta sustenta a importância da titulação dos territórios quilombolas para a manutenção das florestas e mananciais brasileiros|Taynara Borges/ISA
Coordenador do MDA em São Paulo, Elvio Motta reforçou que a questão da titulação está na centralidade na ação do MDA, do Incra e do próprio Governo Federal, muito em razão de sua estratégia no que diz respeito à conservação do meio ambiente.
“Os territórios quilombolas, juntamente com os territórios indígenas e aqueles que abrigam os assentados da reforma agrária ainda são os que não estão a serviço de uma ação predatória e mercadológica da terra. É um outro olhar para aquele território, até mesmo em razão de tudo o que estamos vivendo em relação à Crise Climática, que só não está pior porque vocês estão ocupando esses territórios. A gente reconhece isso e tem que entender que as políticas públicas de permanência têm que ser prioritárias.”
Neste mesmo sentido, Sabrina Diniz ressaltou o papel de guardiões da floresta que as comunidades quilombolas têm desempenhado em São Paulo e no País ao longo dos séculos.
“Sabemos que não é por coincidência que muitos territórios quilombolas têm Unidades de Conservação que foram enfiadas goela abaixo em cima das comunidades e que isso, muitas vezes, prejudica o seu desenvolvimento. Se não fosse por vocês nestes territórios, já estaria tudo terra arrasada. Vocês são fundamentais e a gente reconhece aqui, enquanto estado, o papel de vocês na preservação do meio ambiente. E é inadmissível o processo de criminalização que vocês sofrem no plantio das roças, na construção das moradias em seus territórios. Não existe quilombo sem quilombola. Não existe Mata Atlântica sem quilombola, sem caiçara e sem indígena. E esses processos, tanto do racismo institucional quanto do racismo ambiental precisam acabar.”
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Comunidades quilombolas de São Paulo são atingidas por cheia do Rio Ribeira de Iguape
Margem do rio em Eldorado e Iporanga sobe além do nível de extravasamento e deixa moradores desalojados, plantações alagadas, territórios ilhados e estradas intransitáveis. População lida com extremos climáticos cada vez mais constantes
No Quilombo Porto Velho, em Iporanga (SP), Rio Ribeira de Iguape atinge bananais e ameaça produção da comunidade|Osvaldo dos Santos/Quilombo Porto Velho
Municípios da região paulista do Vale do Ribeira estão em estado de atenção em razão das intensas e contínuas chuvas que vêm ocorrendo desde o estado do Paraná e têm provocado o rápido aumento da vazão do Rio Ribeira de Iguape, que vem sofrendo extravasamentos.
Além de bairros e estradas, as comunidades quilombolas de Eldorado e Iporanga já sofrem com alagamentos. Em locais mais críticos, casas foram atingidas e a população precisou se retirar para abrigos em busca de proteção.
No município de Ribeira, a Prefeitura decretou estado de emergência no último domingo em razão de alagamentos e de vias interditadas por deslizamento de terra. Iporanga, Eldorado, Itaóca e Apiaí já apresentam trechos intransitáveis e preocupam a população.
Em Iporanga, comunidades quilombolas estão ilhadas, sem acesso a estradas ou a balsas, impedidas de circular em razão das fortes correntezas. No Quilombo Ivaporunduva, famílias retiraram às pressas seus pertences de casa para se alojarem no Centro Comunitário. “Precisamos levar essas pessoas para um lugar com segurança para que não tenham nenhum dano em suas vidas”, relata o chefe da Brigada Quilombola, Gilson de França Furquim, morador da comunidade.
Liderança do Quilombo Ivaporunduva, Benedito Alves da Silva, conhecido como Ditão, relata que quatro famílias do território tiveram que deixar suas casas durante a madrugada e foram socorridas de barco pelos vizinhos. Ele ainda ressalta que o acesso por terra à comunidade está inviabilizado, e que muitos perderam plantações, especialmente de feijão.
Em Eldorado, rio está três metros acima do nível normal
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Bairros mais baixos do município de Eldorado enfrentam alagamentos com a cheia do Rio Ribeira de Iguape. Previsão é de que o nível suba ainda mais|Frederico Viegas/ISA
Situado no chamado Baixo Ribeira, o município de Eldorado redobra sua atenção. O curso do rio que banha a cidade soma as vazões das chuvas. Por isso, na manhã desta segunda-feira (30/10) a Prefeitura emitiu um comunicado em que informava que ainda era esperado um aumento do nível do Rio Ribeira de Iguape no município, e que ele poderia atingir até 10,3 metros.
A situação é preocupante porque o ponto de extravasamento - a medida a partir da qual o rio transborda - do Rio Ribeira de Iguape em Eldorado é a partir de seis metros. Até o início da tarde desta segunda-feira, o rio já registrava a marca de nove metros, de acordo com o monitoramento do Sistema de Alerta a Inundações de São Paulo (Saisp). Assim, a população que habita as regiões mais próximas das margens do rio ou outras localidades mais baixas estão atentas à possibilidade de enchentes.
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Rio Ribeira de Iguape está três metros acima da capacidade no município de Eldorado (SP) | Captura de tela do Sistema de Alerta a Inundações de São Paulo (Saisp) às 13h30 de segunda-feira (30.10.2023)
O agricultor Cícero Honório dos Santos, liderança do Quilombo Sapatu, relata que passou a noite entre domingo e segunda em vigília, monitorando a velocidade da subida do rio próximo à sua casa. “Eu tenho um filho de dois anos e sete meses. Então a gente fica preocupado. Estou vigiando há mais de 24 horas. A água chegou até a área, mas não entrou em casa. Mais 30 centímetros ela entrava. De manhã ela abaixou cerca de uns 15 centímetros, mas como deve voltar a subir, desocupei parte da casa como prevenção.”
Cícero ainda conta que as plantações de toda a comunidade foram atingidas, em maioria plantações de mandioca, feijão, pupunha e banana. E que embora eles estejam se protegendo em razão da cheia, as perdas materiais estão ocorrendo. As bananas, por exemplo, podem ficar impróprias para o comércio ou, a depender do tempo que fiquem submersas, os bananais podem morrer, perdendo toda a plantação.
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Cícero Honório dos Santos, liderança do Quilombo Sapatu, passou a madrugada monitorando a subida do rio, que ficou próximo de entrar em casa|Cícero dos Santos/Quilombo Sapatu
Lorrayne Silva é estagiária de advocacia no Instituto Socioambiental (ISA) no Vale do Ribeira. Ela relata que na sua comunidade, o Quilombo André Lopes, estão todos muito apreensivos, “considerando que a cheia tende a aumentar sempre pela noite e/ou madrugada”. Segundo ela, se o rio realmente superar os 10 metros, como consta no informe da Prefeitura de Eldorado, na sua comunidade todos serão atingidos. “No André Lopes, a partir de 9,5 metros já desabriga”, alerta.
Assessora técnica do Programa Vale do Ribeira, do ISA, Raquel Pasinato reforça o receio da população da região em relação às cheias do Rio Ribeira de Iguape. “As enchentes de grande proporção, em que o Ribeira sobe a ponto de inundar cidades e territórios margeados, são muito temidas pela população e acontecem de tempos em tempos, segundo contam os moradores locais. Tivemos em 1997 e 2011 as últimas maiores”, recorda.
Pasinato enfatiza como, nos últimos anos, os moradores do Vale do Ribeira têm enfrentado as consequências dos extremos climáticos e como eles impactam mais severamente aqueles em condições mais frágeis para enfrentá-los.
“A época de muita chuva, o risco de chover nas cabeceiras é maior no verão, mas a enchente de 2011, por exemplo, aconteceu em agosto. Então há a probabilidade de a desregulação climática estar mesmo mudando o volume de chuvas e suas épocas. E isso é um ponto de atenção para que os municípios que estão na Bacia do Ribeira de Iguape, e já têm um histórico destas enchentes maiores, comecem a se preparar para acolher a população, mas, principalmente, para melhorar as condições de matas ciliares do Ribeira que têm boa parte de suas margens ocupadas por plantios de monoculturas de banana em grande escala, por exemplo.”
Embora o tempo tenha estiado na manhã desta segunda-feira (30), o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu alerta amarelo para a região até terça-feira (31) em razão da previsão de tempestades. De acordo com o monitoramento do órgão, o volume total de chuvas pode chegar aos 50 milímetros (mm) em 24 horas, com ventos de até 60 km/h e queda de granizo.
Cheia do Rio Ribeira de Iguape atinge ginásio poliesportivo de Eldorado|Frederico Viegas/ISA
Margem do rio se aproxima da via no município|Frederico Viegas/ISA
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Professor se acidenta em trilha para lecionar no Quilombo Bombas, em São Paulo
Pedro Ernesto Santos e seus colegas levam até cinco horas para chegar a escolas; Justiça determinou construção de estrada em 2015
Professor Pedro Ernesto caiu em prantos depois de sofrer um acidente no caminho de volta da escola em que trabalha. A trilha é o único acesso para chegar ao Quilombo Bombas|Reprodução de vídeo
Vídeo gravado no dia 30 de setembro mostra o professor Pedro Ernesto Santos, geógrafo, caído numa trilha lamacenta no caminho de volta da escola em que leciona, no município paulista de Iporanga, na região do Vale do Ribeira. Ele está aos prantos. Pedro é professor da rede estadual de ensino e dá aulas de Geografia para crianças e adolescentes em dois núcleos de uma escola rural mista.
🚨Revoltante o descaso com o Quilombo Bombas, no Vale do Ribeira (SP)!
Viralizou o vídeo de Pedro Santos em prantos, após uma queda, numa trilha muito sinuosa e cheia de barro. O professor leva 10 horas para ir e voltar da escola que fica na comunidade!
Os núcleos se encontram nos territórios de Remanescentes dos Quilombos Bombas de Baixo e Bombas de Cima, onde só se chega a pé, caminhando por uma trilha de subidas e descidas íngremes que percorrem trechos de Mata Atlântica densa, com solo encharcado e escorregadio, atravessando riachos e pontes precárias.
Para chegar até Bombas de Baixo, Pedro, os demais professores, os moradores do Quilombo, agentes de saúde e qualquer pessoa que queira ir à comunidade têm de caminhar seis quilômetros que, nas condições normais para a região, levam cerca de três horas para serem finalizados. Já até Bombas de Cima são mais quatro quilômetros, ou seja, mais duas horas de uma dura caminhada.
Felizmente, Pedro não sofreu um grave acidente. Depois da queda, ele retornou à trilha para lecionar para as crianças já na terça-feira (03/10), mesmo com dores.
“Bati o joelho lá com força. Senti muita dor. Inchou bastante. No fim de semana tomei uma injeção e medicação forte para ajudar. E vou subir mesmo com um pouco de dor ainda. A gente precisa voltar. Não dá para deixar as crianças sem o ensino, sem a matéria”, relatou ao ISA.
Em razão da dificuldade do trajeto, Pedro passa vários dias na comunidade, pernoitando na escola, de onde retorna na sexta-feira à noite ou aos sábados, a depender da situação do tempo, e sempre na companhia de outros colegas. “Não dá para andar sozinho neste caminho, principalmente fora de horário. Sem contar os riscos que sempre encontramos de cobras e o cansaço da trilha solitária”, desabafa.
A estrada que liga os territórios ao acesso à Rodovia Antônio Honório da Silva é causa ganha na Justiça, mas nunca saiu do papel. “É uma situação crítica essa da estrada. A Fundação tem ganhado a comunidade na canseira para não sair essa estrada”, reclama o professor sobre decisão judicial proferida em 2015 determinando à Fundação para a Conservação e a Produção Florestal, jurisdicionada à Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo (Semil), sua construção.
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Imagens mostram o trajeto encarado semanalmente pelos professores para chegar às salas de aula no Quilombo Bombas|Acervo pessoal/Pedro Ernesto
Você pode acompanhar o histórico do processo que envolve a construção desta estrada na série “O Caminho pro Quilombo”, que apresenta uma linha do tempo das tramitações burocráticas e relatos dos membros das comunidades, como o de Edmilson Furquim de Andrade, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas, que relata a sensação de descaso do poder público com o bem viver dos quilombolas.
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Aos 69 anos, João Fortes, morador do Quilombo Bombas, em trajeto da trilha de acesso à cidade de Iporanga (SP). Registro do especial O Caminho pro Quilombo|Júlio César Almeida/ISA
Recentemente, no mês de julho, a titular da Semil, Natália Resende, esteve na trilha para conhecer de perto a realidade das comunidades e, na ocasião, firmou o compromisso de entrega da estrada. Desde então, a Fundação Florestal realizou uma primeira ação emergencial com o patrolamento de parte do caminho, o que, de acordo com o professor, em nada resolveu. “Fizeram uma melhoria, mas foi péssimo. Não dá para andar. Sem condição nenhuma. É muito barro.”
Depois disso, no último dia 22 de setembro, a entidade abriu licitação para contratação de prestadora de serviço para compactar e revestir com britas o primeiro trecho da estrada, Pregão Eletrônico que segue aberto até o dia 5 de outubro e cuja entrega está estimada ainda para o ano de 2023.
Quanto à construção de fato da estrada, conforme a recomendação judicial, a Fundação Florestal publicou, no início de agosto, Chamamento Público para doação de serviços de elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (Rima), necessários para obra de infraestrutura dentro de uma Unidade de Conservação, vez que o Quilombo Bombas teve seu território sobreposto ao Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), demarcado na década de 1980. Internamente, a garantia é de que o EIA/Rima já está em fase de elaboração.
“E os professores estão querendo desistir por conta dessa dificuldade de chegar até a escola. Muitos estão desanimados, procurando outra coisa para fazer. Na época chuvosa é sem condição de fazer essa trilha. Vira um lamaçal danado”, ressalta o professor Pedro Ernesto, deixando claro que a falta de cuidado do Estado pode colocar em xeque o bem viver da nova geração de famílias que resistem e protegem a Mata Atlântica há cerca de 400 anos.
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