Manchetes Socioambientais
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“O encontro entre índios e brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o desequilíbrio perpétuo do mundo um pouco mais para frente, adiando assim o seu fim.”
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos fundadores do ISA
O tema "Povos Indígenas" está na origem da existência do Instituto Socioambiental. Lá se vão pelo menos quatro décadas de comprometimento e trabalho com o tema, produzindo informações para a sociedade brasileira conhecer melhor seus povos originários. Desde sua fundação, em 1994, o ISA dá continuidade ao trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que havia sido iniciado em 1980 e que, por sua vez, remonta ao começo dos anos 1970, quando o então governo da ditadura militar lançava o Plano de Integração Nacional, com forte componente de obras de infraestrutura na Amazônia, região que era então descrita pelo discurso oficial como um "vazio demográfico".
Por meio dos relatos coletados, dados produzidos e pesquisas empreendidas por uma rede de colaboradores espalhada pelas diversas regiões do País, o Cedi ajudou a derrubar essa tese. Ao dar publicidade às informações levantadas por essa rede social do tempo do telex, o Cedi colocou, definitivamente, os povos indígenas e suas terras no mapa do Brasil. Seus integrantes ainda participaram ativamente no movimento de inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e, juntamente com integrantes do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) e ativistas ambientais, fundaram o ISA em 1994.
De lá para cá, ampliando sua rede de colaboradores em todo o País, o ISA se consolidou como referência nacional e internacional na produção, análise e difusão de informações qualificadas sobre os povos indígenas no Brasil. O site "Povos Indígenas no Brasil", lançado em 1997, é a maior enciclopédia publicada sobre as etnias indígenas no Brasil, com suas línguas, modos de vida, expressões artísticas etc. O site é uma das principais referências sobre o tema para pesquisadores, jornalistas, estudantes e acadêmicos.
A atuação hoje é transversal aos territórios onde atuamos, especialmente na Bacia do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e Bacia do Rio Negro, no Amazonas e Roraima, e também envolve povos indígenas de todo o Brasil, por meio da atualização permanente do site e de seus mais de 200 verbetes, inclusão de novos textos sobre etnias emergentes e indígenas recém-contatados, além do monitoramento e cobertura jornalística sobre situações de violência e perda de direitos contra estas populações. O tema "Povos Indígenas" ainda é tratado no site "PIB Mirim", voltado ao público infanto juvenil e de educadores.
O monitoramento de Terras Indígenas também é um eixo central do nosso trabalho com o tema, e remonta à sistematização de dados e divulgação de informações iniciada pelo Cedi em 1986, e se dá por meio da produção de livros impressos e mapas temáticos sobre pressões e ameaças, como desmatamento, mineração, garimpo, obras de infraestrutura, entre outras, além do site "Terras Indígenas no Brasil".
Confira os conteúdos produzidos sobre este tema:
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Site especial voltado ao público infanto-juvenil e de educadores |
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Painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
Morzaniel Ɨramari, primeiro cineasta Yanomami e diretor do filme, disse que vai levar à Itália a luta dos Yanomami contra o garimpo ilegal e o Marco Temporal
A força do cinema Yanomami vai ser destaque no 80º Festival de Veneza, na Itália, que acontece de 30 de agosto a 9 de setembro.
A mostra paralela Giornate degli Autori vai dedicar o dia 4 de setembro ao primeiro cineasta Yanomami, Morzaniel Ɨramari, e a produções recentes do cinema Yanomami.
Este ano, a parceria da mostra com a associação cultural Isola Edipo e a Fundação Cartier, celebram o Cinema Yanomami com o título "Eyes of the forest" e apresentando três curtas: Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando, Yuri u xëatima thë – A Pesca com Timbó e Mãri Hi - A Árvore do Sonho, de Morzaniel Ɨramari.
Morzaniel anunciou que pretende usar a oportunidade para fazer um apelo ao público internacional para a luta por direitos dos Yanomami.
“Também vou falar da luta que temos hoje contra os invasores e o Marco Temporal. Falarei sobre as necessidades de saúde e educação do meu povo, mas também falarei de coisas boas, como o fato de ainda existir a nossa cultura tradicional. Vou falar sobre tudo isso contando a história da árvore dos sonhos e como nossos xamãs sonham”, disse ao ISA.
O cineasta yanomami ganhou os prêmios de Melhor Fotografia e Prêmio do Júri no Festival de Gramado neste ano. Além disso, o filme de Morzaniel venceu o Festival É Tudo Verdade 2023 na categoria Melhor Documentário de Curta-Metragem Nacional, e está qualificado para concorrer ao Oscar na categoria Melhor Documentário em Curta-Metragem.
A obra tem a participação do xamã e liderança Yanomami Davi Kopenawa, que fala sobre o conhecimento do seu povo sobre os sonhos.
Aida Harika, Roseane Yariana e Edmar Tokorino são os responsáveis pelos outros dois filmes. Além de estarem entre suas primeiras produções, também são os primeiros filmes com mulheres Yanomami na produção e que farão sua estreia em um Festival de Cinema Internacional.
Todas as três produções foram feitas no Watorikɨ, na região do Demini. Eles foram produzidos pela Aruac Filmes durante as filmagens de A Queda do Céu, livremente inspirado no livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert. A direção do longa, que está em fase de finalização, é assinada por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha.
Oficinas e prêmios
Em 2022, a Aruac organizou junto à Hutukara Associação Yanomami e ao Instituto Socioambiental (ISA) uma oficina de montagem audiovisual que ensejou a produção dos três curtas que estarão no Festival de Veneza.
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“O objetivo da iniciativa deste ano é destacar a visão direta e íntima de cineastas da comunidade Yanomami, uma das populações indígenas mais conhecidas da Amazônia e sua crescente importância no cenário cinematográfico internacional. Um ato político devolvendo à floresta seus olhos, corpos e vozes para conscientizar sobre a situação Yanomami atual e a necessidade urgente de proteger seu território e seu modo de vida”, afirma a Aruac Filmes.
Os filmes são uma produção da Aruac Filmes com coprodução da Hutukara Associação Yanomami e produção associada da Gata Maior Filmes.
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Atraso nos processos de demarcação refletem na grande densidade populacional; números evidenciam situação de confinamento para indígenas em terras muito pequenas
Quase metade (49%) da população indígena no Brasil, cerca de 825 mil pessoas, está fora da Amazônia Legal. Desse total, cerca de 220 mil vivem em uma área aproximada de 1,6% do total das Terras Indígenas demarcadas. É o que apontam os primeiros resultados do Censo 2022: O Brasil Indígena: uma nova foto da população indígena, lançado nesta segunda-feira (07/08) pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE).
Para traçar o perfil demográfico dos habitantes do país e apontar informações cruciais para o desenvolvimento, implementação, análise e avaliação de políticas públicas, a pesquisa reúne dados obtidos por uma ampla coleta com mais de 70 milhões de questionários aplicados, presencialmente, online e por telefone, nos 5.568 municípios brasileiros.
Nos resultados divulgados neste ano, a população indígena apresentou um salto populacional de quase 90%, saindo de 896.917 pessoas em 2010, para 1.693.535 em 2022.
Em comparação, há 20 anos, quando foram divulgados os dados do Censo 2000, a população que se declarava indígena no Brasil era de 734 mil pessoas. O Estado de São Paulo na época figurava como a terceira unidade da federação com a maior população indígena; no topo da lista estava o Amazonas, seguido pela Bahia.
Em relação à população indígena que vive em Terras Indígenas, em 2022, os dados do Censo indicaram um aumento menos expressivo, de 16%.
Ambos os resultados indicados pela pesquisa em 2022, no entanto, são significativos frente ao crescimento total da população brasileira, que apresentou um aumento no mesmo período de apenas 6,5%.
Em 2022, o Censo incluiu um total de 573 Terras Indígenas, 68 a mais do que em 2010. Ficaram de fora todas as áreas cujos processos demarcatórios estavam em curso na época do levantamento, o que equivale a um número em torno de 172 áreas com processos em andamento. Ademais, outras áreas que aguardam na fila de reivindicações da Funai também não foram incluídas no recorte Terras Indígenas dos resultados, embora o recenseamento tenha chegado também a essas populações.
Fora das áreas demarcadas, o IBGE mapeou localidades indígenas, inclusive em cidades e áreas remotas. Além das Terras Indígenas oficialmente delimitadas, foram definidos agrupamentos indígenas e outras localidades indígenas. Essas áreas foram mapeadas para evitar uma possível subenumeração na contagem dessa população.
Segundo estimativas do ISA, o total dessas pessoas pode chegar a mais de 65 mil pessoas. Um exemplo é a TI Tupinambá de Olivença, na Bahia, que teve seu estudo de identificação aprovado em 2009 e conta com uma população estimada em 4.631 pessoas.
Essa subenumeração na contagem de pessoas em Terras Indígenas acontece principalmente em regiões fora da Amazônia Legal.
Muitos indígenas para pouca terra
Para quase metade da população indígena (49%) que vive fora da Amazônia Legal, a garantia estabelecida pelo artigo 231 da Constituição Federal de uma área reservada para sua reprodução física e cultural está longe de ser uma realidade.
Apenas 26,5% dessas pessoas indígenas vivem atualmente em Terras Indígenas. Para elas, o cenário é de uma grande pressão demográfica nas áreas já demarcadas nessas regiões. Segundo dados do Censo 2022, a densidade populacional das TIs fora da Amazônia Legal é maior que a de 10 Estados brasileiros: AM, RR, MT, AC, AP, TO, PA, RO, MS e PI.
Com uma densidade demográfica de 14 pessoas/km², os números evidenciam que, fora da Amazônia Legal, existe uma situação de confinamento dos povos indígenas em Terras muito pequenas para a sua população.
Um dos casos que reforçam a tese é a da Reserva Indígena Dourados, no Mato Grosso do Sul. A área reservada para os povos Guarani e Terena possui uma densidade demográfica de 393,46 habitantes por quilômetro quadrado, superando em mais de três vezes a de Campo Grande, capital do estado em que está localizada.
“Você se considera indígena?”
Ampliando a metodologia aplicada pelo Censo 2010 para identificar pessoas indígenas que não se identificaram pelo quesito cor ou raça, em 2022, a pergunta “Você se considera indígena?” deixou de ser feita apenas em Terras Indígenas delimitadas e passou a ser realizada também à população residente em outras localidades indígenas identificadas previamente pelo IBGE. Por meio da pergunta, foi possível identificar cerca de 27% do total de pessoas indígenas em 2022. Desse número, a maior parte, foi identificada fora de Terras Indígenas.
Para Tiago Moreira, antropólogo do programa Povos Indígenas no Brasil do Instituto Socioambiental (ISA), “a ampliação das áreas onde é aplicada a pergunta 'Você se considera indígena?' deu visibilidade a uma grande parcela da população indígena ignorada pelos censos demográficos anteriores”. Para ampliar a cobertura da pergunta, o IBGE delimitou previamente localidades potencialmente ocupadas por pessoas indígenas, tais como bairros, conjuntos habitacionais, vilas rurais, e outras localidades, além das Terras Indígenas declaradas, homologadas ou reservadas.
Manaus foi a cidade que apresentou o maior número de pessoas indígenas identificadas pela pergunta de cobertura, o equivalente a mais de 70% do total. Já São Gabriel da Cachoeira, também no Amazonas, por sua vez, apresentou o maior número de pessoas indígenas identificadas pelo quesito cor e raça, com 95%.
Nas regiões brasileiras, a região Nordeste foi a que apresentou o maior percentual de pessoas indígenas por meio da pergunta de cobertura, com 38%. Já a região Sul foi a que apresentou o maior número de pessoas que se declararam indígenas pelo quesito cor e raça, com 98,2%.
Segundo Moreira, os resultados preliminares apresentados até o momento ainda não permitem traçar um desenho tão preciso da localização exata da população indígena no país, mas eles expressam o sucesso da metodologia aplicada.
“Em alguns casos, como Manaus, onde houve um crescimento expressivo de indígenas recenseados, um aumento de 1.675% em relação a 2010, vários elementos ajudam a deduzir o sucesso da metodologia do IBGE em mapear pessoas indígenas fora do contexto de Terras Indígenas. No município, a maior parte das pessoas indígenas, apesar de não se declararem como indígenas no critério raça/cor, respondeu que se consideram”, apontou.
“Com a pergunta certa, e dentro de um contexto de valorização da ancestralidade indígena, as pessoas puderam sair de uma condição de invisibilidade de sua identidade indígena em lugares como Manaus”, completa.
Cidades mais indígenas do Brasil
Se, em 2010, os municípios com as maiores populações indígenas em números absolutos eram São Gabriel da Cachoeira (AM); São Paulo de Olivença (AM); Tabatinga (AM); São Paulo (SP); e Santa Isabel do Rio Negro (AM), em 2022, Manaus toma a frente, com 71.713 pessoas indígenas. Na sequência, vem São Gabriel da Cachoeira (AM) com 48.256 pessoas indígenas; Tabatinga (AM) com 34.497; Salvador (BA) com 27.740; e São Paulo de Olivença (AM), com 26.619.
Das cidades que encabeçam o ranking, apenas Manaus e Salvador não possuem Terras Indígenas demarcadas. Além disso, ambas apresentaram um expressivo crescimento no período, e, juntas, lideram a lista das maiores diferenças em população indígena absoluta em relação a 2010, com um aumento somado de aproximadamente 750%.
Em relação ao percentual total da população na cidade, Uiramutã (RR), com 96,6% de sua população identificada como indígena, segue liderando a lista, seguida por Santa Isabel do Rio Negro (AM), com 96,1%, e São Gabriel da Cachoeira (AM), com 93,1%.
Estados mais indígenas
Em números absolutos, o Amazonas segue sendo o estado com mais indígenas, com 490.854 pessoas indígenas; seguido pela Bahia, com 229.103 pessoas; Mato Grosso do Sul, com 116.346; Pernambuco, com 106.634; e Roraima, com 97.320. Juntos, os cinco estados somam 61,43% da população indígena no Brasil.
Sobre o percentual de pessoas indígenas por estado, Roraima aparece em primeiro lugar, com cerca de 15% de sua população total composta por pessoas indígenas. Amazonas; Mato Grosso do Sul; Acre; e Bahia vêm na sequência.
Já Rondônia foi o estado que apresentou o maior crescimento no número de pessoas indígenas percentualmente, com um aumento de quase 58%.
Outros estados, no entanto, apresentaram quedas no número de pessoas indígenas. São eles: Alagoas, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Terras Indígenas
Segundo os dados trazidos pela pesquisa, a população indígena vivendo em Terras Indígenas corresponde a 36,7% do total recenseado. Embora 63,2% de toda a população indígena no Brasil tenha sido mapeada em áreas fora de TIs delimitadas, 56% de toda essa população vive em municípios classificados em algum grau como rurais pelo IBGE, ainda, 30% das pessoas estão em municípios considerados remotos.
Estes dados vão na mesma direção do último levantamento feito em 2010, quando se constatou que 42% da população indígena vivia fora de Terras Indígenas, sendo 36% em áreas urbanas – não necessariamente em cidades.
O Censo 2022 aponta ainda que quase metade (49,1%) da população indígena vivendo atualmente em TIs se encontra na região Norte. Já os estados da federação com a maior porcentagem de pessoas indígenas vivendo dentro de TIs, em relação ao número total de indígenas, são: Mato Grosso, Tocantins, Roraima, Maranhão e Amapá.
Entre as regiões que apresentaram os maiores crescimentos populacionais em Terras Indígenas estão a região Norte com 22,7% e Nordeste, com 12,2%.
Em relação ao último Censo 2010, as cinco TIs mais populosas seguem as mesmas. São elas: TI Yanomami (RR), com 27.152 pessoas; TI Raposa Serra do Sol (RR), com 26.176; TI Évare I, com 20.177, e TI Alto Rio Negro, 18.042.
Amazônia Legal
A Amazônia Legal, composta pelos estados do Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso, abrange mais da metade (51,2%) de toda a população indígena nacional, com 867.919 pessoas.
A presença da população indígena vivendo dentro de TIs na Amazônia Legal supera a nacional. Ao todo, são 403.287 pessoas, ou o equivalente a quase 65% de toda a população indígena nacional residindo em Terras Indígenas. Além disso, 46,4% de toda a população indígena que vive na região está localizada nas TIs, o que representa uma diferença percentual de quase 10% em relação ao número nacional.
Diminuição de população em Terras Indígenas
Das 501 Terras Indígenas comparáveis onde foi realizado o censo, entre 2010 e 2022, 171 registraram uma diminuição da população. Sem dados de natalidade e mortalidade, entretanto, não é possível desenhar um cenário completo para os números apresentados.
Apesar disso, uma breve análise das maiores diminuições de população aponta para uma provável fragilidade dos números do censo de 2010.
Na Terra Indígena Apyterewa, por exemplo, habitada pelos Parakanã, o Censo registrou, em 2010, 3.588 indígenas. Já a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em 2011, havia registrado um total de 452 pessoas na TI.
Em 2022, o número apresentado foi de 767 indígenas, portanto, mais próximo do histórico de população registrada anteriormente pela Funai. Para além da questão de decréscimo populacional, a TI também apresenta há anos antecedentes explícitos de presença não indígena e de consequentes conflitos fundiários. Segundo avaliação do Instituto Socioambiental (ISA), a hipótese é de que os números de 2010 tenham sido inflados pela presença não-indígena, que por algum motivo foram registradas como indígenas.
Das 10 TIs com maior diminuição absoluta de população, em ao menos oito delas há histórico de invasões e conflitos fundiários, o que levanta a hipótese dos dados do censo de 2010 terem sido enviesados.
Ainda, a diminuição dos números da população do Vale do Javari, apesar de não ser possível afirmar categoricamente, pode ter resultado dos grandes desafios de se recensear uma das maiores TIs do Brasil, com um dos acessos mais dificultados.
Contribuições do Instituto Socioambiental
O ISA foi uma das instituições indigenistas que contribuíram com a realização do Censo 2022. Para auxiliar no aperfeiçoamento da coleta realizada para a pesquisa, o ISA esteve presente em uma reunião técnica realizada, além de fornecer coordenadas geográficas para a criação da base territorial do IBGE denominada como localidades indígenas, fundamental para a ampliação da pergunta de cobertura que identificou mais de 400 mil indígenas.
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Em identificação desde 2004, a TI segue aguardando sua homologação há 19 anos. Território está situado na Bacia do Xingu, entre os estados do Mato Grosso e Pará
No dia 28/7, durante o evento "Chamado de Raoni", na aldeia Piaraçu (MT), Joênia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ao lado de Sônia Guajarara, ministra dos Povos Indígenas, anunciou a aprovação dos estudos de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, onde o cacique Raoni Metuktire passou sua juventude.
Localizada entre os municípios de Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, no Mato Grosso, e São Félix do Xingu, no Pará, a Terra Indígena possui uma área aproximada de 360 mil hectares e é lar dos povos Mebengôkre Metyktire; e Yudja.
A partir da aprovação, em até 90 dias após a publicação no Diário Oficial da União, a Funai passa a aceitar contestações, mediante a apresentação de provas. Ao fim deste prazo, a Funai tem 60 dias para desenvolver pareceres técnicos sobre as reivindicações apresentadas e encaminhar para o Ministério da Justiça.
Com a volta da atribuição de declarar e demarcar as Terras Indígenas para o Ministério da Justiça, segundo o 10º artigo do decreto 1.775/1996, o ministério teria um prazo de 30 dias para expedir a portaria declaratória. Na prática, contudo, esse prazo pode ser bem maior. Quase metade das 46 terras indígenas que se encontram com estudos aprovados pela Funai hoje aguardam a mais de 10 anos pela edição de uma portaria declaratória pelo Ministério da Justiça e há casos de 30 anos de espera.
Por fim, TI segue para homologação com a assinatura do Presidente da República para garantir o pleno direito territorial aos povos que ali habitam.
A Terra Indígena Kapôt Nhĩnore
A TI Kapôt Nhĩnore está situada na bacia do Xingu, na transição entre os biomas cerrado e amazônico, e sua localização vai de encontro às adjacências das Terras Indígenas Menkragnoti e Capoto/Jarina.
Segundo o resumo do Relatório de Identificação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, a história registrada da TI remonta à Expedição Roncador-Xingu, chefiada pelos Irmãos Villas-Boas a partir de 1945.
“Criada para conhecer os espaços ainda em branco no mapa, dela decorre o contato com diversos povos indígenas, o deslocamento de muitos deles, e a criação do Parque Indigena do Xingu. Estabelecido durante o mandato do então presidente Jânio Quadros, o Parque, em seu anteprojeto original, compreendia uma área dez vezes maior, e seus limites oficiais, que abarcavam a TI Kapôt Nhinore, foram modificados em 1968 e 1971, por decretos dos generais Costa e Silva e Garrastazu Médici, respectivamente”, afirma o relatório.
Apesar dos estudos de identificação terem começado apenas em 2004, as reivindicações pela área datam desde a década de 1980, de acordo com os processos das TIs adjacentes, habitadas por outros subgrupos Mebêngôkre.
Sobre a presença de ocupações não-indígenas na TI, segundo o resumo do Relatório de identificação, existem 201 ocupações, sendo 153 desses ocupantes caracterizados como “proprietários”, 32 como “posseiros” e 16 “sem informação”. Segundo o SIGEF, o Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para gestão das informações georreferenciadas dos limites dos imóveis rurais, existem registrados 144 imóveis sobrepostos à TI, cobrindo 74,5% de sua extensão, num total de 265.460 hectares.
Quando isso ocorre, de acordo com o parágrafo 6 do artigo 231 da Constituição Federal, os títulos de propriedade rural são anulados e extintos, por incidirem sobre uma Terra Indígena. Já as ocupações de boa-fé, por sua vez, são asseguradas por meio de uma indenização pelas benfeitorias realizadas.
Além disso, o Parque Estadual Xingu, se encontra completamente sobreposto pela parte sul da TI e corresponde a cerca de 25% dela. O Parque Estadual (PES) do Xingu foi criado através do Decreto 3.585/2001, como parte do conjunto de Unidades de Conservação do Mosaico da Terra do Meio. Inicialmente, o Parque abrangia uma área de aproximadamente 134.463 hectares. Dois anos depois, entretanto, a Lei 8054/2003, assinada pelo governador do Estado na época, Blairo Maggi, reduziu a área para 95.024 hectares.
Sobreposições de Terras Indígenas com Unidades de Conservação, como é o caso da TI Kapôt Nhĩnore com o PES do Xingu, não são incomuns e tampouco representam uma ameaça ao meio ambiente. Afinal, segundo estudo do ISA, povos indígenas e populações tradicionais são responsáveis por proteger um terço das florestas no Brasil.
Por outro lado, mesmo sendo uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, 92,7% do PES estão sobrepostos por propriedades rurais, segundo o SIGEF. Ou seja, parte dos imóveis rurais que estão sobrepostos à TI já eram sobrepostos a uma Unidade de Conservação de Proteção Integral.
Pressões e ameaças
Os Mebengôkre e os Yudja enfrentam há anos disputas por sua Terra, com diversos empreendimentos instalados irregularmente impulsionando a caça e a pesca predatória e indiscriminada.
Não obstante, os próprios municípios em que a TI está localizada acrescentam empecilhos para sua demarcação. Em 2017, por exemplo, a Advocacia-Geral da União (AGU) precisou intervir em uma ação do Município de São Félix do Xingu que buscava travar os estudos de identificação da área.
Segundo o Ministério Público Federal, a lentidão no processo se dá justamente por esse histórico de pressões, aliado à falta de empenho da Polícia Federal em coibir esse tipo de interferência. A ação cível pública impetrada na justiça pelo MPF em 2016 destaca que “no âmbito da administração pública federal, o principal óbice à garantia dos direitos territoriais das etnias Kayapó e Juruna é o descaso da Polícia Federal".
Chamado de Raoni
O encontro em que a aprovação do estudo foi anunciada aconteceu em São José do Xingu, na Terra Indígena Capoto/Jarina, no Xingu. Respondendo ao chamado do Cacique Raoni pela urgência de ações pela demarcação de Terras Indígenas, para redução dos impactos das mudanças climáticas e pela partilha de saberes ancestrais, o encontro de cinco dias reuniu mais de 800 indígenas de diversos povos.
Além da presença da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e da presidente da Funai, Joenia Wapichana, o “Chamado de Raoni” também contou com o secretário nacional de Saúde Indígena, Weibe Tapeba. A presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva também era esperada, mas um procedimento no quadril impediu a ida ao evento.
Ao final, uma carta assinada por todas as lideranças reunidas trouxe um alerta para o futuro. “Nossos ancestrais há muitos anos vêm avisando que a saúde da terra não é responsabilidade só nossa, ela é responsabilidade de todos, se o céu cair, a terra incendiar e as águas subirem, todos nós iremos morrer. Não há dinheiro que compre outro planeta”.
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Ex-diretor da Foirn faleceu em Manaus (AM), aos 76 anos. Veja homenagens a um dos responsáveis pela demarcação das Terras Indígenas do Alto e Médio Rio Negro
"Se nossos antepassados nos vissem agora e lhe perguntássemos por que eles há 500 anos viviam livres, certamente responderiam: 'Nós não éramos índios!'" - Braz de Oliveira França, do povo Baré (1946-2023)
Faleceu na quinta-feira (27/07), em Manaus (AM), Braz de Oliveira França, do povo Baré, presidente/fundador da Associação das Comunidades Indígenas do Baixo Rio Negro (ACIBRN), de 1988 a 1990 e presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) entre 1990 e 1996.
Braz também foi coordenador-geral do convênio do DSEI/FOIRN (2002-04) e ocupou o cargo de administrador-adjunto da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), entre 1999 e 2002.
Braz foi um dos responsáveis pela demarcação das Terras Indígenas do Alto e Médio Rio Negro. Nesta época, foi fundada grande parte das associações indígenas filiadas à Foirn e se estabeleceu uma rede de comunicação via radiofonia, além de um levantamento exaustivo e inédito de informações socioambientais da região.
"Nossa bandeira era a proteção da selva amazônica", disse em 2003, em reportagem da Folha de SP, ao comentar esse período.
Sua trajetória foi de grande dedicação aos direitos indígenas e estabeleceu as fundações para uma das maiores organizações indígenas do país. Numa série de escritos onde ele relembra seus trabalhos e mobilizações, Braz abre com a seguinte afirmação:
"O movimento indígena no Rio Negro nasceu junto com os primeiros habitantes tradicionais desta terra, hoje chamada de Brasil. Sempre que uma família aumenta o número de seus integrantes, quando promove eventos de Dabucuri, Adabi, Kuriamã, ou faz trabalhos conjuntos entre uma e outra família ou grupo, já se pratica o movimento."
O Instituto Socioambiental (ISA) lamenta profundamente o falecimento de Braz e se solidariza com sua família, amigos e parceiros.
Leia abaixo as homenagens:
Abrahão França, irmão de Braz e ex-presidente da Foirn:
"Foi meu irmão que me ensinou muitas e muitas coisas dentro do movimento. A prova disso é que toda minha trajetória dentro da Foirn foi a convite dele. Eu também não sabia o que era movimento organizado, mas a gente chegou lá a convite dele, me deu oportunidade. É uma coisa que eu não vou nunca me esquecer, pela minha trajetória política, indo a ser presidente também, toda essa situação foi graças ao Braz ter me levado, ter me ensinado e ter confiado. Braz sempre foi um pai tranquilo, sempre manteve a tranquilidade, ele não tem um passado de briga. O que eu posso dizer é 'mano, tu já contribuiu na terra. Agora a tua parte é lá, pra onde todos nós vamos'. É isso, o Braz me ensinou muito, ele não vai ficar só na memória da família, mas de todo o movimento. O Braz tem um legado, não de iniciar o movimento, mas de estruturar. E como irmão, eu não podia negar isso".
Marivelton Baré, atual diretor da Foirn:
“Braz França, do povo Baré, era uma liderança muito inteligente e visionária, com uma visão de futuro, uma preocupação coletiva com os povos indígenas do Rio Negro, pela federação, a Foirn, a qual ele presidiu duas vezes, em mandatos consecutivos. Foi o principal coordenador de todo o processo de fortalecimento da política do movimento indígena no Rio Negro estrutural da Foirn. Ele que articulou e mobilizou para a demarcação das cinco Terras Indígenas na região do Alto e Médio Rio Negro e mais tarde teve esse processo de consolidação. Sempre acompanhou todas as discussões, assim como também coordenou o convênio da ação indígena, também foi administrador regional da Funai, da administração regional do Rio Negro, ele continua acompanhando toda a luta e ascensão do movimento indígena. Marca a história de um legado de alguém que muito fez pelos povos indígenas e que esse legado será honrado nos trabalhos e nas representações que temos de levar adiante, nunca nos esqueceremos. Braz foi uma pessoa excepcional e merece todo o reconhecimento, a valorização e sempre ser lembrado e homenageado. Especialmente pra mim, foi um professor, foi um parente que sempre me orientou, aconselhou, e também tem uma forte presença nessa gestão que eu comando à frente da Foirn. Estou no meu segundo mandato enquanto diretor, presidente, e muita coisa vem desse trabalho conjunto que a gente sempre fez. Fiquei bastante abalado, bastante triste, não é fácil receber uma notícia dessas".
Márcio Santilli, filósofo, fundador do ISA e ex-presidente da Funai:
“O Braz teve um papel muito importante na demarcação das Terras Indígenas do Rio Negro, que haviam sido retalhadas e reduzidas durante o governo Sarney. Ele mediou, junto ao movimento indígena, os ajustes necessários para garantir o apoio militar aos limites atuais das terras demarcadas”.
Aloisio Cabalzar, antropólogo e assessor do programa Rio Negro do ISA:
“Braz França não foi o primeiro presidente da FOIRN, mas foi aquele que tomou para si o trabalho de torná-la uma organização forte, à altura dos desafios que os povos indígenas do Rio Negro enfrentavam no início dos anos 1990. Com sua seriedade e determinação, a FOIRN se consolidou, congregando um número cada vez maior de associações indígenas das várias regiões e dos três municípios (São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos), construiu sua sede e obteve seus primeiros recursos que permitiu uma atuação mais abrangente. No começo, Braz trabalhou voluntariamente, sem mesmo uma renda para se sustentar, e as condições para viajar numa região tão extensa eram precárias. Pouco a pouco, foi obtendo apoios para a luta pelo reconhecimento dos direitos teritoriais, que culminou com a demarcação de cinco Terras Indígenas contíguas do Médio e Alto Rio Negro, entre 1997 e 1998. Nesse período, ele não era mais presidente da FOIRN, mas coordenou os trabalhos locais de demarcação. Braz se manteve atento e participando do movimento indígena até recentemente, sempre muito firme e rigoroso, era referência como liderança e sempre contribuía nas assembleias da FOIRN, defendendo a história do movimento indígena e os direitos indígenas”.
Márcio Meira, antropólogo e ex-presidente da Funai:
"Hoje eu fiquei muito triste, muito impactado, com a notícia do falecimento do querido companheiro Braz de Oliveira França, indígena Baré da região do Rio Negro. Uma pessoa muito querida, que eu conheci em 1990 quando pela primeira vez fui ao Rio Negro fazer pesquisa de campo. Depois, nós viajamos muito na região, inclusive para fazer demarcações de Terras Indígenas na região do Médio Rio Negro. O Braz França foi, talvez, a liderança mais importante naquele momento de rearticulação da Foirn, de consolidação da Foirn e de consolidação da principal questão daquele momento, que era a demarcação das Terras Indígenas do Alto Rio Negro e Médio Rio Negro. Braz França, infelizmente, nos deixa de forma muito abrupta e precoce, ele que estava na sua casa, aposentado mas levando sua vida, com sua família. Ele se foi, mas a sua obra permanece, vai permanecer pro futuro, para as gerações futuras, que devem sempre lembrar da enorme contribuição que ele deixou como legado do seu trabalho como dirigente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro na década de 1990. Eu fui testemunha dessa atuação dele e tive uma relação muito próxima dele em todo esse período. Portanto eu queria transmitir aqui minhas condolências, meus sentimentos à família do querido Braz, seus irmãos, sua mãe, não sei se sua mãe ainda está viva, e a todos os indígenas e homens e mulheres da região do Rio Negro que hoje estão sentindo certamente a sua falta. Um forte abraço a todos de sentimentos por essa imensa perda no dia de hoje".
José Bessa, historiador e professor na UERJ/UNI-RIO:
“Braz França Baré. Três vezes amigo em três contas diferentes no Facebook com eventuais trocas de mensagens. Mil vezes amigos na vida com troca de afetos. No dia 4 de novembro de 2003, tivemos uma longa conversa. Anotei tudo num caderninho. Vou organizar a entrevista para publicá-la na íntegra. Ele falou sobre sua trajetória pessoal, militância, movimento indígena, FOIRN, escola indígena, língua Nheengatu, parcerias com o ISA, projetos de piscicultura, necessidade de alternância no poder.
Nascido no Curicuriari, em 18 de outubro de 1946, falante de Nheengatu como língua materna, ele escrevia nessa língua, usando um alfabeto próprio, “que só eu mesmo entendo”. Com duas filhas, uma delas adotiva, pergunto:
- Braz, elas falam Nheengatu?
- Claro que falam, senão eu não seria o pai delas.
Ele agonizava no hospital, quando era lançado o livro da Constituição de 1988 em língua Nheengatu, o que o deixaria alegre e feliz. Um saudoso adeus a esse exemplo de luta e de integridade.”
Carla Dias, antropóloga do Programa Rio Negro do ISA:
“Pela sua dedicação, visão de futuro, coragem, força mobilizadora e crítica, Braz é uma liderança de referência no Rio Negro. Quando eu cheguei para conhecer e trabalhar no Rio Negro fiz uma viagem com ele e Brunihilde (uma importante parceira do ISA e da FOIRN), aprendi muito com os dois. Nessa viagem (nos idos de 2006) me impressionava como Braz nos provocava a refletir sobre os modos de vida não indígenas e nossas contribuições para um futuro digno a toda humanidade, a partir da valorização dos saberes ancestrais dos povos indígenas. Anos mais tarde, na época da elaboração dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) das Terras Indígenas do Rio Negro, vi o Braz provocar a relfexão de jovens lideranças indígenas, homens e mulheres, e convidá-los a se engajar em um plano de futuro que considerasse o conhecimento ancestral e o diálogo com o governo Brasileiro na sustentação de uma vida indígena contemporânea e em constante transformação:
'Os nossos ancestrais sempre nos ensinaram como devemos viver bem, em plena harmonia com outros seres viventes dessa terra mãe. É preciso aliar isso às ferramentas atuais sem deixar que estas desconsiderem esses ensinamentos. ... O tempo passa e o mundo se transforma, a sociedade se moderniza. Temos que acompanhar esses ciclos da evolução. Por conta dessas situações é que existem essas políticas, esses PGTAs. Não é que ele vai nos ensinar a ser índio. É para que possamos entender o que o governo pensa e saber dialogar com ele'. (Braz França).
Que a memória e o legado de Braz continuem a provocar críticas e mobilizar transformações!”
Renato Martelli, antropólogo e assessor do programa Rio Negro do ISA:
“Sempre fiquei impressionado com a capacidade do Braz de tocar diretamente em assuntos que muitos evitavam. Ao meu ver, conseguir fazer isso na etiqueta rionegrina sem gerar conflitos, é uma arte. Acho que tal coragem e respeito vinha por falar de acordo com o que fazia. Afinal, Braz estruturou uma federação indígena com mais de uma dezena de etnias diferentes com os pés no chão, muitas vezes vendendo produtos de seu sítio para garantir que o movimento não parasse. Sua história reflete em muito a própria história da Amazônia, ele estudou com padres, foi trabalhador em frentes de expansão, se formou liderança e defendeu os direitos indígenas. Tudo isso sem esquecer os ensinamentos que seus ancestrais e território lhe passaram. Braz conhecia de legislação, de movimentos sociais, da mitologia Baré, conhecia cada pedra do alto rio Negro e, principalmente, era um mestre em fazer. Espero que suas palavras e feitos ecoem para muitas gerações de lideranças, guardarei elas com o maior carinho.”
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Em Brasília, os 26 integrantes do coletivo criaram regimento próprio e desenvolveram novas habilidades em oficinas e encontros
Vindos de diferentes regiões na Bacia do Xingu, os 26 comunicadores da Rede Xingu+ se encontraram em Brasília para duas tarefas principais: organizar o regimento interno do coletivo – com a construção de acordos mútuos entre indígenas e beiradeiros para orientar as atividades e governança – e participar de oficinas e encontros para expandir o potencial de comunicação do grupo.
O regimento interno foi elaborado coletivamente, com base na valorização do pensamento diverso dos comunicadores da Bacia do Xingu.
Ao longo da produção do documento, eles puderam refletir sobre o lugar que ocupam em suas sociedades, escrevendo, gravando e editando para noticiar temas que eles entendem com suas comunidades que são relevantes.
“O principal objetivo da construção desses acordos é compreender como as relações entre comunicadores, conselheiros da Rede Xingu+ e comunidades xinguanas podem ser fortalecidas” afirmou o comunicador Arewana Juruna durante o encontro.
Para a comunicadora Kujaesãge Kaibi, criar o regimento dos comunicadores do Xingu+ possibilita que os 26 elos da comunicação no Xingu possam se organizar e entender como funciona sua atuação comunitária e em rede.
“Qual é o nosso papel dentro das nossas associações enquanto comunicadores?”, ela pergunta, para responder em seguida: “a solução está dentro do regimento que nós mesmos elaboramos! Esse é o nosso guia escrito e aprovado pelos conselheiros da Rede Xingu+, que acompanham o nosso trabalho".
No encontro dos comunicadores do Xingu, os 12 conselheiros do Xingu+ fizeram reflexões com os comunicadores sobre os seus papéis junto às associações indígenas e beiradeiras.
"São vocês os olhos que fazem a divulgação do que acontece no nosso território. Vocês são um elo entre as associações e as comunidades. Dentro da [Associação Terra Indígena Xingu] ATIX, a comunicação é muito importante. Criamos um departamento para mostrar o que fazemos no Território Indígena do Xingu", afirmou Iré Kaibi, ex-diretora executiva da Associação Indígena do Xingu e atualmente Coordenadora Regional da Funai CR Xingu.
O regimento dos comunicadores do Xingu+ prevê encontros mensais entre os comunicadores, associações xinguanas, conselheiros do Xingu+, e assessoria técnica da Rede Xingu+ para o alinhamento das coberturas de assembleias e reuniões nas aldeias e localidades do Xingu.
Mydjere Kayapó, conselheiro representante do Instituto Kabu na Rede Xingu+, finalizou afirmando que o papel dos comunicadores é muito importante para registrar as histórias dos mebêngôkre para as próximas gerações: “os comunicadores são circuladores de conhecimento entre o passado, presente e futuro”, refletiu a liderança Kayapó.
Para além do olhar sobre o cotidiano das vidas dos seus coletivos, quando estão em seus territórios, os comunicadores têm uma atenção especial para os impactos da invasão de garimpeiros, grileiros e ladrões de madeira.
Quando tramita algum retrocesso, no âmbito dos direitos indígenas e beiradeiros na esfera governamental, os comunicadores ficam atentos para produzir e divulgar áudios e imagens com manifestações que suas comunidades compartilham com o mundo.
Além disso, ao longo dos últimos anos os comunicadores do Xingu+ têm participado da cobertura colaborativa do Acampamento Terra Livre (ATL) - mobilização nacional indígena realizada anualmente para combater os projetos que ameaçam a vida dos povos indígenas - junto com outros importantes veículos de comunicação e coletivos, como a Mídia Indígena, a Midia Guarani Mbya e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Comunicação contra as ameaças ao Xingu
“Ao manipular câmeras, programas e aplicativos de filmagem e edição, podemos contar como estamos sendo pressionados pelo avanço do desmatamento a partir das nossas lentes e enquadramento”, reflete o comunicador Xokarowara Parakanã, que vive na Terra Indígena Apyterewa, com 774 mil hectares, um dos territórios mais ameaçados do Xingu.
Desmatamento na Terra Indígena Apyterewa
Segundo dados do PRODES, em 2019 a Apyterewa alcançou o 2º lugar entre as TIs mais desmatadas na Amazônia (com 8.527 ha). Em 2021, a TI passou para o primeiro lugar do ranking de desmatamento e registrou, segundo o Sirad-X, sistema de monitoramento da Rede Xingu +, mais de 8,1 mil hectares de desmatamento.
Motivados pelo desejo de enfrentar as pressões e ameaças que sofrem em seus territórios, os comunicadores apresentaram dúvidas sobre como utilizar a comunicação para qualificar as denúncias sobre destruição e desmatamento em seus territórios.
Quem respondeu foi a dupla Tukumã Pataxó e Kefas Pataxó, ambos nascidos na aldeia de Coroa Vermelha, extremo sul da Bahia. Os produtores Pataxó ampliaram para todos os participantes do encontro as noções de uso das redes sociais para o combate ao preconceito, comunicações seguras para denúncias de invasão territorial e estratégias de disseminação rápida e qualificada de informações relacionadas às manifestações nos territórios xinguanos.
“Os comunicadores podem ocupar os espaços e levar suas ideias para as pessoas que precisam ouvi-las”, afirmou Tukumã Pataxó sobre a importância do uso da comunicação para denunciar as ameaças ao Xingu.
Com a orientação de Tukumã e Kefas, os comunicadores produziram vídeos apresentando a importância do Xingu para o planeta, com o objetivo de aprofundar o ciclo de produção de conteúdo para que os comunicadores voltassem com mais aprendizados para os seus territórios.
Foram abordados conceitos de roteirização, filmagem, edição e distribuição pela rede social dos comunicadores do Xingu+, que foi criada durante o encontro a partir do anseio dos comunicadores e suas lideranças para um compartilhamento de suas visões e formas de produzir conhecimento com diferentes sociedades.
O editor de redes sociais do Instituto Socioambiental (ISA), Ariel Gajardo e a estagiária Wuara Antezana apoiaram os comunicadores do Xingu+ na idealização das primeiras postagens da rede social do coletivo de mídia, sendo uma delas sobre a Bacia do Xingu.
Para compartilhar com a sociedade envolvente qual é importância do Xingu para o mundo, os comunicadores do Xingu+ escolheram uma frase que o presidente da ATIX Ianukula Suyá Kaibi falou durante a 8ª reunião de Governança Geral do Território Indígena do Xingu: “o rio que passa pela sua casa também passa pela minha”.
8ª reunião de Governança Geral do Território Indígena do Xingu
O GGTIX aconteceu no polo Diauarum, região do baixo Xingu, no estado do Mato Grosso. O encontro, que é realizado anualmente, reuniu lideranças indígenas do Xingu para debater questões urgentes sobre atendimento à saúde e direitos territoriais. A ministra dos povos indígenas, Sônia Guajajara esteve presente no encontro, que contou com a cobertura dos comunicadores do Xingu+.
Para o comunicador Renan Kisedje, a frase simboliza que o rio une todos e o que acontece nos territórios do Xingu também geram impactos para o restante do planeta.
Da floresta para o planalto central
No ATL deste ano não foi diferente. Os comunicadores se mobilizaram para produzir coletivamente fotos, vídeos e boletins de áudio informativos com informações sobre as pautas da mobilização nacional indígena.
Eles trouxeram detalhes das marchas e depoimentos de lideranças de outras regiões, apresentando para os xinguanos que estão na aldeia um olhar intercultural dos comunicadores sobre as reflexões trazidas pelos indígenas que estão conectados às pautas em Brasília.
Com o olhar dentro da mobilização, os comunicadores pensaram em uma grade de divulgação de conteúdo a partir da programação do ATL 2023, priorizando fatos importantes para as suas comunidades.
Fora da mobilização nacional indígena, os comunicadores do Xingu+ fotografaram e filmaram as lideranças e representantes da Rede Xingu+ durante a apresentação do documento Xingu sob Pressão aos principais órgãos federais.
O documento denuncia o aumento dos desmatamentos na Bacia do Xingu, revelando que mais de 730 mil hectares foram desmatados na região nos últimos quatro anos, segundo o sistema de Indicação por Radar de Desmatamento Sirad-X.
O Xingu é um só!
A novidade deste ano foi a participação dos comunicadores e lideranças beiradeiras da Terra do Meio, como Francisco de Assis, presidente da Associação de Moradores do Rio Iriri, e Joelmir Silva, comunicador beiradeiro da Comunidade Maribel, localizada na Terra Indígena Cachoeira Seca.
“A relação dos povos indígenas e beiradeiros da Terra do Meio é muito importante, pois ao desmatar territórios indígenas são também desmatados os territórios beiradeiros. É importante a gente, enquanto beiradeiro, estar nessa luta pela demarcação das Terras Indígenas, pois é demarcando as TIs que se garante a nossa existência enquanto população tradicional”, contou Joelmir Silva em entrevista realizada por Naia Waurá para a produção do vídeo O futuro indígena é hoje, dos comunicadores do Xingu+ sobre o ATL 2023, que contou com a edição de Arewana Juruna, da aldeia Tuba-tuba, no TIX.
Durante a mobilização, comunicadores indígenas e beiradeiros elaboraram o roteiro, entrevistaram e filmaram as lideranças, distribuindo em suas redes a visão de outros povos indígenas que estavam presentes no ATL sobre a mobilização.
As entrevistas aconteceram em duplas, que juntas fizeram filmagens e entrevistas. Isso proporcionou uma interação mais estreita entre os comunicadores, que reforçaram seus laços e trocaram mais sobre suas realidades e saberes audiovisuais. Essa metodologia possibilitou a multiplicação de conhecimentos, fortalecimento de vínculos e alinhamento de estratégias entre os diferentes comunicadores do Xingu.
A Rede de Comunicadores do Xingu+ é formada por um grupo de 26 xinguanos: beiradeiros da Terra do Meio, Xikrin da Terra Indígena Trincheira Bacajá, Arara e Juruna da Volta Grande, Xipaya, Parakanã, Arara das TIs Arara e Cachoeira Seca, Kayapó-Mebêngôkre, Panará, Ikpeng, Kisedje, Waujá, Kalapalo, Kawaiwete, Yudjá.
Juntos desde 2019, os comunicadores têm trocado informações sobre seus modos de vida por meio da produção fotográfica e audiovisual para fortalecer a rede de relações entre os povos que são abraçados pelo Rio Xingu.
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Lançamento da primeira Constituição Federal em uma língua indígena reuniu as ministras Rosa Weber, Cármem Lúcia e Sonia Guajajara em São Gabriel da Cachoeira (AM), município mais indígena do Brasil
Com o hino nacional cantado em Nheengatu, uma das quatro línguas indígenas co-oficiais de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, foi aberto o lançamento da primeira Constituição Federal traduzida em uma língua indígena. A Maloca (Casa do Saber), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), foi o local escolhido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Superior Tribunal Federal (STF) para a cerimônia.
Acesse a Constituição Federal Brasileira em Nheengatu
“Esse é um momento histórico de restauração e de diálogo intercultural que se dá nesse município esplendoroso e mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira. Levamos 523 anos para chegar até aqui. É um passo importante de reconhecimento dos direitos indígenas neste país que possui 274 línguas indígenas vivas”, ressaltou a presidente do Superior Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, na Maloca da Foirn.
A ocasião também marcou o lançamento do Protocolo de Consulta dos povos e comunidades indígenas do Rio Negro, “uma ferramenta que explica para as pessoas de fora como é a regra para um processo de consulta prévia, livre, informada, de boa fé e que seja culturalmente adequada”, conforme explica o documento.
Qualquer projeto que venha a impactar a vida e os territórios dos indígenas do Rio Negro deverá passar por um processo de consulta das comunidades, seguindo as instruções deste Protocolo.
“Precisamos que o Judiciário conheça nosso Protocolo de Consulta e nos ajude a fazer cumprir os nossos direitos. Sempre repetimos isso aqui no Rio Negro: desenvolvimento sim, mas de qualquer jeito não”, enfatizou Marivelton Barroso, do povo Baré, presidente da Foirn.
A Foirn aproveitou a ocasião para entregar em mãos à ministra Rosa Weber, presidente do CNJ, uma carta de demandas ao Fórum Nacional do Poder Judiciário para monitoramento e efetividade das demandas relacionadas aos povos indígenas (Fonepi), do CNJ, como, por exemplo, garantir direitos eleitorais aos povos indígenas.
Muitas vezes as barreiras geográficas e linguísticas impedem os indígenas de ter acesso ao voto na Amazônia.
"Gesto de respeito"
Citando o povo Xukuru, de Pernambuco, que diz “acima do medo, a coragem”, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, se comprometeu a dar andamento a novas traduções da Constituição Federal para outras línguas indígenas.
“Queremos reflorestar as mentes dos tomadores de decisões e aldear os corações para esse novo projeto de sociedade com mais respeito às diferenças e com promoção da igualdade. É um gesto de respeito do Judiciário e uma forma de combater a desigualdade social”, afirmou Guajajara em seu discurso.
Uma das tradutoras da Constituição Federal para o Nheengatu, Dadá Baniwa, liderança indígena e coordenadora da Funai em São Gabriel, disse que ter a Carta Magna em uma língua indígena depois de 35 anos de sua promulgação é um sinal de “avanço, resistência e existência” dos mais de 300 povos indígenas no Brasil.
“Uma iniciativa pioneira que mostra a valorização e revitalização das nossas línguas”, concluiu a tradutora, que tem mestrado em Linguística pelo Museu Nacional (UFRJ).
O evento contou ainda com a presença da presidente da Funai, Joênia Wapichana, do vice-governador do Amazonas, Tadeu de Souza, do presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi e da desembargadora presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, Nélia Caminha Jorge, entre outras autoridades dos Poderes Executivo e Judiciário.
Após a cerimônia, a delegação seguiu para a sede do Instituto Socioambiental (ISA), no Centro de São Gabriel da Cachoeira, onde reuniu-se com lideranças indígenas, comunicadores, advogados, representantes de instituições locais e equipe do Programa Rio Negro, do ISA, para conhecer e conversar sobre os desafios da região e sobre os trabalhos desenvolvidos pela sociedade civil junto com o movimento indígena.
A delegação da ministra Rosa Weber seguiu nesta quinta-feira (20/07) para uma visita à comunidade de Maturacá, no trecho da Terra Indígena Yanomami no Amazonas, onde situa-se o ponto mais alto do Brasil, o Pico da Neblina ou Yaripo, como chamam os Yanomami.
Escute leitura de trecho da Constituição em Nheengatu, pela Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas:
Por uma Justiça que abrace a pluralidade étnica
O lançamento da Constituição Federal na língua Nheengatu em São Gabriel da Cachoeira, município com 90% da população de 45 mil habitantes composta por indígenas, faz parte de uma articulação entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), com o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), Foirn e o ISA para promover traduções nas línguas indígenas, democratizando e garantindo o acesso à Justiça.
“A Justiça brasileira precisa estar mais informada sobre a realidade indígena, assim como precisa ser mais democrática em relação à pluralidade étnica”, comentou a advogada do ISA no Amazonas, Renata Vieira, em reunião com as ministras do Supremo, Carmém Lúcia e Rosa Weber, em São Gabriel.
Em abril de 2021, o CNJ lançou na Maloca da Foirn, oito cartazes informativos sobre audiências de custódia nas línguas indígenas Baniwa, Nheengatu e Tukano, dentro do Programa Fazendo Justiça. Dados recentes do Departamento Penitenciário Nacional, no Brasil existem cerca de 670 mil pessoas privadas de liberdade, sendo 3,1 mil indígenas. Segundo o CNJ, a barreira linguística foi identificada como uma das maiores dificuldades para a promoção dos direitos das pessoas custodiadas.
Nheengatu, uma língua Tupi na Amazônia
No nosso dia-a-dia nem nos damos conta do quanto a língua Portuguesa foi influenciada pelo tronco Tupi, dando origem a uma série de palavras e nomes de lugares, como abacaxi, Acre, Amapá, amendoim, açaí, Aracaju, caatinga, Copacabana, beiju, caboclo, canoa, guri, Ipanema, Ipiranga e por aí vai.
O nheengatu, também conhecido como Língua Geral ou Tupi moderno, não é uma língua indígena amazônica. Ela foi levada primeiro para o Pará no século XVII pelos colonizadores jesuítas que tiveram contato com os Tupinambá. A língua passou, então, a ser usada como idioma de contato entre indígenas de diversas etnias, brancos e caboclos, espalhando-se por várias regiões amazônicas, incluindo o Alto Rio Negro, onde hoje o Nheengatu é uma língua co-oficial, falada por diversas etnias, como os Baniwa, Baré e Warekena.
O nome do idioma vem da junção entre as palavras tupis nhe'enga ("língua", "idioma", "linguagem") e katú ("bom", "boa"), significando, portanto, "língua boa", devido à sua importância como língua franca no Norte do Brasil no período colonial. A língua ganhou esse nome a partir da obra do escritor e etnólogo Couto de Magalhães no século 19. Antes disso era conhecida como Tupinambá, língua geral ou língua brasílica.
Apesar de ser considerada uma língua ameaçada pela Unesco, o Nheengatu vem ganhando força e recentemente ganhou a sua Academia da Língua Nheengatu, cujo presidente Edson Kurikanwe Baré, foi um dos tradutores da Constituição Federal para a língua e é oriundo de São Gabriel da Cachoeira. Para saber mais, vale ler a reportagem da Amazônia Real sobre a criação da Academia.
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Lideranças da Rede Xingu+ forneceram subsídios aos órgãos responsáveis para adequar o projeto às novas diretrizes de política pública do governo federal
Quase passou batido nas notícias sobre o julgamento da ação que questiona a desafetação, pelo governo de Michel Temer (2016-2018), de parte do Parque Nacional (PARNA) do Jamanxim, em Novo Progresso (PA), para a construção da EF-170 (ou “Ferrogrão”), um aspecto importante da decisão proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, relator do caso.
Trata-se da determinação de que qualquer execução ligada aos processos administrativos da ferrovia deve ser previamente autorizada pelo STF.
Proferida em 31 de maio, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.553, com a decisão, o STF chamou para si a responsabilidade de avaliar o cumprimento das condicionantes legais desses processos — em especial as socioambientais.
Diversas questões foram levantadas por especialistas e lideranças indígenas. Como essa avaliação aconteceria? Quais são as condições necessárias para que um projeto dessa complexidade possa seguir, considerando que se trata de uma ferrovia de 933 km de extensão, que impacta 16 Terras Indígenas e mais de uma dezena de áreas protegidas? E de que maneiras será levado em conta o papel central do Brasil nos esforços globais de resposta à emergência climática?
Para contribuir com essas questões, povos indígenas e tradicionais da Bacia do Xingu, articulados na Rede Xingu+, apresentaram aos órgãos responsáveis pelo projeto uma análise da necessidade de revisão do projeto de concessão da Ferrogrão, que os afeta diretamente e que vai de encontro ao compromisso do país para zerar o desmatamento na Amazônia até 2030.
Baixe o documento
O documento, entregue à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), ao Ministério dos Transportes (MT), ao Tribunal de Contas da União (TCU), à Advocacia-Geral da União (AGU) e ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), parte dos estudos da ferrovia entregues ao Tribunal de Contas da União em 2021, para contribuir com a adequação da concessão às novas diretrizes da política pública do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), e às premissas de participação social e visão territorial estabelecidas no "Plano Plurianual 2024-2027”, em elaboração.
O intuito da Rede Xingu+ é, portanto, oferecer subsídios técnicos para atender à determinação do ministro Alexandre de Moraes para que sejam atendidas as condicionantes socioambientais em tomadas de decisão relativas à Ferrogrão.
Isso porque, ao tratar da matéria em 31 de maio, o ministro permitiu a retomada dos estudos e dos processos administrativos para concessão da ferrovia, paralisados por ele mesmo em março de 2021.
Naquele momento, Moraes atendeu a um pedido de liminar do PSOL para sobrestar a análise do projeto da ferrovia, e suspendeu os efeitos da Medida Provisória (MP) convertida na lei nº 13.452/2017 utilizada para desafetar – isto é, reduzir o status de proteção – uma porção do parque nacional.
Em sua decisão mais recente, o relator manteve a suspensão dos efeitos da lei nº 13.452/2017, entendendo que os efeitos da redução de limites do parque para a construção da Ferrogrão podem ser irreversíveis. Mas desvinculou da suspensão o andamento dos estudos e dos processos.
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O contrapeso colocado pelo ministro, nesse ponto, é justamente a exigência de autorização prévia do STF para a execução de qualquer medida relativa à concessão da Ferrogrão — daí a importância de avaliar as condicionantes do projeto, originalmente propostas nos estudos técnicos de 2020, e sua capacidade de responder às demandas atuais do país.
A proposta da Rede Xingu+
Com o título “Condicionantes socioambientais necessárias à continuidade dos processos administrativos relacionados à Ferrogrão (EF-170)”, a peça técnica apresentada pela Rede Xingu+ aponta, de partida, para a necessidade de atualizar os estudos da Ferrogrão que dão base a processos em tramitação na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), no Ministério dos Transportes e no TCU, considerando a defasagem de três anos desde que foram aprovados e apresentados ao TCU.
Há dois principais focos desse esforço de revisão sob responsabilidade do Ministério dos Transportes e da ANTT: os Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) e o "Caderno de Avaliação Socioeconômica".
Entre os pontos que dizem respeito ao EVTEA, destaca-se o cálculo do desmatamento potencial induzido pela ferrovia e de impactos sinérgicos e cumulativos com outros empreendimentos, como as Estações de Transbordo de Carga em Miritituba e rodovias estaduais.
Já com relação ao "Caderno de Avaliação Socioeconômica", a Rede Xingu + indica que a análise distributiva de benefícios e custos entre partes interessadas precisa ser considerada, conforme recomendações do Guia ACB do Ministério da Economia.
A Rede também argumenta a necessidade de o governo, entre as condicionantes para continuidade dos processos da Ferrogrão, priorizar a execução das ações do “Eixo III- Ordenamento fundiário e territorial” do PPCDam 5ª fase na área de influência do Corredor Logístico. Para isso, destrincha os objetivos nº 9, 10 e 11 do plano, que dão especial atenção às porções da Amazônia com as maiores taxas de desmatamento.
Há, ainda, um terceiro eixo das condicionantes, que trata da participação social e do engajamento significativo das comunidades potencialmente afetadas e desapropriadas pelo projeto da Ferrogrão. No caso dos indígenas e de comunidades tradicionais, o mecanismo para viabilizar a participação em processos decisórios é a Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado (CCLPI).
Entenda como funciona o direito à Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado:
O princípio foi ignorado ao longo da realização de várias etapas do ciclo de investimento, mostra a Rede, destacando o descumprimento, por parte da ANTT, do compromisso que ela mesma firmou com os Kayapó Mekrãgnoti, em relação à CCLPI.
Em um documento de 2017, a autarquia prometeu não encaminhar o processo da Ferrogrão para o TCU antes de consultar os indígenas, reconhecendo a proeminência do direito à CCLPI. No entanto, encerrou o processo de participação e controle social três anos depois, sem ouvir as comunidades.
Acesse o Protocolo de Consulta dos Povos do Território Indígena do Xingu
Para fazer valer o acordo de 2017, a Rede Xingu+ argumenta que, uma vez revistos os estudos da Ferrogrão, o Ministério dos Transportes deve executar um Plano de Consulta que submeta o EVTEA atualizado aos povos das 16 Terras Indígenas impactadas pelo projeto.
A CCLPI deve observar o que regem os protocolos de consulta de cada território, diz a Rede. Também, que as contribuições que resultarem do processo de consulta devem subsidiar a decisão do Ministério dos Transportes e da ANTT quanto à viabilidade do empreendimento.
Só depois de cumprida essa etapa, o processo deve ser encaminhado ao TCU para avaliação — e, tanto no tribunal, como nas próximas fases do ciclo de investimento, a CCLPI deve ser realizada.
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Coleção reúne bastidores e depoimentos do livro “Povos Indígenas no Brasil 2017-2022” para retratar a memória dos mais de 260 povos que habitam o país
“Nossa história existe, está viva, e é exatamente por isso que a gente defende tanto a nossa terra”. É por meio de declarações como a da liderança Kayapó, Maial Paiakan, em entrevista ao livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022, que a série especial do podcast Copiô, Parente! demonstra a importância da luta indígena e da preservação da memória viva e coletiva dos mais de 260 povos que habitam o País.
Lançada pelo Instituto Socioambiental (ISA), a série tem por objetivo expandir a leitura da coletânea de livros ‘Povos Indígenas no Brasil”. Para isso, o especial traz os bastidores da publicação, depoimentos e entrevistas sobre temas como a situação atual dos povos indígenas no Brasil; arte; demarcação de terras; contexto político atual e nos últimos seis anos; e as mudanças nas políticas indigenistas.
Com episódios quinzenais de cerca de 15 minutos, a série tem sua narrativa permeada pelas vozes de sete lideranças indígenas. São elas:
Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, da Terra Indígena Yanomami (RR);
Francy Baniwa, antropóloga do povo Baniwa da Terra Indígena do Alto Rio Negro (AM);
João Victor, ativista ambiental e comunicador do povo Pankararu da Terra Indígena Pankararu (PE);
Kerexu Yxapyry, secretária de direitos ambientais e territoriais indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), do povo Guarani Mbya da Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC);
Maial Paiakan, ativista de Direitos Humanos e de Direitos Indígenas do povo Kayapó, da Terra Indígena Kayapó (PA);
Angela Kaxuyana, integrante da coordenação executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) do povo Kaxuyana, da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana (PA); e
Vanda Witoto, ativista, palestrante e educadora do povo Witoto do Alto Solimões (AM).
Junto a elas, os apresentadores Gilmar Galache, do povo Terena, e Ester Cezar, jornalista do ISA, conduzem as entrevistas temáticas de cada episódio.
Na estreia da série a antropóloga Fany Ricardo, conta sobre a criação da coleção ‘Povos Indígenas no Brasil’. Fundadora do ISA e da coleção, no episódio a antropóloga fala sobre a importância do trabalho realizado para traçar um retrato da situação indígena nas últimas quatro décadas. Para ela, o objetivo segue o mesmo: “é uma maneira de mostrar a questão e de tentar influenciar para que a política indigenista seja [a fim de] de garantir os direitos indígenas, dos isolados e dos de contato antigo, de reconhecer as terras”.
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Na série, a pergunta ‘‘Quem são os povos indígenas?” abre a discussão de um dos episódios. Para responder à questão, o Copiô, Parente! entrevistou a antropóloga Tatiane Klein, uma das editoras da coleção. Com cerca de 1,5 milhão de indígenas, de cerca de 266 povos, falantes de mais de 200 línguas, o episódio aborda as diferentes realidades, processos de identificação e pressões vividas pelos povos indígenas no Brasil.
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Para a antropóloga, o livro faz uma tentativa de mostrar um pouco dessa diversidade mas que, necessariamente, está incompleta na publicação, mesmo com os mais de quarenta anos de produção envolvendo toda uma rede de colaboradores indígenas, indigenistas e profissionais da área. “É sempre um retrato incompleto, mas ao mesmo tempo acho que é importante ser incompleto, porque mostra que são povos que estão reaparecendo”, pontua.
Para falar sobre os desafios enfrentados pelos povos indígenas no período retratado pelo livro, de 2017 a 2022, por sua vez, o podcast traz uma entrevista com a advogada do ISA, Juliana de Paula Batista. Um dos pontos explorados pela advogada marca o início das políticas anti-indígenas, como a edição de um parecer que condicionou a demarcação das Terras Indígenas ao chamado Marco Temporal.
Acompanhe os episódio da série especial do podcast Copiô, Parente!
Para ela, esse foi o principal retrocesso durante o Governo Temer (2016-2019), que colocou em risco os direitos dos indígenas sobre suas terras. “Isso vira um argumento de disputa para bancada ruralista, para as pessoas que são interessadas em anular as demarcações inviabilizarem os direitos territoriais de indígenas”, argumentou.
A série também traz a temática indígenas na arte para acordar a memória e resistir, com uma entrevista com a artista, ativista, curadora e educadora Daiara Tukano. No episódio, a artista traz as dificuldades enfrentadas por indígenas para inserção em espaços.
“A gente entra nesses espaços, de certa forma, pelo constrangimento. Porque nós somos o último grupo a entrar em qualquer espaço. É impressionante. Nós somos o último grupo da sociedade a entrar na universidade e nós também somos o último grupo da sociedade a entrar a ser reconhecido dentro desse espaço da arte”, afirma. Por outro lado, ela destaca que esse cenário está mudando, e existem cada vez mais curadores e artistas indígenas.
O último episódio da série traz as memórias do sócio-fundador do ISA, Márcio Santilli, sobre a luta para garantir os direitos indígenas na Constituição de 1988, e suas reflexões sobre este novo capítulo para os direitos indígenas no país.
"Esse processo de resistência, de crescimento, de reconhecimento na sociedade brasileira ao papel do movimento indígena, abre espaço para uma nova página da nossa história, da relação entre os povos indígenas e o Estado Brasileiro", destaca Santilli.
Povos Indígenas no Brasil 2017-2022
Criada na década de 1980 pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), organização que deu origem ao ISA, a publicação ‘Povos Indígenas no Brasil’ nasceu para dar visibilidade aos povos indígenas e à devastação de seus territórios, pouco conhecida na época, até mesmo pelos especialistas.
A edição mais recente, ‘Povos Indígenas no Brasil 2017-2022’, publicada pelo ISA, traz em suas mais de 800 páginas depoimentos, artigos, entrevistas em uma tentativa de retratar e registrar a história indígena contemporânea.
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Comunicadores do Rio Negro e Coletivo Abaré, de Manaus, se encontraram em São Gabriel da Cachoeira (AM) para ampliar a circulação de informações dentro e fora dos territórios
Em uma roda de conversa, tendo à frente uma câmera e um celular, o conhecedor Basílio José Dias, nome tradicional Urêmiri, do povo Tukano, conta em sua língua e em português histórias dos conhecimentos indígenas. Os integrantes da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas escutam atentos e fazem coletivamente a entrevista.
A partir daí, começa o desafio de pensar em como transformar o conteúdo em fotos, textos, áudios, vídeos a serem compartilhados para dentro do território indígena do Rio Negro e para fora, alcançando públicos também para além da Amazônia.
Essa foi uma das atividades desenvolvidas na Oficina Técnica Wayuri – Abaré, entre os dias 20 e 29 de junho, no Telecentro do Instituto Socioambiental (ISA). Conduzida pelo coletivo Abaré Escola de Jornalismo, de Manaus, ela foi realizada pelo ISA e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), com apoio da Nia Tero e Diálogo Brasil.
O momento é especial. A Rede Wayuri acaba de passar por uma ampliação no número de bolsistas e, na oficina, esse grupo pôde se encontrar e trocar experiências. Até 2022, o coletivo de comunicadores indígenas do Rio Negro contava com cinco bolsistas atuando a partir de São Gabriel da Cachoeira, recebendo ainda apoio de voluntários e colaboradores.
Em 2023, a Rede Wayuri passou a contar com 18 bolsistas, que atuam em áreas urbanas e nas comunidades, reforçando a representatividade de todas as regiões do território do Rio Negro e contando ainda com a importante atuação dos voluntários.
Em janeiro, o encontro da Rede Wayuri reuniu bolsistas e voluntários, mas agora a oficina foi voltada para um grupo menor. Novas formações continuarão acontecendo.
Diretor-presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré, esteve na oficina para cumprimentar os comunicadores. "O trabalho dos comunicadores tem se mostrado cada vez mais importante, levando informação para dentro e fora do território. E queremos que as oficinas de formação também cheguem às comunidades", afirmou.
Participaram da oficina comunicadores das cinco coordenadorias da FOIRN: Caimbrn (Coordenadoria das Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro), Caibarnx (Coordenadoria das Associações Indígenas do Alto Rio Negro e Xié), Coidi (Coordenadoria das Associações Indígenas do Distrito de Iauaretê), Diawii (Coordenadoria das Organizações Indígenas do Tiquié, Uaupés e Afluentes) e Nadzoeri (Organização Baniwa e Koripako).
A Rede Wayuri é um coletivo de comunicação indígena diverso, com integrantes de várias etnias. Entre o grupo de bolsistas, há indígenas dos povos Tukano, Wanano, Baré, Piratapuya, Yanomami, Baniwa, Tariano e Hupd'äh. Muitos produzem conteúdo nas línguas indígenas. O grupo é vinculado à Foirn e conta com a parceria do ISA.
Uma das fundadoras e coordenadora da rede Wayuri, Cláudia Ferraz, do povo Wanano, considera que esse é um momento importante para a Rede Wayuri, com a ampliação dos bolsistas e a oficina de formação. “A cada ano, desde a primeira oficina, a gente vinha buscando esse fortalecimento. Agora estamos conseguindo”, disse.
Ela explica que o objetivo da Rede Wayuri é promover a comunicação indígena, levando informações para dentro e para fora do território, considerando a diversidade cultural e as realidades do Rio Negro, com produção de conteúdo também em línguas indígenas. “Isso só é possível com a participação de vocês, os comunicadores que estão nas bases”, afirmou durante a oficina.
A formação em conjunto com a Abaré foi pensada para que os comunicadores pudessem produzir pequenos textos, áudios, fotos e vídeos curtos, utilizando principalmente o celular. As narrativas vão desde a defesa territorial até a cosmologia, dando visibilidade também para a agenda institucional da FOIRN.
E a própria Rede Wayuri também já está formando seus integrantes. Cláudia Wanano conversou com os comunicadores sobre as atividades desenvolvidas e sobre o processo para execução dos produtos de comunicação, como o programa de rádio Papo da Maloca e o podcast Wayuri.
Essas atividades foram acompanhadas na prática. No dia 21 de junho, a oficina aconteceu durante o próprio programa Papo da Maloca, produzido e conduzido pela Wayuri, indo ao ar toda quarta-feira, das 10h às 12h.
O comunicador José Paulo, povo Piratapuya, entrevistou os três jornalistas da Abaré: Gabriel Veras, Ariel Bentes e Waldick Júnior. A diretora da FOIRN, Janete Alves, do povo Desana, também foi convidada.
Comunicação nos territórios
A Abaré é uma escola de comunicação itinerante, que trabalha com o fortalecimento do jornalismo local e no combate à desinformação, com atuação em escolas públicas e áreas periféricas de Manaus. Esta é a primeira vez que o grupo desenvolve um trabalho para além da capital.
O nome escolhido – Abaré – é uma palavra do tronco linguístico Aruak que significa amigos. Lembrando que a Wayuri também tem nome indígena, da língua nheengatu, que significa trabalho coletivo.
Um dos fundadores da Abaré, o jornalista Gabriel Veras explica que a parceria da Wayuri já vinha acontecendo de outras formas. Em maio, o comunicador Ray Baniwa e a comunicadora Juliana Albuquerque, do povo Baré, participaram em Manaus de encontro da Abaré que discutiu a desinformação e seus efeitos na sociedade.
“Esse trabalho da Rede Wayuri em São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos é fundamental. Estamos falando de pessoas que conhecem o território, que estão nesse território, que são indígenas e, portanto, sabem melhor que qualquer um como dialogar, como comunicar com as comunidades indígenas. Por isso a riqueza da Rede Wayuri”, sublinhou.
“E quando a Abaré chega para essas oficinas, com a participação do ISA e da Foirn, não vem simplesmente para trazer um conhecimento, mas para construir algo junto. E isso ficou bem nítido também com o engajamento dos comunicadores”, disse Gabriel Veras.
Durante a oficina, os comunicadores registraram as atividades. Foi produzido o Papo da Maloca, o podcast Wayuri e posts – vídeos, textos e cards - para o Instagram.
Cinema indígena
O encontro teve também uma sessão do Cine Japu – que promove exibições de cinema quinzenalmente no Telecentro do ISA, com participação da Rede Wayuri, tendo como produtora a comunicadora Suellen Samanta, do povo Baré. Com a presença dos comunicadores, o filme escolhido foi Os verdadeiros líderes espirituais, dirigido pelo cineasta indígena Alberto Álvares, do povo Guarani.
Antropóloga e cineasta, Julia Bernstein – que integrou a equipe do filme – está em São Gabriel da Cachoeira e participou de uma roda de conversa após a exibição. Ela considera que o cinema pode aproximar os jovens indígenas de suas tradições.
“O audiovisual, que traz a tecnologia, que interessa muito aos jovens, pode reconectar os jovens com a tradição também. O que o Alberto faz é a preservação da memória, do modo de vida Guarani e da história das pessoas”, comentou Julia Bernstein.
Representando o Decom/Foirn, Joelson Félix e Paulo Vítor Bastos trouxeram o conteúdo sobre equipamentos, segurança digital e cuidados na circulação da informação. A atriz e produtora cultural Naiara Bertoli, consultora do ISA que acompanha os trabalhos da Wayuri, trouxe técnicas do teatro para apoiar os comunicadores.
Comunicador da região do rio Tiquié, Euclides Holcim, do povo Tukano, gostou muito das práticas. Falante da língua Tukano, ele explicou que as práticas na oficina deixaram ele mais seguro para conversar e fazer entrevistas sendo na língua indígena ou em português. “Às vezes o coração fica disparado, mas eu consegui fazer as atividades e me senti tranquilo em contar histórias. Para mim foi muito bom”, contou.
Memória, território e patrimônio
Durante a oficina foram exibidos vídeos produzidos no projeto Memória, Território e Patrimônios Imateriais do Rio Negro, desenvolvido pelo Museu da Pessoa e Foirn. A Rede Wayuri é parceira da iniciativa, com produção de podcast e divulgação.
A comunicadora Juliana Albuquerque, do povo Baré, acompanhou esse projeto. Um dos encontros aconteceu no distrito de Iauaretê. Ela registrou em vídeo (https://www.instagram.com/p/CtzElwVsPb7/) a viagem pelo rio, passando por corredeiras, dando a dimensão do desafio que os comunicadores enfrentam.
Rariton Horácio, do povo Baré, também participou do projeto no Médio Rio Negro e informou que, a partir dos encontros, a Câmara Municipal de Santa Isabel do Rio Negro passou a discutir o reconhecimento do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN) como patrimônio cultural do município. O SAT-RN já é patrimônio nacional.
No encerramento da oficina Wayuri - Abaré, uma manifestação multicultural envolveu os participantes: os comunicadores fizeram uma apresentação com cantos e danças tradicionais. Também foi organizada uma quadrilha improvisada, conduzida por Cláudia Wanano e José Paulo. Foi servida quinhampira – a tradicional caldo de peixe e pimenta.
Conheça os integrantes da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas
Claudia Ferraz, povo Wanano
Adelson Ribeiro, povo Tukano
Suellen Samanta, povo Baré
Deise Menezes Alencar, povo Tukano (colaboradora)
Kelson Melgueiro, povo Baré
Shayra Cruz, povo Baré
João Alex Lins, povo Yanomami
André Meira, povo Tukano
Euclides Holquim, povo Tukano
José Paulo, povo Piratapuya
José Baltazar, povo Baré
Rariton Horácio, povo Baré
Plínio Guilherme, povo Baniwa
Laura Almeida, povo Baniwa
Rosivaldo Miranda, povo Piratapuya
Marcelo Córdoba, povo Tuyuka
João Arimar, povo Tariano
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Leia entrevista com a antropóloga, educadora e curadora Sandra Benites, indígena Guarani Ñandeva, para o livro "Povos Indígenas no Brasil 2017-2022"
* Entrevista dada ao livro "Povos Indígenas no Brasil 2017-2022'
Sandra Benites, primeira curadora indígena do Museu de Arte de São Paulo (Masp), nos faz um convite: acordar a memória através da arte. É assim que ela enxerga a importância do corpo indígena nesse espaço de disputa do campo simbólico. Da mesma forma, foi assim que ela apreendeu a ocupar seu espaço na curadoria e tenta imaginar a arte para além da sua obra, mas com o sentido coletivo da sustentação da batalha contracolonial.
Sandra é indígena Guarani Ñandeva, nascida na aldeia Porto Lindo/Jacare'y, no Mato Grosso do Sul, além de antropóloga, educadora e curadora. Atualmente compõe o corpo curatorial do Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo (SP).
Como começou a sua carreira de curadoria na arte?
Eu sou professora. A minha luta e a minha curadoria começaram antes, a partir da minha infância, da minha luta como mulher, enquanto mãe e também enquanto indígena. Tudo isso faz parte da minha formação curatorial. Eu acho que muitas vezes essas questões não são levadas em consideração nesses espaços curatoriais.
A minha entrada como curadora mesmo começou em 2017. Eu fui convidada para fazer parte da equipe curatorial da exposição "Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena”, para fazer um projeto dessa exposição sobre indígenas, muito focado na visão dos indígenas sobre a própria história do Rio de Janeiro.
Para isso, tivemos que nos escutar primeiramente, escutar, entre nós curadores, e pensar como é que a gente ia apresentar o projeto para os parentes do Rio de Janeiro. Nos juntamos à equipe e fomos visitar duas vezes as aldeias – e também chamar os parentes urbanos para fazer reunião.
Assista ao vídeo da exposição "Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena”:
Então, tudo partiu de um processo de encontro, de conversa. Eu gosto de falar a partir desse ponto de conversa. Nessa primeira experiência, apareceram muitas coisas. A primeira questão que apareceu desse processo histórico, [foi] a violência que toma vários corpos. Digamos: o processo que foi capturando os corpos de nós indígenas mesmo.
Esse entendimento influencia vários aspectos em relação às informações que são passadas sobre a gente e os espaços onde a gente pode, de fato, colocar o nosso campo de vista. A verdade é que ainda somos tratados com distância por várias instituições e pela própria comunidade [sociedade].
Fui até os Puri [indígenas de São Paulo] e com eles entendi que deveria trabalhar aspectos da memória, que é importante para todos nós indígenas. Os parentes falam em “acordar memórias”. Quando nós começamos a refletir sobre alguns silenciamentos, apagamentos da fala, das nossas vozes, dos nossos ancestrais, eles falaram que a gente precisa sempre acordar a memória.
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Aí eu fui entender o papel que a arte tem para acordar a memória: é uma forma da gente resistir, é o nosso jeito de cada dia. Como eu sou Guarani, acordar a memória para a gente é sempre acordar pela memória – e a gente entende aquela memória como patrimônio, que são os nossos saberes, nossa forma de não perder as coisas que nos fazem.
Veja post sobre o retorno do manto Tupinambá, que cita Sandra Benites:
Esse é um aspecto que comecei a discutir enquanto curadora. Nossa memória continua nos mantendo e nos movimentando. Outra parte que a gente não pode esquecer é que essa questão é uma forma de entendermos o processo da colonização, que fez com que a gente se anulasse em várias formas de ser. Isso faz parte do modo de ser Guarani. Isso ficou muito forte pra mim: a questão da ocupação, de retomar os seus e nossos territórios ancestrais. Esse impedimento é da própria colonização, desse sistema colonial que nos impede de ocupar o nosso lugar de origem. É o lugar para o qual a gente tem que retornar, inclusive para a arte.
Em 2020, você se tornou a curadora adjunta do Masp e foi a primeira mulher indígena a ocupar esse espaço, que é um dos mais importantes da arte no Brasil. A partir dessa experiência, você considera que os espaços realmente estão se abrindo para os povos indígenas, para os artistas indígenas, ou é mais um caminho de espetáculo da diferença?
Quando eu entrei [no Masp], logo já começou a pandemia e fechou tudo. Na verdade, a exposição [que] eu fui chamada para fazer a curadoria, era sobre história indígena brasileira que ia acontecer em 2021. Só que como veio a pandemia, ela foi adiada para 2023.
Eu acho que fiquei isolada, de uma certa forma – eu entrei mas eu fiquei isolada. E eu achava que eu fiquei isolada por motivo da pandemia, mas aí eu vi que realmente não tinha muita preocupação em me acolher. Por isso, eu acho que, para mim, foi um lugar só para dizer que, para mostrar a minha competência, tinha que ser da forma que eles querem e não da forma que eu sou enquanto indígena. Por isso, eu acabei pedindo pra sair. Até porque, quando nós começamos a fazer a exposição "Histórias Brasileiras", fomos chamadas para fazer parte do núcleo da "Retomadas", que eu e a Clarissa [Diniz] dirigimos. Nós começamos a fazer o trabalho e veio o veto das fotografias do Movimento Sem Terra (MST) e isso me frustrou ainda mais.
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Na verdade eu me coloquei dez vezes, [expliquei] como é o meu jeito de trabalhar. E aí, quando fui cobrar, me coloquei enquanto indígena, também nesse lugar que não é só [de] produzir e [de] estar ali só para atender demanda, [mas] eu não fui escutada. Eu fiquei muito chocada com isso e fiquei muito mal, porque me senti violentada, silenciada, de várias formas.
Quando eu entrei, me perguntaram o que é que eu iria mudar [no Masp]. Aí eu falei que não gostaria de mudar nada, mas faria o possível para me sentir como soma, [como] parte. Quando a gente soma, a gente amplia a coisa, né? E como eu não me sentia confortável para poder ampliar, eu saí pelo mesmo motivo que eu entrei: para ampliar.
Você considera que a arte contemporânea, em si, está preparada para receber essas outras narrativas e o corpo indígena?
Já existem muitos parentes fazendo isso, não somente como artistas mas como intelectuais, como acadêmicos, como lideranças e vários outros. A arte contemporânea aparece como resultado em uma obra, mas é muito mais que isso: artes contemporâneas existem dentro da comunidade e fora da comunidade.
O artista, nesse caso, faz a ponte. Nem todos os artistas que estão ali têm resistência, mas estão resistindo mulheres, homens, os mais velhos. Eles estão ali resistindo. Tem muita gente que vai, mas, enquanto isso, tem muita gente que fica também nas suas aldeias resistindo. Principalmente as mulheres, as mães, que estão ali praticando suas rezas para aqueles que estão lá fora.
O que é arte contemporânea para nós? É muito mais do que pode ser visto, porque tem coisas que não são para serem vistas, não são para serem faladas e isso é importante só para nós. Então, como é que a gente nomeia isso? Essa é uma outra questão, que eu chamo de memória ancestral e que também é um patrimônio para gente, por exemplo, os saberes das parteiras. Elas têm sua sabedoria para fazer parto, isso é dela e não é lugar em nenhum outro lugar assim. Isso também é arte contemporânea.
Não dá para apenas só chamar o artista que está na galeria, no museu ou independente do espaço. Porque, com isso, a gente pode reproduzir essa visão colonial e silencia também a outra parte da versão. A obra é muito maior do que aquilo que está ali, né? Vamos dizer… o objeto, a pintura, sei lá, o que aparece ali, é muito maior. Tem muita gente segurando a arte.
Quais são os outros espaços para além do museu que poderiam comportar a arte indígena?
Eu acho que esse espaço que eles estão reivindicando [da arte fora do museu] é importante, porque tem essa ideia de que o museu só recebe. Mas o museu também é a forma da cidade preservar o acervo, o conhecimento; essa ideia de ficar fixo para conservar é limitadora, que para ser preservado é importante manter na cidade.
O que é importante para a gente, indígena, talvez não vai caber dentro do Museu. Por exemplo a dança; isso não vai caber no museu. Quando eu fui para o Masp, eu tive essa sensação também. Eu lembro de muitos parentes falarem assim: “Olha, como é que a gente vai fazer fogueira [aqui]?”. Por exemplo, quando queremos fazer uma roda de conversa só nós indígenas [Guarani], utilizamos a fogueira. Será que o museu deixa a gente fazer fogueira? Uma roda de conversa e em torno da fogueira? Não, não tem estrutura para isso. Então o que é que o museu pode fazer? A gente pode questionar isso. O museu pode se ampliar e se estender a partir dessa demanda. E eu acho que esse é o desafio: pensar nesses espaços [em] que caibam as necessidades reais dos indígenas.
Então a arte indígena não é essa coisa delimitada mas ao mesmo tempo precisa de uma demarcação? Qual é a importância política dessa demarcação?
A importância é de dizer que estamos ali também para disputar de igual para igual, com os artistas jurua [não indígenas] que têm esse conhecimento, que têm nome. Acho que os jovens artistas indígenas começaram a atravessar essas fronteiras com mais força. Na verdade, [essa fronteira] não foi colocada por nós; as fronteiras do mundo da arte também não foram colocadas por nós indígenas, mas pelo próprio pensamento ocidental de entender que a arte é dessa forma, de uma forma.
A gente também entende que nós temos a nossa essência enquanto indígenas, essência também na arte. Mas também temos consciência de que essa não é uma forma importante para a gente, mas, de uma forma muito irônica, a gente precisa estar dialogando, estar no mesmo lugar, até para poder discutir essas questões.
Você entende que a arte indígena pode ser uma ferramenta possível para fazer com que esse país acorde a sua memória e desperte para outros imaginários e realidades possíveis?
Para pensar o futuro, a gente precisa fazer como se fosse uma peneirada da memória, para que a gente siga com aquilo que é importante para gente e, claro, que a gente também não deixe o que foi ruim. Pois isso serve para a gente criar outros caminhos. Não é que a gente tem que deixar para trás, tem que esquecer tudo, não é isso. Na verdade, a gente precisa, a partir dela [memória], criar outros caminhos para o futuro e não renegar, não repreender o nosso sentimento.
A sociedade brasileira tem muito isso: [ela] se constituiu, ela se transformou, ela nasceu já com essa violência, com essa distorção das coisas. Nós somos isso e a gente precisa aceitar que nós somos diversos, que o Brasil foi de fato invadido e roubado, deturpado e violentado.
O que é preciso, hoje, é entrar em acordo com a nossa memória. Como é que a gente pode caminhar dentro dessa nossa diversidade? Os artistas indígenas estão fazendo a sua parte.
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Entrevista realizada por Tainá Aragão, jornalista do ISA, em 2022, via plataforma de viodeconferência
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