É mês de novembro e, na região do Alto Rio Negro (AM), dias quentes e de céu limpo se alternam com períodos de chuva e queda na temperatura. É tempo da constelação Aña ou Jararaca, quando começa o ano para os povos Tukano da região do rio Uaupés.
E foi esse período de recomeços o escolhido para o lançamento do volume 4 da Aru – Revista de Pesquisa Intercultural da Bacia do Rio Negro, Amazônia, no território indígena. Em 9 de novembro, os exemplares foram entregues aos pesquisadores indígenas na Ilha de Duraka, durante o II Encontro Geral dos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs).
Na próxima terça-feira (20/12) – ainda sob a influência da constelação Aña – a Aru tem novo lançamento, desta vez na loja Floresta no Centro, em São Paulo. Será lançado em conjunto Nuances, novo livro da bióloga e especialista em biodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA) Nurit Bensusan, com reflexões sobre a crise climática, a Amazônia, os povos indígenas e os limites da tecnologia.
Imagem
Quarto volume da Revista Aru discute o manejo do mundo indígena a partir da pesca|ISA
O evento contará com uma roda de conversa entre Aloisio Cabalzar, antropólogo, editor da revista Aru e coordenador-adjunto do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), Dagoberto Azevedo, indígena do povo Tukano, antropólogo, assessor e analista de pesquisa e desenvolvimento socioambiental do ISA e Nurit Bensusan.
A nova edição da Aru é lançada após uma pausa de três anos devido à emergência sanitária provocada pela pandemia de Covid-19. “Esse período desde a publicação do terceiro número da Aru foi de crises sobrepostas, um governo anti-indígena junto a uma pandemia global sem precedentes há mais de um século. Esse imbróglio não deixou de impactar o Rio Negro, mas a resistência também tem sido forte”, explica o texto introdutório.
Neste volume, o tema central é o manejo de peixes, atividade fundamental para os povos do Rio Negro. São textos que trazem abordagens diversas, envolvendo desde narrativas mitológicas, passando pelo sustento familiar e chegando às atividades da economia da floresta, como turismo pesqueiro de base comunitária.
Tendo como base o trabalho da rede dos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAS), projeto desenvolvido em conjunto pelo Instituto Socioambiental (ISA) e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), os textos da Aru permitem uma aproximação com o cotidiano dos povos que vivem na Amazônia.
Em seu relato, por exemplo, o pesquisador Armindo Brazão, do povo Baniwa, conta sobre as diferenças da pescaria de acordo com a estação na Bacia do Rio Içana.
“No inverno, fazemos pescaria dentro dos igapós, onde é muito difícil acampar: todas as margens foram para o fundo e não tem lugar para atar rede. Nesta época, você só consegue matar muito peixe à noite. De dia, é um pouco difícil pescar. De noite, só se mata jundiá, bagre, carauatai, traíra, daguiru,” conta.
“Diferentemente do verão, quando todas as praias que tinham ido para o fundo aparecem, e pescamos mais de dia outros tipos de peixes, como tucunaré, jacundá, traíra, pirandira e surubim. No verão fica fácil acampar na praia e é muito bom. O mato seca muito, faz muito calor e você pesca de dia no lago, porque aqueles igapós ficaram altos e os peixes começam a se juntar nos lagos. Assim funciona cada período e cada uma das paisagens, todas importantes para a vida dos povos Baniwa”, complementa.
Já Rogelino da Cruz Alves Azevedo, do povo Tukano, relata outras observações na região do Rio Tiquié. “A primeira desova dos peixes e dos peixinhos como piabinhas começa na enchente da primeira constelação, que se chama constelação de Tatu. A seguir, vem outras constelações, como Jacundá/Camarão. Então, os peixinhos que fizeram piracemas através dessas três constelações já começam fazer migração no começo da enchente da constelação da Onça.”
A edição também traz, em suas primeiras páginas, uma parte da história do Deus Preguiça, contada e ilustrada por Feliciano Lana, conhecedor-artista que o Rio Negro lamentavelmente perdeu para a Covid-19. São desenhos antigos, de 1974, fase inicial de seus trabalhos narrativos.
Cabalzar considera que a ampla abordagem sobre um tema específico – manejo de peixe – torna a Aru de interesse para um público diverso. Os textos trazem temas como emergência climática e pesquisas feitas por indígenas que guardam e praticam um conhecimento de extrema relevância num mundo que busca alternativas de sustentabilidade.
No dia do evento, os participantes poderão adquirir os quatro volumes da Revista Aru com desconto.
Serviço:
Lançamento do volume 4 da Aru – Revista de Pesquisa Intercultural da Bacia do Rio Negro, Amazônia e do livro Nuances Quando: 20/12 Horário: 19h Local: Loja Floresta no Centro - Av. São Luiz, 187, na 2º sobreloja da Galeria Metrópole - República, São Paulo Vendas: Disponíveis presencialmente na loja Floresta no Centro e on-line, pelo site loja.socioambiental.org, após o lançamento
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Em carta a Lula, mulheres yanomami pedem fim do garimpo: 'estamos com medo e muito preocupadas'
Mais de 40 lideranças se reuniram no XIII Encontro Anual de Mulheres Yanomami e descreveram os horrores provocados pelo crime organizado na Terra Indígena Yanomami
Mulheres Yanomami enviam carta a Lula e pedem o fim do garimpo ilegal em suas terras: 'queremos viver na floresta viva e bonita'|Juruna Yanomami/HAY
“Lula, nós mulheres Yanomami queremos enviar nossa palavra até você. Você está muito longe da Terra Indígena Yanomami, mas sabemos que você vai receber nossas palavras”.
Em carta ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, lideranças femininas reunidas no XIII Encontro Anual de Mulheres Yanomami pedem que o pesadelo provocado pela ação do garimpo ilegal na Terra Yanomami chegue ao fim.
No documento, enviado nesta segunda-feira (12/12), elas indicam a urgência da desintrusão do território, cuja invasão por dezenas de milhares de garimpeiros gera extrema violência – como ataques, estupros e o aliciamento de mulheres – e danos ao meio ambiente que comprometem a caça, a pesca e fazem proliferar doenças como a malária. As mulheres pedem também melhor estrutura de saúde e educação para as crianças.
“Queremos viver na floresta viva e bonita. Nós Yanomami queremos viver novamente na terra sadia, que é a verdadeira terra-floresta Yanomami. Nós queremos que nossas crianças continuem nascendo bem e fortes. Precisamos de sua ajuda para curar a floresta e também os animais que aqui vivem”, diz trecho da carta.
Com o aumento do garimpo, as doenças, os impactos ambientais e a violência dispararam no território indígena. As mulheres relatam que veem mudanças até mesmo nos animais, como nos peixes que parecem estar com “os olhos soltos”.
Segundo dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal (SMGI), o garimpo avança de forma desenfreada na Terra Indígena Yanomami. Ele ainda indica que, do início deste ano até agosto, a área destruída aumentou mais de 1.100 hectares. Desde dezembro de 2021, houve um aumento de 35% de devastação.
“A floresta está cheia de buracos. Tem muitos garimpeiros na nossa terra. Antigamente tinha água limpa, hoje está muito suja, os rios estão amarelos e já faz tempo que está assim. Estamos com muito medo do que pode acontecer, pois nossa terra está ruim”, relatam.
As mulheres Yanomami também são alvo de violências sexuais, com registros de casos de estupros, assédios e aliciamento de menores. “Quando o garimpo está próximo, nós mulheres ficamos muito preocupadas e andamos com muito medo. Os garimpeiros nos ameaçam e nós não queremos viver assim, queremos viver em paz. Os garimpeiros assediam as meninas e outros querem pagar serviços maritais. Eles querem fazer assim, mas nós mulheres não queremos que nossas filhas e netas sejam entregues e abusadas por essas pessoas”, afirmam.
Os abusos relatados por mulheres foram divulgados no relatório Yanomami Sob Ataque, lançado em abril com um diagnóstico sobre a Terra Indígena Yanomami no ano de 2021.
Encontro
No encontro, que aconteceu na Missão Catrimani e faz parte das celebrações dos 30 anos de demarcação da Terra Indígena Yanomami, 49 participantes de 15 comunidades discutiram ao longo de seis dias a participação feminina no movimento indígena, na política, na saúde e em pesquisas.
Imagem
Encontro de mulheres na Missão Catrimani fez parte das comemorações dos 30 anos da Terra Indígena Yanomami|Darisa Yanomami e Juruna Yanomami/HAY
O evento foi realizado pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) com apoio do Instituto Socioambiental (ISA) e da Diocese de Roraima.
No primeiro dia, as mulheres começaram a refletir sobre o papel feminino entre os Yanomami. Muitas delas relataram que suas filhas nasceram há 30 anos, com a demarcação do território e chegaram a um consenso: o protagonismo delas aumentou nas últimas três décadas.
“Durante os 30 anos de homologação, as mulheres Yanomami cresceram também como lideranças. Antes, no início da homologação, não tinha encontro das mulheres. Depois, com o tempo, surgiu”, disse a missionária da Diocese de Roraima Mary Agnes.
A ideia de criar encontros de mulheres Yanomami surgiu após algumas lideranças visitarem a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Lá, as mulheres Macuxi realizam eventos assim desde 1999. “As macuxi falaram: ‘façam também seus encontros’. Então pensei: essa palavra é boa, nós também podemos fazer. Eu não fui à toa na terra Macuxi”, disse a anfitriã do evento, Mariazinha Yanomami.
Desde então, os encontros de mulheres Yanomami têm sido espaços para discutir sobre a floresta, para dialogar entre comunidades diferentes e para comunicar problemas, como na saúde.
Comunicação, ciência e os espíritos mitológicos femininos
Apesar da falta de estrutura na saúde e da constante posição de defesa frente ao garimpo ilegal, as mulheres Yanomami também resistem com suas próprias produções. Elas atuam na comunicação fazendo filmes e em pesquisas científicas para entender o próprio ciclo menstrual e de onde vem o costume de produzir cestos.
Durante o primeiro dia de encontro, as Yanomami puderam assistir à prévia de um filme feito por três jovens comunicadoras sobre as típicas pinturas corporais. O material foi produzido durante uma oficina de cinema. Parte dos comunicadores Yanomami também fez as fotos do encontro de mulheres deste ano.
Com o fim da exibição do filme, as mulheres tiveram um pequeno intervalo para almoçar e refletir sobre as discussões iniciadas pela manhã. Seguindo com a programação, as Yanomami puderam falar sobre as próprias pesquisas.
A artista e pesquisadora Ehuana Yanomami investigou o ciclo menstrual das mulheres de seu povo. Ehuana também pesquisou sobre a cestaria, prática comum entre as mulheres Yanomami, e através de desenhos descobriu Mamoruna, um espírito feminino que ensinou a prática de cestaria às Yanomami.
Imagem
Angêla Yanomami e Ehuana Yanomami (à direita): artista e pesquisadora investigou o ciclo menstrual das mulheres de seu povo|Darisa Yanomami e Juruna Yanomami/HAY
“A princípio eu fiz pesquisa sobre menstruação, conversei com as moko, com as mais velhas. Essa pesquisa eu fiz com a ajuda de outra napë [não-indígena], a Ana Maria. A HAY [Hutukara Associação Yanomami] publicou num livro essa pesquisa, mas não foi traduzida. Como estava sozinha ainda não consegui traduzir, mas podemos traduzir agora. Eu fiz essa pesquisa porque queria saber como era antigamente a menstruação das mulheres”, contou Ehuana.
Com pesquisa, comunicação e os espíritos mitológicos femininos, as mulheres Yanomami começam a olhar para o futuro, pensando nos próximos 30 anos da Terra Indígena Yanomami. Como descrito na carta endereçada ao presidente eleito, os desafios urgentes estão em estruturar a saúde, oferecer educação e retirar os invasores do território para acabar com o garimpo ilegal.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Demarcação e segurança territorial são prioridades dos povos do Rio Negro na transição de governo
Marivelton Baré, diretor-presidente da Foirn e integrante do GT de Povos Originários, também apontou a necessidade de incentivo a políticas públicas na região
Comunidade Açaí-Paraná, Baixo Rio Uaupés, Rio Negro: povos indígenas da região definiram prioridades para equipe de transição do governo Lula|Fellipe Abreu/National Geographic
Demarcação de Terras Indígenas, reforço na segurança territorial – principalmente no combate às pressões do garimpo ilegal e do narcotráfico – e políticas públicas para a execução de propostas do Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto e Médio Rio Negro (PGTA Wasu), são as prioridades dos povos do Rio Negro, no Amazonas, levadas à equipe de transição do próximo governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
“Temos esse território estratégico que é o Rio Negro, que não se compõe só de Terras Indígenas, mas de Unidades de Conservação. Então, são necessárias políticas e ações positivas de incidência, de iniciativa sustentável para esse mosaico de áreas que tem aqui no Rio Negro”, afirmou Marivelton Barroso, do povo Baré, diretor-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e integrante do GT de Povos Originários.
Imagem
Diretor-presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré, fala durante abertura da assembleia na comunidade de Cartucho|Ana Amélia Hamdan/ISA
Nos dias 24 a 26 de novembro, cerca de dez dias após ser indicado para fazer da equipe de transição, Marivelton conduziu a XVI Assembleia Geral Ordinária da Foirn realizada na comunidade de Cartucho, às margens do Rio Negro, em Santa Isabel do Rio Negro (AM).
Durante o encontro, ele informou aos cerca de 150 indígenas presentes sobre sua atuação no GT. Ao final da assembleia, os indígenas divulgaram uma carta de apoio aos trabalhos de Marivelton, reforçando sua representatividade.
Segundo ele, a Foirn, assim como outras organizações e associações indígenas de todo o país, podem e devem encaminhar contribuições ao GT. “O que estou falando nessa assembleia é que nós, os povos do Rio Negro, também devemos levar propostas, temos demandas organizadas a passar para a equipe de transição”, explicou.
A Foirn atua num território de aproximadamente 23 milhões de hectares, numa das áreas mais preservadas da Amazônia, e representa povos de 23 etnias que vivem em áreas urbanas e em cerca de 750 comunidades e sítios nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel da Cachoeira e Barcelos. Entre os povos que vivem nessa região estão os Baré, Baniwa, Tukano, Yanomami, Desano, Wanano e Hupda.
Conforme o PGTA Wasu, da área de abrangência da federação, 65% são constituídos por Terras Indígenas reconhecidas e Unidades de Conservação – sendo 55% de TIs, 10% de UCs e 5% de áreas sobrepostas. Toda essa diversidade ambiental e cultural torna a região estratégica para qualquer política ambiental e que envolva a emergência climática.
Marivelton lembrou que os processos de demarcação estão paralisados há pelo menos seis anos, período que inclui os governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2018-2022).
Ele citou cinco processos pendentes na região, sendo que ao menos um deles – a da Terra Indígena Uneiuxi, em Santa Isabel do Rio Negro, com 551.983 hectares – entrou para a lista de 13 demarcações prioritárias indicadas pelo GT Povos Originários em documento preliminar encaminhado à equipe de transição, em 30 de novembro.
Em três casos paralisados, ainda falta a homologação, que é a última etapa do procedimento de demarcação, sendo os da Terra Indígena Cué-Cué Marabitanas, da Terra Indígena Jurubaxi-Téa e da Uneiuxi.
Estão pendentes ainda as Terras Indígenas Aracá-Padauari – entre Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro – e Baixo Rio Negro e Caurés, na região de Barcelos. Nesses dois últimos casos, segundo a Foirn, o próximo passo é a publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (Rcid).
Na área de abrangência da Foirn há ainda seis Terras Indígenas homologadas: Alto Rio Negro, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II, Rio Apapóris, Rio Téa, e Balaio.
Segurança territorial e políticas públicas
Quanto à questão do reforço na segurança territorial, Marivelton explica que São Gabriel da Cachoeira fica na fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia, o que demanda diálogo com o Ministério da Defesa.
As principais pressões, dependendo da área, vêm do narcotráfico, do garimpo e do turismo ilegal de pesca esportiva, esse último principalmente na região do Médio Rio Negro, que causam impacto ambiental e cultural, colocando em risco a sobrevivência das populações e seus modos de vida.
“É necessário o fortalecimento de proteção e fiscalização dos territórios. E essa não é só uma realidade do Rio Negro”, disse o diretor-presidente da Foirn.
Além dessas duas demandas – demarcação e segurança – que devem entrar na agenda prioritária do novo Governo Federal, o território do Rio Negro já tem uma série de propostas para implementação na região e que estão elencadas no PGTA Wasu em áreas como saúde, educação e economia da sociobiodiversidade.
Imagem
Terezinha Vargas Mota, do povo Piratapuya, coleta açaí preto. Políticas públicas devem respeitar modos de vida indígenas|Fellipe Abreu/National Geographic
As propostas foram elaboradas após processo de consulta às comunidades indígenas, num trabalho conjunto entre ISA e Foirn, e levam em conta os modos de vida dos povos da região.
Marivelton contou que está em discussão pelo GT Povos Originários a estruturação do Ministério dos Povos Originários – promessa de campanha de Lula – e os possíveis nomes para ocupar a pasta.
Até agora, o nome mais citado para assumir é o da deputada federal Joênia Wapichana (REDE-RR), mas ainda não há uma definição.
Os debates vão além e buscam meios de criar condições para que os órgãos públicos que atuam com os povos indígenas possam, de fato, voltar a funcionar. Entre eles estão a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
“A política nacional indigenista ficou durante esse período muito fragilizada, paralisada, invisibilizada, desconstruída. É necessário recompô-la”, defendeu Marivelton.
Além disso, o GT vem conduzindo um processo apelidado de “revogaço”, que consiste em produzir um levantamento de todos os atos que precisam ser revogados para o andamento das políticas indigenistas e proteção dos territórios indígenas.
O relatório final deve ser elaborado até 11 de dezembro.
Questionamentos
Logo após o anúncio de que o diretor-presidente da Foirn faria parte do GT de Povos Originários, a liderança indígena passou a ser alvo de questionamentos sobre sua representatividade. Parte do Setorial Nacional de Assuntos Indígenas do Partido dos Trabalhadores (PT) questionou sua legitimidade para compor o grupo.
Em seguida, a liderança indígena do Rio Negro teve o apoio – por meio de notas oficiais – das principais organizações indígenas do país, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
Durante a XVI Assembleia Geral Ordinária da Foirn, em Cartucho, Marivelton recebeu também o apoio dos povos indígenas que representa.
“Acreditamos ser legítimo que o setorial do PT busque assento no GT de Transição para assuntos indígenas, mas jamais iremos tolerar ataques que afrontam e deslegitimam o trabalho das nossas lideranças e do movimento indígena no Rio Negro, em especial nesse caso ao dirigente maior da Foirn, que desenvolve ações em defesa direitos indígenas, reconhecida em nosso território, a nível nacional e internacional”, diz a nota.
Liderança jovem, Marivelton está em seu segundo mandato, tendo sido reeleito em novembro de 2020, com representantes do território do Alto e Médio Rio Negro.
“A Foirn não representa um município. Ela representa um território e um coletivo de povos como estatutariamente é garantido. Essa representatividade pode incomodar. Há um longo trabalho que deve ser feito em colaboração. Esse convite foi feito à Foirn, da qual sou o atual presidente”, ponderou.
GT de Povos Originários
Os nomes dos integrantes do GT de Povos Originários foram divulgados pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, em 16 de novembro. No dia seguinte, a Apib reivindicou a inclusão de mais cinco nomes.
Os membros do grupo são:
- Benki Piyãko, representante político e xamânico do povo Ashaninka
- Célia Xakriabá, professora e ativista indígena do povo Xakriabá, eleita deputada federal por Minas Gerais
- Davi Kopenawa Yanomami: presidente da Hutukara Associação Yanomami
- João Pedro Gonçalves da Costa, ex-senador pelo Amazonas e ex-presidente da Funai
- Joênia Wapichana, primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal, em 2018
- Juliana Cardoso, deputada federal eleita (PT-SP)
- Marcio Meira, ex-presidente da Funai
- Marivelton Baré, presidente da Foirn
- Sônia Guajajara, líder indígena e deputada federal eleita por São Paulo
- Tapi Yawalapiti, líder e cacique do povo Yawalapiti da região do Alto Xingu, na Terra Indígena do Xingu
- Kleber Karipuna e Eunice Kerexu, coordenadores executivos da Apib
- Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib
- Yssô Truká e Weibe Tapeba, lideranças de base da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme)
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Indígenas do Rio Negro compartilham cultura e saberes com novo museu em Berlim
Humboldt Forum é inaugurado com reflexões sobre saques de objetos no período colonial e desafio de romper com esses modelos
Ana Amélia Hamdan
- Jornalista do ISA
Juliana Lins - Bolsista da Fundação Alexander von Humboldt
Sair de comunidades indígenas na floresta Amazônica, passar pelos rios Tiquié, Uaupés e Negro até a cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM), começar ali as viagens de avião, com escalas em Manaus, São Paulo e Zurique, até finalmente aterrizar em Berlim.
Esse foi o trajeto de Damião Amaral Barbosa, do povo Yebamasã, e de Rogelino da Cruz Alves Azevedo, Tukano, que passaram dez dias em Berlim, em setembro, para a inauguração do mais novo museu e centro cultural da cidade, o Humboldt Forum.
O novo espaço traz a proposta de ser um museu mais “pé no chão”, conectado com os povos indígenas que produziram suas coleções.
Imagem
Imagem
Damião Barbosa explica o calendário anual do Rio Tiquié e fala sobre os artefatos do Rio Negro no Humboldt Forum 📷 Danilo Parra
Damião e Rogelino são moradores de comunidades situadas no Alto Rio Negro, mais especificamente no Rio Tiquié, próximas à fronteira com a Colômbia. Falantes de makuna e tukano, respectivamente, eles são Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas), constituindo com seus colegas um grupo de quase 50.
Eles realizam pesquisas em suas comunidades sobre o meio ambiente e sobre como manejar seus recursos e ciclos, de acordo com conhecimentos acumulados ao longo de muitas gerações vivendo nessa região da Amazônia. São agentes do manejo do mundo, o que inclui também curar as épocas do ano para que as estações passem no tempo certo, sem doenças ou infortúnios, e traduzem suas observações e práticas em registros escritos diariamente e outros materiais textuais, orais e artísticos.
A dupla rionegrina se juntou com representantes de várias partes do mundo, e para além dos encontros com as coleções, foi porta-voz para falar das parcerias com o Humboldt Forum.
Imagem
Rogelino mostra banco tukano para ministra alemã Claudia Roth, com tradução de Andrea Sholz | Divulgação/Humboldt Forum
Além de Rogelino e Damião, havia indígenas de comunidades dos lados colombiano e venezuelano do Rio Negro e também representantes e parceiros da América do Norte, África e Índia e Papua Nova Guiné na semana de inauguração do museu.
Uma das visitantes foi a Ministra da Cultura alemã Claudia Roth, que conversou com Damião e Rogelino sobre artefatos como o banco tukano. No espaço expositivo da Amazônia, a dupla também mostrou o trabalho que faz de descrição dos ciclos anuais, com desenhos e a relação com os objetos rituais lá expostos.
No mesmo setor, houve ainda apresentações de Diana Guzman e Orlando Villegas, dos povos Desana e Kotiria, respectivamente, vindos do Vaupés colombiano, e dos Ye’kwana do Alto Rio Caura, que produziram um vídeo sobre uma narrativa mítica e também expuseram um mapa detalhado de seu território na Venezuela, próximo da fronteira com o Brasil.
A jornada dos Aimas à Alemanha tem paralelo com outra viagem, ocorrida há mais de um século, e em direção oposta, protagonizada pelo etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg. Em dois anos pelo Alto Rio Negro, Koch-Grünberg seguiu aprendendo sobre a vida nas comunidades e, sempre que possível, adquiriu artefatos, que levou, em sua maioria, para o Museu de Etnologia de Berlim.
Imagem
Theodor Koch-Grünberg no rio Tiquié, 1904 | Familienarchiv Koch-Grünberg
Além da coleção, publicou vários livros e textos, ricamente ilustrados, com as informações reunidas nessa viagem. Esse material foi em grande medida preservado e inspirou uma parceria entre o Museu de Etnologia de Berlim e aqueles que vivem hoje na região.
Se as guerras mundiais, e posteriormente a Guerra Fria e o Muro de Berlim destruíram e dividiram a Alemanha, os povos do Rio Negro também não tiveram paz ao longo do século 20. Foram alvo de muita violência e pressão, principalmente pelos missionários salesianos, alguns deles fugidos da guerra na Europa. Reprimiram sua cultura, arquitetura, rituais, língua, impondo de forma insistente suas próprias crenças e modos de viver.
Parte dessa cultura pode ser encontrada no Museu de Etnologia, em Berlim. Além de sua significativa coleção do Rio Negro, possui coleções de várias outras regiões do mundo, maiores ainda quando somadas àquelas do Museu de Arte Asiática. É esse acervo, procedente das Américas, África, Ásia e Oceania, que formará as exposições do Humboldt Forum.
Rogelino Tukano, que esteve pela primeira vez no museu, disse ficar impressionado com o acervo. Porém, ao ver guardados os adornos, instrumentos musicais sagrados e utensílios de seu povo e de outras etnias do Rio Negro, sentiu-se triste de observar “algo que era dos nossos ancestrais”. “Eu vi que lá está bem guardado. Mas para nós é a cultura viva, continuamos vivendo”, disse.
Se quer os objetos de volta? Rogelino acha que não. “O que ficou lá é deles. Agora temos muita coisa viva em nossas comunidades.”
Ao final, ele considerou positiva a sua primeira viagem à Europa. “Cumprimentaram bem e receberam bem. Tudo novidade. Eu gostei muito. Senti frio e achei as pessoas muito altas, mais altas do que nós, o trânsito diferente também. As pessoas não andam devagarzinho, andam correndo para pegar o metrô, o trem. O metrô é para baixo. Nós rimos muito”, relata.
Já para Damião Yebamasã, esta foi a terceira visita à Alemanha. Na primeira vez, ele pôde ver o acervo de objetos indígenas que está guardado no museu, e na segunda, participar da projeção do calendário astronômico-ecológico-ritual na fachada do Humboldt Forum, em uma de suas pré-inaugurações.
“Indígenas de outros lugares, dos Estados Unidos falaram também que têm a cultura de observar as constelações, que têm história. Eles queriam muito conversar com a gente para entender o que começa primeiro e qual a última constelação,” contou, sobre o encontro com povos da América do Norte. “Queriam saber mais em detalhes de cada constelação, as histórias e o tempo para preparar ritual de dança ou às vezes dabucuri (rituais de oferta de alimentos)”.
Outra semelhança foi a interferência religiosa na cultura indígena, como relatado por representantes do povo Haida, do Canadá. “Muitos esqueceram da cultura, perderam a cultura por causa dos religiosos. Tem algumas coisas que aconteceram no Rio Negro e que ocorreram em outros lugares do mundo”, reflete.
Imagem
Imagem
Saguão e pátio interno do Humboldt Forum 📷 Divulgação/Humboldt Forum
Damião e Rogelino também visitaram o Jardim Botânico. Após o passeio veio a constatação de que os colonizadores levaram embora mais que os objetos indígenas: levaram também árvores. Na estufa para plantas, os indígenas encontraram manivas e até a pimenta – alimento valioso no Rio Negro.
“Parecia que o Amazonas estava lá”, diz Damião. “Levaram os adornos e as plantas também. Até o carpi, que usamos nos rituais aqui, está lá também. Mas a gente já se fechou um pouco para não explicar e revelar tudo para eles”, sublinha.
Polêmicas e colaboração
O dilema dos museus etnográficos contemporâneos é justamente justificar sua relevância num mundo que mudou muito desde o colecionismo imperialista que inspirou a constituição dessas instituições, há mais de um século. Apesar de situações de exploração ainda se perpetuarem, os museus em geral buscam inovar, atualizar sua função e restabelecer conexões colaborativas, indo além de sua mera exibição para o público europeu.
Mas essa não é uma pretensão fácil de colocar em prática. Se a viagem de Koch-Grünberg ao noroeste amazônico foi amistosa e a aquisição de sua coleção foi feita à base de trocas, essa não foi a prática em outras regiões do globo. Em partes da África e da Papua Nova Guiné, coleções foram reunidas em campanhas militares, através de saques.
Imagem
"Sem consentimento, sem objeto": exposição ressalta impasses no acervo do HF |Juliana Lins/Fundação Alexander von Humboldt
Essa herança maldita fica patente no HF. Partes do que será sua exposição permanente, por exemplo, ainda estão propositalmente vazias, seja porque não houve consultas ou colaborações suficientes aos povos que as produziram, seja para evitar que o viés colonial não se reproduza de novas formas - uma vez que ainda são insuficientes as pesquisas sobre como foram adquiridos os pertences culturais, numa perspectiva pós-colonial.
Na área reservada a coleções provenientes da Tanzânia, ex-colônia alemã, em lugar de artefatos, encontram-se poucas fotos e vários textos chamando a atenção para os impasses em torno desse acervo. “Embora reivindique-se que os pertences do Museu de Etnologia de Berlim representem culturas ’tradicionais’, o que eles realmente fazem é reproduzir a falsa imagem europeia, colonialista e racista de sociedades a-históricas e imutáveis. Coisas que se enquadravam neste estereótipo não foram incluídas no acervo do museu”, lê-se.
São recorrentes ali as críticas ao forte viés eurocêntrico, muito comum na montagem das exposições, a persistência de uma visão de fora, mesmo que modernizada, e de como poderia haver a participação efetiva dos parceiros não-europeus contemporâneos. “Os arquivos são depósitos de testemunhos do passado. A seleção do material e a forma como é organizado refletem, entre outros, visões particulares do mundo e relações de poder. Mas quem decide quais histórias relembrar e quais ignorar? Que arquivos são reconhecidos na Europa e quais são considerados irrelevantes?”, questiona outro texto.
Em reconhecimento a esse passado colonial das coleções, e a partir de um esforço de se fazer diferente, as novas exibições privilegiam iniciativas colaborativas, que buscam estar em permanente construção.
Segundo Andrea Scholz, curadora da exposição da Amazônia, que anima a colaboração do museu com os povos do Rio Negro, “estas exposições seriam impensáveis sem o conhecimento e o apoio de pessoas de todo o mundo”.
O fechamento do seminário interno em que participaram Damião e Rogelino, e que antecedeu à inauguração final do Humboldt Forum, se deu com uma carta-manifesto sobre como o HF deve atuar, em que foi colocado que “os chamados ‘objetos’ ou ‘itens de exposição’ não devem ser reduzidos a meros artefatos, mas entendidos como Bens Culturais, que transmitem relações entre pessoas, localidades, práticas culturais e artísticas, relacionando o passado, o presente e o futuro. A guarda dos Bens Culturais implica cuidado e proteção de seus territórios e habitats conectados”.
Os participantes internacionais do seminário também propuseram que o museu atue como uma embaixada indígena, com um espaço físico e recursos; também foi proposta uma conferência sobre questões como Restituição e Repatriação. Dignidade, continuidade e transparência foram valores que guiaram essa carta manifesto, disponível aqui.
Imagem
Participação da equipe brasileira no seminário internacional antes da inauguração do Humboldt Forum |Danilo Parra
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Organizações indígenas cobram investigação sobre ataque a tiros que matou mulher Yanomami em Boa Vista (RR)
Em nota, Hutukara Associação Yanomami afirma que caso, ocorrido no dia 12/11, precisa ser tratado como crime de ódio
A Hutukara Associação Yanomami cobrou que as autoridades investiguem as circunstâncias e os responsáveis pelo ataque a tiros a um grupo de indígenas Yanomami que matou uma mulher e deixou um homem ferido. O caso é extremamente incomum em Boa Vista e ocorreu em local público, no bairro São Vicente, próximo ao centro da capital.
Conforme declarações da Polícia Militar, duas pessoas que estavam em bicicletas fizeram disparos e fugiram em seguida. No local, foram encontradas cápsulas de calibre 9 milímetros. Os cerca de 30 indígenas estavam reunidos na Feira do Produtor, um local comum de estadia dos Yanomami quando estão de passagem pela cidade.
Para a Hutukara, o caso precisa ser investigado como um crime de ódio. Crimes de ódio são aqueles onde há uma violência intencional, física ou não, direcionada contra um indivíduo ou grupo motivado por preconceitos e discriminação em razão de características como raça, origem, religião ou etnia.
“A presença do grupo de Yanomami que foi alvo de ataque na cidade tem sido constante motivo de queixas preconceituosas contra os mesmos, ignorando não só a situação de vulnerabilidade a que ficam sujetos quando estão na cidade como também alimentam a discriminação contra os indígenas em razão de suas particularidades culturais e modos de vida”, diz a Hutukara na nota.
O grupo que sofreu o ataque vive na região do Ajarani, onde os Yanomami sofreram contato forçado com não-indígenas durante a abertura da Perimetral Norte, que ocorreu durante a Ditadura Militar e antes da demarcação da Terra Indígena Yanomami, em 1992.
Segundo a nota da Hutukara, o projeto de infraestrutura levou à morte uma parcela significativa da população que vivia naquela região, bem como desestruturou as comunidades e os mecanismos de controle social. Uma Ação Civil Pública, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), reconheceu a responsabilidade do Estado pela situação em que os indígenas de Ajarani foram deixados.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) também pediu investigação para descobrir quem mandou executar o ataque. Nessa segunda-feira (14/11), o CIR protocolou ofícios na Polícia Federal, no MPF e no Grupo de Atuação Especial de Minorias e Direitos Humanos.
Por meio das redes sociais, a deputada federal Joenia Wapichana (REDE-RR) afirmou que pedirá investigação por parte da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.
Diante do ataque ao grupo de indígenas Yanomami na Feira do Produtor, em Boa Vista, ocorrido ontem, quando desconhecidos atiraram contra os indígenas, deixando uma mulher morta e um ferido, solicitarei ao MJ, PF e a CDHM da Câmara, apuração e providências imediatas.
Comunicadores da floresta: Davi Kopenawa recebe em sua comunidade aprendizes da Terra Indígena Yanomami para oficina|Fabrício Araújo/ISA
Treze comunicadores de quatro comunidades da Terra Indígena Yanomami se reuniram na casa do xamã Davi Kopenawa, na comunidade Watorikɨ, Terra Indígena Yanomami, para aprender a fazer cinema. Uma oficina – ministrada por cineastas, indígenas e antropólogos – ensinou ao longo de 15 dias os participantes a contar as histórias da floresta.
Os comunicadores, com idades entre 13 e 38 anos, aprenderam a manusear equipamentos, técnicas, elaboração de roteiro e storyboard, além de movimentação de câmeras e edição de imagens.
Todas as manhãs, o grupo acordava ao redor das 6h, seguia para o banho no rio e café da manhã. Pouco antes das 08h30, horário de início das atividades, os alunos se reuniam na sala de aula construída com troncos de árvores e com vista para a Serra dos Ventos (ou Watorikɨ, em Yanomami).
O clima mesclava o entusiasmo dos comunicadores com a neblina que apareceu todas as manhãs em razão das chuvas na região do Demini. No primeiro dia, os jovens contaram o que costumam assistir: partidas de futebol, reportagens, filmes e documentários sobre povos indígenas.
No segundo e terceiro dias, os professores apresentaram técnicas de filmagem e incentivaram os comunicadores a pôr as mãos na massa. Eles gravaram nas trilhas da floresta, no rio em que tomam banho, no xapono (local em que vivem e dormem os Yanomami) e até no Posto de Saúde Indígena.
Depois de uma pausa para o almoço e descanso, todos se reuniam na sala de aula por volta das 14h30 para exibir as filmagens e pontuar o que precisava ser aperfeiçoado. Nestes momentos, as crianças e os mais velhos também aproximavam com curiosidade para observar o desempenho dos alunos.
Colocando sonhos em prática
A antropóloga Marília Senlle coordenou o processo a pedido da Hutukara Associação Yanomami, que desenvolve a formação de comunicadores da maior Terra Indígena do país. Para Senlle, a oficina prepara os indígenas para pôr sonhos em prática e ainda pode ser uma ferramenta para preservar os conhecimentos Yanomami.
“Produzir material audiovisual é uma possibilidade deles estarem falando por si mesmos. Também, é uma oportunidade para conversar com os mais velhos, aprender os conhecimentos e difundir entre eles”, explicou.
Imagem
Da esquerda para a direita: Edmar Yanomami, Otílio Yanomami, Juruna Yanomami e Pedro Portella durante oficina de cinema|Fabrício Araújo/ISA
Esta é a quarta oficina de comunicação desenvolvida pela Hutukara na Terra Indígena Yanomami, e o cinema foi escolhido como foco a pedido dos próprios indígenas. As duas primeiras ocorreram em 2018 e 2019 com ensino de fotografia e produção de boletins de áudio em Boa Vista, na sede da Hutukara.
No ano seguinte, houve uma pausa em razão da pandemia de Covid-19 e o retorno da formação aconteceu em dezembro de 2021, com a elaboração de produções audiovisuais a partir de celulares.
Desta vez, os comunicadores tiveram acesso a quatro câmeras profissionais com microfones, tripés e fones de ouvido, além de manuais de edição em Yanomae (uma das língua da família Yanomami) e três computadores para edição. Como todo o processo de formação e a produção dos vídeos ocorreu na floresta, o projeto também contemplou dois kits com placas solares para manutenção dos equipamentos.
“Foi escolhido o Watorikɨ porque é a casa do Davi e também porque é uma oficina audiovisual com a intenção de produzir filmes. Assim, era muito mais interessante poder elaborar a linguagem e as dinâmicas a partir do cotidiano que eles vivem, do que estar na cidade e ter que produzir conteúdos alheios à vivência deles”, afirmou Senlle.
Durante o dia, os alunos recebiam os conteúdos, faziam exercícios práticos e produziam partes de seus curtas. De noite, depois do banho e do jantar, um projetor no Xapono passava filmes, como Macunaíma. Durante as exibições, bancos eram arrastados para perto do projetor e toda a comunidade se reunia diante do ponto que, junto com as fogueiras, iluminava o local.
Todas as atividades foram supervisionadas por Davi. Ele disse estar feliz com a evolução dos comunicadores e que deseja ver filmes que fortaleçam a cultura Yanomami e circulando nos celulares dos jovens. “Os Yanomami aprenderam a fazer filmes entre nós. A nossa luta vai poder ser documentada e mostrada para os não-indígenas para que reconheçam a nossa cultura, o nosso jeito de pensar e toda a nossa luta. Esses filmes serão como flechas para atingir corações com a nossa mensagem”, pontuou.
Imagem
Davi Kopenawa: "Nossa luta vai poder ser documentada. Filmes serão como flechas para atingir corações com nossa mensagem"|Fabrício Araújo/ISA
Técnicas e aprendizados
Da região do Demini, onde está localizada a comunidade Watorikɨ, seis comunicadores participaram da oficina: Edmar Yanomami, Aida Yanomami, Kátia Yanomami, Severo Yanomami, Lindomar Yanomami e Otílio Yanomami. Deles, somente a jovem Aida e Edmar, de 38 anos, que também é xamã, já haviam participado de outras oficinas.
“Eu gostei de aprender a filmar. Vou poder fazer vídeos e até filmes. Depois, eu quero divulgar a minha cultura com isso”, contou Edmar. Ele, com outros garotos da região, trabalhou em um curta sobre as brincadeiras das crianças Yanomami.
Já Aida e Kátia se juntaram a Darysa Yanomami, jovem de 28 anos que vive na região da Missão Catrimani. Darysa participou de todas as oficinas para comunicadores feitas pela Hutukara e integra um grupo de pesquisadores Yanomami. O trio escolheu produzir um curta sobre as tradicionais pinturas com urucum.
“Eu gostei muito de participar desta oficina. A professora Louise ensinou muito bem. Agora, vou poder tentar usar mais a câmera depois dessa oficina. Tudo isso me deixou muito feliz, eu aprendi muito”, comemorou Darysa.
A professora citada por Darysa é a cineasta Louise Botikay, de 44 anos, que trabalha como diretora de fotografia em produções convencionais e produz filmes autorais como Um Filme para Ehuana, produção feita na própria comunidade Watorikɨ em 2017.
“Essa oficina foi um sonho realizado. Eu comecei a pensar nela da última vez em que estive em Watorikɨ. Conversei com o Davi e decidimos que seria importante fazer este trabalho com os comunicadores, então escrevi o projeto junto ao Pedro”, contou Botikay.
O documentarista e antropólogo Pedro Portella, de 47 anos, foi a dupla de Louise para escrever o projeto de oficina. Ele costuma documentar povos indígenas e tem parceria de longa data com Morzaniel Irawari Yanomami, de 42 anos, que é reconhecido como o primeiro cineasta Yanomami e também participou das aulas de cinema para os comunicadores indígenas.
Imagem
Morzaniel Irawari Yanomami, considerado o primeiro cineasta Yanomami, participou da oficina para comunicadores no Demini|Fabrício Araújo/ISA
A inspiração de Morzaniel para trabalhar com o audiovisual foram jornalistas que chegavam à Terra Indígena Yanomami para entrevistar Davi. Os comunicadores explicavam que era uma forma de documentar a história, defender os direitos indígenas e apresentar os Yanomami ao mundo.
“Depois, eu tive vontade de fazer as minhas próprias imagens, para mostrar a nossa realidade de indígenas para indígenas. Ensinei um pouco sobre cinema para estes jovens Yanomami e fico muito emocionado, feliz, porque eles vão continuar fazendo esse trabalho e mandar nossa mensagem para os não-indígenas”, afirmou.
A dupla trabalhou nas duas produções mais conhecidas de Morzaniel, que são A Casa dos Espíritos e Curadores da Floresta, ambas exibidas dentro e fora do país.
Imagem
Da esquerda para a direita: Juruna Yanomami e Kennedy Yanomami durante atividade realizada na oficina de cinema no Demini|Fabrício Araújo/ISA
Assim como Morzaniel, o comunicador Juruna Maxapino Yanomami, de 30 anos, se inspira no jornalismo e sonha em um dia ser reconhecido como repórter na Terra Indígena Yanomami.
Juruna vive na região da Missão Catrimani e participou de todas as oficinas para comunicadores da Hutukara. Ele se juntou a Kennedy Yaripeiro Yanomami, que vive na região do Toototobi, para produzir um filme sobre as plantações feitas por indígenas.
“Os professores ensinam bem, eu aprendi muita coisa sobre foco e enquadramento. Eu gosto de fazer filmes e escolhi como tema o roçado para falar sobre a saúde na Terra Yanomami”, disse Juruna.
A intenção da dupla era explorar a saúde por meio da nutrição mostrando o trabalho que homens e mulheres Yanomami fazem para manter uma produção sustentável na comunidade Watorikɨ.
Para integrar os Yanomami com os Ye’kwana, que também vivem na Terra Indígena Yanomami, um trio da região de Awaris também foi ao Demini para participar da oficina. Jair Magalhães Rocha, Cleber Rui Magalhães Rodrigues e Misael Lopes foram os escolhidos.
Imagem
Jair Magalhães Rocha, um dos três comunicadores Ye'kwana da região de Awaris que participou da oficina no Demini|Fabrício Araújo/ISA
Conforme explica Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara, o critério de escolha dos três jovens foi apenas a vontade demonstrada por eles quando a oficina foi anunciada.
Morzaniel confirma: "perguntamos quem tinha interesse. Não usamos nenhum critério além da vontade de fazer. Esse trio se manifestou e os trouxemos à Terra Indígena Yanomami. Eles fizeram um filme sobre a experiência deles e escutaram bastante o Davi”.
Jair Magalhães Rocha, de 22 anos, contou que esta foi a sua segunda oficina e o que o motivou foi porque gosta de comunicação. Ele disse ainda que deseja se tornar jornalista ou cineasta. Assim como os outros dois Ye’kwana, esta foi a sua primeira vez em uma comunidade do povo Yanomami.
“Eu gostei dos montes, da serra e dessa comunidade, que eu só tinha visto por foto. Por isso, decidimos fazer um curta sobre a nossa experiência aqui, contando como chegamos e também uma entrevista com o Davi”, explicou.
A previsão é que todos os filmes produzidos pelos 13 comunicadores indígenas durante a oficina sejam disponibilizados em um canal da Hutukara Associação Yanomami.
De produção em produção, os Yanomami e Ye'kwana vão construindo memória de suas experiências e histórias e registrando a partir de suas perspectivas as "flechas" que contam ao mundo a realidade da Terra Indígena Yanomami.
Na floresta, comunicação e resistência caminham juntas.
A oficina contou com o apoio do Projeto Rumos Comunicadores Indígenas, financiado pelo Itaú Cultural, além do investimento da Rainforest Foundation Noruega e da União Europeia.
Da esquerda para a direita: Darisa Yanomami, Edimar Yanomami e Otílio Yanomami participam da oficina de cinema|Fabrício Araújo/ISA
Da esquerda para a direita: Severo Yanomami, Lindomar Yanomami, Otílio Yanomami, Morzaniel Yanomami e Pedro Portella gravam cenas para curta-metragem|Fabrício Araújo/ISA
Da esquerda para a direita: Marília Senlle, Maurício Ye’Kwana, Kleber Magalhães Rocha e Jair Magalhães Rocha em aula sobre técnicas de cinema|Fabrício Araújo/ISA
Da esquerda para a direita: Pedro Portella, Otílio Yanomami, Louise Botikay e Jair Magalhães Rocha, alunos e professores|Fabrício Araújo/ISA
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Indígenas do Rio Negro esperam participação ativa em novo governo Lula
Presidente eleito teve 80,63% dos votos em São Gabriel da Cachoeira; liderança aposta na reconstrução dos direitos dos povos indígenas
População de São Gabriel da Cachoeira celebra vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições presidenciais|Raquel Uendi
São Gabriel da Cachoeira (AM), município mais indígena do Brasil, elegeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com 80,63% dos votos. O resultado é reflexo do descontentamento com a atual gestão de Jair Bolsonaro, marcada pelo aumento da pressão do garimpo, do turismo ilegal e das denúncias de tráfico, além das ameaças aos direitos constitucionais dos povos indígenas.
Em outras duas cidades da região, Lula também ganhou com ampla maioria: em Santa Isabel do Rio Negro, com 73,94% dos votos, e em Barcelos, 65,02%. Os três municípios ficam no Alto e Médio Rio Negro, em uma das regiões mais preservadas da Amazônia – com aproximadamente 750 comunidades indígenas de povos de 23 etnias.
Diretor-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Barroso, do povo Baré, comemorou o resultado. Ele projeta uma reconstrução da política de direitos indígenas e o protagonismo dos povos indígenas no novo governo, com a ocupação de cargos de liderança no prometido Ministério dos Povos Indígenas ou Ministério dos Povos Originários e na Fundação Nacional do Índio (Funai).
Imagem
Marivelton Baré aposta na reconstrução do que foi perdido nos anos de governo Bolsonaro|Juliana Radler/ISA
“Primeiro, viva a nossa democracia. Agora temos democraticamente o presidente Lula eleito e a gente espera que, a partir do momento que ele assumir, possa buscar reconstruir toda uma política de direitos para os povos indígenas do Brasil que foi brutalmente acabada e desconstruída ao longo desse governo Bolsonaro”, disse Marivelton Baré.
“As pastas que são para trabalhar com os povos indígenas [devem ser ocupadas pelos povos indígenas] nessa construção participativa, seja no controle social, seja na implementação das ações, seja no protagonismo da política de gestão ambiental e territorial das terras indígenas”, afirmou.
Marivelton Baré também cobrou da nova gestão o respeito aos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) – instrumento da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Pngati) – e aos protocolos de consulta. A região do rio Negro tem PGTAs elaborados e publicados, com propostas de gestão do território para áreas de economia da floresta, saúde, educação, cultura, entre outras.
O protocolo de consulta do Rio Negro deve ser concluído em assembleia geral da Foirn no final de novembro. Ao longo de 2022, foram realizados encontros regionais para garantir ampla participação na elaboração do documento.
“É necessário ainda que seja garantido o modelo de organização indígena, a partir das federações, das associações, das articulações e coordenações da Amazônia. A gente espera uma reconstrução de tudo aquilo que perdemos. Temos a expectativa de que o nosso presidente eleito vai fazer história para o protagonismo indígena no país”, desejou Marivelton Baré.
Em seu primeiro pronunciamento após o anúncio do resultado, Lula disse que tem compromisso com povos indígenas e que seu governo vai lutar pelo desmatamento zero da Amazônia. “Queremos a pacificação ambiental”, afirmou o presidente eleito.
Em São Gabriel da Cachoeira, após o resultado da eleição, as ruas do centro e da orla foram tomadas por carreatas e celebrações. A eleição aconteceu em clima de tranquilidade.
A Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas fez a cobertura do primeiro e do segundo turno. A comunicadora Juliana Albuquerque, do povo Baré, anunciou pelo Instagram o resultado da eleição ao vivo.
Na cidade, Jair Bolsonaro (PL) obteve somente 19,36% (4.103) dos votos. Branco ou nulo totalizaram 3,23%. Para governador, Eduardo Braga (MDB) recebeu 13.490 votos (64,69%) e o candidato à reeleição Wilson Lima (UNIÃO) 7.364 (35,31%). Lima venceu o pleito e governará o Amazonas por mais quatro anos.
A abstenção foi de 31,55% no segundo turno, ligeiramente menor que a do primeiro (32,4%).
Obstáculos para a votação
Dificuldades para votar foram enfrentadas por indígenas em todo o país, o que levou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) a enviar um ofício ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e aos Tribunais Regionais Eleitorais requerendo oferecimento amplo de transportes e denunciando crimes eleitorais.
Em 18 de outubro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, decidiu que prefeituras e empresas de ônibus poderiam oferecer transporte público gratuito no segundo turno das eleições. No dia 30 de outubro, a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira ofertou ônibus gratuitos em algumas regiões da cidade.
Rosana Marques, do povo Baniwa, usou ônibus gratuito para chegar ao local de votação, na Escola Estadual Sagrada Família. Da comunidade de Santo Antônio, na estrada de Cucuí, ela contou aos comunicadores Juliana Albuquerque e Adelson Ribeiro que, se não fosse a gratuidade, não teria conseguido votar.
No entanto, o comunicador Moisés Baniwa relatou que moradores de comunidades localizadas na BR-307, na estrada de Camanaus, não contaram com a gratuidade. “Eu soube que muita gente da minha comunidade não foi votar”, relatou ele, que mora em Itacoatiara Mirim, comunidade indígena próxima ao centro urbano.
Outra questão que levou à alta abstenção foi o horário da votação, que este ano foi unificado em todo o país, não havendo diferenciação devido ao fuso. Dessa forma, na região do Alto Rio Negro a eleição aconteceu das 7h às 16h, o que confundiu os eleitores – principalmente no primeiro turno.
Dona Elza Tenório, do povo Tukano, que não conseguiu votar no dia 2 de outubro por ter chegado meia hora depois do horário – buscando preservar a filha com deficiência do sol quente –, votou cedo no domingo. Ela deu entrevista à Rede Wayuri e contou que estava feliz por poder exercer sua cidadania.
Em São Gabriel da Cachoeira, a eleição tem características complexas: são 33 pontos de votação, sendo cinco na área urbana e 28 em comunidades em meio à floresta. Dos 32.106 eleitores, 17.725 (55,2%) votam na área urbana, com 14.381 (44,7%) estando em comunidades. Entre as comunidades, Iauaretê (2.764 eleitores) e Pari-Cachoeira (1.028) são as que têm maior número de eleitores.
Para levar as urnas até esses pontos é necessária uma logística que envolve veículos, barcos e aeronaves. Nem todas as comunidades recebem urnas e muitos indígenas precisam sair dos locais onde moram para ir votar.
Os Yanomami que vivem na comunidade Maiá, no território Yanomami no Amazonas, votam em São Gabriel da Cachoeira. Para chegar à cidade, viajaram seis dias em voadeiras – pequenas embarcações a motor –, relatou Pauderney Rodrigues, filho da liderança Luciano Nascimento Figueiredo.
No segundo turno, cerca de 200 indígenas dessa comunidade saíram de suas casas para votar. Nessa época, o rio está mais seco, o que torna a viagem ainda mais demorada.
Imagem
Fila de eleitores na Escola Estadual Irmã Inês Penha; no segundo turno, as filas foram menores que as do primeiro|Mauro Pedrosa, povo Tukano/Rede Wayuri
Moradora de São Gabriel, Janete Farias, do povo Baniwa, votou na Escola Irmã Inês Penha. No primeiro turno enfrentou longas filas, chegou às 12h e saiu às 15h30. “Fiquei muito tempo em pé, outras pessoas cansaram de esperar. Agora vim mais cedo e levei cerca de 40 minutos até conseguir dar meu voto”, contou As longas filas registradas no primeiro turno também foram apontadas como fator da alta abstenção.
Ela é natural de Tapira Ponta, comunidade na bacia do Içana, e conta que há muitas dificuldades para votar no interior. Algumas comunidades recebem as urnas eletrônicas e os moradores de outras localidades precisam se deslocar por conta própria para dar seu voto. “Em Tapira Ponta não tem urna. Quem está lá tem que seguir até a Tunuí-Cachoeira”, conta.
Rede de comunicadores
A Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas, que conta com cerca de 50 integrantes na região do Alto e Médio Rio Negro, vem abordando desde julho as eleições no programa de rádio Papo da Maloca, que vai ao ar semanalmente na FM local.
Em seguida, o programa é editado e fica disponível como o podcast Wayuri nas principais plataformas de áudio.
No primeiro e no segundo turnos, os comunicadores que atuam em São Gabriel fizeram a cobertura ao vivo pelo Instagram. Já aqueles que estavam no território encaminharam fotos e informações da votação em suas comunidades.
Imagem
Comunicadores indígenas da Rede Wayuri entrevistam Elza Tenório, do povo Tukano, que não conseguiu votar no primeiro turno|Ana Amélia Hamdan/ISA
A professora Auxiliadora Fernandes, do povo Dâw, enviou foto de indígenas atravessando o Rio Negro de barco – entre a comunidade Waruá e a orla principal da cidade – para exercer a cidadania.Entre o primeiro e o segundo turno, a Rede Wayuri atuou para estimular o voto, produzindo cards e vídeos em português e nas línguas indígenas Nheengatu, Baniwa, Tukano e Yanomami.
Participaram da cobertura da eleição acompanhando a votação dos indígenas na área urbana os comunicadores Juliana Albuquerque, do povo Baré; Cláudia Ferraz, do povo Wanano, Adelson Ribeiro, do povo Tukano, Emerson Chaves de Oliveira, do povo Baré, Mauro Pedrosa, do povo Tukano, e Álvaro Socot, do povo Hupda.
O comunicador Ray Baniwa faz parte da rede desde a sua criação e atuou à distância. Os trabalhos foram feitos com o apoio da fotógrafa e web designer Raquel Uendi. A Rede Wayuri é vinculada à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e tem parceria e assessoria do Instituto Socioambiental (ISA).
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Rede de produtores indígenas expande laços e experiências com a economia da floresta no Rio Negro
Encontro em São Gabriel da Cachoeira (AM) com representantes de oito estados da Amazônia Brasileira fortaleceu negócios da sociobiodiversidade
Uma rede de produtores indígenas do Rio Negro (AM) vai, pouco a pouco, tornando-se visível e fortalecida.
Na abertura do I Encontro Geral de Produtores Indígenas do Rio Negro, que aconteceu em São Gabriel da Cachoeira (AM) entre os dias 10 e 14 de outubro, indígenas reunidos em um círculo usaram um novelo para representar o momento. Enquanto o fio se desenrolava, cada um se apresentava e falava sobre sua produção, mostrando a diversidade de povos e produções da região.
Imagem
Imagem
Dinâmica no início do encontro na Casa do Saber, em São Gabriel da Cachoeira (AM), formou uma rede entre os povos do Rio Negro e suas produções|Ana Amélia Hamdan/ISA
Durante a dinâmica, os trançados de tucum das mulheres Baré e Piratapuya foram se ligando à cestaria Yanomami, confeccionada com cipó e fungo përisi. A cerâmica Tukano se uniu à Baniwa, sem deixar de lado os produtos da roça e os utensílios ancestrais usados nessas atividades, como as peneiras e abanos. O trançado dos aturás (cestos) Hupda encontrou sementes e colares trazidos por outros povos.
No início do encontro, a rede envolveu boa parte dos 23 povos que vive na região do Rio Negro e no dia seguinte se expandiu, contando também com aproximadamente 20 produtores indígenas de oito estados da Amazônia Brasileira, por meio de Intercâmbio de Cadeias de Valor da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), composta por 14 associações indígenas e indigenistas.
O I Encontro Geral de Produtores Indígenas do Rio Negro e o Intercâmbio de Cadeia de Valor da RCA foram promovidos na Maloca – Casa do Saber da Foirn pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) e a própria RCA.
Imagem
Feira foi realizada durante o I Encontro Geral de Produtores Indígenas do Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira|Ana Amélia Hamdan/ISA
Diretor-presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré, falou da riqueza da economia da floresta e do fortalecimento das cadeias de valor do Rio Negro, que geram renda preservando a floresta. Segundo ele, a estrutura do Departamento de Negócios da Sociobiodiversidade da Foirn vem se fortalecendo mesmo diante das pressões políticas que propõem modelos não sustentáveis dentro de Terras Indígenas.
Uma das principais pautas do encontro de produtores foi a assinatura do termo de pactuação política e acordo de cogestão da Wariró – Casa dos Produtores Indígenas do Rio Negro, que fica em São Gabriel da Cachoeira e comercializa os produtos da região.
O documento é um instrumento de consolidação de gestão de negócios de excelência, participativa, transparente, envolvendo os povos representados, funcionários, diretores da Foirn e a assessoria do ISA.
Para garantir a legitimidade dos processos, representantes das cinco coordenadorias da Foirn - Nadzoeri, Diawii, Caibrm, Caiarnx e Coidi (ver abaixo o significado das siglas) participaram do encontro, analisaram e aprovaram o acordo de cogestão em assembleia.
Imagem
Encontro é importante para o fortalecimento de laços com as bases, diz Luciane Lima, da Foirn|Ana Amélia Hamdan/ISA
Para a coordenadora do Departamento de Negócios da Sociobiodiversidade da Foirn, Luciane Lima, do povo Tariano, esse processo garante a transparência das decisões e aproxima os artesãos da Casa Wariró.
“O encontro de artesãos é muito importante para o fortalecimento dos laços com as bases. É importante ressaltar o papel das associações de base na economia da floresta”, disse.
Assessora em gestão de negócios indígenas do ISA, a economista Ana Letícia Pastore Trindade contou que a Wariró está em um processo de expansão, com geração de renda para os povos indígenas e sustentabilidade.
“Crescer é um desafio enorme, pois envolve respeito à floresta. A Wariró traz a proposta de comercializar com sustentabilidade financeira e ambiental. Não é possível aumentar a oferta com a degradação do equilíbrio ambiental. Então, a produção é ligada também às pesquisas interculturais, ao cuidado com a matéria-prima”, explicou.
Um dos indicadores desse crescimento é o aumento de 78% do número de artesãos que vendem produtos para a Wariró, passando de 60 no primeiro semestre de 2021 para 107 no mesmo período de 2022.
Entre 2021 e 2022, a Wariró fez compras no valor de quase R$ 260 mil. Os produtos mais vendidos foram a cestaria Yanomami, a cestaria de arumã do povo Baniwa, a cerâmica Tukano e a cerâmica Baniwa.
Os produtos indígenas são vendidos principalmente no Amazonas e também em São Paulo, Rio de Janeiro e no exterior.
Também foram apresentadas no encontro as experiências da Casa de Frutas, em Santa Isabel do Rio Negro, e de apoio ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). As ações, desenvolvidas em conjunto por Foirn e ISA, fortalecem a economia da floresta e, ao mesmo tempo, protegem o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN), registrado como patrimônio cultural imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
O encontro contou com a participação do assessor técnico do Projeto Cadeias de Valor do ISA em São Gabriel da Cachoeira, João Gabriel Raphaelli. Iniciativas desenvolvidas pelo ISA em Roraima foram compartilhadas pela engenheira de produção Amanda Latosinski, que trabalha com os povos Yanomami, Ye’kwana e Wapichana, e pela assessora técnica Stephany Caroline Rodrigues, que assessora o povo Wai Wai.
Supervisor comercial do ISA em São Paulo, Sérgio Marques falou sobre a experiência da loja do ISA, inaugurada na Galeria Metrópole, e que vende produtos da sociobiodiversidade de territórios onde a organização atua. Segundo ele, mais da metade dos produtos comercializados no espaço vem do Rio Negro. “A loja é um difusor de parcerias dentro do ISA”, destacou.
Cultura
Coordenador-adjunto do Programa Rio Negro do ISA, Aloisio Cabalzar falou sobre a importância e a riqueza cultural da economia da floresta, inclusive como forma de proteger a cultura dos povos do Rio Negro.
O líder indígena André Baniwa também compartilhou seus saberes no encontro de produtores, analisando que os índices mostrados pela Casa Wariró indicam que o fortalecimento dos negócios anda junto com a cultura. “As peças mais originais, como a cestaria Yanomami ou os aturás do povo Hupda, estão atraindo maior interesse. São peças que contam uma história”, detalhou.
Imagem
Produtos que contam história estão atraindo maior interesse dos consumidores, analisa André Baniwa|Ana Amélia Hamdan/ISA
Uma dessas histórias é contada pela artesã Verônica Ramos Pena, do povo Hupda, que mora na comunidade de Vila Fátima, no Rio Uaupés, e confecciona o tradicional aturá de seu povo. “A gente pega o cipó lá no mato. É muito perigoso entrar no mato, enfrentar cobra, aranha. E, para apanhar o cipó, a gente tem que dormir na floresta por causa da distância. Depois, queima o cipó lá na floresta mesmo e queima a mão”, relatou. Em seguida, a matéria-prima é levada para a comunidade, onde vai ser entrelaçada para se transformar em cestaria.
Vice-presidente da Associação de Mulheres Yanomami Kumirayoma (Amyk), Lídia Santos da Silva conta que, para dar início ao trabalho de confecção da cestaria Yanomami, é preciso paciência. Primeiro, para procurar o cipó. E também para achar uma boa quantidade de përisi, fungo utilizado na cestaria.
“Algumas vezes levamos os homens para tirar o cipó grande, que é o ambé. Depois voltamos para a comunidade para fazer o artesanato”, contou.
Vivendo em Iauaretê, no Uaupés, Dona Jacinta Araújo Alves, povo Desana, e seu marido Benjamim Antônio Montalvo Cardoso, Piratapuya, ajudaram a criar o Clube dos Casais para produção de artesanato e repasse de saberes aos mais jovens.
Todo domingo, o grupo – formado por cerca de 20 casais – se reúne para trabalhar e compartilhar conhecimentos.
Os homens trabalham com o arumã, fazendo tipitis, cumatás, abanos, peneiras e urutus. As mulheres trabalham com o tucum, porta-jóias, colares, brinco, novelos e bolsas.
Intercâmbio
Além das experiências do Rio Negro, os participantes do encontro de produtores puderam conhecer iniciativas de outros Estados da Amazônia Brasileira por meio de intercâmbio sobre cadeias de valores promovido pela RCA.
“A experiência entre diferentes territórios e realidades promove cooperação, aprendizado e construção conjunta”, afirmou Luis Donisete Benzi Grupioni, secretário executivo da RCA.
“Estamos dando os primeiros passos conhecendo as ações do Rio Negro, que tem experiência em cadeias produtivas diversificadas, com erros, acertos e desafios”, disse.
Assessora técnica da Secretaria Executiva da RCA, Patrícia de Almeida Zuppi destacou a importância do encontro entre os povos indígenas. “O intercâmbio no território é muito potente, pois a experiência compartilhada sai da linha narrativa e vai para a mão na massa.”
Uma das experiências desenvolvidas no Rio Negro é o turismo de pesca esportiva de base comunitária desenvolvido no Rio Marié. Integrantes da Foirn e da RCA foram até a comunidade de Tapuruquara Mirim, que beneficia 14 comunidades indígenas.
Imagem
Povo Tuyuka fez apresentação de dança tradicional durante o encontro de produtores em São Gabriel da Cachoeira|Ana Amélia Hamdan/ISA
Ianukula Kaiabi Suiá, presidente da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), em Mato Grosso, considerou a troca de experiências inspiradora. Ele ressaltou que os povos indígenas vêm passando por um momento de pressão política, o que pode dificultar a estruturação de cadeias produtivas da sociobiodiversidade.
Vindo do Oiapoque, no Amapá, Diemisom Sfair dos Santos, do povo Karipuna, mostrou a experiência do Empório Uasei, que quer dizer “açaí”. A iniciativa foi construída com o apoio do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepe). “A venda de açaí pelos indígenas era desordenada, com muitos atravessadores. Agora compramos o açaí e revendemos in natura ou batido no Empório Uasei, garantindo uma relação mais justa com os indígenas”, explicou.
Diemisom dos Santos trouxe a experiência da comercialização do açaí e levou para Oiapoque o exemplo de gestão da Wariró. Assim, as trocas entre os povos dos Estados da Amazônia mostram que as redes para fortalecimento dos negócios da sociobiodiversidade vão se expandindo.
* Organizações da Foirn
Nadzoeri (Organização Baniwa e Koripako), Diawii (Coordenadoria das Organizações Indígenas do Tiquié, Uaupés e Afluentes), Caibrm (Coordenadoria das Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro), Caiarnx (Coordenadoria das Associações Indígenas do Alto Rio Negro e Xié); e Coidi (Coordenadoria das Associações Indígenas de Iauaretê).
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
It's time to give back to the people who care for the forests
Public policy and the sensibility of productive sectors towards the issue are still a hiccup of recognition in the face of racism and the brutal appetite of those who want less forest, more monocultures and fast money at any cost
Deborah Lima
- Presidente do conselho diretor do ISA
Nature is the basis for the existence of human societies. There are no human societies if there is no suitable climate, fertile soil, clean oceans and so forth.
The hegemonic economy, however, was shaped by colonialism and a war against nature. Since the scientific revolution of the 17th century, part of humanity has sought at any cost to become master and mistress of the very nature on which it fundamentally depends for survival.
Imagem
Imagem
Deforestation, burning, mining, land grabbing and other aggressions against the forest and its people are taking us to a point of no return|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
We have reached a turning point in which the ruins of this war have been transformed into scorched earth by a denialist government that has pushed to the limit the idea that protected areas and the people who live in them — indigenous people, quilombolas, riverside-dwellers and traditional communities — are obstacles to the economic development of the country.
Despite everything, we have made progress with practical experiences in the relationship between these peoples and the markets (public, private, national, international), helping to strengthen a new economy that cannot be compared to subsidized monocultures, predatory and illegal activities, and synthetic products.
This economy is a contribution to a sustainable future and is already part of the daily life of indigenous peoples, quilombolas and traditional communities in their territories. It already is a circular economy. A bioeconomy. An agroecology, agroforestry. A regenerative economy. There already is bio-construction. There has been for centuries.
Imagem
Imagem
Indigenous people have practiced the care economy as a way of life for centuries and are the ones who protect the forests the most|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
This is an innovative model, practiced for millennia. Economies that, in addition to monetary results, care for both people and nature at the same time.
This model has enormous potential to be developed, as well as a didactic capacity to transform the future by putting people, life and diversity first. That is why we call them socio-biodiversity economies.
Strengthening, recognizing and valuing socio-biodiversity economies, however, involves a major transformation in the understanding that these populations and their territories are producers of knowledge, contributions and services that are fundamental for life on the planet.
Imagem
Imagem
Riverines of Xingu are an example of positive management of biodiversity, extracting Brazil nuts for fair marketing|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
A study published by ISA shows that these peoples and their economies are responsible, jointly, for the protection of one third of the forests in Brazil. In the last 35 years, Indigenous Lands alone have protected 20% of Brazil's national forests.
Studies in archaeology and landscape ecology show that landscape management, based on the lifestyles and culture of indigenous peoples and traditional communities, was and is responsible for the formation of environments in different Brazilian biomes, including the Amazon.
This landscape management is the foundation of Traditional Agricultural Systems, which have been transforming forest into forest for millennia, ensuring the reproduction of ecosystems. These are traditional practices of planting, gathering and extraction that generally sustain landscapes and have a very low environmental impact, especially when compared to other modes, such as monocultures.
Imagem
Imagem
With the Traditional Quilombola Agricultural System, communities in Vale do Ribeira (SP) feed those who need it most and strengthen family farming|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
Human practices of very low environmental impact not only enable greater diversification of forest plots but also the maintenance of the landscape itself, guaranteeing the continuity of the ecosystem services generated by it for society, such as biodiversity, maintenance of CO2 storage, water, pollination, among others.
Traditional peoples and communities largely view natural entities as agents endowed with intentionalities, and with whom relations must be established to achieve good management of the territory and social life itself.
As such, there is an evident need to advance the understanding of Payment for Environmental Services (PES), established by Law 14.119 of January 13, 2021.
Based on the interpretation of the law and the understanding of the relevance of the environmental contributions and services generated by the ways of life of indigenous peoples, quilombolas and traditional communities, we are proposing a complementary and specific definition for Socio-environmental Contributions and Services.
Imagem
Imagem
The Xingu Seeds Network, which operates in the Amazon and Cerrado, uses ancestral management practices to sow the forests of the future|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
Socio-environmental Contributions and Services are individual or collective activities/practices associated with the ways of life, knowledge, culture and landscape management of indigenous peoples and traditional communities in their territories, which favor the reproduction, recovery or improvement of ecosystem services, and which update and produce cultural diversity.
The recognition of these contributions and services by appropriate public policy is essential for strengthening sociobiodiversity economies and containing the advance of the hegemonic economic model over traditional territories, creating mechanisms to promote local ways of life.
The Food Purchase Program (PAA), the National School Meals Program (PNAE) and the Policy to Guarantee Minimum Prices for Sociobiodiversity Products (PGPM-Bio) are examples of public policies that, even with scarce resources, make it possible to create positive cycles.
Imagem
Imagem
The strengthening of socio-biodiversity economies and the knowledge of forest peoples is the key to stopping the destruction of the planet|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
At the same time, companies that pay attention to the wellbeing of communities and care for their territories have played an important role in fostering these economies, elevating traditional peoples and communities to the forefront and launching initiatives for fair benefit sharing.
Within the millenary and ancestral history of these peoples, however, public policy and the sensibility of productive sectors towards the issue are still a hiccup of recognition in the face of racism and the brutal appetite of those who want less forest, more monocultures and fast money at any cost.
Now is the time to innovate, with more prominence for communities in technological development and a fair distribution of benefits for joint work. To innovate with ways of recognising and valuing these peoples for the services they provide to the planet. And to innovate in guaranteeing and improving their rights, with public policies that promote their ways of living.
It is time to give back to these populations and learn from their way of life. It is time to care for health, life, the present and future. The future can be different.
Translator: Philip Somervell
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
É hora de retribuir os povos que cuidam das florestas
É quase nula a valorização das economias da sociobiodiversidade diante do racismo e do apetite brutal dos que querem menos floresta, mais monoculturas e dinheiro rápido a qualquer custo
Deborah Lima
- Presidente do conselho diretor do ISA
A natureza é a base para a existência das sociedades humanas. Não há sociedades humanas se não houver clima adequado, solos férteis, oceanos limpos e assim por diante.
A economia hegemônica, porém, foi moldada no colonialismo e em uma guerra contra a natureza. Desde a revolução científica, no século 17, parte da humanidade busca a qualquer custo tornar-se mestre e senhora da natureza da qual fundamentalmente depende para sobreviver.
Imagem
Imagem
Desmatamento, queimadas, garimpo, grilagem e outras agressões contra a floresta e seus povos estão nos levando a um ponto sem retorno|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
Chegamos a um ponto de inflexão em que as ruínas dessa guerra se transformaram em terra arrasada por um governo negacionista que levou ao limite a ideia de que áreas protegidas e os povos que vivem nelas - indígenas, quilombolas, ribeirinhos e comunidades tradicionais - são entraves para o desenvolvimento econômico do país.
Apesar de tudo, avançamos em experiências práticas na relação entre esses povos e os mercados (públicos, privados, nacionais, internacionais), contribuindo para fortalecer uma nova economia que não pode ser comparada a monoculturas subsidiadas, atividades predatórias e ilegais e produtos sintéticos.
Essa economia é uma contribuição para um futuro sustentável e já faz parte do dia a dia de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais em seus territórios. Já é economia circular. Bioeconomia. Agroecologia, agrofloresta. Economia regenerativa. Já tem bioconstrução. Há séculos.
Imagem
Imagem
Povos indígenas praticam a economia do cuidado como modo de vida há séculose são os maiores responsáveis pela preservação das florestas|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
Trata-se de um modelo inovador, praticado há milênios. Economias que, para além do resultado monetário, cuidam ao mesmo tempo das pessoas e da natureza.
Há a partir desse modelo um enorme potencial a ser desenvolvido, além da capacidade didática de transformar o futuro ao colocar em primeiro lugar as pessoas, a vida e a diversidade. Por isso, chamamos de economias da sociobiodiversidade.
Fortalecer, reconhecer e valorizar as economias da sociobiodiversidade, porém, passa por uma importante transformação no entendimento de que essas populações e seus territórios são produtores de conhecimento, contribuições e serviços fundamentais para a vida no planeta.
Imagem
Imagem
Ribeirinhos do Xingu são exemplo do manejo positivo da biodiversidade, extraindo a castanha-do-Parápara a comercialização justa|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
Estudo publicado pelo ISA mostrou que esses povos e suas economias são responsáveis, juntos, pela proteção de um terço das florestas no Brasil. Nos últimos 35 anos, somente as Terras Indígenas protegem 20% do total de florestas nacionais.
Os estudos de arqueologia e ecologia da paisagem mostram que os manejos da paisagem, baseados nos modos de vida e na cultura de povos indígenas e comunidades tradicionais, foram e são responsáveis pela formação de ambientes de diferentes biomas brasileiros, inclusive a Amazônia.
Esse manejo da paisagem fundamenta os Sistemas Agrícolas Tradicionais, que têm transformado floresta em floresta por milênios, garantindo a reprodução dos ecossistemas. São práticas tradicionais de plantio, coleta e extrativismo que, no geral, mantêm as paisagens com baixíssimo impacto ambiental, especialmente quando comparado a outros modos, como as monoculturas.
Práticas humanas de baixíssimo impacto ambiental não só possibilitam maior diversificação de parcelas de floresta como a própria manutenção da paisagem, também garantindo a continuidade dos serviços ecossistêmicos gerados por ela para a sociedade, como biodiversidade, manutenção do estoque de CO2, água, polinização, entre outras.
Perspectivas de povos e comunidades tradicionais, em grande parte, enxergam entes da natureza como agentes dotados de intencionalidades e com os quais é preciso estabelecer relações para alcançar uma boa gestão do território e da própria vida social.
Com isso, fica evidente a necessidade de avançar sobre o entendimento de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), instituído pela Lei 14.119 de 13 de janeiro de 2021.
Com base na interpretação da lei e no entendimento da relevância das contribuições e serviços ambientais gerados pelos modos de vida de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, estamos propondo uma definição complementar e específica para Contribuições e Serviços Socioambientais.
Imagem
Imagem
A Rede de Sementes do Xingu, que atua na Amazônia e no Cerrado, utiliza práticas ancestrais de manejo para semear as florestas do futuro|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
Contribuições e Serviços Socioambientais são atividades/práticas individuais ou coletivas associadas aos modos de vida, conhecimento, cultura e manejo da paisagem de povos indígenas e comunidades tradicionais em seus territórios, que favorecem a reprodução, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos, e que atualizam e produzem a diversidade cultural.
O reconhecimento dessas contribuições e serviços por políticas públicas adequadas é fundamental para fortalecer as economias da sociobiodiversidade e conter o avanço do modelo econômico hegemônico sobre os territórios tradicionais, criando mecanismos de promoção dos modos de vida locais.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio) são exemplos de políticas públicas que, mesmo com recursos escassos, possibilitam criar ciclos positivos.
Imagem
Imagem
O fortalecimento das economias da sociobiodiversidade e do conhecimento dos povos da floresta é a chave para deter a destruição do planeta|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA
Ao mesmo tempo, empresas atentas ao bem-viver das comunidades e ao cuidado com os territórios têm assumido um papel importante ao fomentar essas economias, alçando ao protagonismo povos e comunidades tradicionais e dando início a experiências de justa repartição de benefícios.
Na história milenar e ancestral desses povos, porém, as políticas públicas e a sensibilidade de setores produtivos para o tema ainda são um soluço de valorização diante do racismo e do apetite brutal dos que querem menos floresta, mais monoculturas e dinheiro rápido a qualquer custo.
Agora é hora de inovar, com mais protagonismo das comunidades no desenvolvimento tecnológico e com a justa repartição de benefícios pelo trabalho conjunto. Inovar com formas de reconhecer e valorizar esses povos pelos serviços prestados ao planeta. E inovar na garantia e aprimoramento de seus direitos, com políticas públicas que promovam seus modos de vida.
É hora de retribuir essas populações e aprender com seu jeito de viver. É hora de cuidar de saúde, vida, presente e futuro. O futuro pode ser outro.