Ruralistas, oposição e parte da base governista derrubam vetos de Lula ao ‘marco temporal’
Ministério e movimento social já avisaram que vão entrar com ações contra nova lei. Diferentemente da questão indígena, governo consegue manter maioria dos vetos sobre Lei da Mata Atlântica
A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e a deputada Célia Xakriabá protestam contra o 'marco temporal' na sessão do Congresso | Geraldo Magela / Agência Senado
Entre os retrocessos do texto da nova lei, que será agora promulgada, está o chamado “marco temporal” das demarcações das Terras Indígenas (TIs). De acordo com a tese ruralista, só teriam direito às suas terras as comunidades indígenas que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
A interpretação ignora as expulsões e violências cometidas contra essas populações, em especial nas últimas décadas. Na prática, pode inviabilizar grande parte das demarcações, por questionamentos administrativos ou judiciais.
A votação foi adiada por várias semanas. Diante de uma correlação de forças desfavorável e das promessas feitas por Lula de defender os direitos dos povos originários, o governo vinha tentando evitar uma derrota que expõe mais uma vez a fragilidade de sua articulação política e de sua base parlamentar.
Apesar dos líderes governistas terem defendido os vetos, parte da base posicionou-se contra eles, garantindo sua derrubada (veja como votou cada deputado e cada senador). O caso mais notório é o do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD-MT), que se licenciou do cargo, reassumiu o mandato de senador e votou contra o veto.
Integrantes do movimento indígena e de organizações da sociedade civil tem acusado a articulação política do Planalto de usar as pautas socioambientais, como o "marco temporal", como moeda de troca para aprovar outros projetos, que seriam mais prioritários, em especial da agenda econômica.
A votação também desafia decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou inconstitucional a tese ruralista, por 9 votos contra 2, em setembro. Na mesma decisão, os ministros da Corte também fixaram teses complementares sobre a demarcação, a exemplo da indenização pela terra nua para ocupantes não indígenas.
No mesmo dia em que o julgamento foi concluído, o Senado aprovou o PL 2.903, agora Lei 14.701, numa reação conservadora ao que oposição e ruralistas consideram ser uma usurpação pelo STF da competência dos parlamentares de decidir sobre esse e outros temas, como a descriminalização do aborto e do porte de drogas. Duas semanas depois, o presidente Lula vetou cerca de dois terços do projeto, inclusive justificando parte dos vetos com a decisão do Supremo.
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Parlamentares de esquerda protestam contra a derrubada do veto ao 'marco temporal' na sessão do Congresso|Jefferson Rudy|Agência Senado
Votação não é ponto final
O resultado da votação pode ser considerado uma derrota para os povos originários, os movimentos sociais e as organizações de defesa dos seus direitos, mas não é o ponto final dessa história. Pouco depois do final da votação no Congresso, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) informaram que devem entrar com ações contra o texto final da lei no STF. A referência para a análise dessas possíveis ações será o julgamento encerrado em setembro.
"A decisão do Congresso Nacional desrespeita a Constituição, os povos indígenas e o futuro do Brasil. Vamos acionar a Advocacia Geral da União para dar entrada no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, para garantirmos o cumprimento da decisão já tomada pela alta corte", disse a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.
“É um absurdo que, enquanto o mundo reconhece os povos indígenas e seus territórios como uma das alternativas para conter a crise climática [por barrarem o desmatamento], o Congresso Nacional age totalmente na contramão daquilo que precisa ser feito para conter essa crise global”, reforçou a ministra.
“A Apib reforça que direitos não se negociam e que a aprovação do Marco Temporal é ilegal”, apontou a entidade, em nota nas redes sociais. “A principal Conferência, que trata sobre mudanças climáticas, a COP 28, foi encerrada nesta semana e o Congresso Nacional mais uma vez reforça seu compromisso com a morte”, completou.
Ao longo do dia, cerca de 300 indígenas, de diferentes regiões do país, protestaram em defesa dos vetos do lado de fora da Câmara. Deputados da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Indígenas e de partidos de esquerda discursaram na manifestação. Após a votação, os manifestantes foram para a frente do Supremo Tribunal Federal (STF). Lideranças da Apib também prometeram uma onda de mobilizações contra a nova lei.
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Indígenas manifestam-se contra 'marco temporal' do lado de fora da Câmara dos Deputados|@tukumapataxo/Apib
'Visão reacionária'
“O Congresso acaba de aprovar o maior retrocesso aos direitos indígenas desde a Constituinte. É lamentável que o parlamento esteja dominado por uma visão reacionária e equivocada, que quer eliminar os direitos territoriais indígenas por meio de leis inconstitucionais”, critica a advogada do ISA Juliana de Paula Batista. “Agora, a questão volta para o STF, que deve reiterar o seu compromisso com a defesa dos direitos das minorias”, pontua.
Líderes ruralistas, como o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Pedro Lupion (PP-PR), sinalizaram que pretendem reagir a uma nova decisão do STF contra o “marco temporal” por meio da aprovação de uma proposta que incorpore a tese à Constituição. O placar da votação desta quinta indica que seria possível alcançar os votos necessários: três quintos dos votos dos deputados (308) e dos senadores (49).
Respondendo ao alerta de alguns governistas de que o tema deve ir parar mais uma vez no STF, o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), reforçou o discurso de confronto com a Corte. “Nós somos um Parlamento livre e não devemos aceitar e tolerar amarras e mordaças”, disse. “Ou nós nos afirmamos e nos damos ao respeito ou ninguém nos respeitará”, completou.
“Os parlamentares ruralistas parecem não compreender que os poderes organizam-se em um sistema de freios e contrapesos. É papel do STF fazer a defesa dos direitos das minorias, mesmo quando as maiorias não gostam”, contrapõe Juliana Batista.
Pontos mantidos na lei
Além do “marco temporal”, na votação foram derrubados os vetos e, portanto, incorporados na nova lei: a possibilidade de que qualquer interessado, a qualquer momento, possa questionar o procedimento demarcatório; a garantia à indenização pela “terra nua” a posseiros invasores de territórios indígenas; a garantia de que eles não sejam retirados da área enquanto não for realizado o pagamento da indenização; a permissão para implantação de intervenções militares e alguns empreendimentos e projeto econômicos, como estradas, sem consulta prévia às comunidades indígenas envolvidas.
Por outro lado, mediante um acordo entre governo e oposição, foram mantidos os vetos a dispositivos que permitiam o contato forçado com comunidades indígenas isoladas; a anulação de “reservas indígenas”, sob o argumento da “descaracterização cultural” da comunidade indígena; o cultivo de transgênicos nas TIs.
O texto original da MP alterava o novo Código Florestal (nº 12.651/2012) para que os produtores rurais pudessem ter até um ano após a “notificação” (individual) do órgão ambiental estadual para ingressar no chamado Programa de Regularização Ambiental (PRA). O problema é que, segundo a nova legislação, não há um limite de tempo para que essa notificação seja feita pelo governo.
A Câmara dos Deputados incorporou na MP uma série de outras alterações no Código Florestal e também na Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006) para retirar restrições ao desmatamento, beneficiar quem cometeu crimes ambientais e enfraquecer áreas protegidas. Várias dessas propostas foram consideradas “jabutis”, ou seja, dispositivos que não têm nenhuma relação com a redação original da MP. O presidente Lula vetou a imensa maioria das modificações.
Na votação desta quinta, foi derrubado apenas o veto ao dispositivo que afirmava que, a partir da assinatura do termo de compromisso do PRA e durante sua vigência, o produtor rural não poderá ter financiamentos negados por causa das infrações ambientais objeto desse termo. Portanto, a proposta será incorporada à legislação.
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Terras Indígenas com presença de isolados seguem sofrendo pressão de invasores
Boletim Sirad-I, do ISA, detectou mais de 300 hectares degradados entre maio e agosto de 2023
Registro de 2020 de área de monocultura ao lado da Terra Indígena Uru-Eu-Wau Wau, próximo à entrada da base Bananeira da Funai, no município de Seringueiras (RO)|Bruno Kelly/Amazônia Real
Entre maio e agosto de 2023 foram registrados 300,98 hectares degradados no interior das Terras Indígenas (TIs) com presença de povos isolados, segundo o último Boletim Sirad-I, lançado nesta quinta (30/11).
Na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (RO), que é habitada por pelo menos cinco grupos isolados e outros quatro povos indígenas, nem mesmo a sobreposição do Parque Nacional (Parna) Pacaás Novos, uma Unidade de Conservação de proteção integral, tem impedido a ação dos invasores.
No total, segundo dados do sistema Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a TI já perdeu 20.770 hectares de floresta. Somente em 2023, o monitoramento do Sirad-I já detectou 90,6 hectares de desmatamento na Terra Indígena.
Na Terra Indígena Piripkura (MT), onde já foram desmatados 168,4 hectares desde janeiro, a expansão de áreas previamente desmatadas traz um indicativo da intenção de transformar o território em pastagem.
O período também foi marcado pela abertura de ramais rodoviários muito próximos às Terras Indígenas, como na TI Araribóia (MA), e do aumento da incidência de focos do calor com destaques para a TI Mundurucu (PA).
Foram detectados 2.266 focos de calor incidentes em 13 Terras Indígenas, número 86,5% maior que o verificado no mesmo período do ano passado.
A TI Mundurucu concentrou os casos mais críticos de queimadas e teve 346 focos de calor detectados, quase o dobro do que no mesmo período de 2022.
Na Amazônia, onde incêndios naturais são raros, o aumento indica a potencial presença de invasores e acende um alerta para o impacto das mudanças climáticas nas Terras Indígenas com presença de povos isolados.
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Dos bugreiros à barragem, a saga do povo Laklãnõ-Xokleng por seu território
Mesmo com vitória no STF sobre o Marco Temporal, o povo Laklãnõ-Xokleng enfrenta os impactos de uma enchente sem precedentes, enquanto luta pela demarcação de suas terras
Assentamento construído às margens da barragem norte na Terra Indígena Laklãnõ|Anderson Coelho/ISA
Na noite de 13 de outubro de 2023, o povo Laklãnõ-Xokleng enfrentou uma tragédia em seu território: uma enchente sem precedentes, causada pelo fechamento, com uso de força policial, das comportas do reservatório da Barragem Norte. A ordem foi dada pelo governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL).
Mais de 300 pessoas tiveram de ser levadas às pressas para uma área segura, próxima à barragem, onde armaram barracas enquanto viam suas casas sendo invadidas pelas águas e suas comunidades isoladas – uma saga que se repete desde a década de 1970, a cada nova enchente.
Dessa vez, os Xokleng que resistiram ao fechamento das comportas também foram alvo de uma truculenta operação da Polícia Militar de Santa Catarina, com tiros, gás de pimenta e bombas de efeito moral. A operação é objeto de uma apuração por parte do Ministério Público Federal (MPF). Uma das vítimas foi Anergo Camlem, indígena de 29 anos, que passou por cirurgia para retirar um projétil alojado no braço.
“O que fizeram e estão fazendo com o nosso povo é desumano, humilhante. Lembro como se fosse hoje, do meu pai sentado com o prefeito e os secretários falando que essa barragem era um absurdo, que iria acabar com a vida dos índios”, rememora Iraci Nunc-Nfôonro, 66, da aldeia Toldo, que ficou totalmente isolada. Sem banheiro ou água encanada, como todos os Xokleng acampados emergencialmente na área próxima à barragem – que forma a aldeia Plipatól - Iraci espera a água baixar sob uma barraca de lona.
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Os Xokleng estão em um processo de migração dentro da própria Terra Indígena|Anderson Coelho/ISA
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Criança correndo em assentamento construído às margens da barragem norte na Terra Indígena Laklãnõ|Anderson Coelho/ISA
No dia 7 de outubro, a Justiça Federal já havia determinado que o governo do Estado atendesse as comunidades indígenas com cestas básicas, água potável, barcos, atendimento de saúde e um plano de construção de moradias emergenciais, mas segundo a reportagem do ISA constatou em campo, as medidas não foram cumpridas.
Segundo os indígenas, na aldeia Figueira todas as moradias estão condenadas e 30 famílias ficaram desabrigadas. De acordo com os relatos, quando o rio enche a terra fica mole, e quando baixa provoca erosões - um processo que se repete a cada cheia e que coloca novas áreas em risco.
As cestas básicas que chegaram estavam incompletas. Mães relataram falta de fraldas para crianças e de roupas. Renato Covika Camlem, 57, diz que a comunidade está sendo engolida pelo rio e que as autoridades não tomam providências. “Todas as nossas casas estão condenadas, uma parte do prédio da escola desabou e as áreas de roça e para criação de animais estão debaixo d’água”, afirmou ao ISA Covika Camlem.
Nas últimas semanas, a missão da vice-cacica da TI, Fabiana Patte dos Santos, 40, tem sido a busca para assistência das famílias que estão no abrigo improvisado na área da barragem. “Eu sei que é muito importante a nossa luta a longo prazo, para demarcação definitiva de nossas terras, mas também precisamos garantir a dignidade para essas famílias hoje. Não é possível que elas continuem nessa situação, sem banheiro, sem acesso à água potável”, afirma.
Os indígenas ainda reclamam da falta de assistência à saúde e que o polo de atendimento da Saúde Indígena está fora do território, inacessível a muitos deles.
A barragem estava há mais de 14 anos sem operação, sem qualquer tipo de manutenção e, já em 2021, um laudo apontava falhas e problemas na estrutura, expondo não apenas o descaso com os indígenas, mas também o descumprimento de uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA), que determina a inspeção regular de barragens no Brasil.
Além disso, o governo catarinense enviou laudos antigos e documentos que não foram aceitos pela Justiça para assegurar que a estrutura da barragem estava em boas condições. Apenas um barco foi disponibilizado para atender todas as comunidades, o que, segundo os indígenas, era insuficiente para a demanda, e que só operava em horário comercial, das 8h às 18h. O envio de cestas básicas e água potável também não estava regular, e em muitas comunidades faltavam itens básicos para alimentação.
Novas informações foram solicitadas ao governo do estado, mas segundo a assessoria do MPF, ainda não foram respondidas. A reportagem também questionou o governo catarinense sobre a execução do plano de emergência e sobre as indenizações ao povo Xokleng por causa dos impactos da barragem.
Em resposta, o governo de Santa Catarina afirma que “busca o diálogo com a comunidade indígena para retomar as operações na Barragem Norte”, que se comprometeu em realizar ações na comunidade para voltar a operar a estrutura e que tem cumprido com ações emergenciais.
No entanto, esta semana, o governador Jorginho Mello (PL) recusou uma visita da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, para tratar da crise humanitária vivida pelos Xokleng. Mais de 300 pessoas na comunidade indígenas denunciam estarem sem acesso à água potável e sem instalações sanitárias no abrigo onde estão alojadas.
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Chegada de mantimentos à aldeia Palmeira, local em que grande parte das casas foi condenada pela Defesa Civil por conta de erosão devido ao forte fluxo das águas da barragem|Anderson Coelho/ISA
Governo federal aprova Reserva Indígena
Para mitigar os impactos da tragédia, o governo federal aprovou ainda em outubro a Reserva Indígena Barragem Norte, com 860 hectares de extensão, onde os Xokleng encontraram um local seguro para se abrigar da enchente.
Em visita ao território indígena, a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, ouvia as súplicas do povo: “Eu vim aqui trazer minha solidariedade e trazer respostas para essas famílias que aguardam há anos a regularização desta área da União. É uma área para que eles possam se manter, erguerem moradia e terem acesso à políticas públicas”, explicou Joenia, em entrevista ao ISA.
Antes do ato de Joenia, a área da barragem estava em poder do extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), órgão que construiu a barragem e transferiu sua operação ao governo catarinense. O local é um dos poucos no território que está seguro durante os períodos de chuvas e cheias e agora se torna oficialmente de usufruto exclusivo dos indígenas.
Setembrino Camlem, que é cacique-geral da área, comemora a medida: “Foi bom garantir essa área para nossas comunidades, porque a verdade é que nós já estamos aqui há anos nesse movimento. Agora podemos ficar mais tranquilos e os parentes podem construir suas casas sem os riscos de novas enchentes. É um passo importante para o reconhecimento da nossa luta em busca da demarcação de todo nosso território”.
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Setembrino Camlém, cacique geral da Terra Indígena Laklãnõ, local em que fica localizado o vertedouro da barragem norte|Anderson Coelho/ISA
Perseguição histórica
Originários de uma vasta região que hoje compreende os estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, os Xokleng enfrentam uma histórica perseguição desde o século XIX, quando o processo de colonização europeia tomou forma na ocupação de terras no sul do Brasil, e que deixou esse povo constrito entre as montanhas do Vale do Rio Itajaí-açu. Conforme consta no laudo de perícia da Justiça no processo de demarcação da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, o território xokleng é ocupado há “pelo menos cinco mil anos”.
A demarcação definitiva dos 37 mil hectares que compõem o seu território tradicional é, hoje, a principal demanda dos Laklãnõ-Xokleng na luta por direitos territoriais. O caso da TI Ibirama-La Klãnõ, na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, ganhou holofotes com o julgamento da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF).
No último dia 21 de setembro, o plenário da corte decidiu em favor dos Xokleng, negando que a demarcação como Terra Indígena possa ser condicionada à presença na terra na data da promulgação da Constituição Federal – afastando o principal argumento do recurso movido pelo órgão ambiental de Santa Catarina, a Fatma.
A decisão do Supremo abriu caminho para a demarcação definitiva da TI Ibirama-La Klãnõ, esperança desse povo em favor de um modo de vida diferente de tudo que passaram até aqui pelas mãos dos não indígenas.
Uma trajetória que teve início com a violenta matança promovida pelo governo e colonizadores no final do século XIX e início do século XX, quando bugreiros foram contratados para dizimar os indígenas, então pejorativamente chamados de "bugres". Para escapar da morte, os indígenas ficaram quase 40 anos confinados em isolamento forçado, resultado de uma iniciativa do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1914 .
Os ciclos de violência nunca cessaram, e até hoje se atualizam, como é o caso da Barragem Norte, que impacta a comunidade indígena desde a década de 1970.
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Igreja católica desativada e assentamento construído às margens da barragem norte|Anderson Coelho/ISA
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Indígena em abrigo improvisado na aldeia Plipatol, perto da barragem norte na Terra Indígena Laklãnõ|Anderson Coelho/ISA
“Eu acredito que a barragem é um simbolismo, é uma forma de o Estado demonstrar seu controle sobre nossas vidas, é uma forma de apagamento da nossa história e uma forma de violência. Quando ela foi construída aqui, de uma maneira mais indireta, foi pensando em nos matar”, desabafa Txulunh Gakran, 26, liderança da Juventude Xokleng, uma organização que busca a reafirmação do direito originário dos Laklãnõ-Xokleng.
“A barragem representa um projeto de assassinato a longo prazo. Como nos dias de hoje não é mais permitido contratar os bugreiros, de certa forma, ela está permanentemente nos matando aos poucos”, afirma Txulunh. “Nós estamos sofrendo diretamente essa guerra que está travada sobre a questão climática há muito mais tempo do que as pessoas imaginam. Se fala muito que populações serão afetadas e nós estamos vivendo isso agora. E a gente precisou se adaptar a todas essas violências e mudanças que o estado impôs para nossas vidas”, reclama a jovem.
Iraci foi cacica-geral de 2000 a 2002. Na época, denunciou na tribuna da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina que as terras dos povos indígenas estavam sendo vendidas e cobrou respostas sobre a demarcação do território. Essa é uma luta que Iraci herdou dos mais velhos, que também tinham no sangue — e na memória — a força dos parentes que resistiram desde os primeiros contatos com os colonizadores.
“Gostaria de fazer aqui um apelo ao Sr. Ministro para que assine aquele documento que ele tem na sua mesa e dê a terra do Xokleng, pois é dele desde 1926! Alguém a vendeu e nós não temos nada com isso!”, denunciou, como mostram registros históricos da Assembleia, sem nunca receber as respostas.
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Iraci Nunc-nfôonro, liderança dos Xokleng nos anos 2000, alega que grande parte dos problemas na Terra Indígena Laklãnõ ocorreu a partir da construção da barragem, que foi imposta pelo Estado sem a devida consulta prévia|Anderson Coelho/ISA
Lino Nunc-Nfôonro, pai da ex-cacica, foi o primeiro professor indígena da aldeia e até o fim da vida lutou contra a barragem e a opressão contra os Xokleng. “Ele não viu, mas eu quero ver. Eu luto para que possamos um dia ter nossos direitos reconhecidos”, conta Iraci.
“A barragem tá aqui ela não vai sair daqui. O sofrimento, a perda, a vida, não tem volta”, diz Iraci apontando, como solução, um pagamento contínuo por parte do governo aos indígenas: “porque o nosso sofrimento é contínuo”, completa. Um dos pedidos da comunidade no acordo firmado em 2015 prevê uma compensação financeira pelos impactos da barragem, mas a forma deste pagamento até hoje não foi definida.
Mais de 20 anos depois da denúncia, Iraci presenciou a presidenta da Funai assinando a transferência da área de 860 hectares no entorno da barragem para os indígenas. Ainda que a Reserva Indígena Barragem Norte tenha uma extensão pequena se comparada com os 37 mil hectares da TI Ibirama-La Klãnõ à espera de homologação, o gesto de Joenia Wapichana, sem alardes e sem cerimônia, teve um papel importante para assegurar aos indígenas uma terra até que a demarcação de seu território seja concluída.
O Estado e os interesses dos invasores
Para a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), o processo de demarcação do território xokleng representa muito mais do que a demarcação ou revisão de limites de uma Terra Indígena. É também um reconhecimento dos seguidos ciclos de violências praticados contra os Xokleng com a participação direta do Estado brasileiro.
“Os Xokleng não estavam ocupando as suas terras porque tinham um impedimento real, gerado por todas as circunstâncias que marcaram sua história naquele território. Essa terra é absolutamente necessária para uma população que sofreu com a construção de uma barragem no seu território e que deixa aldeias inacessíveis, eles precisam de uma ação humanitária e que garanta a sua subsistência a médio e longo prazo”, afirma a advogada.
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Um dos abrigos construídos no salão paroquial abandonado da antiga igreja católica localizada na Terra Indígena Laklãnõ. Os indígenas alegam que falta água encanada e sanitários adequados para permanecerem até a volta da normalidade|Anderson Coelho/ISA
A decisão do STF que afastou a tese do Marco Temporal com base na ação da TI Ibirama-La Klãnõ é considerada como uma das mais importantes para os direitos indígenas na história recente.
Mas a demarcação definitiva ainda depende de uma ação efetiva do governo federal para a homologação e desintrusão da terra, que foi declarada como de posse dos Xokleng em 2001. Isso permitirá que os indígenas retomem sua terra e construam suas vidas em locais mais seguros, longe das margens e das enchentes do rio.
Uma disputa que precisa desmobilizar agentes locais, como políticos, fazendeiros e demais invasores, que mesmo após a decisão do STF não desistem das investidas contra os indígenas. As comunidades continuam recebendo ameaças de agricultores que ocupam áreas reivindicadas historicamente pelos Xokleng, como denunciou o cacique Tucun Gakran.
Segundo informações do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, existem aproximadamente 490 ocupações não indígenas dentro do território reconhecido como de uso tradicional, com 257 imóveis titulados e 180 posses. As maiores ameaças ao território são o roubo de madeira, plantações de fumo com alto uso de agrotóxicos e as invasões por fazendeiros, posseiros e grileiros, e que seriam os principais beneficiados com uma eventual aprovação da tese do Marco Temporal.
Para a advogada Juliana de Paula Batista, os argumentos usados na ação demonstram mais uma vez quais interesses o Estado quer defender. Um deles é o de que a demarcação interferiria na Reserva Biológica (Rebio) do Sassafrás, criada em 1977. Segundo a advogada do ISA, o argumento seria apenas um pretexto para proteger as posses e interesses que existem sobre a terra dos Xokleng.
“É uma ação onde o Estado está litigando em nome de terceiros. Só que ele não tem essa competência para defender a propriedade privada em detrimento do direito originário”, afirma a advogada, que acompanhou o julgamento no STF do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365.
Governador de SC garantiu festa alemã fechando comportas à força
Imposta sem qualquer tipo de diálogo, consulta ou contrapartidas justas, a construção da Barragem Norte foi uma demanda de empresários da região do Vale do Itajaí que, nas décadas de 1950 e 1960, pediram projetos para resolver problemas das chuvas. A obra foi iniciada em 1976, durante a Ditadura empresarial-militar, e durou quase 20 anos, mas nunca foi de fato concluída.
Ao longo de quase meio século, essa estrutura se transformou em uma dolorosa cicatriz na vida e na cultura dos Xokleng para que o Estado catarinense pudesse diminuir a incidência de enchentes em cidades construídas em áreas de alagamento natural dos rios do Vale do Itajaí.
Com apoio de empresários, imprensa e outros atores interessados no apagamento do território dos Xokleng, as obras da barragem eram anunciadas como um grande plano para contenção de catástrofes climáticas. No entanto, apenas não indígenas foram indenizados pelos impactos da obra, e mesmo assim, muitos nunca deixaram a área.
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Recorte do jornal O Estado de 1975 trazia afirmações como “tribo já foi diluída” e “índio tem quem cuide dele”, para justificar obras da Barragem Norte|Reprodução
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Em 1975 já havia promessa de remover os indígenas de suas terras, mas na época apenas não indígenas foram indenizados|Reprodução
Historicamente — e estrategicamente —, o governo do estado de Santa Catarina, que é o responsável pela operação da barragem, tem negociado com indígenas Xokleng justamente nos momentos críticos de chuvas para o fechamento das comportas. E esse ano não foi diferente.
A previsão de um El Niño levou o governo a buscar um acordo que deveria ocorrer mediante melhorias de infraestrutura, inclusive com um cronograma para construção de casas. E, mais uma vez, o governo catarinense não cumpriu o acordo e fez o fechamento das comportas à força, com violência policial.
A medida tinha como objetivo proteger as cidades abaixo da barragem, principalmente Blumenau, que nesse mesmo período realizava a Oktoberfest, maior festa alemã fora da Alemanha. A cidade é considerada a mais bem sucedida das colônias que, no início do século passado, forçaram o contato com os Xokleng da região. Na internet, o governador justificou a decisão: “Nosso maior bem é a vida dos catarinenses. E faremos todo o possível para protegê-los”, escreveu.
A primeira enchente registrada no território dos Xokleng ocorreu em 1978, durante o processo de construção da barragem, e condenou toda a obra feita até então. Mas a construção foi retomada e as consecutivas enchentes também levaram ao deslocamento forçado dos indígenas pelo território, além de as seguidas mobilizações para denunciar o descaso.
Em 1981, os indígenas chegaram a prender um funcionário da Funai cobrando as indenizações das suas terras por causa dos impactos causados pela barragem. Em 17 de julho daquele ano, o governo federal assumiu através do Convênio 029/81, entre DNOS e a Funai, a dívida e a responsabilidade em pagar as indenizações dos danos causados pela Barragem Norte à comunidade indígena. Mas este convênio nunca foi totalmente executado.
Os protestos e as promessas se repetem ao longo de todos esses anos, lembra o cacique Setembrino. “Em 1990, quando os caminhões estavam deixando o canteiro de obras, nós impedimos que eles saíssem sem cumprirem a indenização pelas nossas terras. Ficamos acampados por dois anos, e conseguimos um acordo para construção de 188 casas. O governo do estado nos pagou para ir embora daqui. Não era nenhum pagamento de indenização nem nada, era para irmos embora mesmo”, disse.
As 188 casas prometidas em 1992 só foram concluídas em 2008, e 16 anos depois, com as consecutivas enchentes que atingiram o território, “todas elas estão condenadas”, avisa Setembrino. Parte dessas moradias estão oficialmente interditadas pela Defesa Civil, mas continuam sendo ocupadas pelos indígenas por ainda não poderem acessar as partes mais seguras do território.
Os Xokleng voltariam a ocupar a Barragem Norte pelos mesmos motivos em 1997, quando tomaram o controle da casa de máquinas; e em 2001 e 2005. Em 2014, quando sete das oito aldeias foram mais uma vez alagadas, a barragem mais uma vez serviu de refúgio.
Em 18 de abril de 2015, os indígenas reuniram cerca de 300 pessoas para bloquear o acesso dos operários para a operação da Barragem Norte. O sistema para prevenção de cheias com o fechamento de comportas ficaria parado, segundo os Laklãnõ-Xokleng, até que houvesse uma solução às reivindicações da comunidade: demarcação das terras e a construção de casas fora da área de alagamento da barragem.
Naquele ano, com previsão de El Niño, a Defesa Civil de Santa Catarina propôs um acordo para garantir acesso dos técnicos à estrutura e evitar enchentes rio abaixo.
“E em mais um acordo se previa a construção de casas, estradas, remoção das famílias, pontes, rede de energia, levantamento do impacto ambiental, uma ponte que liga a aldeia Piplatól com a aldeia Palmeira e mais duas pontes pênseis. Nada disso foi feito”, aponta Setembrino.
A histórica resistência dos Laklãnõ-Xokleng
Até o século XVIII, segundo o antropólogo Nuno Nunes, três subgrupos do povo Xokleng ocupavam uma ampla faixa territorial nos três estados do sul do país. Com a instalação dos núcleos coloniais europeus, tornaram-se frequentes os conflitos e a resistência dos Xokleng.
Nunes, que há mais de 20 anos acompanha a história dos Xokleng, diz que o processo de violência contra os indígenas tem sido permanente e desde o início envolveu órgãos e decisões governamentais.
“O que a gente vê é que os Xokleng estão há mais de 100 anos sendo perseguidos por conta da geopolítica onde eles vivem. É o vale justamente onde foram colocadas as colônias para atrair os alemães. E esse histórico todo vem se repetindo ao longo dos anos. A Barragem Norte é mais um episódio de proteção das colônias, que hoje são municípios do Vale do Itajaí”, explica o antropólogo.
Agentes de diferentes esferas estatais estiveram presentes em todos os momentos de pressão e opressão dos Xokleng. Foi o Estado que promoveu a colonização da região, com a entrega de terras ocupadas pelos indígenas às companhias colonizadoras; foi o estado que autorizou a empresa norte americana Brazil Railway Company a construir da estrada de ferro que ligava a cidade de São Paulo a Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e que culminou na Guerra do Contestado (1912-1916). Criada em 1906 por Percival Farquhar, a concessão da estrada destinou 15 quilômetros de faixa de terra de cada lado da ferrovia para extração de madeira, reduzindo a oferta de pinhões das araucárias e de outros alimentos comuns entre as comunidades indígenas.
Foi o Estado brasileiro que promoveu o confinamento dos indígenas pelo SPI por quase quatro décadas, no chamado processo de “pacificação”, que não foi nada pacífico. Foi o governo que projetou e construiu a barragem e quem também deu e dá ordens para fechamento de comportas.
Todas essas medidas afetaram profundamente o modo de vida e a autonomia territorial dos Xokleng. “É um histórico de desastres e ataques que não tem muitos precedentes na história do Brasil. Desde 1910, quando criaram o SPI, já foi para mediar o conflito de terras envolvendo os Laklãnõ, que estavam tendo suas terras invadidas pela Colônia Hanseática, e eles faziam as resistências que os colonos chamavam de ataques”, explica Nunes.
Em 1914, depois de anos sendo caçados e mortos por bugreiros contratados pelo governo e por companhias de colonização, os Xokleng praticamente se entregaram ao SPI para não serem completamente dizimados.
Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, filho do oficial austríaco Miguel Hörhann e sobrinho-bisneto do monarquista Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, foi o responsável pelo posto do SPI que atraiu os Xokleng em 1914 e confinou os indígenas numa área de 30 mil hectares. Em 1926, a área dos indígenas foi reduzida para 20 mil hectares e em 1952 para 14 mil hectares.
Setembrino conta que o seu avô, Womblé, foi quem fez o primeiro contato com não indígenas, junto com seu parceiro Kóvi. “Eles vieram para margem do rio e decidiram fazer o contato, depois de anos sendo perseguidos”, disse o cacique que é descendente direto dos Camlem, um clã laklãnõ de rezadores e curadores que são os que sabem interpretar sonhos e falas dos pássaros. “Hoje, nós somos os últimos Laklãnõ do Brasil”, diz o cacique.
Enquanto os indígenas permaneciam aldeados pelo SPI, as colônias alemãs chegaram a receber 600 mil hectares de terras em acordos com o governo de Santa Catarina e consolidaram áreas sobre o território indígena. A principal delas é a Colônia Hansa Hammonia, que tem origem na Companhia Colonizadora Hanseática Ltda., de Hamburgo na Alemanha, e se sobrepõe à Terra Indígena.
Já nesse período, empresas madeireiras começaram a explorar os limites do território e a assentar colonos ali. Por mais de 30 anos, Hoerhann manteve os Xokleng confinados ao Posto Indígena Duque de Caxias, onde os indígenas enfrentaram a violência institucionalizada e perderam grande parte da sua população para epidemias. Gripe, sarampo e varíola foram as mais comuns. Dos 400 indivíduos atraídos em 1914, restavam apenas 106 em 1932.
Mesmo assim, os relatórios do agente do SPI apontavam que os indígenas não ficaram restritos ao posto delimitado. Em relatório encaminhado em 1928 à Diretoria do SPI, Hoerhann afirma que “os índios botocudos deste Posto, sempre [...] sahem em suas excursões ou para caçar ou para colher pinhões nos pinheirais do alto da serra, na região dos campos (sic)”.
Hoerhann foi acusado de se apropriar de parte das terras dos indígenas e de negociar parcelas do território com a empresa madeireira Leopoldo Zarling. Em 1954, Hoerhann deixou o posto do SPI acusado de participar da morte do indígena Brasílio Priprá.
Durante o período que Hoerhann comandou o SPI, as lideranças nas colônias alemãs assumiram fortemente o partido nazista, com planos de dominar a região. A colônia Hansa-Hamônia, sobreposta ao território xokleng, era a que tinha mais filiados ao partido em Santa Catarina: 2.475, segundo apontou Antônio de Lara Ribas em seus relatórios de investigação e que estão compilados no livro “O Punhal Nazista No Coração do Brasil” (1943).
A passagem de Hoerhann pelo território criou raízes profundas com diferentes sentimentos e efeitos na vida dos Xokleng. Mas sua saída tampouco resultou no fim das opressões.
Em 1963, uma invasão organizada por empresários com centenas de famílias camponesas tomou os últimos 15 mil hectares que restaram aos Xokleng até então. Sem apoio, as lideranças se deslocaram a pé até a capital Florianópolis para denunciar e cobrar uma solução.
Depois de Hoerhann, os madeireiros e outros invasores pressionaram ainda mais as terras dos Laklãnõ-Xokleng, até que em 1975 é anunciada a construção da Barragem Norte. Em 1991, os indígenas fizeram a retomada de parte das terras que foram transferidas para Hoerhann, onde hoje está a aldeia Palmeira.
No livro “Os índios Xokleng - memória visual", o antropólogo Silvio Coelho, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), um dos maiores pesquisadores do povo Xokleng, conta que o mito do “vazio demográfico” foi utilizado, por décadas, como argumento para justificar o estabelecimento das colônias alemãs e italianas na região.
Txulunh não tem dúvidas de que somente a demarcação definitiva pode garantir os direitos dos Laklãnõ-Xokleng: “A gente espera ser reconhecido como cidadãos de direitos. Que tem direito sobre as nossas vidas, sobre o nosso território, sobre o nosso corpo. Ser reconhecido como sujeito de direito e ser reconhecido como cidadãos catarinenses natos. A gente é nativo desse estado e a gente vê muito essa negação ao longo de toda a história”.
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Mulheres indígenas marcham em Brasília por mais representatividade política e pelo fim da violência de gênero
III Marcha das Mulheres Indígenas reuniu 8 mil pessoas e chegou ao fim com o compromisso do governo federal por ações específicas de combate à violência nos territórios
Mulheres bioma marcham em Brasília pelo fim da violência de gênero e ameaças aos seus territórios tradicionais|Webert da Cruz/ISA
Foi com o apelo pelo fim da violência contra as mulheres indígenas e por mais candidaturas de mulheres indígenas que, na última semana, entre os dias 11 e 13 de setembro, cerca de 8 mil mulheres indígenas, do Brasil e do mundo, ocuparam as ruas de Brasília na III Marcha das Mulheres Indígenas.
Organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), a mobilização acontece desde 2019 com o objetivo de conectar, fortalecer, debater e propor formas de atuação, além de promover a igualdade de gênero, a defesa dos direitos e a preservação das culturas indígenas.
Neste ano, a Fundação Nacional das Artes (Funarte) foi o local escolhido para receber as mulheres indígenas que se deslocaram à capital brasileira.
A mobilização chegou ao fim com um ato até a Esplanada dos Ministérios, seguido da assinatura de um compromisso entre o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o Ministério das Mulheres de implementar políticas públicas focadas nas mulheres indígenas, visando sua proteção e fortalecimento, dentro e fora de seus territórios.
Estavam presentes a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara; das Mulheres, Cida Gonçalves; do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva; da Igualdade Racial, Anielle Franco, e da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, além de representantes do Ministério da Cultura.
Entre os acordos assinados durante a mesa final está o programa Guardiãs do Território, que tem como objetivo formar lideranças femininas e auxiliar no enfrentamento à violência contra as mulheres nos territórios indígenas. Segundo a ministra Sonia Guajajara, para garantir sua eficácia o programa deverá ser posto em prática em parceria com órgãos estaduais de proteção às mulheres.
A segunda ação anunciada tem como palco a Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Segundo dados do Censo 2022, a área reservada para os povos Guarani e Terena possui uma densidade demográfica de 393,46 habitantes por quilômetro quadrado, superando em mais de três vezes a de Campo Grande, capital do estado em que está localizada.
A medida estabelece a implementação da primeira Casa da Mulher Brasileira na cidade em que a reserva está localizada. Segundo o anúncio de Cida Gonçalves, do Ministério das Mulheres, “haverá mulheres indígenas e, preferencialmente, profissionais de saúde indígenas, atendendo as mulheres, conforme já pactuado com a prefeitura e com o governo estadual”. A ministra também se comprometeu a levar a proposta para os seis biomas brasileiros.
“Só isso não basta. É necessário ter a Casa da Mulher Indígena nos biomas, nos territórios onde estão as mulheres. Para isso, vamos fazer seis encontros para discutirmos junto com vocês, lá nos biomas, o que será a Casa da Mulher Indígena; que tipo de atendimento tem que ser feito. Ao mesmo tempo, vamos discutir, aqui, com o Ministério dos Povos Indígenas e com o Congresso Nacional, o projeto de lei que coloca as mulheres indígenas na Lei Maria da Penha. Vamos construir isso, para termos uma política de enfrentamento à violência contra as mulheres indígenas”
A marcha até o Congresso Nacional
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Mulheres indígenas dizem 'não' ao Marco Temporal durante mobilização da Anmiga em Brasília|Webert da Cruz/ISA
Foi com o canto de mulheres indígenas dos seis biomas brasileiros e do mundo que cerca de 8 mil pessoas marcharam rumo ao Congresso Nacional pedindo o fim de propostas que colocam em risco a existência dos povos indígenas.
Uma delas, o Projeto de Lei 2903/2023, já aprovado na Câmara dos Deputados e que deve ser votado pelo Senado, além de abarcar a tese do marco temporal, também coloca em risco o usufruto exclusivo dos povos indígenas ao seu território, ao estabelecer que ele não deve se sobrepor ao interesse da política de defesa e soberania nacional, entre outras diversas propostas anti-indígenas.
A tese do marco temporal que será julgada no Supremo Tribunal Federal (STF) na próxima quarta-feira (20), por sua vez, também foi pauta durante a Marcha, principalmente para o povo indígena Laklãnõ Xokleng, da Terras Indígena Ibirama-La Klãnõ que está no centro do julgamento.
Para a Txulunh Gakran, integrante da Juventude Xokleng luta contra o marco temporal não está restrita ao povo Xokleng e tampouco apenas aos povos indígenas. Ela aponta que os povos indígenas são essenciais para a manter as florestas em pé, os rios vivos e a vida no planeta funcionando. “É necessário que todos entendam que a nossa luta é a mesma luta de todos”, conclui.
Sobre o marco temporal, ela destaca que a tese coloca em risco principalmente aqueles povos que ainda não têm o seu território demarcado e estão em um processo de retomada.
“E é exatamente o que a gente tá vivendo, temos um limite de território demarcado, mas estamos buscando a ampliação e a gente vive esse constante conflito por conta da não demarcação. E é exatamente isso que acontece, quanto mais o processo demora, mais as nossas vidas são ameaçadas, mas a gente só vive violações e menos direitos a gente tem acesso”
Esse, por exemplo, é o caso da Terra Indígena Votouro/Kandóia, onde Cleci Pinto, do povo Kaingang vive. A TI está localizada nos municípios de Faxinalzinho e Benjamim Constant do Sul, no Rio Grande do Sul e aguarda há 14 anos pelo seu processo de demarcação. Enquanto isso não acontece, o povo Kaingang segue enfrentando uma série de conflitos e violências dos agricultores locais.
Para Cleci Pinto, a tese do marco temporal afeta muito as reivindicações do povo Kaingang. “Ela acaba com a gente”, desabafa. “Essa tese passando, é mais um ponto para esses agricultores”, avalia.
Delegação de mulheres indígenas do mundo
Para somar a luta das mulheres indígenas brasileiras, indígenas de 18 povos representando o movimento indígena da Malásia, África, Uganda, Estados Unidos, Peru, Quênia, Nova Zelândia, Bangladesh, Rússia, Indonésia, Guatemala e Finlândia, também marcaram presença na III Marcha.
Rosalee Gonzalez, do povo Xicana-Kickapoo e coordenadora da região norte da Continental Network of Indigenous, Women (ECMIA), uma organização continental composta por 23 organizações nacionais de mulheres indígenas em 19 países, era uma das mulheres indígenas integrantes da delegação internacional.
“Estamos aqui porque também compartilhamos as lutas.”, apontou. “Sabemos que a atenção a uma comunidade não é a atenção a todas as comunidades. E assim entendemos a diversidade dos povos indígenas em um país. Então estamos aqui para nos solidarizarmos com as mulheres indígenas que estão se organizando aqui hoje, para apoiar todos os que não têm voz. Estamos aqui para apoiar todos aqueles que se tornaram invisíveis”, afirmou.
Marcha das Mulheres indígenas chega a sua terceira edição no mês de celebração do Dia Internacional da Mulher Indígena|Webert da Cruz/ISA
Mobilização em Brasília pede pela proteção dos territórios tradicionais em todos os biomas|Webert da Cruz/ISA
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Tuíre Kayapó durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro|Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA
“Ouçam a minha fala. Agora já nos resta pouca terra [....] As florestas, os rios, os povos indígenas: é a sobrevivência deles que eu defendo até hoje”.
Aos 53 anos, Tuíre Kayapó ainda se desloca regularmente pelos mais de 1.100 quilômetros que unem a Terra Indígena Las Casas (PA) e Brasília (DF), para garantir que a floresta permaneça de pé e seus filhos e netos possam seguir existindo. É uma vida inteira de luta, que nem mesmo a passagem do tempo se tornou uma fronteira. “Se eu me calar e meus parentes morrerem, onde estarão os indígenas? Apenas os brancos vão existir”, assinala.
Em fevereiro, ela realizou mais uma vez esse percurso, para se unir à Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, uma convocação da Articulação das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) para debater coletivamente as possibilidades de incidência política em espaços como o Ministério dos Povos Indígenas, o Congresso Nacional, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e começarem a preparar a III Marcha das Mulheres Indígenas, que neste ano acontece entre os dias 11 e 13 setembro.
Foi nesse espaço, também, que Célia Xakriabá, Sonia Guajajara e Joenia Wapichana receberam a força e poder de representatividade dado pelas mulheres-biomas em cerimônia de posse ancestral.
Liderança histórica do povo Kayapó, Tuíre é reverenciada pelo icônico registro onde brada um facão contra a bochecha do então presidente da Eletronorte, o engenheiro José Antônio Muniz Lopes. Feita em 1989, no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, a fotografia marcou para sempre a história de resistência dos povos indígenas contra projetos predatórios a suas vidas e territórios, como era o caso da Usina Hidrelétrica Kararaô, então em discussão. O projeto, mais tarde, se tornou Belo Monte, que ignorou as vozes ancestrais que já anunciavam sua ruína. Porém, essas vozes não cessam em ousar salvar o pulsar do rio Xingu.
“Eu disse para ele: ‘branco, você não tem floresta. Essa terra não é sua. Você nasceu na cidade e então veio para cá atacar nossa floresta e nossos rios. Você não vai fazer isso”, lembra. “E então os brancos não fizeram mesmo”. Sua imagem correu o mundo e ajudou a adiar a construção da hidrelétrica por mais de 20 anos – a inauguração veio em 2015, agora com o nome de UHE Belo Monte.
Em um momento onde os homens eram os principais – e frequentemente únicos – líderes do movimento indígena, onde as mulheres pouco tinham espaço para participar na política externa das aldeias, Tuíre já se mostrava uma protagonista na defesa do seu território e da cultura do seu povo.
“Antigamente eu era a única mulher que ia para Brasília com os homens, e eu atuava bem”, Tuíre recorda. “Na minha luta, eu defendo meu povo, falo com os brancos; envelheci fazendo isso. Minhas parentas veem minhas fotos, vão aprendendo as coisas e agora somos muitas”.
De fato, onde antes Tuíre era uma exceção entre seus pares, hoje as mulheres indígenas representam de maneira inequívoca o rosto da luta pelos direitos indígenas e socioambientais.
Todos os anos, elas colorem Brasília com seus maracás e corpos pintados de jenipapo e urucum. Nos últimos tempos, essas mesmas mulheres passaram a ocupar lugares estratégicos da política indígena, fruto de uma longa construção para fortalecer e empoderar a assumirem a frente tanto dentro de seus territórios e associações como em espaços de diálogo com os não indígenas.
Inspiradas por Tuíre e por tantas outras, as mulheres Kayapó começam agora a assumir cacicados, liderar associações representativas do povo e até mesmo se candidatar a cargos públicos - caso de Maial Kaiapó, primeira do povo a concorrer a deputada federal.
No entanto, muito além das reuniões, marchas e encontros, Tuíre nunca deixou de lado a política cotidiana dos Kayapó, aquela que acontece essencialmente no território, no dia a dia da aldeia, e na qual as mulheres sempre exerceram influência indireta, desde seus núcleos familiares.
“Nós procuramos lenha, vamos para as roças, trazemos mandioca e ralamos. Preparamos o forno de pedra para alimentar nossos filhos e neles assamos batatas. Quando nossos maridos trazem peixe, nós limpamos e cozemos ou assamos. Se quisermos castanhas, temos que ir colhê-las e trazer para casa”, conta, sobre o dia-a-dia das mulheres Mebêngokrê. “Temos muito trabalho, é difícil. Vocês não dariam conta”.
A atuação feminina local é ponto de partida essencial para qualquer tipo de enfrentamento político, revela Tuíre, que também é cacica da aldeia Irã-Amraire, na Terra Indígena Las Casas. É por causa de suas mães e avós, que permaneceram no território prezando pela coletividade e cuidado com todos da aldeia, que, hoje, mais indígenas podem frequentar universidades, se formar e chegar a lugares que, até pouco tempo atrás, lhes eram negados.
“Agora nossos netos estudam, aprendem o português, aprendem a escrever e assim nossos parentes começam a ocupar esses espaços. E eu fico muito feliz e fortalecida”, diz. “Eles vão ter presença na política e vamos ajudá-los. Votaremos neles e não vamos mais ficar procurando os brancos. Eles vão trabalhar para nós e nos ajudar”.
Do território à academia, da academia para a política
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Jozileia Kaingang durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro|Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA
Foi graças aos caminhos abertos por mulheres como Tuíre, que Jozileia Kaingang pôde realizar seu percurso acadêmico e, agora, político.
Doutoranda e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jozileia veio ao mundo pelas mãos de uma parteira de seu povo Kaingang, no Rio Grande do Sul, para hoje ocupar a chefia de gabinete da ministra Sonia Guajajara.
A sua história, no entanto, não começa na universidade e tampouco se limita ao cargo que possui atualmente. Jozileia traz consigo a ancestralidade Kaingang e remonta a resistência do seu povo que seguiu em retomada por seus territórios tradicionais, como a Reserva Indígena Serrinha, de onde vem boa parte de sua família e cujo processo foi capitaneado por mulheres indígenas, incluindo sua mãe.
Neta do cacique da Terra Indígena Carreteiro, Jozileia chegou à universidade em uma época em que o direito à educação superior não alcançava os indígenas. Seus pares só vieram a ser contemplados seis anos depois do seu ingresso, por meio da lei 12.711 de 2012, que estabeleceu a reserva de vagas no Ensino Superior para estudantes pretos, pardos e indígenas e para pessoas com deficiência.
“Eu fui para a universidade em um momento em que a gente ainda não tinha cotas, mas nós tivemos a luta das lideranças indígenas, dos nossos caciques, para que a Funai tivesse universidades com quem ela dialogasse e pudesse ter o ingresso com bolsa para os estudantes indígenas naquela época”, relembra.
“E eu acho que isso é importante dizer, a gente nunca fez parte desse lugar”, pontua. Tanto na política, como nas universidades, a presença indígena faz parte de um processo recente de retomada histórica. Cada vez mais indígenas, principalmente mulheres, vêm ocupando esses espaços, que despontam uma nova forma de resistência.
“A abertura das portas da universidade faz com que nós, mulheres indígenas, tenhamos uma outra possibilidade de construir vias que a gente possa trabalhar com os nossos povos, que a gente possa ser, mais uma vez, ferramenta de luta.”
Uma das fundadoras da ANMIGA, Jozileia traz a sua vivência como mulher indígena para a sua atuação acadêmica e para a sua forma de se organizar em uma rede nacional como a que ajudou a construir. “E eu acho que viver o que a gente acredita é isso, é você se doar para o movimento, é construir o movimento. O movimento não está dado, ele é uma construção conjunta coletiva e diária, cotidiana.”.
Nesse movimento, Jozileia vê as mulheres indígenas se organizando em uma importante característica: o recorte de gênero. “As mulheres são as que mais estão no território, estão cuidando dos seus territórios, cuidando das suas famílias, lutando para poder permanecer nas suas terras, fazendo as retomadas”, afirma. “São as mulheres que cuidam, são as mulheres que protegem”, conclui.
E foi como resultado de sua construção tanto pela via da pesquisa quanto pela da atuação direta dentro do movimento que surgiu o convite para comandar o gabinete do Ministério dos Povos Indígenas.
Apesar de receber a proposta com surpresa, Jozileia assumiu prontamente a função em janeiro de 2023. Agora, ela quer mais e mais espaços preenchidos por mulheres indígenas, dentro de cada competência. “Porque se a gente se soma é porque a gente tem cada uma um jeito de fazer, um modo de ser, uma especificidade dentro do nosso trabalho que a gente está mais dedicada, então isso faz com que a gente também ocupe os lugares dentro desse universo”, explica.
A primeira mulher indígena a assumir a Funai no Rio Negro
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Dadá Baniwa durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro|Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA
Somando à luta irrompida por Tuíre, Dadá Baniwa, de 42 anos, se une a Jozileia Kaingang no processo de abertura do que se chama aldeamento da política institucional. A primeira mulher indígena a assumir a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) do Rio Negro, em maio deste ano, nasceu na aldeia Assunção do Içana, em São Gabriel da Cachoeira (AM), a segunda cidade com o maior número de pessoas indígenas no país, segundo o Censo 2022 do IBGE.
Dadá foi nomeada pela presidente da Funai, Joenia Wapichana, em uma cerimônia foi realizada na Casa do Saber da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), organização onde atuou anteriormente como coordenadora do departamento de mulheres.
Sua chegada se deu por meio de uma indicação do movimento indígena local, que desempenhou um importante papel nas conquistas atuais. Dadá é parte disso, é uma das forças de uma luta coletiva. “É com bastante orgulho e profundo sentimento de responsabilidade que assumo hoje a Coordenação Regional da Funai do Rio Negro. Desafio esse que só aceitei por ter a plena convicção de que não estarei sozinha”, afirmou, durante a posse.
Estudante e mãe de quatro filhos, Dadá partilha sua vida entre a família, sua liderança, a articulação com outras mulheres indígenas, seu cargo e, principalmente, a construção de um futuro possível para os povos indígenas, que só se fará presente com as florestas em pé. “A gente precisa cuidar da nossa floresta, porque elas são muito importantes para a gente, do jeito que elas nos sustentam, dando a caça, dando o peixe, as nossas roças. Então a gente também precisa retribuir esse cuidado para a nossa mãe terra, então isso é muito importante, e isso a gente está fazendo através do trabalho das mulheres.”
Dadá destaca que o esforço desempenhado pelas mulheres indígenas vem aos poucos sendo reconhecido. “A gente está tendo oportunidade de ocupar mais esses espaços e mostrar que as mulheres podem, que as mulheres sabem, que as mulheres conseguem”, ressalta. “A gente só consegue realizar, concretizar o que a gente sonha através da nossa união e do nosso fortalecimento”.
Para ela, o futuro de seus filhos e netos ainda não está garantido. Por essa razão, junto ao movimento indígena, ela se articula pelo sonho de que um dia a política local também seja aldeada, com prefeitas e vereadoras indígenas.
“Eu acho que esse trabalho nosso agora é empoderar outras mulheres, chamar essas mulheres pra junto da gente e dizer ‘olha, a gente precisa de vocês, vocês têm que estar junto com a gente, porque só assim vamos conseguir avançar cada vez mais”, explica.
Apesar dos avanços, ela conclui: “Ainda há desafios, ainda há muitas conquistas daqui pra frente”.
Assim como Dadá, Tuíre e Jozileia deram seus depoimentos à equipe do ISA durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro de 2023. As três mulheres, representando cada um de seus biomas, se uniram para o fortalecimento da luta e o protagonismo das mulheres indígenas na defesa dos seus direitos.
Mulheres-bioma, guerreiras ancestrais
No XV Acampamento Terra Livre, realizado em abril de 2019, foi um ambiente dinâmico e envolvente para as ações das mulheres indígenas. Lá, elas trouxeram à tona questões cruciais que culminaram na histórica Marcha das Mulheres Indígenas. Neste evento, ocorrido em Brasília, no Dia Internacional dos Povos Indígenas, em 9 de agosto daquele mesmo ano, 2.500 mulheres, representando 130 diferentes povos indígenas, se juntaram em uma poderosa união.
Essas mulheres se definem como mulheres biomas, onde cada qual - a depender do grupo que pertence - tem uma função importante para a organização e fortalecimento da mulher indígena no Brasil, do chão território ao chão do congresso, elas mostram que são mulheres árvores, raízes sementes e não somente mulheres, guerreiras da ancestralidade.
Confira alguns depoimentos:
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Shirley Krenak Co-fundadora Anmiga (MG)
“Estamos mais do que felizes, estamos empoderadas porque nós estamos ocupando esses espaços que realmente são nossos. Isso já deveria ter acontecido há muito tempo”
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Gloria Potyguara Presidente da associação de mulheres da aldeia Jucás- Monsenhor Tabosa (CE)
“Nós, como “mulher-semente” queremos ver crescer onde a gente for plantado. A gente quer articular outras mulheres a empoderar, a encorajar para estar na luta e estar na resistência”
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Auricélia Arapiun Coordenadora do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (PA)
“Nós passamos esses quatro anos só fazendo resistência, fazendo estratégia de resistir e proteger os nossos territórios. Nós acreditamos que só nós ocupando os espaços podemos fazer outra política”
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Alana Wapichana Vice-coordenadora das Mulheres da Região Murupu (RR)
“É muito bom estar presente e levar essa força dessas mulheres para o meu Estado”.
Assista:
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Terras Indígenas fora da Amazônia Legal são as mais povoadas do país, aponta Censo 2022
Atraso nos processos de demarcação refletem na grande densidade populacional; números evidenciam situação de confinamento para indígenas em terras muito pequenas
Quase metade (49%) da população indígena no Brasil, cerca de 825 mil pessoas, está fora da Amazônia Legal. Desse total, cerca de 220 mil vivem em uma área aproximada de 1,6% do total das Terras Indígenas demarcadas. É o que apontam os primeiros resultados do Censo 2022: O Brasil Indígena: uma nova foto da população indígena, lançado nesta segunda-feira (07/08) pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE).
Para traçar o perfil demográfico dos habitantes do país e apontar informações cruciais para o desenvolvimento, implementação, análise e avaliação de políticas públicas, a pesquisa reúne dados obtidos por uma ampla coleta com mais de 70 milhões de questionários aplicados, presencialmente, online e por telefone, nos 5.568 municípios brasileiros.
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Cerimônia do "Censo 2022: O Brasil Indígena: uma nova foto da população indígena" ocorreu no Theatro da Paz, em Belém (PA)|Amarilis Marisa/Agência Pará
Nos resultados divulgados neste ano, a população indígena apresentou um salto populacional de quase 90%, saindo de 896.917 pessoas em 2010, para 1.693.535 em 2022.
Em comparação, há 20 anos, quando foram divulgados os dados do Censo 2000, a população que se declarava indígena no Brasil era de 734 mil pessoas. O Estado de São Paulo na época figurava como a terceira unidade da federação com a maior população indígena; no topo da lista estava o Amazonas, seguido pela Bahia.
Em relação à população indígena que vive em Terras Indígenas, em 2022, os dados do Censo indicaram um aumento menos expressivo, de 16%.
Ambos os resultados indicados pela pesquisa em 2022, no entanto, são significativos frente ao crescimento total da população brasileira, que apresentou um aumento no mesmo período de apenas 6,5%.
Em 2022, o Censo incluiu um total de 573 Terras Indígenas, 68 a mais do que em 2010. Ficaram de fora todas as áreas cujos processos demarcatórios estavam em curso na época do levantamento, o que equivale a um número em torno de 172 áreas com processos em andamento. Ademais, outras áreas que aguardam na fila de reivindicações da Funai também não foram incluídas no recorte Terras Indígenas dos resultados, embora o recenseamento tenha chegado também a essas populações.
Fora das áreas demarcadas, o IBGE mapeou localidades indígenas, inclusive em cidades e áreas remotas. Além das Terras Indígenas oficialmente delimitadas, foram definidos agrupamentos indígenas e outras localidades indígenas. Essas áreas foram mapeadas para evitar uma possível subenumeração na contagem dessa população.
Segundo estimativas do ISA, o total dessas pessoas pode chegar a mais de 65 mil pessoas. Um exemplo é a TI Tupinambá de Olivença, na Bahia, que teve seu estudo de identificação aprovado em 2009 e conta com uma população estimada em 4.631 pessoas.
Essa subenumeração na contagem de pessoas em Terras Indígenas acontece principalmente em regiões fora da Amazônia Legal.
Muitos indígenas para pouca terra
Para quase metade da população indígena (49%) que vive fora da Amazônia Legal, a garantia estabelecida pelo artigo 231 da Constituição Federal de uma área reservada para sua reprodução física e cultural está longe de ser uma realidade.
Apenas 26,5% dessas pessoas indígenas vivem atualmente em Terras Indígenas. Para elas, o cenário é de uma grande pressão demográfica nas áreas já demarcadas nessas regiões. Segundo dados do Censo 2022, a densidade populacional das TIs fora da Amazônia Legal é maior que a de 10 Estados brasileiros: AM, RR, MT, AC, AP, TO, PA, RO, MS e PI.
Com uma densidade demográfica de 14 pessoas/km², os números evidenciam que, fora da Amazônia Legal, existe uma situação de confinamento dos povos indígenas em Terras muito pequenas para a sua população.
Um dos casos que reforçam a tese é a da Reserva Indígena Dourados, no Mato Grosso do Sul. A área reservada para os povos Guarani e Terena possui uma densidade demográfica de 393,46 habitantes por quilômetro quadrado, superando em mais de três vezes a de Campo Grande, capital do estado em que está localizada.
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Aldeia Jaguapiru, na Reserva Indígena de Dourados, área de 3,5 mil hectares onde vivem Guarani-Kaiowá, Nhandeva e Terena|Marcello Casal Jr./Agência Brasil
“Você se considera indígena?”
Ampliando a metodologia aplicada pelo Censo 2010 para identificar pessoas indígenas que não se identificaram pelo quesito cor ou raça, em 2022, a pergunta “Você se considera indígena?” deixou de ser feita apenas em Terras Indígenas delimitadas e passou a ser realizada também à população residente em outras localidades indígenas identificadas previamente pelo IBGE. Por meio da pergunta, foi possível identificar cerca de 27% do total de pessoas indígenas em 2022. Desse número, a maior parte, foi identificada fora de Terras Indígenas.
Para Tiago Moreira, antropólogo do programa Povos Indígenas no Brasil do Instituto Socioambiental (ISA), “a ampliação das áreas onde é aplicada a pergunta 'Você se considera indígena?' deu visibilidade a uma grande parcela da população indígena ignorada pelos censos demográficos anteriores”. Para ampliar a cobertura da pergunta, o IBGE delimitou previamente localidades potencialmente ocupadas por pessoas indígenas, tais como bairros, conjuntos habitacionais, vilas rurais, e outras localidades, além das Terras Indígenas declaradas, homologadas ou reservadas.
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Criança brinca no Parque das Tribos, em Manaus (AM)|Benjamin Mast/La Mochila Produções/ISA
Manaus foi a cidade que apresentou o maior número de pessoas indígenas identificadas pela pergunta de cobertura, o equivalente a mais de 70% do total. Já São Gabriel da Cachoeira, também no Amazonas, por sua vez, apresentou o maior número de pessoas indígenas identificadas pelo quesito cor e raça, com 95%.
Nas regiões brasileiras, a região Nordeste foi a que apresentou o maior percentual de pessoas indígenas por meio da pergunta de cobertura, com 38%. Já a região Sul foi a que apresentou o maior número de pessoas que se declararam indígenas pelo quesito cor e raça, com 98,2%.
Segundo Moreira, os resultados preliminares apresentados até o momento ainda não permitem traçar um desenho tão preciso da localização exata da população indígena no país, mas eles expressam o sucesso da metodologia aplicada.
“Em alguns casos, como Manaus, onde houve um crescimento expressivo de indígenas recenseados, um aumento de 1.675% em relação a 2010, vários elementos ajudam a deduzir o sucesso da metodologia do IBGE em mapear pessoas indígenas fora do contexto de Terras Indígenas. No município, a maior parte das pessoas indígenas, apesar de não se declararem como indígenas no critério raça/cor, respondeu que se consideram”, apontou.
“Com a pergunta certa, e dentro de um contexto de valorização da ancestralidade indígena, as pessoas puderam sair de uma condição de invisibilidade de sua identidade indígena em lugares como Manaus”, completa.
Cidades mais indígenas do Brasil
Se, em 2010, os municípios com as maiores populações indígenas em números absolutos eram São Gabriel da Cachoeira (AM); São Paulo de Olivença (AM); Tabatinga (AM); São Paulo (SP); e Santa Isabel do Rio Negro (AM), em 2022, Manaus toma a frente, com 71.713 pessoas indígenas. Na sequência, vem São Gabriel da Cachoeira (AM) com 48.256 pessoas indígenas; Tabatinga (AM) com 34.497; Salvador (BA) com 27.740; e São Paulo de Olivença (AM), com 26.619.
Das cidades que encabeçam o ranking, apenas Manaus e Salvador não possuem Terras Indígenas demarcadas. Além disso, ambas apresentaram um expressivo crescimento no período, e, juntas, lideram a lista das maiores diferenças em população indígena absoluta em relação a 2010, com um aumento somado de aproximadamente 750%.
Em relação ao percentual total da população na cidade, Uiramutã (RR), com 96,6% de sua população identificada como indígena, segue liderando a lista, seguida por Santa Isabel do Rio Negro (AM), com 96,1%, e São Gabriel da Cachoeira (AM), com 93,1%.
Estados mais indígenas
Em números absolutos, o Amazonas segue sendo o estado com mais indígenas, com 490.854 pessoas indígenas; seguido pela Bahia, com 229.103 pessoas; Mato Grosso do Sul, com 116.346; Pernambuco, com 106.634; e Roraima, com 97.320. Juntos, os cinco estados somam 61,43% da população indígena no Brasil.
Sobre o percentual de pessoas indígenas por estado, Roraima aparece em primeiro lugar, com cerca de 15% de sua população total composta por pessoas indígenas. Amazonas; Mato Grosso do Sul; Acre; e Bahia vêm na sequência.
Já Rondônia foi o estado que apresentou o maior crescimento no número de pessoas indígenas percentualmente, com um aumento de quase 58%.
Outros estados, no entanto, apresentaram quedas no número de pessoas indígenas. São eles: Alagoas, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Terras Indígenas
Segundo os dados trazidos pela pesquisa, a população indígena vivendo em Terras Indígenas corresponde a 36,7% do total recenseado. Embora 63,2% de toda a população indígena no Brasil tenha sido mapeada em áreas fora de TIs delimitadas, 56% de toda essa população vive em municípios classificados em algum grau como rurais pelo IBGE, ainda, 30% das pessoas estão em municípios considerados remotos.
Estes dados vão na mesma direção do último levantamento feito em 2010, quando se constatou que 42% da população indígena vivia fora de Terras Indígenas, sendo 36% em áreas urbanas – não necessariamente em cidades.
O Censo 2022 aponta ainda que quase metade (49,1%) da população indígena vivendo atualmente em TIs se encontra na região Norte. Já os estados da federação com a maior porcentagem de pessoas indígenas vivendo dentro de TIs, em relação ao número total de indígenas, são: Mato Grosso, Tocantins, Roraima, Maranhão e Amapá.
Entre as regiões que apresentaram os maiores crescimentos populacionais em Terras Indígenas estão a região Norte com 22,7% e Nordeste, com 12,2%.
Sobrevôo na Terra Indígena Yanomami, território indígena mais extenso e com maior volume populacional, com 27.152 pessoas|Valentina Ricardo
Amazônia Legal
A Amazônia Legal, composta pelos estados do Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso, abrange mais da metade (51,2%) de toda a população indígena nacional, com 867.919 pessoas.
A presença da população indígena vivendo dentro de TIs na Amazônia Legal supera a nacional. Ao todo, são 403.287 pessoas, ou o equivalente a quase 65% de toda a população indígena nacional residindo em Terras Indígenas. Além disso, 46,4% de toda a população indígena que vive na região está localizada nas TIs, o que representa uma diferença percentual de quase 10% em relação ao número nacional.
Diminuição de população em Terras Indígenas
Das 501 Terras Indígenas comparáveis onde foi realizado o censo, entre 2010 e 2022, 171 registraram uma diminuição da população. Sem dados de natalidade e mortalidade, entretanto, não é possível desenhar um cenário completo para os números apresentados.
Apesar disso, uma breve análise das maiores diminuições de população aponta para uma provável fragilidade dos números do censo de 2010.
Na Terra Indígena Apyterewa, por exemplo, habitada pelos Parakanã, o Censo registrou, em 2010, 3.588 indígenas. Já a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em 2011, havia registrado um total de 452 pessoas na TI.
Em 2022, o número apresentado foi de 767 indígenas, portanto, mais próximo do histórico de população registrada anteriormente pela Funai. Para além da questão de decréscimo populacional, a TI também apresenta há anos antecedentes explícitos de presença não indígena e de consequentes conflitos fundiários. Segundo avaliação do Instituto Socioambiental (ISA), a hipótese é de que os números de 2010 tenham sido inflados pela presença não-indígena, que por algum motivo foram registradas como indígenas.
Das 10 TIs com maior diminuição absoluta de população, em ao menos oito delas há histórico de invasões e conflitos fundiários, o que levanta a hipótese dos dados do censo de 2010 terem sido enviesados.
Ainda, a diminuição dos números da população do Vale do Javari, apesar de não ser possível afirmar categoricamente, pode ter resultado dos grandes desafios de se recensear uma das maiores TIs do Brasil, com um dos acessos mais dificultados.
Contribuições do Instituto Socioambiental
O ISA foi uma das instituições indigenistas que contribuíram com a realização do Censo 2022. Para auxiliar no aperfeiçoamento da coleta realizada para a pesquisa, o ISA esteve presente em uma reunião técnica realizada, além de fornecer coordenadas geográficas para a criação da base territorial do IBGE denominada como localidades indígenas, fundamental para a ampliação da pergunta de cobertura que identificou mais de 400 mil indígenas.
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Funai reconhece Terra Indígena Kapôt Nhinore, onde o cacique Raoni Metuktire passou a juventude
Em identificação desde 2004, a TI segue aguardando sua homologação há 19 anos. Território está situado na Bacia do Xingu, entre os estados do Mato Grosso e Pará
Funai reconhece Terra Indígena Kapôt Nhinore, na qual o Cacique Raoni passou a juventude|Kamikia Kisêdjê/Amazônia Real
No dia 28/7, durante o evento "Chamado de Raoni", na aldeia Piaraçu (MT), Joênia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ao lado de Sônia Guajarara, ministra dos Povos Indígenas, anunciou a aprovação dos estudos de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, onde o cacique Raoni Metuktire passou sua juventude.
Localizada entre os municípios de Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, no Mato Grosso, e São Félix do Xingu, no Pará, a Terra Indígena possui uma área aproximada de 360 mil hectares e é lar dos povos Mebengôkre Metyktire; e Yudja.
A partir da aprovação, em até 90 dias após a publicação no Diário Oficial da União, a Funai passa a aceitar contestações, mediante a apresentação de provas. Ao fim deste prazo, a Funai tem 60 dias para desenvolver pareceres técnicos sobre as reivindicações apresentadas e encaminhar para o Ministério da Justiça.
Com a volta da atribuição de declarar e demarcar as Terras Indígenas para o Ministério da Justiça, segundo o 10º artigo do decreto 1.775/1996, o ministério teria um prazo de 30 dias para expedir a portaria declaratória. Na prática, contudo, esse prazo pode ser bem maior. Quase metade das 46 terras indígenas que se encontram com estudos aprovados pela Funai hoje aguardam a mais de 10 anos pela edição de uma portaria declaratória pelo Ministério da Justiça e há casos de 30 anos de espera.
Por fim, TI segue para homologação com a assinatura do Presidente da República para garantir o pleno direito territorial aos povos que ali habitam.
A Terra Indígena Kapôt Nhĩnore
A TI Kapôt Nhĩnore está situada na bacia do Xingu, na transição entre os biomas cerrado e amazônico, e sua localização vai de encontro às adjacências das Terras Indígenas Menkragnoti e Capoto/Jarina.
Segundo o resumo do Relatório de Identificação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, a história registrada da TI remonta à Expedição Roncador-Xingu, chefiada pelos Irmãos Villas-Boas a partir de 1945.
“Criada para conhecer os espaços ainda em branco no mapa, dela decorre o contato com diversos povos indígenas, o deslocamento de muitos deles, e a criação do Parque Indigena do Xingu. Estabelecido durante o mandato do então presidente Jânio Quadros, o Parque, em seu anteprojeto original, compreendia uma área dez vezes maior, e seus limites oficiais, que abarcavam a TI Kapôt Nhinore, foram modificados em 1968 e 1971, por decretos dos generais Costa e Silva e Garrastazu Médici, respectivamente”, afirma o relatório.
Apesar dos estudos de identificação terem começado apenas em 2004, as reivindicações pela área datam desde a década de 1980, de acordo com os processos das TIs adjacentes, habitadas por outros subgrupos Mebêngôkre.
Sobre a presença de ocupações não-indígenas na TI, segundo o resumo do Relatório de identificação, existem 201 ocupações, sendo 153 desses ocupantes caracterizados como “proprietários”, 32 como “posseiros” e 16 “sem informação”. Segundo o SIGEF, o Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para gestão das informações georreferenciadas dos limites dos imóveis rurais, existem registrados 144 imóveis sobrepostos à TI, cobrindo 74,5% de sua extensão, num total de 265.460 hectares.
Quando isso ocorre, de acordo com o parágrafo 6 do artigo 231 da Constituição Federal, os títulos de propriedade rural são anulados e extintos, por incidirem sobre uma Terra Indígena. Já as ocupações de boa-fé, por sua vez, são asseguradas por meio de uma indenização pelas benfeitorias realizadas.
Além disso, o Parque Estadual Xingu, se encontra completamente sobreposto pela parte sul da TI e corresponde a cerca de 25% dela. O Parque Estadual (PES) do Xingu foi criado através do Decreto 3.585/2001, como parte do conjunto de Unidades de Conservação do Mosaico da Terra do Meio. Inicialmente, o Parque abrangia uma área de aproximadamente 134.463 hectares. Dois anos depois, entretanto, a Lei 8054/2003, assinada pelo governador do Estado na época, Blairo Maggi, reduziu a área para 95.024 hectares.
Sobreposições de Terras Indígenas com Unidades de Conservação, como é o caso da TI Kapôt Nhĩnore com o PES do Xingu, não são incomuns e tampouco representam uma ameaça ao meio ambiente. Afinal, segundo estudo do ISA, povos indígenas e populações tradicionais são responsáveis por proteger um terço das florestas no Brasil.
Por outro lado, mesmo sendo uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, 92,7% do PES estão sobrepostos por propriedades rurais, segundo o SIGEF. Ou seja, parte dos imóveis rurais que estão sobrepostos à TI já eram sobrepostos a uma Unidade de Conservação de Proteção Integral.
Pressões e ameaças
Os Mebengôkre e os Yudja enfrentam há anos disputas por sua Terra, com diversos empreendimentos instalados irregularmente impulsionando a caça e a pesca predatória e indiscriminada.
Não obstante, os próprios municípios em que a TI está localizada acrescentam empecilhos para sua demarcação. Em 2017, por exemplo, a Advocacia-Geral da União (AGU) precisou intervir em uma ação do Município de São Félix do Xingu que buscava travar os estudos de identificação da área.
Segundo o Ministério Público Federal, a lentidão no processo se dá justamente por esse histórico de pressões, aliado à falta de empenho da Polícia Federal em coibir esse tipo de interferência. A ação cível pública impetrada na justiça pelo MPF em 2016 destaca que “no âmbito da administração pública federal, o principal óbice à garantia dos direitos territoriais das etnias Kayapó e Juruna é o descaso da Polícia Federal".
Chamado de Raoni
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Abertura do encontro “O Chamado do Cacique Raoni" na Aldeia Piaraçu, em São José do Xingu (MT)|Kamikia Kisêdjê/Amazônia Real
O encontro em que a aprovação do estudo foi anunciada aconteceu em São José do Xingu, na Terra Indígena Capoto/Jarina, no Xingu. Respondendo ao chamado do Cacique Raoni pela urgência de ações pela demarcação de Terras Indígenas, para redução dos impactos das mudanças climáticas e pela partilha de saberes ancestrais, o encontro de cinco dias reuniu mais de 800 indígenas de diversos povos.
Além da presença da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e da presidente da Funai, Joenia Wapichana, o “Chamado de Raoni” também contou com o secretário nacional de Saúde Indígena, Weibe Tapeba. A presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva também era esperada, mas um procedimento no quadril impediu a ida ao evento.
Ao final, uma carta assinada por todas as lideranças reunidas trouxe um alerta para o futuro. “Nossos ancestrais há muitos anos vêm avisando que a saúde da terra não é responsabilidade só nossa, ela é responsabilidade de todos, se o céu cair, a terra incendiar e as águas subirem, todos nós iremos morrer. Não há dinheiro que compre outro planeta”.
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Série especial do podcast Copiô, Parente! destaca protagonismo da luta indígena no Brasil nos últimos seis anos
Coleção reúne bastidores e depoimentos do livro “Povos Indígenas no Brasil 2017-2022” para retratar a memória dos mais de 260 povos que habitam o país
“Nossa história existe, está viva, e é exatamente por isso que a gente defende tanto a nossa terra”. É por meio de declarações como a da liderança Kayapó, Maial Paiakan, em entrevista ao livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022, que a série especial do podcast Copiô, Parente! demonstra a importância da luta indígena e da preservação da memória viva e coletiva dos mais de 260 povos que habitam o País.
Lançada pelo Instituto Socioambiental (ISA), a série tem por objetivo expandir a leitura da coletânea de livros ‘Povos Indígenas no Brasil”. Para isso, o especial traz os bastidores da publicação, depoimentos e entrevistas sobre temas como a situação atual dos povos indígenas no Brasil; arte; demarcação de terras; contexto político atual e nos últimos seis anos; e as mudanças nas políticas indigenistas.
Maial Paiakan, ativista de Direitos Humanos e de Direitos Indígenas do povo Kayapó, da Terra Indígena Kayapó (PA);
Angela Kaxuyana, integrante da coordenação executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) do povo Kaxuyana, da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana (PA); e
Vanda Witoto, ativista, palestrante e educadora do povo Witoto do Alto Solimões (AM).
Junto a elas, os apresentadores Gilmar Galache, do povo Terena, e Ester Cezar, jornalista do ISA, conduzem as entrevistas temáticas de cada episódio.
Na estreia da série a antropóloga Fany Ricardo, conta sobre a criação da coleção ‘Povos Indígenas no Brasil’. Fundadora do ISA e da coleção, no episódio a antropóloga fala sobre a importância do trabalho realizado para traçar um retrato da situação indígena nas últimas quatro décadas. Para ela, o objetivo segue o mesmo: “é uma maneira de mostrar a questão e de tentar influenciar para que a política indigenista seja [a fim de] de garantir os direitos indígenas, dos isolados e dos de contato antigo, de reconhecer as terras”.
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Na série, a pergunta ‘‘Quem são os povos indígenas?” abre a discussão de um dos episódios. Para responder à questão, o Copiô, Parente! entrevistou a antropóloga Tatiane Klein, uma das editoras da coleção. Com cerca de 1,5 milhão de indígenas, de cerca de 266 povos, falantes de mais de 200 línguas, o episódio aborda as diferentes realidades, processos de identificação e pressões vividas pelos povos indígenas no Brasil.
Para a antropóloga, o livro faz uma tentativa de mostrar um pouco dessa diversidade mas que, necessariamente, está incompleta na publicação, mesmo com os mais de quarenta anos de produção envolvendo toda uma rede de colaboradores indígenas, indigenistas e profissionais da área. “É sempre um retrato incompleto, mas ao mesmo tempo acho que é importante ser incompleto, porque mostra que são povos que estão reaparecendo”, pontua.
Para falar sobre os desafios enfrentados pelos povos indígenas no período retratado pelo livro, de 2017 a 2022, por sua vez, o podcast traz uma entrevista com a advogada do ISA, Juliana de Paula Batista. Um dos pontos explorados pela advogada marca o início das políticas anti-indígenas, como a edição de um parecer que condicionou a demarcação das Terras Indígenas ao chamado Marco Temporal.
Para ela, esse foi o principal retrocesso durante o Governo Temer (2016-2019), que colocou em risco os direitos dos indígenas sobre suas terras. “Isso vira um argumento de disputa para bancada ruralista, para as pessoas que são interessadas em anular as demarcações inviabilizarem os direitos territoriais de indígenas”, argumentou.
A série também traz a temática indígenas na arte para acordar a memória e resistir, com uma entrevista com a artista, ativista, curadora e educadora Daiara Tukano. No episódio, a artista traz as dificuldades enfrentadas por indígenas para inserção em espaços.
“A gente entra nesses espaços, de certa forma, pelo constrangimento. Porque nós somos o último grupo a entrar em qualquer espaço. É impressionante. Nós somos o último grupo da sociedade a entrar na universidade e nós também somos o último grupo da sociedade a entrar a ser reconhecido dentro desse espaço da arte”, afirma. Por outro lado, ela destaca que esse cenário está mudando, e existem cada vez mais curadores e artistas indígenas.
O último episódio da série traz as memórias do sócio-fundador do ISA, Márcio Santilli, sobre a luta para garantir os direitos indígenas na Constituição de 1988, e suas reflexões sobre este novo capítulo para os direitos indígenas no país.
"Esse processo de resistência, de crescimento, de reconhecimento na sociedade brasileira ao papel do movimento indígena, abre espaço para uma nova página da nossa história, da relação entre os povos indígenas e o Estado Brasileiro", destaca Santilli.
Povos Indígenas no Brasil 2017-2022
Criada na década de 1980 pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), organização que deu origem ao ISA, a publicação ‘Povos Indígenas no Brasil’ nasceu para dar visibilidade aos povos indígenas e à devastação de seus territórios, pouco conhecida na época, até mesmo pelos especialistas.
A edição mais recente, ‘Povos Indígenas no Brasil 2017-2022’, publicada pelo ISA, traz em suas mais de 800 páginas depoimentos, artigos, entrevistas em uma tentativa de retratar e registrar a história indígena contemporânea.
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Arte para fazer acordar a memória
Leia entrevista com a antropóloga, educadora e curadora Sandra Benites, indígena Guarani Ñandeva, para o livro "Povos Indígenas no Brasil 2017-2022"
Sandra Benites, primeira curadora indígena do Museu de Arte de São Paulo (Masp), nos faz um convite: acordar a memória através da arte. É assim que ela enxerga a importância do corpo indígena nesse espaço de disputa do campo simbólico. Da mesma forma, foi assim que ela apreendeu a ocupar seu espaço na curadoria e tenta imaginar a arte para além da sua obra, mas com o sentido coletivo da sustentação da batalha contracolonial.
Sandra é indígena Guarani Ñandeva, nascida na aldeia Porto Lindo/Jacare'y, no Mato Grosso do Sul, além de antropóloga, educadora e curadora. Atualmente compõe o corpo curatorial do Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo (SP).
Como começou a sua carreira de curadoria na arte?
Eu sou professora. A minha luta e a minha curadoria começaram antes, a partir da minha infância, da minha luta como mulher, enquanto mãe e também enquanto indígena. Tudo isso faz parte da minha formação curatorial. Eu acho que muitas vezes essas questões não são levadas em consideração nesses espaços curatoriais.
A minha entrada como curadora mesmo começou em 2017. Eu fui convidada para fazer parte da equipe curatorial da exposição "Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena”, para fazer um projeto dessa exposição sobre indígenas, muito focado na visão dos indígenas sobre a própria história do Rio de Janeiro.
Para isso, tivemos que nos escutar primeiramente, escutar, entre nós curadores, e pensar como é que a gente ia apresentar o projeto para os parentes do Rio de Janeiro. Nos juntamos à equipe e fomos visitar duas vezes as aldeias – e também chamar os parentes urbanos para fazer reunião.
Então, tudo partiu de um processo de encontro, de conversa. Eu gosto de falar a partir desse ponto de conversa. Nessa primeira experiência, apareceram muitas coisas. A primeira questão que apareceu desse processo histórico, [foi] a violência que toma vários corpos. Digamos: o processo que foi capturando os corpos de nós indígenas mesmo.
Esse entendimento influencia vários aspectos em relação às informações que são passadas sobre a gente e os espaços onde a gente pode, de fato, colocar o nosso campo de vista. A verdade é que ainda somos tratados com distância por várias instituições e pela própria comunidade [sociedade].
Fui até os Puri [indígenas de São Paulo] e com eles entendi que deveria trabalhar aspectos da memória, que é importante para todos nós indígenas. Os parentes falam em “acordar memórias”. Quando nós começamos a refletir sobre alguns silenciamentos, apagamentos da fala, das nossas vozes, dos nossos ancestrais, eles falaram que a gente precisa sempre acordar a memória.
Aí eu fui entender o papel que a arte tem para acordar a memória: é uma forma da gente resistir, é o nosso jeito de cada dia. Como eu sou Guarani, acordar a memória para a gente é sempre acordar pela memória – e a gente entende aquela memória como patrimônio, que são os nossos saberes, nossa forma de não perder as coisas que nos fazem.
Veja post sobre o retorno do manto Tupinambá, que cita Sandra Benites:
Esse é um aspecto que comecei a discutir enquanto curadora. Nossa memória continua nos mantendo e nos movimentando. Outra parte que a gente não pode esquecer é que essa questão é uma forma de entendermos o processo da colonização, que fez com que a gente se anulasse em várias formas de ser. Isso faz parte do modo de ser Guarani. Isso ficou muito forte pra mim: a questão da ocupação, de retomar os seus e nossos territórios ancestrais. Esse impedimento é da própria colonização, desse sistema colonial que nos impede de ocupar o nosso lugar de origem. É o lugar para o qual a gente tem que retornar, inclusive para a arte.
Em 2020, você se tornou a curadora adjunta do Masp e foi a primeira mulher indígena a ocupar esse espaço, que é um dos mais importantes da arte no Brasil. A partir dessa experiência, você considera que os espaços realmente estão se abrindo para os povos indígenas, para os artistas indígenas, ou é mais um caminho de espetáculo da diferença?
Quando eu entrei [no Masp], logo já começou a pandemia e fechou tudo. Na verdade, a exposição [que] eu fui chamada para fazer a curadoria, era sobre história indígena brasileira que ia acontecer em 2021. Só que como veio a pandemia, ela foi adiada para 2023.
Eu acho que fiquei isolada, de uma certa forma – eu entrei mas eu fiquei isolada. E eu achava que eu fiquei isolada por motivo da pandemia, mas aí eu vi que realmente não tinha muita preocupação em me acolher. Por isso, eu acho que, para mim, foi um lugar só para dizer que, para mostrar a minha competência, tinha que ser da forma que eles querem e não da forma que eu sou enquanto indígena. Por isso, eu acabei pedindo pra sair. Até porque, quando nós começamos a fazer a exposição "Histórias Brasileiras", fomos chamadas para fazer parte do núcleo da "Retomadas", que eu e a Clarissa [Diniz] dirigimos. Nós começamos a fazer o trabalho e veio o veto das fotografias do Movimento Sem Terra (MST) e isso me frustrou ainda mais.
Na verdade eu me coloquei dez vezes, [expliquei] como é o meu jeito de trabalhar. E aí, quando fui cobrar, me coloquei enquanto indígena, também nesse lugar que não é só [de] produzir e [de] estar ali só para atender demanda, [mas] eu não fui escutada. Eu fiquei muito chocada com isso e fiquei muito mal, porque me senti violentada, silenciada, de várias formas.
Quando eu entrei, me perguntaram o que é que eu iria mudar [no Masp]. Aí eu falei que não gostaria de mudar nada, mas faria o possível para me sentir como soma, [como] parte. Quando a gente soma, a gente amplia a coisa, né? E como eu não me sentia confortável para poder ampliar, eu saí pelo mesmo motivo que eu entrei: para ampliar.
Você considera que a arte contemporânea, em si, está preparada para receber essas outras narrativas e o corpo indígena?
Já existem muitos parentes fazendo isso, não somente como artistas mas como intelectuais, como acadêmicos, como lideranças e vários outros. A arte contemporânea aparece como resultado em uma obra, mas é muito mais que isso: artes contemporâneas existem dentro da comunidade e fora da comunidade.
O artista, nesse caso, faz a ponte. Nem todos os artistas que estão ali têm resistência, mas estão resistindo mulheres, homens, os mais velhos. Eles estão ali resistindo. Tem muita gente que vai, mas, enquanto isso, tem muita gente que fica também nas suas aldeias resistindo. Principalmente as mulheres, as mães, que estão ali praticando suas rezas para aqueles que estão lá fora.
O que é arte contemporânea para nós? É muito mais do que pode ser visto, porque tem coisas que não são para serem vistas, não são para serem faladas e isso é importante só para nós. Então, como é que a gente nomeia isso? Essa é uma outra questão, que eu chamo de memória ancestral e que também é um patrimônio para gente, por exemplo, os saberes das parteiras. Elas têm sua sabedoria para fazer parto, isso é dela e não é lugar em nenhum outro lugar assim. Isso também é arte contemporânea.
Não dá para apenas só chamar o artista que está na galeria, no museu ou independente do espaço. Porque, com isso, a gente pode reproduzir essa visão colonial e silencia também a outra parte da versão. A obra é muito maior do que aquilo que está ali, né? Vamos dizer… o objeto, a pintura, sei lá, o que aparece ali, é muito maior. Tem muita gente segurando a arte.
Quais são os outros espaços para além do museu que poderiam comportar a arte indígena?
Eu acho que esse espaço que eles estão reivindicando [da arte fora do museu] é importante, porque tem essa ideia de que o museu só recebe. Mas o museu também é a forma da cidade preservar o acervo, o conhecimento; essa ideia de ficar fixo para conservar é limitadora, que para ser preservado é importante manter na cidade.
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Da esquerda à direita: Sandra Benites, Watatakalu Yawalapiti, Vanda Witoto e Txai Suruí, no lançamento do livro "Povos Indígenas no Brasil 2017/2022"|Claudio Tavares/ISA
O que é importante para a gente, indígena, talvez não vai caber dentro do Museu. Por exemplo a dança; isso não vai caber no museu. Quando eu fui para o Masp, eu tive essa sensação também. Eu lembro de muitos parentes falarem assim: “Olha, como é que a gente vai fazer fogueira [aqui]?”. Por exemplo, quando queremos fazer uma roda de conversa só nós indígenas [Guarani], utilizamos a fogueira. Será que o museu deixa a gente fazer fogueira? Uma roda de conversa e em torno da fogueira? Não, não tem estrutura para isso. Então o que é que o museu pode fazer? A gente pode questionar isso. O museu pode se ampliar e se estender a partir dessa demanda. E eu acho que esse é o desafio: pensar nesses espaços [em] que caibam as necessidades reais dos indígenas.
Então a arte indígena não é essa coisa delimitada mas ao mesmo tempo precisa de uma demarcação? Qual é a importância política dessa demarcação?
A importância é de dizer que estamos ali também para disputar de igual para igual, com os artistas jurua [não indígenas] que têm esse conhecimento, que têm nome. Acho que os jovens artistas indígenas começaram a atravessar essas fronteiras com mais força. Na verdade, [essa fronteira] não foi colocada por nós; as fronteiras do mundo da arte também não foram colocadas por nós indígenas, mas pelo próprio pensamento ocidental de entender que a arte é dessa forma, de uma forma.
A gente também entende que nós temos a nossa essência enquanto indígenas, essência também na arte. Mas também temos consciência de que essa não é uma forma importante para a gente, mas, de uma forma muito irônica, a gente precisa estar dialogando, estar no mesmo lugar, até para poder discutir essas questões.
Você entende que a arte indígena pode ser uma ferramenta possível para fazer com que esse país acorde a sua memória e desperte para outros imaginários e realidades possíveis?
Para pensar o futuro, a gente precisa fazer como se fosse uma peneirada da memória, para que a gente siga com aquilo que é importante para gente e, claro, que a gente também não deixe o que foi ruim. Pois isso serve para a gente criar outros caminhos. Não é que a gente tem que deixar para trás, tem que esquecer tudo, não é isso. Na verdade, a gente precisa, a partir dela [memória], criar outros caminhos para o futuro e não renegar, não repreender o nosso sentimento.
A sociedade brasileira tem muito isso: [ela] se constituiu, ela se transformou, ela nasceu já com essa violência, com essa distorção das coisas. Nós somos isso e a gente precisa aceitar que nós somos diversos, que o Brasil foi de fato invadido e roubado, deturpado e violentado.
O que é preciso, hoje, é entrar em acordo com a nossa memória. Como é que a gente pode caminhar dentro dessa nossa diversidade? Os artistas indígenas estão fazendo a sua parte.
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Entrevista realizada por Tainá Aragão, jornalista do ISA, em 2022, via plataforma de viodeconferência
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Evoé, Zé Celso!
Ator e dramaturgo paulista trabalhava na adaptação do livro “A Queda do Céu” para os palcos quando faleceu, aos 86 anos. Leia nota de pesar do ISA
Davi Kopenawa cumprimenta José Celso Martinez Corrêa no lançamento do livro “A Queda do Céu”, em 2015, em São Paulo|Claudio Tavares/ISA
O Instituto Socioambiental (ISA) lamenta o falecimento nesta quinta-feira (06/07) do ator e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, um imenso farol na arte e cultura brasileiras e aliado na defesa dos direitos dos povos indígenas e tradicionais.
Nascido em Araraquara (SP), em 1937, Zé Celso, como era conhecido, foi um dos fundadores do Teatro Oficina, nos anos 1960 – uma experiência revolucionária que subverteu as convenções vigentes na época e inaugurou um novo caminho para a arte teatral brasileira.
Segundo o dramaturgo, foi em 1967, na estreia de “O Rei da Vela”, com texto do modernista Oswald de Andrade, que o Oficina concretizou seu teatro antropofágico e se tornou um dos pilares do movimento tropicalista.
“Eu era colonizado. Mas aí chegou ‘O Rei da Vela’ e Oswald de Andrade se tornou meu grande mestre, meu xamã. Fui interpretando tudo através dele: Shakespeare, Tchekhov. Toda a minha geração fez isso, a geração da Tropicália. A gente não engolia mais enlatado. A gente comia cultura colonizada e retornava com algo modificado. Nós todos, no fundo, somos índios”, afirmou em entrevista à revista Veja em 2017.
Em 2015, Zé Celso prestigiou o lançamento da obra “A Queda do Céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, no Teatro Eva Herz, em São Paulo. Oito anos depois, o diretor preparava a peça que adapta o livro para os palcos, quando infelizmente veio a falecer.
Segundo o ator e amigo Pascoal da Conceição, o espetáculo vai acontecer e deve marcar a inauguração do teatro do Parque do Rio Bixiga, um sonho antigo de Zé Celso.
Evoé, Zé!
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