O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa a avalanche de ações predatórias contra a Amazônia orquestrada por Bolsonaro e os ruralistas em meio ao ano eleitoral. Artigo publicado originalmente no site do Mídia Ninja em 13/5/2022
Parte da aldeia de Aracaçá, na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima, foi incinerada pelos próprios moradores. Após seguidos conflitos com invasores garimpeiros, os sobreviventes refugiaram-se em outras comunidades próximas. A Polícia Federal (PF) não encontrou indícios da ocorrência do estupro e morte de uma menina de 12 anos, conforme denúncia que ganhou repercussão nas redes sociais e imprensa. Segundo a Hutukara Associação Yanomami (HAY), no entanto, violência e ameaças vindas dos invasores generalizou-se em diferentes regiões do território.
Imagem
Maloca queimada na comunidade Aracaçá, Terra Indígena Yanomami (RR-AM) / Reprodução do perfil no Twitter
Incidentes com vítimas proliferam. Um levantamento realizado pela HAY mostra que metade das 360 aldeias Yanomami sofrem impactos diretos: assassinatos, troca de comida por sexo, contaminação por malária, covid, mercúrio e doenças venéreas, desestruturação cultural e produtiva.
Outro estudo, do projeto MapBiomas, revela a expansão da extensão devastada pela mineração predatória em todo país, que já é maior do que a ocupada pela mineração formal, embora responda por menos de 10% da produção mineral nacional. Cerca de 98% da área total sob mineração predatória está situada na Amazônia Legal Brasileira.
Ouro na mala
Imagem
Ouro apreendido pela PF em Sorocaba (SP) / PF
Também na semana passada, a PF apreendeu um carregamento ilegal de 78 quilos de ouro nas proximidades de Sorocaba (SP). O ouro, assim como o avião, não tinha autorização para circular. Ambos pertencem a Dirceu Frederico Sobrinho, dono da FD Gold, empresa com sede na Avenida Paulista, em São Paulo.
“Estou aqui para fazer um esclarecimento, para declarar que esse ouro pertence à minha empresa, FD Gold. Todo ele foi comprado sob permissão de lavra garimpeira concedida, que não pertence à área indígena, que não pertence a garimpos ilegais”, disse o empresário, sem esclarecer que garimpos legais eram esses e porque o transporte do ouro estava sendo feito de forma ilegal, embora escoltado por policiais militares.
A PF informou que o avião também foi apreendido porque é objeto de sequestro criminal em outro inquérito policial. Em 2018, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) realizaram a Operação Levigação, para tentar combater a lavagem de ouro clandestina no Pará. A ação resultou no bloqueio judicial de R$ 187 milhões em bens dos investigados. Um deles era Dirceu. Na época, a PF cumpriu mandados de busca e apreensão nos escritórios da DJ Gold em Itaituba e em São Paulo. Itaituba é um município do sudoeste do Pará, cuja economia é gira entorno da garimpagem ilegal e predatória nas terras do povo indígena Munduruku.
Dirceu não é de sujar as mãos em lama de garimpo e não bebe suco de mercúrio, mas é um dos que ficam com a parte da fortuna oriunda desse tipo de atividade. Em 2018, disputou a suplência do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e é frequentemente recebido por ministros de Estado e pelo vice-presidente, Hamilton Mourão. É um predador influente, descolado e beneficiado pelo avanço da predação mineral.
Mais desmatamento
Imagem
Queimada na Floresta Amazônica, em 2019 / Victor Moriyama / Greenpeace
Foi também na semana passada que a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) apresentou um documento, assinado pela maioria dos senadores, pedindo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que ponha em votação o chamado “Pacote da Destruição”, um conjunto de projetos de lei já aprovado pela Câmara dos Deputados que incentiva o roubo de terras públicas (grilagem), libera o uso de agrotóxicos indiscriminadamente e reduz o licenciamento ambiental a uma mera declaração dos executores de obras públicas e projetos econômicos.
Mesmo antes da sua aprovação final, a perspectiva de legalização de mais crimes ambientais já promove a explosão do desmatamento na Amazônia. O sistema Deter, operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), registrou mais de mil quilômetros quadrados de florestas derrubadas em abril, um recorde histórico para esse mês, considerado o último do período chuvoso. É esse o combustível que animará incêndios florestais ao final da estiagem. Após sucessivos saltos nos três últimos anos, a taxa de desmatamento na Amazônia deve saltar de novo em 2022, graças à cumplicidade do governo Bolsonaro e ao vale-tudo em ano eleitoral.
Como se já não bastasse, a pródiga semana deu lugar, ainda, à aprovação pelo Senado de um projeto de lei complementar que estabelece como sendo de “relevante interesse público da União” a implantação de linhas de transmissão de energia em terras indígenas. Não surpreenderia uma eventual piora no seu texto durante a sua tramitação na Câmara. Povos e organizações indígenas não foram ouvidos antes dessa aprovação.
Agora ou nunca
Imagem
Reunião entre bancada ruralista e Jair Bolsonaro, em 2018 / FPA
Como se vê, a devastação da Amazônia é um projeto político de governo, respaldado por bancadas corporativistas e segmentos empresariais criminosos. A taxa de desmatamento, assim como as emissões de gases do efeito estufa decorrentes, decorre de processos variados, como a mineração predatória, a grilagem de terras, a extração de madeira, a má execução de obras. Sendo oficialmente promovidas, em vez de reprimidas, essas atividades predatórias levam vantagem na concorrência com a produção similar que se pretenda sustentável.
A estratégia política que orienta esse processo é de que, ao privilegiar segmentos específicos, mesmo criminosos, o governo obtém um retorno político imediato e consistente, embora setorial, enquanto que os danos causados ao patrimônio público e ao conjunto da sociedade têm caráter mais difuso e cumulativo, e raramente geram reações contundentes imediatas. É um processo que acumula passivos hediondos e acaba isolando o Brasil do mundo civilizado, mas os grupos de interesse predatório seguem disputando eleições e se reproduzindo, mesmo que à revelia dos interesses da maioria.
Agora, com a aproximação das eleições e a possibilidade de mudanças políticas significativas, o nervosismo espalha-se por toda essa teia predatória. É por isso que a Amazônia, seus povos e recursos naturais estão sendo atacados por todas as frentes pelos que tentam consumar outro patamar de devastação. Um novo governo terá que dispor de apoios e estratégias para desarmar essa bomba e para repor, o quanto antes, o Brasil na agenda contemporânea.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
STF forma maioria contra marco temporal e entidades alertam para fragilização das demarcações
Apesar de reconhecer a inconstitucionalidade da tese, voto do relator Gilmar Mendes cria prazos e exceções que podem enfraquecer a proteção territorial das Terras Indígenas
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria nesta quarta-feira (17/12) pela inconstitucionalidade do marco temporal para a demarcação de Terras Indígenas (TIs). A maioria foi consolidada com o voto do ministro Alexandre de Moraes, que acompanhou o relator, ministro Gilmar Mendes. O entendimento já havia sido seguido, em maior ou menor medida, pelos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, Luiz Fux e José Antonio Dias Toffoli.
Imagem
Plenário do STF durante sessão de julgamento da Lei do Marco Temporal|Victor Piemonte/STF
Apesar do reconhecimento da inconstitucionalidade da tese, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e organizações aliadas alertam que o voto do relator introduz novas regras, prazos e exceções que podem, na prática, fragilizar a proteção constitucional dos territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas.
Para a Apib, o problema não está apenas no afastamento formal do marco temporal, mas nos efeitos concretos que o voto pode produzir sobre os processos de demarcação. “A Apib tem uma profunda preocupação com relação aos impactos da decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes no futuro das Terras Indígenas, pois apesar da rejeição do Marco Temporal, o voto apresentou inúmeros entraves para os processos administrativos de demarcação”, afirma Ricardo Terena, advogado da organização.
A Apib protocolou memoriais no STF no âmbito do julgamento que analisa a constitucionalidade da Lei nº 14.701/2023, que tentou reintroduzir o marco temporal. O julgamento ocorre em plenário virtual até essa quinta-feira (18) e reúne a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586.
Nos documentos apresentados à Corte, as entidades apontam dez pontos de retrocesso identificados no voto do relator. Entre os principais alertas está a possibilidade de o Estado oferecer “terras equivalentes” quando alegar impossibilidade de demarcação. Para o movimento indígena, a proposta retoma a lógica histórica de remoções forçadas, substituindo territórios tradicionais por áreas alternativas, muitas vezes distantes, inadequadas ou sem vínculo histórico e cultural com as comunidades afetadas.
Outro ponto crítico é a criação de prazos que podem inviabilizar novas demarcações. Pela proposta, após um ano do trânsito em julgado, pedidos de reconhecimento territorial deixariam de resultar em demarcação e passariam, como regra, para desapropriação por interesse social. Segundo as entidades, essa lógica esvazia o direito originário, que não depende de prazos nem de ato concessivo do Estado.
Os memoriais também alertam para a criminalização das retomadas indígenas, prática recorrente em contextos em que o poder público demora décadas para concluir processos demarcatórios. O voto prevê restrições e remoções que podem transformar comunidades inteiras em alvos de ações policiais, agravando conflitos fundiários já marcados por violência, como ocorre com os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
Há ainda preocupação com a fragilização dos laudos antropológicos, base técnica da demarcação de Terras Indígenas. A aplicação de regras típicas do processo judicial a estudos administrativos pode colocar sob suspeita o trabalho técnico de antropólogos da Funai e abrir espaço para disputas políticas sobre critérios que deveriam ser essencialmente técnicos.
Segundo Renata Vieira, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), “uma das preocupações tem sido o reconhecimento no voto dos ministros de que houve um suposto consenso na mesa de conciliação criada pelo gabinete do Ministro Gilmar Mendes, sendo que a Apib se retirou do acordo e o produto que está sendo homologado nos votos se refere a direitos que são indisponíveis, não podem ser objeto de negociação e não foi consensuado entre as partes”.
Os documentos apresentados ao STF reafirmam o entendimento já consolidado pela própria Corte no Tema 1031 no julgamento do RE 1017365, segundo o qual os direitos territoriais indígenas, previstos no artigo 231 da Constituição, são direitos fundamentais e cláusulas pétreas, não podendo ser reduzidos nem por leis ordinárias nem por emendas constitucionais.
Nesse contexto, ganham destaque as divergências apresentadas pelos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin e Dias Toffoli. Dino sustenta que o direito indígena ao território integra o núcleo intangível da Constituição e não pode ser flexibilizado por soluções administrativas. Ele também rejeita a aplicação de regras do processo judicial aos laudos antropológicos e defende que, em casos de sobreposição entre TIs e Unidades de Conservação, deve prevalecer o usufruto indígena. Zanin acompanha essa posição e reforça o caráter de cláusula pétrea dos direitos territoriais.
Pedido ao STF
Diante desse cenário, a Apib e as entidades subscritoras pedem que o STF consolide um entendimento que afaste definitivamente o marco temporal e qualquer mecanismo que produza efeitos equivalentes, reafirmando o que já foi decidido no Tema 1031. O movimento indígena também solicita que o julgamento seja realizado de forma conjunta e, preferencialmente, presencial, incluindo os embargos de declaração pendentes, para garantir segurança jurídica e evitar decisões fragmentadas.
Para a Apib, o julgamento não trata apenas de uma controvérsia jurídica. “O que está em jogo é se a Constituição será cumprida integralmente ou se os direitos originários dos povos indígenas continuarão sendo condicionados à conveniência administrativa e orçamentária do Estado”, destacam os memoriais.
O documento é subscrito por 14 entidades, entre elas a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), os partidos PSOL e Rede Sustentabilidade, além de organizações de reconhecida atuação em direitos humanos e na agenda socioambiental, como o Instituto Socioambiental (ISA), a Comissão Arns, a Conectas Direitos Humanos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Observatório do Clima, o Greenpeace Brasil, o WWF-Brasil, o Instituto Alana, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a Associação das Comunidades Indígenas Tapeba de Caucaia e a Associação de Juízas e Juízes pela Democracia (AJD).
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Plano Nacional de Logística precisa ouvir povos da Amazônia
De castanheiros a indígenas, as histórias de quem depende de rios e longas viagens revelam os desafios e as urgências para incluir a sociobiodiversidade no PNL 2050
Leonardo de Moura
- Assessor técnico do ISA
Mariel Nakane
- Assessora do ISA
Andressa Neves
- Analista de Conservação do WWF-Brasil
Um ribeirinho da Reserva Extrativista (RESEX) Riozinho do Anfrísio, no Pará, troca sua produção anual de castanha-do-brasil com um atravessador por mercadorias de primeira necessidade. A castanha é vendida por valores abaixo do mercado, enquanto os produtos comprados – café, sandálias e facão – chegam a custar até 200% mais caro que na cidade. Ele sabe da diferença de preços, mas qual seria a alternativa? Para levar sua produção até Altamira, seriam necessários 600 litros de gasolina e vários dias de viagem pelos 500 quilômetros de rio que separam a comunidade do centro urbano.
Imagem
João Neto navega dentro do igapó para acessar os castanhais na Terra do Meio|Anna Maria Andrade/ISA
Na Terra Indígena (TI) Xipaya, um pouco mais acima do mesmo rio, um indígena espera há uma semana por carona para levar a mãe idosa até Altamira e realizar a prova de vida do INSS. São três dias de viagem, 800 litros de combustível e, embora haja alojamento comunitário na cidade, os gastos são altos com alimentação. Além disso, a espera pela carona de volta é imprevisível – e o tempo fora de casa prejudica as atividades agrícolas e extrativistas sazonais.
No Território Indígena do Xingu (TIX), em Mato Grosso, onde vivem cerca de nove mil indígenas de 18 povos, algumas aldeias têm acesso terrestre a centros urbanos. Ainda assim, a ausência de transporte coletivo obriga quem não consegue carona a pagar fretes caros para acessar serviços básicos como saúde, documentação e comércio.
Na TI Yanomami, no Amazonas e Roraima, o desafio é ainda mais complexo. A maior parte da população indígena só chega às cidades por via aérea, em pequenas aeronaves de baixa capacidade de carga. Assim, o transporte de pessoas e insumos depende de “caronas” em aviões que prestam serviço à saúde ou à Funai. Isso afeta tanto o acesso a serviços quanto às oportunidades de renda, limitadas a produtos leves e de alto valor agregado.
Imagem
Neblina, fumaça e voadeira no Rio Xingu, localizado no Território Indígena do Xingu (TIX), Mato Grosso|Erik Vesch/Cama Leão/ISA
Os exemplos acima revelam as enormes distâncias e desafios de mobilidade na Amazônia. Para efeito de comparação, Altamira, município onde estão a Resex Riozinho do Anfrísio e a TI Xipaya, tem sua área uma vez e meia maior que Portugal e abriga um mosaico de Áreas Protegidas que somam mais de nove milhões de hectares. No entanto, apenas a região próxima à cidade é atendida por transporte público.
Fato é que as dificuldades logísticas comprometem a viabilidade econômica das cadeias da sociobiodiversidade, enquanto a falta de mobilidade afeta o exercício de direitos básicos de comunidades. Por trás de cada família prejudicada, há uma pergunta que o país ainda não conseguiu responder: como garantir o direito de ir e vir, de produzir e de acessar serviços, sem causar grandes impactos no território? É essa reflexão que começa a chegar às mesas de planejamento do Estado brasileiro.
No dia 4 de junho, pela primeira vez, o Ministério dos Transportes (MT) – provocado por organizações da sociedade civil – promoveu uma escuta com especialistas e representantes de povos e comunidades tradicionais de todo o país. O objetivo foi debater os desafios logísticos das economias da sociobiodiversidade e da mobilidade em territórios indígenas, quilombolas e tradicionais, para subsidiar o diagnóstico do Plano Nacional de Logística 2050 (PNL 2050).
Historicamente, o planejamento de transportes chega aos povos da floresta apenas como impacto negativo: grandes obras, compensações e consultas não realizadas. Portanto, a reunião representou um marco na tentativa de construir uma agenda estrutural para a política de infraestrutura de transportes voltada a esses povos. Os relatos mostraram que superar os desafios dos territórios coletivos exige mudar o próprio paradigma de desenvolvimento que orienta os planos setoriais.
Imagem
Participantes da marcha do Acampamento Terra Livre (ATL) de 2025 protestam contra a Ferrogrão|Renan Khisêtjê/AIK/ISA
Investimentos em ferrovias, hidrovias e rodovias isolados das necessidades de povos e comunidades tradicionais não são adequados às economias da sociobiodiversidade nas realidades amazônicas onde comunidades vivem dispersas em vastas áreas de floresta. Em vez de mega infraestruturas que frequentemente trazem mais impactos negativos do que soluções e são desconectados das dinâmicas de mobilidade e escoamento da Amazônia, a proposta que vem da floresta é a criação de um programa de logística com soluções adaptadas, regionalizadas e intermodal, que conecte a produção da floresta e o deslocamento das pessoas até os centros urbanos.
A partir das experiências e das contribuições da reunião com o MT, o governo tem agora subsídios para somar a sociobiodiversidade como eixo estratégico de desenvolvimento. Incorporar essa perspectiva significa reconhecer e fortalecer os territórios coletivos – e finalmente incluir, no PNL 2050, os povos e comunidades que há séculos protegem as florestas e biomas em benefício de toda a sociedade brasileira.
É hora de transformar políticas em ação: fazer do PNL um dispositivo de redução de desigualdades regionais, de fortalecimento das economias locais sustentáveis e de reconhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais, garantindo que suas vozes, direitos e modos de vida sejam centrais na construção do desenvolvimento sustentável no Brasil.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
A solução que vem da Caatinga
Caatinga Climate Week coloca o bioma exclusivamente brasileiro no centro do debate climático a partir de experiências e saberes de povos e comunidades tradicionais
Caatinga Climate Week: saberes e resistências que floresceram durante quatro dias no coração do Semiárido pernambucano|Arthur de Souza/Centro Sabiá
O chão de terra arenoso entre o amarelo e o cinza, as árvores secas enfileiradas com mandacarus imponentes, a vegetação amarelada e rasteira, que compõem parte de um cenário que no imaginário de muita gente é sinônimo de pobreza, escassez e fome, foram territórios férteis de debates intensos, vivências e trocas entre os dias 1 e 4 de outubro, na região agreste de Pernambuco. Mas não são só essas características que formam o bioma Caatinga, que recebeu nos primeiros dias de outubro a Caatinga Climate Week, iniciativa organizada pelo Centro Sabiá, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
As experiências compartilhadas durante os quatro dias mostraram que o único bioma exclusivamente brasileiro é também morada de milhares de espécies nativas, de uma sociobiodiversidade diversa e rica, de frutas e flores que desabrocham quando vem a chuva e de povos e comunidades tradicionais que há séculos desenvolvem suas estratégias de adaptação a partir de seus saberes ancestrais.
A Caatinga, bioma presente nos estados da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Ceará, Piauí, Maranhão e Minas Gerais e imortalizada na memória de cada brasileiro pelas letras de Luiz Gonzaga, ilustre pernambucano da cidade de Exu, é também a Caatinga expressada nas falas da líder índigena e coordenadora da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Elisa Pankararu, da etnia Pankararu, localizada no sertão de Pernambuco: a Caatinga é um bioma de resistência e de beleza.
Imagem
Elisa Pankararu: "Somos de beleza, de cultura e de conflito também, porque somos de resistência e somos de enfrentamento"|Beto Figueroa/Centro Sabiá
Segundo ela, a imagem que foi construída no país sobre o bioma é repleta de preconceito e discriminação, mas precisa ser superada: “Está nas artes, no cinema, nas pinturas, nos quadros e nós sempre somos visto como um lugar de mulheres feias com seus maridos magros, e crianças magras e feias também. E não somos. Somos de beleza, de cultura e de conflito também, porque somos de resistência e somos de enfrentamento", completou Elisa Pankararu, uma das lideranças mais respeitadas entre os povos de sua região e no movimento indígena brasileiro.
A Caatinga Climate Week
Durante quatro dias, entre as cidades de Caruaru, Garanhuns, Pesqueira, Vertentes, Jucati, Caetés, Arcoverde e Buíque, entre o agreste e o sertão pernambucano, cerca de 500 pessoas, de vários estados do país, passaram pelo evento e debateram a urgência de colocar a Caatinga no centro do debate climático.
Organizações da sociedade civil, movimentos de base de povos e comunidades tradicionais e da agroecologia, lideranças indígenas e quilombolas, ativistas socioambientais, representantes do poder público, influenciadores digitais e jornalistas puderam ver de perto diferentes experiências ao longo dos 400 quilômetros percorridos pela Caatinga Climate Week, nome propositalmente escolhido para fazer o contraponto a semanas internacionais que debatem a pauta do clima, como a Climate Week NYC (Semana do Clima de Nova York), ocorrida exatamente na semana anterior, em Nova Iorque, Estados Unidos.
Além dos filhos do bioma Caatinga, também estiveram presentes representantes da Amazônia, do Cerrado e da Mata Atlântica.
Segundo o coordenador de Mobilização Social do Centro Sabiá, Carlos Magno, o objetivo do evento foi mostrar que o povo da Caatinga, a partir de suas experiências, tem capacidade de ser protagonista das discussões feitas nos eventos climáticos e, sobretudo, agora no contexto da COP30, que será realizada em novembro, em Belém/PA.
“Essa semana do clima tem o intuito de fazer pontes, de conectar pessoas de diversos lugares para que a gente consiga realmente levar essa mensagem para a COP, de colocar a Caatinga no centro do debate climático. Seja em português, seja em inglês, seja em espanhol”, disse Carlos Magno, durante a plenária de abertura, realizada no Centro de Formação Paulo Freire, no assentamento Normandia, em Caruaru, uma das principais experiências de reforma agrária da região Nordeste.
Para a secretária executiva do ISA, Adriana Ramos, iniciativas como a Caatinga Climate Week são necessárias e urgentes para que o país possa aprender com os povos desse bioma as soluções que eles já apresentam.
Imagem
Adriana Ramos (ISA) e Carlos Magno (Centro Sabiá) destacam as soluções dos povos da Caatinga em meio às adversidade|Beto Figueroa/Centro Sabiá
“Aqui é um berço de grandes ideias. De um povo muito forte que vem construindo soluções, que é o que o mundo hoje está buscando. Soluções para o enfrentamento de situações muitas vezes adversas, sobretudo agora com as mudanças climáticas, situações criadas por outros, mas que a gente precisa ajudar a remediar. Então é uma grande honra poder estar aqui, se inspirando, bebendo nessa fonte e trazendo alguma contribuição", pontuou.
Rodrigo Junqueira, secretário-executivo do ISA, destacou que os outros biomas têm ainda muito o que aprender com a Caatinga, que já vem colocando em prática diferentes estratégias de adaptação climática.
“Vocês podem contar com a gente nessa continuidade, com tanta força, tanta resiliência, tanta resistência. Poder levar para Belém e para a COP todo esse aprendizado, toda essa luta que vocês têm. E saber que muito do que os outros biomas ainda estão aprendendo, sobre o que é adaptação, por exemplo, vocês já sabem, porque a vida de vocês passa por isso".
O evento não só cumpriu o objetivo de trazer o bioma de Luiz Gonzaga e de Patativa do Assaré para o centro da pauta mais debatida no momento, como mostrou que os povos da Caatinga têm as soluções para enfrentar a crise.
“A gente quer só que as pessoas reconheçam que a Caatinga é importante e que a gente pode construir muita coisa a partir desse lugar, da experiência dos povos, da inteligência coletiva que esse povo tem, da resistência e da resiliência que essas comunidades construíram nesse território", pontuou Carlos Magno.
Macaxeira: alimento, memória e resistência
Não eram nem 9 horas da manhã de quinta-feira (02/10) quando um grupo de cerca de 20 pessoas chegou no Sítio Serrote dos Bois, na zona rural de Caruaru, cidade pólo do agreste pernambucano e a primeira parada da Caatinga Climate Week. Aluísio Barbosa e Maria José Barbosa, agricultores familiares responsáveis pela casa, receberam os visitantes com café, chá, bolo de macaxeira e beiju. O alimento servido no intervalo da visita era fruto do principal assunto das mais de duas horas de conversa: a macaxeira.
Ali, no semiárido, a raiz, que em alguns lugares do Brasil é chamada de mandioca e em outros de aipim, é muito mais do que alimento e raiz fincada na terra. É também memória e resistência. A partir dela, agricultores familiares produzem farinha, beiju, goma, tapioca e tantos outros derivados e preservam o modo de vida tradicional de manejar a terra.
Enquanto caminhava com o grupo de visitantes pela plantação, Aluísio explicava como a macaxeira se tornou o principal alimento e fonte de recurso das famílias daquela região, tendo substituído a batatinha por ser mais adaptada aos longos períodos sem chuva do semiárido. Uma das aliadas nesse processo é a cisterna que Aluísio tem em seu quintal, parte do bem sucedido Programa de Cisternas do Governo Federal, tecnologia de acesso à água que já atendeu mais de 130 mil famílias nos últimos dois anos.
“Hoje, como eu sofri muito com a falta de água, eu tenho 208 mil litros de cisterna”, contou Aluísio.
Imagem
Cisternas do Programa de Cisternas, tecnologia de acesso à água que já atendeu mais de 130 mil famílias nos últimos dois anos|Túlio Seabra/Centro Sabiá
João Barbosa da Silva, o Dão responsável pela casa de farinha da Associação do Pequeno Produtor Rural de Caruaru, também fala sobre as diversas formas de se aproveitar a macaxeira. “Agora nós vamos conhecer como é o processo com ela para transformar na farinha. Ela tá dura, mas ela vai ser triturada, depois vai ser espremida a água, e depois torrada aquela massa”, explicou, percorrendo por todo o processo de produção da farinha e outros derivados da raiz.
Ao final da visita, Aluísio e Dão se juntaram também a José João dos Santos, conhecido como Pelé, para falar sobre os atuais desafios para as famílias que vivem da agricultura familiar na região, que passam pelos impactos das mudanças climáticas no plantio da macaxeira e em seus modos de vida, até o crescimento das frentes de trabalho precário na indústria têxtil da região de Caruaru.
“Passou esse tempo bom e agora a gente tá no tempo ruim. Mas mesmo no tempo ruim eu dou conselhos a muitos pais de família aqui para segurar os filhos na agricultura, incentivar, porque eu sou um exemplo disso”, disse Aluísio, cuja filha é responsável pela venda dos produtos na feira da agricultura familiar.
Nesse mesmo dia, além da visita ao Sítio Serrote dos Bois, os participantes da Caatinga Climate Week, divididos em grupos, visitaram as mulheres agricultoras do Sítio de Carneirinho, que se uniram em associação para acessar políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); e uma família na zona rural do município de Vertentes, que transformou a escassez de água em oportunidade de produção agroecológica diversificada, por meio das tecnologias sociais de adaptação climática.
Fé no sagrado guia mulheres negras quilombolas
A chegada nas comunidades quilombolas de Castainho e Estivas, na zona rural de Garanhuns, só foi permitida depois de pedir licença aos ancestrais que protegem o território. A recepção do grupo composto por 18 participantes da Caatinga Climate Week ficou por conta de Maria José Isídio, conhecida como Mestra Zeza do Côco, e sua filha Edvani Lopes Isídio, ambas lideranças do Quilombo Castainho; e Aparecida Nascimento e Marinho dos Santos, lideranças do Quilombo Estivas.
Imagem
18 participantes da Caatinga Climate Week pediram licença para entrar no território do Quilombo Castainho|Beto Figueroa/Centro Sabiá
Imagem
Os cânticos na frente da capela honram a resistência, tradição e cultura quilombola e fortalecem na luta pelo território|Beto Figueroa/Centro Sabiá
De frente a uma capela com uma porta no meio e duas cruzes laterais e diferentes imagens de santos em seu interior, as lideranças entoaram cânticos que fazem referência à travessia pelo Oceano Atlântico de escravizados retirados do continente africano e sua chegada até os territórios quilombolas que seguem resistindo para manter sua tradição, sua cultura e, principalmente, seu direito ao território.
“Pedir licença a essas pessoas que passaram por aqui, que chegaram primeiro antes de nós. Então a gente pede essas bênçãos para todos vocês que estão visitando esse território, que é um território sagrado. Se a gente compreende que essa terra que nós estamos pisando é nosso corpo, que a água que a gente bebe para sobreviver é o nosso sangue, a gente entendeu isso”, explicou Aparecida Nascimento, conhecida como Cida.
Principal liderança do Quilombo Castainho, Mestra Zeza do Côco abriu a porta de sua casa embolando um côco que fala da luta de sua família em preservar as tradições daquele território. Ela e sua filha Edvani apresentaram as estruturas da casa de farinha, de onde tiram os sustento da família.
Imagem
Principal liderança do Quilombo Castainho, Mestra Zeza, compartilha emocionada o que a cultura da mandioca representa para ela e sua família||Beto Figueroa/Centro Sabiá
“Não se perde nada da mandioca, tudo é utilizado. Tudo”, sentenciou Edvani, que junto com a mãe mostrou todas as etapas do processo de aproveitamento da raiz, a mesma que os agricultores do Sítio Serrote dos Bois, em Caruaru, chamam de macaxeira.
Mestra Zeza, emocionada, emendou contando o que a mandioca representa para a família: “Eu sinto um orgulho muito grande de falar, sempre eu falo isso. Porque eu vendi na feira por 34 anos. E foi daqui da casa de farinha que eu eduquei meus filhos. Eu tenho quatro filhos que saíram de mim e tenho três do coração. Eu sempre me emociono, porque foi daqui, dessa casa de farinha, que a gente educou nossa família. Tenho três filhos que conseguiram se formar, e foi da casa de farinha e vendendo na feira”, disse, entre choro e aplausos.
Castainho, com cerca de 350 famílias, foi o primeiro quilombo de Pernambuco a receber a titulação parcial da terra, isso porque parte dos 193 hectares que formam o território está judicializado.
“Isso veio depois de muitas lutas, muitas ameaças, pela defesa dos nossos territórios, que é algo essencial para a gente. Não existe justiça climática, se não existir demarcação e titulação dos territórios quilombolas. Nós acreditamos nisso, porque sem nosso território, nós não somos nada, e a partir dos territórios é que nós vamos manter a preservação, a conservação dos nossos biomas, da nossa fauna, da nossa Caatinga, que é algo essencial para a gente. Território é vida, é ancestralidade”, defendeu Edvani.
No Quilombo Estivas, comunidade vizinha de Mestra Zeza do Côco e Edvani, se destacam as hortas orgânicas e os quintais produtivos com as técnicas e saberes da agroecologia. Cida, a mesma que recebeu a equipe da Caatinga Climate Week na entrada do território, explicou que as mulheres do quilombo estão na linha de frente dos trabalhos em comunidade, a partir do Coletivo de Mulheres Negras Quilombolas Flor de Dandara. Elas também são a maioria nos cargos de liderança da associação do Quilombo Estivas.
Nesta comunidade, a cisterna também garante a oferta de água para uso doméstico e no trabalho na roça. Mas, segundo os relatos de Cida e de outras mulheres da comunidade, os impactos das mudanças climáticas já podem ser sentidos. Neste ano, o alface não cresceu como de costume, por falta de sol, e a plantação de coentro não vingou, por conta da grande incidência de geadas.
Diferentemente de Castainho, Estivas, com pouco mais de 200 famílias, ainda não conquistou a titulação da terra e a comunidade enfrenta uma série de ameaças nesse processo. “Nossa luta não será em vão. Temos muita fé que o mundo vai olhar para nós, e que conquistaremos a titulação e a preservação do nosso território quilombola”, destacou Marinho dos Santos.
Imagem
Caatinga Climate Week também passou pelo território Xukuru, para ver as estratégias de adaptação e mitigação a partir dos saberes ancestrais|Tulio Seabra/Centro Sabiá
Imagem
A atividade "Roçados da Resistência" compartilhou a experiência de agricultores comprometidos com a preservação da biodiversidade|Tulio Seabra/Centro Sabiá
Nesse dia, além das visitas aos quilombos de Garanhuns, a Caatinga Climate Week também esteve com famílias agricultoras que enfrentam os efeitos da instalação de parques eólicos em sua comunidade, no município de Caetés; com agricultores que trabalham com rede de sementes crioulas e na preservação da biodiversidade e da paisagem agrícola, no município de Jucati; e com indígenas do território Xukuru, que desenvolvem estratégias de adaptação e mitigação a partir dos saberes ancestrais da agricultura indígena, no município de Pesqueira.
Vale do Catimbau: espaço sagrado afroindígena
O último dia da Caatinga Climate Week foi com uma plenária final no Parque Nacional do Catimbau, localizado entre o agreste e o sertão pernambucano, nos municípios de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim.
O encontro reuniu lideranças indígenas das etnias Xukuru, Pankararu, Pankará, Fulni-ô, Kapinawá e Kambiwá, que saudaram os participantes com seus cantos e rezas.
Liderança do povo Kapinawá, território indígena onde fica parte do Parque Nacional do Catimbau, Cacique Robério Kapinawá falou sobre a necessidade de os espaços de discussão sobre clima ouvirem os povos da Caatinga.
“É importante que de fato a gente diga ao mundo, diga ao Brasil, que nós existimos. Se batem numa tecla de dizer que a Amazônia é o pulmão do mundo, também é importante ter o reconhecimento que a Caatinga é o bioma natural do Brasil e precisa ser valorizado. Isso precisa ser discutido nas mesas de debate sobre clima e de qualquer tipo de discussão”, enfatizou Cacique Robério.
Imagem
A plenária final teve a presença de lideranças indígenas das etnias Xukuru, Pankararu, Pankará, Fulni-ô, Kapinawá e Kambiwá|Arthur de Souza/Centro Sabiá
Imagem
Reunião de despedida ocorreu no Parque Nacional do Catimbau, localizado entre o agreste e o sertão pernambucano|Arthur de Souza/Centro Sabiá
“A gente fala de Caatinga, que às vezes é muito desvalorizada por quem não tem o conhecimento e não tem a vivência. E a gente veio aqui justamente pautar esse assunto, dentro desse contexto de emergência climática, que a gente também vai dialogar”, completou Hugo Fulni-ô, indígena do povo Fulni-ô.
Liderança do Quilombo Mundo Novo, em Buíque, Irailda Leandro deu o recado para que o país passe a enxergar a Caatinga como um celeiro de cultura e biodiversidade.
“A gente não quer que as pessoas cheguem com peninha da gente. A gente quer que vocês possam chegar a acessar o meu território, com ideia para que as minhas e os meus parentes possam adquirir conhecimento para sobreviver com dignidade. Então esse momento aqui é riquíssimo. A gente tem condições de sobreviver do território, de tirar da terra, da mãe terra a nossa sobrevivência, mas as pessoas insistem para que a gente seja ignorante, que a gente não tenha acesso aos conhecimentos e nem acesso a essas políticas públicas que possam nos libertar”.
Nos dias 1 a 4 de outubro, o agreste pernambucano vai abrigar a Caatinga Climate Week, iniciativa do Centro Sabiá e em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), que é um chamado global para reconhecer o Semiárido como território estratégico na agenda climática, especialmente às vésperas da COP30.
Durante quatro dias, lideranças indígenas, quilombolas, assentados, agricultoras e agricultores agroecológicos, cientistas, movimentos sociais e gestores públicos vão percorrer mais de 400km, entre 7 municípios, onde já estão acontecendo soluções reais de adaptação à crise climática, principalmente em Caruaru, Garanhuns e Buíque.
Imagem
Evento ocorre de 1 a 4 de outubro no agreste pernambucano|Divulgação
A experiência imersiva é inspirada em semanas do clima globais, como a de Nova York, e busca levar o debate climático para dentro do território mais afetado. A trilha será baseada em experiências concretas que mostram que o Semiárido, longe de ser um território de escassez, é um laboratório vivo de resistência e inovação climática, e que pode servir de referência para outras regiões e países que têm enfrentado a escassez hídrica e lidado com tempos cada vez maiores de estiagem e secas prolongadas.
A Caatinga vem sofrendo com as mudanças climáticas e com a ameaça da desertificação. O bioma, que já perdeu quase metade da sua vegetação nativa e tem o clima cada vez mais quente e seco, tem se tornado um ambiente pouco favorável para os mamíferos e outras espécies. De acordo com estudo publicado pela Global Change Biology, até 2060, a região poderá perder até 91,6% das suas espécies de mamíferos e 87% dos seus habitats naturais.
O MapBiomas mostra que a Mata Branca teve perda de vegetação primária de 15 milhões de hectares entre 1985 e 2020, o que representa mais de 26% da floresta. O levantamento mostrou um decréscimo de 40% nos cursos de água natural que fluem pela região. Quase a totalidade do bioma no Brasil está classificada entre as Áreas Suscetíveis à Desertificação (ASD).
Para Carlos Magno, coordenador do Centro Sabiá, “a Caatinga pode e deve ser referência no debate climático, pois já existem diversas experiências concretas de adaptação climática, além de ser um território que está enfrentando o avanço dos empreendimentos de energia renovável”.
Visitas de campo
Em Caruaru/PE, a atividade “Entre agulhas e enxadas: a colheita das mulheres de Carneirinho” mostra os frutos da união e resiliência de mulheres agricultoras que criaram a Associação de Mulheres da Agricultura Familiar do Sítio Carneirinho. A luta delas pelo retorno ao trabalho no campo, por meio do acesso a políticas públicas de incentivo rural e o enfrentamento direto das mudanças climáticas e da lógica industrial, serão pontos compartilhados com os participantes. Atualmente as famílias contribuem com a alimentação de qualidade e com a autonomia feminina da comunidade.
Já em Vertentes/PE, a atividade “Da adaptação climática à convivência com o Semiárido: tecnologias sociais na Caatinga” compartilha a experiência da família de Seu Zé e Dona Cilene, que convive com as particularidades do bioma Caatinga gerando renda e se alimentando com qualidade. Isso foi possível graças às tecnologias sociais de adaptação climática, que contribuíram para a captação de água da chuva, reúso de águas cinzas, armazenamento de sementes crioulas e o manejo adequado da terra.
De volta à Caruaru/PE, a Macaxeira vira protagonista das discussões. Na troca “Macaxeira: memória, alimento e resistência no Semiárido”, agricultoras e agricultores da comunidade Serrote dos Bois que tiveram que se adaptar ao aumento das temperaturas e ao regime de chuvas instável mostram quais as saídas encontradas para continuar o plantio dessa espécie nativa e resiliente, que possui diversidade de sementes e de produção de alimentos, como farinha, beiju e tapioca, que são produzidos nas Casas de Farinha.
Imagem
O Semiárido é um laboratório vivo de resistência e inovação|Ana Mendes/Acervo Centro Sabiá
Imagem
O bioma pode servir de referência de adaptação climática para outras regiões|Ana Mendes/Acervo Centro Sabiá
Em Caetés/PE, a partir da perspectiva de defesa de seus territórios, dezenas de famílias agricultoras do agreste pernambucano se articularam para debater os impactos sofridos pelos parques eólicos, criando, em 2023, a Escola dos Ventos. Essa articulação reúne diversos movimentos campesinos em prol do debate, formação e atuação política frente ao modelo de ocupação predatória dos complexos eólicos no estado e será ponto de partida para a discussão “Quando o vento sopra contra: a experiência da Escola dos Ventos para a transição justa na caatinga”.
No município de Jucati/PE, acontece a “Trocas de sementes e de saberes no Semiárido: estratégia de resistência em rede” entre agricultores familiares, organizações sociais e técnicos rurais, que se articulam para defender a continuidade das sementes crioulas, através da Rede de Sementes Crioulas do Agreste Meridional de Pernambuco (Rede SEMEAM).
No Quilombo Estivas, mulheres negras são exemplos potentes da luta pela justiça climática em Pernambuco. E são elas que vão conduzir a atividade “Mulheres negras e a luta por justiça climática no Agreste de Pernambuco” em Garanhuns/PE. A comunidade formada por 200 famílias se destaca pela construção de quintais produtivos, associado às atividades culturais desenvolvidas no Espaço Cultural Zeza do Coco, onde o artesanato, a música e a dança integram mulheres e jovens às tradições.
Por fim, a aldeia Xukuru do Ororubá, o povo árvore-passarinho que possui a agricultura como a base de sua espiritualidade, recebe os participantes para um “Encantamento e resistência” para compartilhar a “cosmoagricultura” Xukuru. A agricultura de sequeiro, de frutas da estação e a criação de pequenos animais dialoga com a manutenção do banco de sementes e do viveiro de mudas da comunidade, e é por meio desse trabalho integrado que o povo promove a prática de regeneração da floresta e o diálogo com os seres vivos que compõem a Caatinga. A atividade acontece em Pesqueira/PE.
O Caatinga Climate Week tem organização do Centro Sabiá e do Instituto Socioambiental (ISA), e conta com a parceria das seguintes organizações: Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Movimentos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste (APOINME), Observatório do Clima, Plataforma Semiárido e Consórcio de Governadores do Nordeste. O apoio é da Cáritas Alemã e do Instituto Umbuzeiro.
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Demandas de amazônidas devem ser consideradas em novo PNL, apontam IEMA, GT Infra e ISA
Em conjunto com o Ministério dos Transportes, organizações da sociedade civil debateram diretrizes sociais e ambientais para a logística da Amazônia, em Brasília
Jacilene Pedroso Lopes vive às margens do rio Tapajós há décadas. Pescadora, mãe, conhece cada curva do rio como quem vive na própria casa. Mas, hoje, quando lança a rede, volta com ela quase vazia. “Falta peixe”, lamenta, olhando para as águas que sustentaram sua família por gerações. “O governo precisa saber: tem vidas nas reservas do Tapajós”, ressalta Lopes. A voz da pescadora, que faz parte da Federação das Organizações e Comunidades Tradicionais da Floresta Nacional do Tapajós, ecoou na sexta-feira (12) em Brasília, onde lideranças amazônidas se reuniram com o Ministério dos Transportes para uma missão urgente: garantir que o futuro da infraestrutura brasileira não destrua o presente de quem vive na floresta.
O 2º Workshop de Grupo Focal para o Plano Nacional de Logística (PNL 2050) foi promovido pelo Ministério dos Transportes (MT), Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra) e Instituto Socioambiental (ISA). O encontro teve como objetivo debater e aprimorar os critérios socioambientais apresentados na consulta pública “Indicadores Socioambientais e Climáticos para o Plano Nacional de Logística 2050”, e aberta para contribuição. Estes critérios foram desenvolvidos para consolidar a incorporação da análise de riscos e impactos socioambientais e climáticos ao planejamento de transportes de longo prazo.
O texto apresentado e disponibilizado pelo Ministério dos Transportes na consulta pública, resumidamente, aponta que os riscos para a infraestrutura incluem trechos expostos a inundações, deslizamentos e secas, afetando especialmente a malha rodoviária e hidroviária. Já os riscos decorrentes da infraestrutura abrangem impactos sobre terras indígenas, quilombolas e comunidades vulneráveis, além de conflitos sociais. Também se destacam danos ambientais, como supressão de vegetação, perda de patrimônio espeleológico e atropelamento de fauna em Unidades de Conservação. Por fim, há o agravamento das emissões de gases de efeito estufa, medidas por transporte, investimento e ciclo de vida da infraestrutura.
Imagem
2º Workshop de Grupo Focal para o Plano Nacional de Logística (PNL 2050) foi promovido pelo Ministério dos Transportes, IEMA, GT Infra e ISA|Isis Nóbile Diniz/IEMA
Aprimoramento dos indicadores socioambientais
De modo geral, os indicadores apresentados pelo governo focaram mais na infraestrutura. Por conta disso, durante o encontro, especialistas do terceiro setor, lideranças de organizações comunitárias amazônidas e pesquisadores propuseram que fossem considerados impactos mais amplos sobre territórios e meios de vida de populações locais associados a fatores como grilagem de terras públicas, crimes ambientais e falta de reconhecimento de direitos territoriais de comunidades tradicionais. Uma das principais questões levantadas foi a falta de indicadores sobre os riscos socioambientais de hidrovias que fazem parte de corredores logísticos do agronegócio e de indústrias de mineração. Houve preocupação com a dragagem de rios, especialmente referente aos peixes e espécies da fauna em geral, assim à agricultura de várzea e à navegação de pequenas embarcações.
Desse modo, houve troca de informações e dados que poderiam contribuir para um plano logístico de infraestrutura onde os critérios socioambientais possam ser mais efetivos e indicar caminhos mais seguros para a construção de corredores logísticos no território nacional.
Em relação aos critérios apresentados, os principais temas para melhoria nos indicadores, apontados pelos amazônidas, pesquisadores e especialistas do terceiro setor foram: análise de alternativas para os traçados dos transportes e de impactos cumulativos e indiretos das obras; dados detalhados sobre hidrovias, portos, cargas, passageiros, acidentes e conflitos territoriais; critérios socioambientais com governança territorial, bem-estar, aspectos socioculturais, ecossistemas e mudanças climáticas; necessidade de integração a outros planos setoriais e de medidas para salvaguardar terras públicas não destinadas; consulta Livre, Prévia e Informada com participação das comunidades afetadas; indicadores e análises menos fragmentadas de obras, com visão sistêmica dos projetos; urgência de institucionalizar o planejamento, vinculando-o ao orçamento público e consolidando critérios socioambientais em política de Estado.
Mariel Nakane, do Instituto Socioambiental (ISA), enaltece a importância da abertura do debate com as comunidades impactadas, a academia e a sociedade civil: “Os indicadores socioambientais do PNL 2050 podem refletir o acúmulo que a sociedade tem com as experiências negativas de projetos de transportes, e aproveitar a oportunidade de inaugurar um legado no planejamento setorial de transportes comprometido com não reproduzir os mesmos erros anteriores”.
Renata Utsunomiya, do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental, destacou a necessidade da inserção de dados sobre cargas, passageiros, riscos e acidentes, portos e conflitos territoriais e reforçou que a emissão de gases efeito estufa não pode ser critério único no modal. “É preciso considerar como diferentes ameaças interagem e afetam o território”, diz Utsunomiya.
Alinhar o planejamento de infraestruturas de transportes de forma integrada a outros planos setoriais, em especial o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), foi um dos principais pontos levantados por André Luís Ferreira, diretor-executivo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Em relação ao planejamento, Ferreira apontou que é essencial elencar quais são as alternativas para resolver os problemas de infraestrutura existentes, os riscos sociais e ambientais de cada uma das alternativas, e como comparar essas alternativas e selecionar os projetos, considerando que existem indicadores de dimensões muito distintas como econômicos, sociais e ambientais.
Aliás, projeções da matriz origem-destino disponibilizadas pelo MT apontam que, até 2050, a produção de milho na região da Amazônia Legal deve triplicar, de 47 milhões para 133 milhões de toneladas. “Historicamente há uma pressão para essas mercadorias saírem pelo Arco Norte, passando por regiões do Madeira, do Tapajós-Xingu e do Tocantins-Araguaia. Mas há várias alternativas que devem ser avaliadas”, afirmou.
A falta de avaliação de alternativas e o subdimensionamento de impactos de obras foram reforçados por William Leles, do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao apresentar projeções para a Ferrogrão (EF-170), ele demonstrou que, em vez de reduzir pressões, a obra tende a intensificar a movimentação de cargas na região, aumentando conflitos. “Se ela for construída, a movimentação no local aumenta, inclusive em rodovias. Isso vai trazer conflito de terras e mais impacto”.
Segundo o pesquisador, é preciso considerar que os efeitos de uma ferrovia não se limitam ao traçado da obra, mas se estendem do ponto de origem da mercadoria até o de embarque. “Não tem limite para impacto causado”, afirmou. Dados apresentados pelo pesquisador apontaram que a alternativa do Corredor Leste-Oeste (das ferrovias Fico-Fiol) pode gerar menos impacto ambiental e ainda contribuir para aliviar a sobrecarga logística em Mato Grosso.
Bruno Ab’Saber, representante do Ministério do Meio Ambiente, destacou a importância de considerar as terras públicas não destinadas no planejamento que, de acordo com dados estimados apresentados, somam 120 milhões de hectares, sendo 40 milhões federais e 80 milhões estaduais. “É difícil você ter um nível de fiscalização nessas áreas, isso faz com que elas sejam um ímã onde uma diversa gama de atores e fenômenos se dirigem, com diferentes impactos sobre os ecossistemas, sobre os povos indígenas, povos quilombolas e povos comunidades tradicionais que habitam nessas regiões”, afirmou.
Imagem
Iremar Ferreira, do Instituto Madeira Vivo, falou sobre os problemas relacionados aos impactos de obras na vida da população local e no meio ambiente|Isis Nóbile Diniz/IEMA
Participação de lideranças amazônidas
Um dos pontos centrais do encontro foi o espaço de participação de lideranças das regiões do Madeira, Tapajós e Tocantins, que reforçaram o histórico de desrespeito à Consulta Livre Prévia e Informada (CLPI), garantida pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “É responsabilidade do Estado informar quais serão os ônus e bônus de qualquer empreendimento. A proposta do corredor logístico no rio Tapajós, até o momento não aconteceu a CLPI aos povos que estão às margens do rio”, salientou Lucas Tupinambá, vice-presidente do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns. “Muitas vezes, políticas construídas dentro de gabinetes podem estar destruindo vidas na Amazônia, nas margens de rios da Amazônia. É importante ouvir o nosso povo”, alerta.
Os moradores da região amazônica levaram problemas relacionados aos impactos de obras sem o devido planejamento na vida da população local e no meio ambiente. “Hoje, têm estudos demonstrando o aumento de acidentes no rio Madeira, inclusive de embarcações, e o desafio de fazer navegação”, disse Iremar Ferreira, do Instituto Madeira Vivo. A passagem da balsa e a movimentação de cargas danificam moradias fluviais, várzeas e barrancos, evidenciando a falta de segurança na hidrovia.
Cristiane Vieira da Cunha, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, na região do Tocantins-Araguaia, reforçou que é necessária gestão integrada, governança interministerial e intersetorial, compromisso com sustentabilidade e análise cumulativa dos impactos para minimizar impactos. “A hidrovia Tocantins-Araguaia, no modo como está sendo planejada, só poderá ter uma viabilidade futura se outras infraestruturas forem construídas, como uma hidrelétrica. Isso causa impactos múltiplos, sistêmicos.” Projetos analisados de forma fragmentada perdem a visão integral dos problemas, desconsiderando conflitos, impactos sobre comunidades locais e riscos a espécies em extinção, como a Tartaruga-da-Amazônia e o Tracajá.
Imagem
Lucas Tupinambá, vice-presidente do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns, reforçou o histórico de desrespeito à Consulta Livre Prévia e Informada (CLPI)|Isis Nóbile Diniz/IEMA
Na Bacia do Tapajós, grandes projetos geram conflitos sociais e impactos ambientais, incluindo contaminação por agrotóxicos, prejuízos à pesca e à subsistência ribeirinha, agravados pelo transporte de barcaças e dragagem do rio.
Segundo Ferreira, o planejamento deve ir além do Plano Nacional de Logística para ser efetivo, abrangendo todas as etapas do Planejamento Integrado de Transportes (PIT) e planos setoriais, considerando riscos socioambientais. Ele concluiu afirmando que o processo de planejamento deve ser institucionalizado, transformado em lei, para o trabalho não ser descontinuado. “Atualmente, nada impede que o governo execute um projeto que não passou pelas etapas de planejamento. É preciso vincular os produtos resultantes do planejamento setorial ao orçamento público, consolidando esses avanços em uma verdadeira política de Estado.”
Representantes do terceiro setor, pesquisadores e lideranças amazônidas destacaram a satisfação com o espaço aberto para troca de informações e participação da sociedade, reforçando que essa interlocução é essencial para tornar o processo de planejamento de infraestrutura mais transparente, inclusivo e adequado às necessidades socioambientais dos territórios. O encontro ocorreu no âmbito do 6º Plano de Ação Nacional em Governo Aberto.
Em raros momentos da história, lideranças indígenas, ribeirinhos e quilombolas sentaram à mesa com o Ministério dos Transportes para falar sobre o futuro da infraestrutura brasileira, analisando os critérios socioambientais. E não como espectadores, mas como protagonistas da solução.
Também participaram da reunião representantes das organizações: Infra S.A., MapBiomas, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e lideranças de territórios da Amazônia, assim como representantes de órgãos públicos: Controladoria-Geral da União (CGU), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (INDE/IBGE), Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério do Planejamento (MP), Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Ministério de Portos e Aeroportos (MPA), Secretaria Especial do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Secretaria de Participação e Parceria Institucional da Casa Civil da Presidência da República (SEPPI/CC/PR), Subsecretaria de Sustentabilidade do Ministério de Transportes (SUST/MT) e Tribunal de Contas da União (TCU).
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Semana da Sociobiodiversidade leva pauta dos povos tradicionais ao Congresso e se conecta à COP30
Encontro acontecerá em Brasília, de 1º a 5 de setembro, com participação de coletivos de todo o país, e contará com sessão solene no Congresso e ato público pela Amazônia
A segunda edição da Semana da Sociobiodiversidade, encontro nacional que mobiliza povos e comunidades tradicionais em defesa de suas economias, territórios e direitos, acontecerá em Brasília, entre os dias 1 e 5 de setembro. Um dos objetivos é mobilizar agendas e encontros, promovendo diálogos entre povos tradicionais e representantes do Executivo e do Legislativo para fortalecer a pauta das economias da sociobiodiversidade.
Estarão reunidos em Brasília cerca de 350 lideranças, juventudes, coletivos e organizações extrativistas que atuam nos segmentos socioprodutivos da borracha, pirarucu, castanha-da-Amazônia e pesca artesanal em Reservas Extrativistas Marinhas e Costeiras.
A programação inclui debates, encontros e mobilização no Congresso Nacional e atos públicos.
No dia 4 de setembro, às 14h, haverá sessão solene no Congresso Nacional, com participação de lideranças dos povos e comunidades tradicionais. Também no dia 4, às 16h, haverá ato público em defesa da Amazônia, com marcha na Esplanada dos Ministérios, em alusão ao Dia da Amazônia. No mesmo dia, a manifestação “A Resposta Somos Nós”, na Praça dos Três Poderes, conectará a agenda da sociobiodiversidade à mobilização global pela COP30.
Imagem
Semana da Sociobiodiversidade de 2023 reuniu povos e comunidades no Congresso Nacional|Myke Sena
As discussões giram em torno do tema “Fortalecendo Economias Sustentáveis, Pessoas, Culturas e Gerações”, com o objetivo de valorizar os territórios e maretórios tradicionais e propor soluções e adequações de políticas públicas que promovam as economias dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros povos e comunidades tradicionais.
Com seus sistemas de saberes, esses povos vêm produzindo fartura e, ao mesmo tempo, protegendo florestas, o que promove biodiversidade, cuidado da água e regulação do clima.
Organizada pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e pela Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (CONFREM), em parceria com o Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), a Semana da Sociobiodiversidade tem o apoio de diversas instituições, entre elas o Instituto Socioambiental (ISA).
“O evento é um espaço no qual as comunidades extrativistas reafirmam seu papel na proteção dos ecossistemas e na construção de um modelo de desenvolvimento justo e sustentável”, afirma o secretário-executivo do CNS, Dione Torquato.
Imagem
Organizações extrativistas dos segmentos socioprodutivos da castanha, borracha, pirarucu, e pesca artesanal participam da mobilização|Leonardo Halszuk
A plenária final acontece em 5 de setembro, com a pactuação coletiva “Avanços e Desafios na Agenda da Sociobiodiversidade”. Nesse momento, serão apresentados ao Governo Federal documentos construídos durante a Semana, entre eles a Carta da Sociobiodiversidade e a Carta da Juventude: Rumo à COP30, que será levada a líderes nacionais e internacionais, e a Carta da CONFREM Brasil: pré-COP dos Oceanos.
“A mobilização nacional reforça que povos extrativistas, indígenas, quilombolas e ribeirinhos não são apenas guardiões da floresta, do mar e dos territórios, mas também protagonistas de soluções concretas para a crise climática e para um modelo de desenvolvimento mais justo e sustentável”, destaca a secretária-executiva do ÓSocioBio, Laura Souza.
Confira a programação completa
Local: As atividades da Semana da Sociobiodiversidade ocorrerão na Pousada dos Angicos (Brazlândia/DF). Haverá ainda Sessão Solene no Congresso e Ato Público na Esplanada dos Ministérios e na Praça dos Três Poderes. Data: 1 a 5 de setembro
1/9 - Segunda-feira
10h – Abertura do III Encontro Nacional de Juventude
14h - III Encontro Nacional de Juventude
2/9 - Terça-feira
9h - Abertura Oficial da Semana da Sociobiodiversidade
14h – Encontros Setoriais dos coletivos:
- III Encontro Nacional da Juventude
- Pré-COP dos Oceanos – Coletivo da Pesca Artesanal Extrativista Marinho-costeira
- 14ª Reunião do Coletivo do Pirarucu
- Reunião do Observatório Castanha-da-Amazônia (OCA) & Mobilizadores das Regionais Castanheiras
- Reunião do Coletivo da Borracha
3/9 - Quarta-feira
9h e 14h – Continuidade dos Encontros Setoriais e encaminhamentos para a construção dos documentos:
- Carta da Sociobiodiversidade
- Carta da Juventude: Rumo à COP30, que será levada a líderes nacionais e internacionais
- Carta da CONFREM Brasil: pré-COP dos Oceanos
10h às 18h - Oficina com os jovens sobre comunicação
4/9 - Quinta-feira
9h: Financiamento Climático
14h: Sessão Solene no Congresso Nacional
16h: Ato sobre o Dia da Amazônia - Marcha na Esplanada dos Ministérios
5/9 - Sexta-feira
9h - Pactuação e compromissos - avanços e desafios na agenda da sociobiodiversidade
11h - Plenária sobre Mudanças Climáticas e a garantia dos territórios tradicionais no Brasil
12h - Lançamento pelo ÓSocioBio do livro “Florescendo nas brechas: territórios tradicionais e economias da sociobiodiversidade”, resultado de uma ampla construção coletiva.
14h - Plenária com representantes dos Ministérios
Leitura da Carta da Sociobiodiversidade
16h30 - Feira da Sociobiodiversidade
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
A partir de Bonn, podcast “Vozes do Clima” traça um panorama dos debates e expectativas para a COP 30
Novo episódio ouviu lideranças de movimentos sociais e da sociedade civil sobre resultados de Bonn e seus impactos nas negociações de novembro, em Belém
O novo episódio do boletim de áudio “Vozes do Clima”, uma produção do Instituto Socioambiental (ISA) está no ar e, desta vez, traz um balanço de como foi a Conferência do Clima realizada em Bonn, na Alemanha - oficialmente chamada de Sessão de Meio de Ano da UNFCCC (Secretaria da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), e os desafios que devem marcar a COP30, no final de novembro, em Belém/PA.
Imagem
Manifestantes pedem financiamento para políticas de enfrentamento às mudanças climáticas em Bonn, na Alemanha|Ciro Brito/ISA
Imagem
Novo episódio de "Vozes do Clima" traz um balanço da Conferência do Clima realizada na Alemanha|Ciro Brito/ISA
O programa, lançado nesta quarta-feira (27/08), conta com as participações de Deroní Mendes, representante do Instituto Centro de Vida (ICV), e do Fórum Matogrossense Socioambiental Popular (Formade); Angélica Mendes, presidente do Comitê Chico Mendes; Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima (OC); e Ciro Brito, analista de políticas climáticas do Instituto Socioambiental (ISA).
Em suas falas, trazem avaliações dos resultados do evento climático ocorrido na Alemanha e como eles vão impactar nos trabalhos da conferência de Belém.
O papel das comunidades tradicionais
O Brasil assumiu, neste ano, um papel central para o avanço da agenda climática, mas o caminho que leva até a Cúpula das Nações Unidas, em novembro, já vem sendo construído há bastante tempo, com avanços e contradições. Uma das etapas de preparação foi a Conferência de Bonn. Além das delegações oficiais dos países, representantes de povos e comunidades tradicionais do Brasil também marcaram presença e reforçaram posições no debate sobre o clima, avançando na disputa das decisões que serão tomadas aqui e que vão influenciar a vida da atual e das futuras gerações.
Angélica Mendes, presidente do Comitê Chico Mendes, importante organização da luta socioambiental do Acre, contou ao “Vozes do Clima” como foi sua participação na reunião da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, que, todos os anos, antecede a Conferência do Clima da ONU. A Plataforma é um espaço estratégico dentro da UNFCCC, que garante a participação de populações ancestrais nas discussões oficiais sobre mudanças climáticas.
Imagem
Angélica Mendes, presidente do Comitê Chico Mendes, é uma das convidadas|Hannah Lydia
“A gente estava trazendo muito essa questão das soluções locais, as tecnologias ancestrais. Como que a gente poderia acrescentar nessas soluções, que são sistematizadas pela ONU, esse conhecimento tradicional de uma forma que ajudasse nessas tecnologias pensadas para barrar as mudanças do clima”, disse, lembrando que a mensagem que será levada para Belém é o fortalecimento dos povos da floresta para enfrentar a crise.
Deroní Mendes, do ICV, acredita que as negociações em Bonn alcançaram alguns avanços, em especial o reconhecimento, pela primeira vez, dos afrodescendentes em documentos oficiais no âmbito do Acordo de Paris. Segundo ela, esse reconhecimento abre um caminho importante para combater o racismo ambiental.
“A gente sabe que as organizações, o movimento negro, o movimento quilombola, têm uma luta muito grande para que apareça essa palavra afrodescendente. É dali que derivam os outros direitos, as outras possibilidades de se lutar por questões que afetam especificamente os afrodescendentes e, no caso, as comunidades quilombolas, que é afrodescendente também. Eu acho que esses pontos foram os ganhos, os gols de Bonn”, comentou.
Imagem
Deroní Mendes, do ICV, aborda avanços no combate ao racismo ambiental|Rodrigo Vargas/Comunicação ICV
Sobre a COP30, ela apostou na unidade entre movimentos sociais de base e organizações da sociedade civil para que haja ainda mais avanços. “Não é sobre ir rápido e sozinho, fragilizado, sem olhar para trás, sem estar consolidado, mas é de fazer esse caminho fortalecido, olhando, refletindo, mas de ir junto”.
Financiamento climático e adaptação na mesa de Belém
A pauta do financiamento para políticas de enfrentamento às mudanças climáticas ainda enfrenta forte resistência dos países ricos, os que historicamente mais poluem o planeta, mas não querem pagar a conta e nem destinar recurso suficiente para as nações em desenvolvimento implementarem medidas de combate ao aquecimento global. A meta de financiamento estipulada na COP 29, realizada em Baku, no Azerbaijão, de 300 bilhões de dólares por ano até 2035, está muito longe dos 1,3 trilhões de dólares reivindicados pelos países em desenvolvimento.
Stela Herschmann, que esteve em Bonn representando o Observatório do Clima, falou ao “Vozes do Clima” sobre os debates na Alemanha em torno desse tema. Segundo ela, o Brasil se colocou na posição de traçar um mapa para sair da meta do ano passado e mostrar como é possível alcançar o nível exigido pelos países em desenvolvimento, de 1,3 trilhão.
“E o que a gente viu em Bonn foram os países em desenvolvimento dizerem em alto e bom som que isso não é suficiente, que eles querem um item de agenda para falar de financiamento público”, explicou, ao destacar que a pauta do financiamento deverá vir forte em Belém.
Imagem
Convidados compartilham avaliações dos resultados do evento de Bonn e como eles vão impactar nos trabalhos da conferência de Belém|Envato
Para Ciro Brito, representante do ISA na Conferência de Bonn, uma das decisões do encontro que pode impactar povos e comunidades tradicionais está relacionada aos indicadores globais de adaptação, que devem considerar os direitos humanos e os saberes de povos e comunidades tradicionais. E esse tema também deverá receber bastante atenção nos debates da COP30.
“Os temas principais que a presidência da COP 30 trouxe foram balanço global, adaptação e transição energética. A gente sabe que os territórios tradicionais são territórios que já estão sendo impactados pelas mudanças climáticas. Então, por conta disso, é importante que a gente consiga mensurar globalmente também como eles estão avançando na adaptação”, destacou.
O que é o “Vozes do Clima”?
O boletim de áudio “Vozes do Clima” é uma realização do ISA, com produção da produtora de podcasts Bamm Mídia e apoio da Environmental Defense Fund (EDF) e propõe levar informações a povos e comunidades tradicionais sobre os temas relacionados à pauta climática. A identidade visual foi concebida pelas designers e ilustradoras indígenas Kath Matos e Wanessa Ribeiro. Além de ser distribuído via Whatsapp e Telegram, o programa também poderá ser ouvido nas plataformas de áudio Spotify, iHeartRadio, Amazon Music, Podcast Addict, Castbox e Deezer.
Este é o segundo episódio da segunda temporada de “Vozes do Clima”, que contará com um total de 12 edições e abordará os diversos debates sobre clima e a pauta socioambiental.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Projetos que autorizam garimpo e exploração econômica em Terras Indígenas avançam no Senado
Apib e ISA alertam que medidas aprovadas atropelam a Constituição e podem aprofundar a destruição ambiental e impor crise humanitária para povos indígenas
A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado aprovou, nos dias 13 e 20 de agosto, dois Projetos de Lei (PLs) que abrem as Terras Indígenas a atividades econômicas como mineração, garimpo, exploração de petróleo e gás, geração de energia, agricultura comercial e turismo. As medidas (o PL 6.050/2023 e o PL 1.331/2022) representam uma violação direta da Constituição Federal e dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
"Ambos os PLs são ataques aos direitos constitucionais dos povos indígenas, vez que relativizam questões como o usufruto exclusivo dos territórios, colocando em risco as comunidades que irão sofrer com aliciamento de terceiros não indígenas", afirma Ricardo Terena, coordenador do departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
No dia 13, a comissão aprovou o PL 6.050/2023, originado da CPI das ONGs, em votação simbólica que durou menos de um minuto. O texto legaliza a exploração de recursos naturais em territórios indígenas e permite que comunidades firmem parcerias com empresas públicas, privadas ou cooperativas de garimpeiros. O projeto segue agora para as Comissões de Serviços de Infraestrutura, Meio Ambiente e Constituição e Justiça antes de chegar ao Plenário.
Imagem
Rios contaminados têm coloração e margem afetadas pela atuação de garimpo ilegal na região do Surucucu, na TI Yanomami|Fernando Frazão/Agência Brasil
Já em 20 de agosto, a CDH aprovou o PL 1.331/2022, de autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), que autoriza a pesquisa e a lavra garimpeira em Terras Indígenas por terceiros, mediante consentimento das comunidades. Embora o texto proíba a mineração industrial em áreas de povos isolados, especialistas apontam que ele abre brechas graves ao fragilizar o usufruto exclusivo garantido pela Constituição e não oferecer salvaguardas efetivas para a autodeterminação dos povos originários.
O projeto tem caráter terminativo, ou seja, se aprovado nas comissões designadas, pode seguir diretamente para a Câmara dos Deputados sem passar pelo Plenário do Senado. Após a votação na CDH, a proposta foi encaminhada à Comissão de Meio Ambiente (CMA).
Para Renata Vieira, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), a aprovação dos projetos pela CDH revela um conflito central: sob o argumento de promover autonomia e desenvolvimento econômico, as propostas acabam submetendo os povos indígenas a regras impostas de fora, alinhadas sobretudo a interesses empresariais e políticos.
“Sem garantias efetivas de consulta prévia, fortalecimento da Funai e respeito ao regime constitucional, a regulamentação pode abrir caminho para a legalização de práticas que hoje destroem Terras Indígenas e colocam em risco a sobrevivência física e cultural dessas comunidades”, explica. Além disso, a advogada aponta que a regulamentação de garimpo em Terra Indígena é inconstitucional, pois possui vedação expressa no texto constitucional.
Em nota técnica, a Apib classificou os dois projetos como inconstitucionais. Para a entidade, as propostas desrespeitam o Artigo 231 da Constituição, que garante aos povos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas de suas terras, além de violarem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga a consulta livre, prévia e informada às comunidades afetadas.
A Apib ressalta ainda que há um vício formal grave: os projetos tratam de temas que a Constituição determina que sejam regulamentados por lei complementar — que exige maioria absoluta no Congresso e debate mais rigoroso —, mas estão sendo apresentados como leis ordinárias, de tramitação simplificada. Essa escolha, segundo a entidade, fere o devido processo legislativo e compromete a validade jurídica das propostas.
Outro ponto destacado é a tentativa de justificar a exploração econômica sob a retórica de conferir “autonomia” às comunidades, o que para a Apib constitui uma falsa autonomia: a decisão, na prática, seria condicionada a interesses de empresas e investidores externos. As propostas “acentuam os conflitos nos territórios, fragilizam os instrumentos de proteção da biodiversidade e da gestão territorial e ambiental indígena, e abrem caminho para violações generalizadas aos direitos humanos”, afirma a organização em Nota Técnica.
Os dados citados pela Apib reforçam a gravidade da ameaça. Estima-se que 90% dos Yanomami de nove aldeias já estejam contaminados por mercúrio decorrente da atividade garimpeira. Entre 2019 e 2022, 570 crianças Yanomami morreram por causas diretamente ligadas ao avanço do garimpo ilegal, como desnutrição, malária e falta de atendimento médico.
No sul da Bahia, o povo Pataxó denuncia a destruição de nascentes e cursos d’água causada pela extração de terras raras. No Pará, comunidades Munduruku enfrentam violência armada, presença de facções criminosas e desestruturação cultural ligada à invasão de garimpeiros. Impactos como esses demonstram que a legalização da mineração e de outras atividades econômicas dificilmente resolveria os problemas do garimpo ilegal, mas poderia agravá-los ao dar aparência de legalidade a práticas já devastadoras.
Durante as votações, defensores dos projetos argumentaram que a regulamentação poderia trazer mais transparência e reduzir a atividade clandestina. Mecias de Jesus afirmou que o PL 1.331/2022 garante “benefícios diretos” às comunidades indígenas, enquanto a presidente da CDH, senadora Damares Alves (Republicanos-DF), defendeu que o Grupo de Trabalho sobre a Regulamentação da Mineração em Terras Indígenas, criado em abril de 2025 e coordenado pela senadora Tereza Cristina (Progressistas-MS), deveria articular todas as propostas sobre o tema. Até o momento o GT não foi instituído formalmente.
Durante a votação, os senadores Augusta Brito (PT-CE) e Paulo Paim (PT-RS) fizeram duras críticas ao PL 1331/2022. Brito alertou que a mineração em Terras Indígenas comprovadamente impacta de forma devastadora mulheres e crianças, citando casos de abortos espontâneos e mortes infantis ligadas à contaminação por mercúrio, além das 570 crianças Yanomami mortas entre 2019 e 2022 em meio à crise humanitária agravada pelo garimpo. Ela reforçou que não há urgência em aprovar a proposta sem antes ouvir os povos diretamente afetados, pedindo que o debate seja aprofundado no grupo de trabalho criado no Senado.
Já Rogério Carvalho (PT-SE) destacou, em seu voto separado lido pelo senador Paulo Paim (PT-RS), que qualquer atividade mineral em territórios indígenas tem impacto irreversível sobre comunidades e ecossistemas, lembrando que o garimpo ilegal tem provocado envenenamento por mercúrio, violência, prostituição forçada de meninas, avanço do crime organizado e lavagem de dinheiro com ouro ilegal. Para ele, a proposta falha em garantir salvaguardas aos direitos humanos, ignora a diversidade dos povos indígenas e incorre em inconstitucionalidades, razão pela qual defendeu sua rejeição.
Para a Apib, os PLs 6.050/2023 e 1.331/2022 não apenas colocam em risco a proteção dos territórios indígenas, mas também afrontam o princípio da vedação ao retrocesso em direitos fundamentais “uma vez que violam o usufruto exclusivo dos territórios e autorizam atividades de elevado impacto socioambiental no interior dos territórios, colocando as comunidades indígenas em risco”, alerta Ricardo Terena.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Mulheres indígenas do Rio Negro cobram ações contra câncer de colo de útero na IV Marcha das Mulheres Indígenas
Comitiva participou de reuniões e apresentou relatório técnico com recomendações para o enfrentamento ao crescente número de casos da doença na região
Com a pauta urgente do enfrentamento ao câncer de colo de útero entre mulheres indígenas da região do Rio Negro, o Departamento de Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn) levou denúncias, dados e propostas a autoridades em Brasília, durante a IV Marcha de Mulheres Indígenas e a I Conferência Nacional das Mulheres Indígenas, realizadas de 2 a 8 de agosto.
Imagem
Delegação do Rio Negro esteve presenta na IV Marcha de Mulheres Indígenas, que aconteceu em Brasília|Luma Prado/ISA.
Representantes das 23 etnias da região reforçaram a necessidade de políticas públicas efetivas para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da doença, que atinge as mulheres indígenas em taxas até quatro vezes maiores que as registradas na população não indígena.
A comitiva — composta pela coordenadora do Dmirn, Cleocimara Reis Gomes, articuladoras regionais do departamento, a vereadora indígena de São Gabriel da Cachoeira Jakeline Vieira, a coordenadora regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) no Rio Negro, Maria do Rosário, a representante da Associação de Mulheres Yanomami Kumirayoma Lucilene Pereira, e a assessora de gênero e antropóloga do Instituto Socioambiental (ISA) Dulce Morais — participou de reuniões com representantes da Funai, Ministério das Mulheres, Ministério da Saúde e Secretaria de Saúde Indígena em Brasília, onde apresentaram o relatório técnico Saúde da Mulher Indígena e Câncer do Colo de Útero em São Gabriel da Cachoeira.
Imagem
Reunião das lideranças com Putira Sacuena, diretora do Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena, em Brasília|Rede Wayuri
O documento foi elaborado em parceria entre o Programa Rio Negro do ISA e o Departamento de Mulheres Indígenas, em diálogo com os Distritos Sanitários Especiais Indígenas Alto Rio Negro e Yanomami e Yekwana, a Secretaria Municipal de Saúde, a Comissão Permanente de Saúde, Educação e Assistência Social da Câmara Municipal e, por fim, a Associação Civil de Direito Privado, sem fins lucrativos, IBSAÚDE.
Ele destaca a visão das mulheres rionegrinas sobre o que significa ter saúde, entendida por elas não só como a ausência de doenças, mas como o conjunto de condições para viver com dignidade, em harmonia com a natureza e a comunidade, conforme destacado por elas no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) do Alto e Médio Rio Negro.
Apesar de solicitados dados ao Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro e à Secretaria Municipal de Saúde referentes aos últimos cinco anos sobre casos de câncer de colo de útero por comunidade indígena em São Gabriel da Cachoeira, não houve retorno até a apresentação do relatório às autoridades.
Imagem
Mulheres rionegrinas também marcharam contra violência de gênero em seus territórios|Dulce Morais/ISA
Desde 2016, o Departamento de Mulheres Indígenas atua de forma estruturada na pauta da saúde da mulher, com foco especial na prevenção e enfrentamento das violências. Em 2022, após a ocorrência de seis mortes pela doença, o diálogo com instituições públicas foi intensificado para compreender os casos e buscar estratégias de cuidado e prevenção no município.
De acordo com a pesquisa The intersection of race/ethnicity and socioeconomic status: inequalities in breast and cervical cancer mortality in 20,665,005 adult women from the 100 Million Brazilian Cohort, publicada em 2022, as desigualdades étnico-raciais são significativas quando se trata de mortalidade por câncer de mama e colo de útero no Brasil. Os dados apontam que a mortalidade por câncer de colo de útero foi especialmente alta entre mulheres indígenas (80% maior), asiáticas (63%), 27% maior entre pardas e 18% maior entre mulheres pretas.
Já o estudo Cervical cancer screening in Brazilian Amazon Indigenous women: Towards the intensification of public policies for prevention (Novais, 2023), que analisou dados de exames de Citologia Oncótica do colo do útero de mulheres indígenas de várias etnias da Amazônia brasileira, mostra que a prevalência de lesões de alto grau — que podem levar ao câncer do colo do útero — foi de 3 a 4 vezes maior em mulheres indígenas em comparação com não indígenas na faixa etária de 25 a 64 anos.
Associada à infecção pelo HPV, vírus sexualmente transmissível, e ao impacto do tratamento da doença na fertilidade feminina, o câncer de colo de útero exige prevenção, com exames e vacinação, diagnóstico precoce e acesso ao tratamento adequado para garantir os direitos reprodutivos das mulheres, incluindo a possibilidade de gestação após o tratamento.
Na região do Rio Negro, as mulheres indígenas enfrentam diversas barreiras culturais e logísticas que dificultam o acesso ao atendimento médico e à realização do exame preventivo do câncer de colo de útero. Muitas precisam se deslocar das comunidades até a sede do município de São Gabriel da Cachoeira, o que, em muitos casos, significa percorrer longas distâncias de barco. Além disso, a impossibilidade de levar os filhos e a falta de informação sobre os procedimentos e resultados afastam ainda mais as mulheres do diagnóstico e tratamento.
Fatores culturais, alimentares e linguísticos também impactam os cuidados de saúde dessas mulheres. A adaptação à alimentação urbana, muitas vezes distinta da consumida nas comunidades, pode interferir nos tratamentos, sobretudo quando há regras tradicionais de resguardo, como restrições ao consumo de pimenta, certos tipos de peixe ou carnes de caça.
O relatório destaca ainda que a língua é fundamental para uma comunicação eficaz e que conhecer os costumes das diferentes etnias é essencial para que tanto profissionais indígenas quanto não indígenas saibam como dialogar com as mulheres, especialmente aquelas de etnias de recente contato, que muitas vezes recebem atendimento com a ajuda de intérpretes que comunicam em Tukano, língua que não é a primeira desses povos.
Por fim, o relatório reforça a necessidade de articulação permanente entre as mulheres indígenas, os DSEIs e a Secretaria Municipal de Saúde para o desenvolvimento de estratégias coletivas e territorializadas de prevenção e cuidado contra o câncer de colo de útero.
Destaca ainda iniciativas já realizadas na região e que mostram que, quando o preventivo é realizado de forma estruturada, qualificada, com profissionais mulheres e com devolutiva do resultado junto com conversas, explicações e tratamentos, as mulheres indígenas demonstram maior adesão ao exame e aos cuidados necessários para a prevenção e tratamento da doença.
Como exemplo da eficácia e importância dessa articulação, o documento traz a atuação dos Expedicionários da Saúde (EDS), que em 2023 realizou a expedição “Mulheres da Floresta” e atendeu 168 mulheres em São Gabriel da Cachoeira.
Também, ressalta o Projeto de Manejo do Risco de Câncer Cervical (MARCO), que em 2024 e 2025 aplicou método de rastreio de HPV com amostras autocoletadas entre mulheres de 30 a 49 anos. Além disso, menciona o projeto “Redes de Cuidado: construção da linha de cuidado do câncer de colo de útero”, desenvolvido nos territórios indígenas Yanomami e Xingu com apoio da Unifesp, UFMG, Projeto Xingu e ISA.
Imagem
Cleocimara Reis Gomes e Almerinda Ramos foram homenageadas na sessão solene do Plenário da Câmara|Rede Wayuri
Em 2025, o projeto chegou à comunidade de Maturacá (localizada na TI Yanomami no AM) por meio da articulação da Associação de Mulheres Yanomami Kumirayoma. Em junho, a equipe realizou 200 exames de Papanicolau, fez a análise e o tratamento dos casos identificados e capacitou profissionais de saúde indígena para atuar nessa linha de cuidado.
A metodologia deste último projeto, que já conseguiu erradicar a doença entre as mulheres xinguanas e apresenta bons resultados no território Yanomami em Roraima, motivou o Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro a solicitar à Secretaria de Saúde Indígena recursos para expandir o projeto a São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, contemplando as 23 etnias da região.
Como prioridade, as representantes indígenas enfatizam durante as articulações em Brasília o fortalecimento dos fluxos de biópsia uterina no atendimento à saúde indígena, garantindo a liberação ágil dos resultados, sobretudo nos casos encaminhados via Casas de Apoio à Saúde Indígena (Casai).
Outras recomendações incluem priorizar o acesso das mulheres indígenas — especialmente em casos oncológicos — aos serviços de referência e contrarreferência do Sistema Único de Saúde (SUS), considerando barreiras territoriais, logísticas e culturais.
Também apontam para a garantia de que o atendimento e acompanhamento de casos de câncer de colo de útero sejam feitos por equipe multidisciplinar, com nutricionista, psicóloga e conhecedora tradicional.
Além disso, recomendam a oferta de ações itinerantes periódicas de ginecologia, colposcopia, biópsia, contracepção e planejamento reprodutivo, evitando deslocamentos desnecessários, a contratação de médicas mulheres para atendimento ginecológico em terras indígenas e a produção e disseminação de informações nas línguas indígenas sobre prevenção e cuidados relacionados à saúde sexual e reprodutiva.
Rionegrinas em marcha
Para além dos trabalhos de incidência política, as rionegrinas participaram da programação da IV Marcha de Mulheres Indígenas, tendo destaque na mesa do Júri Ancestral, com leitura das denúncias contra as violências sofridas pelas mulheres rionegrinas. Também marcaram presença na mesa internacional “Planos de Vida: territórios seguros para a vida das mulheres indígenas e experiências sobre instrumentos de salvaguarda na perspectiva das mulheres indígenas”, na qual Cleocimara Reis apresentou os trabalhos do departamento no enfrentamento às violências, que resultaram na publicação do livreto Cuidados e prevenção no enfrentamento à violência contra mulheres no Rio Negro.
Por esse trabalho, que envolve formações, produção de livretos e participação na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), o Dmirn foi um dos grupos de mulheres indígenas homenageados na sessão solene que aconteceu no Plenário da Câmara em reconhecimento aos trabalhos no enfrentamento às violências contra mulheres indígenas.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS