Diálogos Amazônicos colocaram sociobiodiversidade no centro do debate para o futuro do planeta
Representantes da sociedade civil defenderam em Belém (PA) as economias de povos indígenas e comunidades tradicionais como fundamentais para a regulação do clima
Povos tradicionais devem estar no centro do debate de futuro para a Amazônia|Secretaria Geral da Presidência da República/Audiovisual PR
Os Diálogos Amazônicos, evento que reuniu a sociedade civil em Belém (PA) entre os dias 4 e 6 de agosto para pautar a Cúpula da Amazônia, desempenhou um papel crucial na discussão e compreensão da ligação entre as economias da sociobiodiversidade na região amazônica com o clima e o futuro do planeta.
Ao reunir representantes de diferentes setores, como comunidades indígenas e tradicionais, governos, movimentos de base, organizações não-governamentais e setor privado, os diálogos abordaram a garantia e implementação de direitos, especialmente ao território, à valorização e ao uso sustentável dos recursos naturais da Amazônia.
Em diferentes painéis e falas do evento houve um reconhecimento da importância do modo de vida de povos indígenas e comunidades tradicionais para a conservação da floresta.
O manejo da paisagem e os conhecimentos ancestrais foram ressaltados como fundamentais para a regulação do clima, a manutenção da biodiversidade e para o desenvolvimento de atividades econômicas sustentáveis.
Além disso, a promoção de cadeias de valor inclusivas e a valorização dos produtos e serviços da sociobiodiversidade foram debatidas como maneiras de fortalecer as economias locais sem comprometer os ecossistemas.
Apesar disso, muitas propostas e experiências sobre bioeconomia ficaram ainda restritas à visão de uma Amazônia provedora de insumos e matéria-prima para a indústria e mercado e não houve um encaminhamento concreto de reconhecimento do papel dos povos e comunidades tradicionais.
“Esse modelo de desenvolvimento pressupõe que investimentos na verticalização da produção e a determinação de origem seriam condições suficientes para que os produtos da sociobiodiversidade se tornem competitivos frente à monoculturas e sintéticos”, afirma Jeferson Straatmann, articulador do ISA no tema da sociobiodiversidade.
A economia da sociobiodiversidade são economias de povos indígenas e comunidades tradicionais baseadas em suas culturas, modos de vida, diversidade e nos Sistemas Agrícolas e de Manejo Tradicionais praticados em seus territórios ancestrais. Muito além da produção de produtos, são economias pautadas no conhecimento e inovação e na prestação de serviços. Têm como finalidade o bem viver das comunidades em seus territórios.
Imagem
Jeferson Straatmann, do ISA, defende o pagamento de Serviço Socioambiental como caminho para reconhecer o papel de povos e comunidades tradicionais na preservação da floresta|Tainá Aragão/ISA
Essas propostas negligenciam os aprendizados de cadeias históricas amazônicas, como da borracha, cacau e guaraná, por exemplo, onde a monocultura transportou a produção para outros biomas ou países e tornou impossível a competição entre modos de produção. Trata como barreira os Sistemas Agrícolas ou de Manejo Tradicionais, que transformaram por milênios floresta em floresta e constituíram as diferentes paisagens amazônicas. “Esses sistemas estão no centro dos processos ligados ao conhecimento da biodiversidade e os serviços de conservação”, complementa Straatmann.
Na atividade autogestionada “Investimentos para dar escala às sociobioeconomias da Amazônia”, organizada pela The Nature Conservancy (TNC) Brasil, se apontou a necessidade de construir políticas e estratégias que promovam a sociobiodiversidade e a justiça social.
Isso envolveu a discussão sobre a implementação de mecanismos econômicos, como sistemas de pagamento por serviços ambientais, linhas de crédito adequadas e tributações que reconheçam o papel das comunidades na proteção da floresta viva.
“É preciso avançar em diferentes mecanismos políticos e financeiros, por exemplo, na regulamentação da Lei de Pagamento de Serviços Socioambientais, que reconheçam e retribuam esses modos de vida e de manejo pela conservação - de forma a potencializar a competição com modelos econômicos predatórios e degenerativos que ameaçam culturas e territórios”, destacou Jeferson Straatmann, articulador do ISA no tema da sociobiodiversidade.
No painel promovido pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a secretária de Bioeconomia do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Carina Pimenta, ressaltou que a Bioeconomia tem diferentes perspectivas e que o ministério irá focar seus esforços em uma sociobioeconomia que evidencie o papel de povos indígenas, comunidades tradicionais e seus territórios na conservação da natureza. Para a secretária, a sociobioeconomia deve ser trabalhada especialmente conectada aos mercados locais e não apenas na relação com o mercado privado em cadeias longas de valor.
“É preciso derrubar o muro entre as florestas e os municípios, descentralizar o crédito que está nas áreas urbanas e fazer chegar às comunidades”, enfatizou Carina Pimenta.
Nessa perspectiva, a adequação e implementação de políticas e programas de compras públicas – puxadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar (MDA) e pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) são fundamentais para o estabelecimento de mercados locais que consigam comprar ou promover toda a diversidade de produtos dos territórios. E, ao mesmo tempo, retribuir às comunidades pelos serviços de conservação prestados.
Nessa atividade, além da retomada do PAA e da regulamentação da Lei de pagamento por serviços ambientais, foi anunciada a abertura de uma linha específica do Fundo Amazônia para financiar prefeituras para a implementação do PNAE nos municípios amazônicos. Esse financiamento é fundamental para destravar gargalos do poder público na implementação da política de forma adequada para os territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais.
Valorização de modo de vida aliado à floresta viva
Através da troca de conhecimentos e experiências, os Diálogos Amazônicos buscaram moldar políticas e práticas que valorizassem a rica diversidade biológica e cultural da Amazônia, ao mesmo tempo em que sustentam as economias locais e a qualidade de vida das comunidades que dependem desses recursos.
A expectativa agora é que os governos de países Amazônicos aproveitem essa oportunidade para valorizar os modos de vida tradicionais e criar mecanismos concretos de proteção territorial e de valorização dos conhecimentos e da vida desses povos e comunidades.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Mãe Bernadete Pacífico é assassinada, e movimento quilombola cobra por justiça
Renomada, respeitada e querida mãe Bernadete nunca deixou de lutar pelos direitos das comunidades quilombolas e fazer resistência às ameaças constantes que recebia
Mãe Bernadete lutou por sua cultura, por seus ancestrais e pela história de seu povo. Nos últimos seis anos também lutou por justiça, após o assassinato de seu filho Binho Quilombo|Henrique Duarte
Liderança quilombola de Pitanga de Palmares, em Simões Filho (BA), membro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), ex-secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Yalorixá e liderança de terreiro são alguns dos vários títulos que mãe Bernadete carregava. Aos 72 anos, nos últimos seis buscando por justiça pelo assassinato de seu filho Binho do Quilombo, mãe Bernadete foi assassinada a tiros nesta quinta-feira (17), em sua casa, no quilombo Caipora.
“Há 6 anos atrás acontece o fato que aconteceu com o filho dela e ela sempre vinha cobrando justiça pelo que fizeram. Uma mulher forte que lutou contra todos em respeito a Binho do Quilombo”, conta Zé Ramos, liderança quilombola de São José Ramos de Freitas, Ilha de Porto do Campo (BA).
Mãe Bernadete não recebeu esse nome sem motivo. Levava consigo a força de suas ancestrais e, para além de vínculos de sangue, cuidava dos seus vários filhos.
“Falar de mãe Bernadete é o mesmo que falar de minha mãe, que falar das nossas mães ancestrais e de nossa mãe Omolu. Desde 2010 que eu conheci mãe Bernadete no encontro que teve em Seabra (BA) e daí pra cá nós construímos um laço de filho pra mãe, de mãe pra filho. É uma pessoa que tava sempre junto conosco, nos aconselhando, nos orientando no que fazer, a forma que tinha que agir. Mãe Bernadete pra nós vai estar presente sempre em nossas vidas.
Renomada, respeitada e querida mãe Bernadete nunca deixou de lutar e fazer resistência às ameaças constantes que recebia e à luta pelos direitos das comunidades quilombolas. “Ela não deixava de lutar pelo direito da comunidade, por justiça pelos filhos e principalmente pelo preconceito religioso, que era uma das coisas da temática dela que ela sempre vinha discutindo”, acrescenta Zé.
Imagem
Mãe Bernadete foi uma importante liderança quilombola de Pitanga de Palmares, em Simões Filho (BA), membro da Conaq, ex-secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Yalorixá e liderança de terreiro|Tatiane Klein / ISA
Em 2018, Mãe Bernadete gravou depoimento em campanha contra uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF que questionava a titulação de territórios quilombolas. Assista:
Repercussão
Nas redes sociais autoridades como a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco e o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, lamentaram o assassinato de mãe Bernadete e indicaram ações para a apuração de sua morte. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também se manifestou: “O governo federal, por meio dos ministérios da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e Cidadania, mandou representantes e aguardamos a investigação rigorosa do caso. Meus sentimentos aos familiares e amigos de Mãe Bernadete”.
Consternada com o assassinato de mãe Bernadete, yalorixá, ex Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e líder da comunidade quilombola de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. Ela foi morta covardemente na noite desta quinta-feira com tiros no rosto. pic.twitter.com/9Uaj8kWtDn
Recebo a informação de que Yalorixá Bernadete, defensora de dh e liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, foi assassinada. Determinei o imediato deslocamento das equipes do @mdhcbrasil até Simões Filho, na Bahia.
Expresso minha solidariedade aos familiares e à comunidade.
Com pesar e preocupação soube do assassinato de Mãe Bernadete, liderança quilombola assassinada a tiros em Salvador. Bernadete Pacífico foi secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial na cidade de Simões Filho e cobrava justiça pelo assassinato do seu filho, também um…
Recebi com pesar e indignação a notícia do falecimento de Mãe Bernadete, uma amiga e grande liderança quilombola da Bahia. Determinei que as Polícias Militar e Civil desloquem-se de imediato ao local e que sejam firmes na investigação. pic.twitter.com/L1sav8co0o
A Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Rosa Weber, publicou uma nota lamentando a morte de mãe Bernadete e exigindo providências urgentes das autoridades locais para que os culpados sejam responsabilizados. “É absolutamente estarrecedor que os quilombolas, cujos antepassados lutaram com todas as forças e perderam as vidas para fugir da escravidão, ainda hoje vivam em situação de extrema vulnerabilidade em suas terras. Assim como é direito de todos os brasileiros, os quilombolas precisam viver em paz e ter seus direitos individuais respeitados."
Em nota, a Conaq repudiou o assassinato da liderança quilombola e pediu atuação do Estado para que a justiça seja feita. “Enquanto lamentamos a perda dessa corajosa liderança, também devemos nos unir em solidariedade e determinação para continuar o legado que ela deixou. Que sua memória inspire novas gerações a continuar a luta por um mundo onde todas as vozes sejam ouvidas, todas as culturas e religiões sejam respeitadas e todos os direitos sejam protegidos. A Conaq exige que o Estado brasileiro tome medidas imediatas para a proteção das lideranças do Quilombo de Pitanga de Palmares. É dever do Estado garantir que haja uma investigação célere e eficaz e que os responsáveis pelos crimes que têm vitimado as lideranças desse Quilombo sejam devidamente responsabilizados. Queremos justiça para honrar a memória de nossa liderança perdida, mas também para que possamos afirmar que, no Brasil, atos de violência contra quilombolas não serão tolerados”.
O Instituto Socioambiental (ISA) lamenta a tragédia ocorrida com mãe Bernadete Pacífico, se solidariza com seus familiares e com todos aqueles que a queriam bem. O ISA, ao lado de seus parceiros, clama por justiça. Acompanhe e cobre também por justiça com as hashtags #QuemMatouBernadetePacifico e #JustiçaPraQuilombos.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Censo 2022 revela que Brasil tem mais de 1,3 milhão de quilombolas; menos de 5% vive em territórios demarcados
Dados inéditos indicaram que Nordeste e Amazônia Legal abrigam a maioria das pessoas quilombolas, que representam 0,65% da população brasileira
Um milhão, trezentos e vinte e sete mil, oitocentos e dois (1.327.802). Esse é o número de pessoas identificadas como quilombolas pelo Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pela primeira vez na história do Brasil, essa população foi incluída na pesquisa que acontece há 150 anos e apresenta o retrato demográfico, geográfico e socioeconômico do país.
Imagem
Vitória quilombola: “quando somos parte do processo, as coisas acontecem e saem com a nossa identidade", diz Maria Rosalina dos Santos, da coordenação executiva da Conaq|Ester Cezar/ISA
Os dados foram apresentados no evento de divulgação dos resultados do Censo 2022 “Brasil Quilombola: quantos somos, onde estamos?”, nesta quinta-feira (27/07), no auditório do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Estavam presentes representantes de órgãos e de ministérios do governo, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e de organizações da sociedade civil.
“Hoje o Brasil sabe quantos são os quilombolas”, disse o presidente interino do IBGE, Simar Pereira, que durante sua fala destacou que o Censo quilombola, especificamente, foi realizado por meio de um treinamento diferenciado dos recenseadores e contou com a participação de guias das próprias comunidades.
“Para chegar a esse número o Censo quilombola foi feito seguindo convenções importantes. Seguiu a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que recomenda consulta às lideranças em todas as etapas do processo de pesquisa”. O presidente citou ainda a frase de uma importante liderança do movimento quilombola, Maria Rosalina dos Santos, sobre esse momento histórico: “Quando somos parte do processo, as coisas acontecem e saem com a nossa identidade”.
Imagem
Voz quilombola
Pessoas quilombolas que foram contadas também puderam compartilhar sua experiência nesse momento histórico. “Pra gente foi de extrema importância falar ‘estamos contando quilombolas’. Tocou muita gente. Pessoas que na cidade foram pra lá pra trabalhar, que não estavam lá [na comunidade] há um tempinho, ao ouvir ‘Você se considera quilombola?’ Aí pôde afirmar, pôde dizer quem era, pôde de certa forma tomar seu lugar e ser contado. A gente se sente privilegiado e nem deveria, mas a gente se sente, e a gente é muito grato por isso. A gente sabe que esse 1 milhão vai bem mais além”, disse Dandara Mendes, do quilombo Conceição das Crioulas, do município de Salgueiro (PE).
Assim como Dandara, Gisely Cordeiro dos Santos, do município de Boa Vista, do território de Alto Trombetas (PA), pôde compartilhar o orgulho que sentiu ao fazer parte de uma comunidade que foi contabilizada. “Essa participação vai trazer muito orgulho pra minha comunidade. Nós quilombolas podemos estar onde nós quisermos. Essa luta continua. Apesar dos números, eu acredito que eles se estendem, eles estão muito além. Nós como quilombolas precisamos que políticas públicas sejam criadas pra atender as nossas necessidades”, destacou.
Imagem
Realização do Censo Quilombola contou com a participação direta do movimento quilombola e de entidades como Incra, Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), Fundação Cultural Palmares e ONU|Ester Cezar/ISA
Políticas públicas para quilombolas
“Ei meu pai quilombo eu também sou quilombola! A nossa luta é todo dia e toda hora” foi assim, cantando, que Maria Rosalina dos Santos, da Coordenação Executiva da Conaq do Piauí, iniciou sua fala. “Esse refrão é só pra dizer pra nós quilombolas que hoje é um marco histórico em nossas vidas, nas vidas de nossos quilombos, porque se nós já vínhamos na luta, agora nós temos que multiplicar essa luta em busca da efetivação de políticas públicas para essa população. Para nós”.
Rosalina também mandou um recado para as autoridades presentes: “Até então não efetivavam políticas públicas para quilombolas porque não sabiam onde estávamos. A partir desse resultado, ele não é só pra nos tirar da invisibilidade, mas ele é realmente para dizer que não podemos mais lidar com políticas públicas com quilombola no imaginário. É preciso tratar políticas públicas para quilombolas com quilombolas e para quilombolas. Aqui nós não provamos, porque nós não precisamos provar nada, mas nós estamos revelando que nós somos capazes de ajudar a construir um país onde cabe todo mundo. Um país de inclusão e de oportunidade para todos”.
Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos, do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Ronaldo dos Santos destacou que é preciso uma reparação do Estado brasileiro para com os quilombolas e enfatizou a necessidade do desenvolvimento da política de regularização fundiária no país.
“Está evidenciado quantos nós somos, quem nós somos, onde nós estamos. E eu acho muito importante que isso seja comunicado dessa maneira em todos os ministérios estratégicos. Mas o que fica evidenciado também, e eu acho que precisa ser pauta do governo brasileiro nos próximos ciclos, é que menos de 5% dos quilombolas do Brasil vivem em territórios demarcados. E isso altera significativamente o desafio do Brasil no que diz respeito à política de regularização fundiária, que é um dos pontos mais estratégicos do programa Aquilomba Brasil.”
A pesquisa mostrou que, apesar da quantidade de quilombolas recenseados, os que se encontram em territórios oficialmente delimitados ainda são poucos: 494 no total. Para o Censo, foram considerados aqueles que apresentavam alguma delimitação formal no acervo fundiário do Incra ou dos órgãos com competências fundiárias nos estados e municípios na data de 31 de julho de 2022 (delimitado, estudo técnico, relatório técnico de identificação e delimitação, portaria, decreto, título). Portanto, de população residente nos territórios quilombolas oficialmente delimitados, o resultado apontou 203.518 mil pessoas, sendo 82,56% delas (167.202) quilombolas.
Imagem
As regiões com maior número de pessoas quilombolas em territórios oficialmente delimitados são Nordeste, com 89.350 mil e Norte com 52.012 mil. Em seguida a região Sudeste com, 14.796 mil, Centro-Oeste com 7.208 mil e Sul, com 3.836 mil.
As regiões com maior número de pessoas quilombolas fora de territórios quilombolas oficialmente delimitados seguem o mesmo padrão dos territórios oficialmente delimitados. Nordeste: 816.065 mil; norte: 114.057 mil; sudeste: 167.509 mil; centro-oeste: 37.749 mil e sul: 25.220 mil.
A soma dos quantitativos de pessoas quilombolas fora de territórios quilombolas na Bahia e no Maranhão (616.336) é superior à soma das pessoas quilombolas nessa mesma situação em todas as demais unidades federativas (544.264).
“É um momento da gente olhar realmente para a política pública, para o nosso orçamento, para as nossas escrituras e pensar como que o Estado se compromete realmente com essa demanda, que é uma demanda histórica e produzida pelo próprio Estado, porque o processo de escravização foi o Estado que implementou. Então, agora, o Estado precisa fazer essa reparação”, concluiu o secretário.
“É muito importante quando a gente destaca por exemplo a questão territorial, é muito importante a gente reconhecer que temos um atraso significativo. E que esse atraso é fruto do racismo fundiário existente no país. Quando houve a abolição da escravatura, o nosso povo não teve acesso à terra. Titular os territórios quilombolas é um avanço significativo pra dar direito a essas comunidades quilombolas. Esperamos que a partir desses dados possamos avançar na regularização desses territórios”, enfatizou Biko Rodrigues de Moraes, da coordenação executiva da Conaq.
O Censo é uma importante ferramenta demográfica de caracterização da população brasileira. Apresenta dados sobre fecundidade, natalidade, mortalidade, pirâmide etária, migração e deslocamentos, condições habitacionais, saneamento básico, acesso à água encanada, acesso à internet, entre tantas outras informações. Todos esses dados servem de insumo para dar visibilidade a populações vulneráveis, diagnosticar se estão sendo assistidas de forma adequada pelo Estado e, a partir disso, construir políticas públicas.
Imagem
“Além disso, o questionário tem perguntas sobre deficiência, educação, acesso ao mercado de trabalho, rendimento, que nos permitem também caracterizar socioeconomicamente a população como um todo e, no caso, também nos permitem pra todos esses tipos de perguntas que são feitas saber a diferença entre a população quilombola e a população não quilombola, e verificar se a gente tem uma demografia diferenciada, um processo migratório diferenciado, acesso diferenciado à educação, mercado de trabalho, saúde, condições de moradia. Então são perguntas muito importantes pra gente conhecer, não só quantos são os quilombolas, onde estão, mas, também, como vivem”, comentou a coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais, Marta Antunes.
“Esses dados que foram coletados com muita dificuldade vão servir pra Fundação Cultural Palmares, pro MIR, pro MDA, pro Ministério da Educação, pro Ministério da Saúde e pra todos os ministérios que atuam com a política quilombola pra poder fazer alavancar e chegar de fato a esses territórios.”, afirmou Biko.
“Os dados são importantes, mas a gente tem que formular a política pública e garantir recursos pra que essa política pública consiga chegar no território. Somos mais que números e a cada número desse bate um coração. Bate um coração que tem toda a sua história, toda a sua trajetória e trajetória essa de resistência. Nós somos parte do povo brasilieiro que os livros de história não contam”.
Amazônia também é quilombola
A pedido de representantes das comunidades quilombolas, o IBGE também realizou o Censo na região da Amazônia Legal – que envolve todos os estados da região norte, o estado do Mato Grosso, e boa parte dos estados do Maranhão e do Tocantins.
Foi verificado que quase 430 mil pessoas quilombolas residem em municípios da Amazônia Legal, número que corresponde a 32,11% do total da população quilombola residente no Brasil, ou seja, quase ⅓ da população quilombola de todo o país está na Amazônia Legal.
Imagem
Além disso, a pesquisa também mostrou que o número de quilombolas residentes na região representa 1,60% de sua população, superando a marca nacional de 0,65% de quilombolas no Brasil.
“Quando a gente compara o número de pessoas quilombolas residindo na Amazônia Legal com o número de pessoas quilombolas nas outras regiões, nós verificamos que a participação dos quilombolas na Amazônia Legal é bastante expressiva e isso denota tanto a importância da população quilombola da Amazônia Legal pro conjunto da população quilombola, mas também a enorme contribuição da população quilombola para a conservação da Amazônia”, disse Fernando Souza, do IBGE.
“Você se considera quilombola? Qual o nome da sua comunidade?”
Imagem
Questionário básico de recenseamento do IBGE com a pergunta específica para localidades quilombolas|Tânia Rêgo/Agência Brasil
Para a realização do Censo, o IBGE fez um mapeamento das comunidades quilombolas do país, monitoramento em tempo real da qualidade da coleta e treinamento diferenciado dos recenseadores, que contou com guias das próprias comunidades quilombolas, como no caso da Joelita Bittencourt, da comunidade Ricão dos Negros (RS).
“Foi um grande prazer como recenseadora, não somente assistir, mas também participar da grande contagem dos quilombolas do nosso Brasil. Pra mim, foi uma grande emoção, porque é a primeira vez, eu, com 52 anos, ser a primeira vez que fui recenseadora nesse grande evento que foi contar os quilombolas. Então acho que estou aqui representando muito bem o Rio Grande do Sul. É uma grande alegria saber que a gente também está nessa contagem”.
Contar com recenseadores das próprias comunidades quilombolas foi apenas uma das etapas do Censo 2022. Cartografia censitária, planejamento logístico, sensibilização das lideranças comunitárias quilombolas, aplicação da pergunta de identificação étnico quilombola, treinamento dos recenseadores e testes para ver se tudo estava funcionando também fizeram parte da metodologia aplicada. Todo esse processo contou com a participação constante da Conaq, do Incra, da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), da Fundação Cultural Palmares e da ONU.
Imagem
Marta Antunes, coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais do IBGE e Fernando Damasco, pesquisador e gerente de Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas do IBGE|Ester Cezar/ISA
De acordo com Antunes, o processo foi realizado em quatro etapas de consultas nacionais, duas em 2018 e duas em 2019. Também no início de 2022 foi feito um seminário estadual por unidade de federação, onde foram reunidos quilombolas e suas lideranças, e explicada toda a metodologia construída.
Simar Pereira alertou para a realização também do Censo Agro, em 2026. “É muito importante que a gente consiga fazer isso pra que a gente possa colocar esses outros grupos étnicos no mapa. E esse ensaio que a gente acabou de fazer com os quilombolas, é muito importante”. O presidente interino enfatizou que fazer a contagem em 2025 é se preparar para um Censo melhor em 2026.
Escute episódio do podcast Copiô, Parente! sobre o Censo Quilombola:
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Copiô, Parente! Restauração florestal como estratégia contra a emergência climática
Uma iniciativa que se destaca é o Redário, que une redes de coletores de sementes de todo o Brasil na luta pela preservação ambiental
As mudanças climáticas estão no topo da lista dos maiores desafios socioambientais enfrentados pela humanidade atualmente. E têm gerado graves implicações nos biomas brasileiros.
De 1970 para cá, o planeta está mais quente do que nos últimos dois mil anos. Segundo relatório do MapBiomas, para minimizar tais efeitos, há urgência na mudança de comportamento e de estilo de vida, além de ações para conservação e restauração ambientais.
É dentro deste contexto que o Redário, uma iniciativa que une redes de coletores de sementes, se destaca. A restauração ecológica em rede realizada por meio do trabalho de base com comunidades tradicionais utiliza o conhecimento ancestral na luta pela preservação ambiental com aqueles que sempre souberam o valor que a floresta tem.
Dê o play!
📲 Mande uma mensagem para (61) 99810-8703 e receba o Copiô no seu Whatsapp.
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
ÓSocioBio defende tributação justa para os povos e comunidades tradicionais
Proposta de mais de 70 organizações e especialistas apresentada na Virada Parlamentar Sustentável incentiva uma economia sociobiodiversa, saudável, sustentável e solidária
"Que tipo de desenvolvimento queremos para os nossos próximos 50 anos?". Com esse convite, Laura Souza, secretária executiva do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) iniciou a mesa-redonda "Reforma Tributária Sociobiodiversa", na Câmara dos Deputados, no dia 14 de junho, em seminário integrou a Virada Parlamentar Sustentável.
Imagem
Debate sobre sociobiodiversidade ocupa o Planalto Central e promove discussão sobre uma tributação que dialogue com as realidades dos povos e comunidades tradicionais|Dominik Giusti/Comunicação ISPN
Ao lado de André Tomasi, integrante do Observatório da Castanha - IEB/OCA, Carina Pimenta secretária Nacional de Bioeconomia do Ministério do Meio Ambiente), Cido Souza, da Cooperativa Grande Sertão (MG) e Presidente da União Nacional das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (UNICAFES), e Edna Cássia Carmelio, consultora da GIZ, o ÓSocioBio colocou em pauta no parlamento a necessidade de políticas de tributação adequadas aos produtos das economias de povos e comunidades tradicionais, e agricultoras e agricultores familiares.
Instituído na década de 1960, o modelo de tributação sobre o consumo no Brasil era e ainda permanece bastante confuso e injusto com populações em vulnerabilidade. Neste ano, a pauta da Reforma Tributária voltou com vigor e deverá ser votada no Congresso Nacional. Isso significa que a forma que os brasileiros pagam impostos vai ser alterada por meio das PEC 45/2019 e PEC 110/2019.
A principal mudança proposta pelo governo federal é: os cinco tributos atuais sobre o consumo (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) poderão ser substituídos por um imposto sobre consumo, o Imposto sobre bens e serviços (IBS), e por um Imposto Seletivo (IS) - destinado a produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarro e agrotóxicos. Essa é a proposta de reforma tributária que a Câmara está analisando e foi apresentada pelo líder do MDB, deputado Baleia Rossi (SP).
Para contribuir com a Reforma, junto a mais de 70 organizações e especialistas o ÓSocioBio formulou a proposta da Reforma Tributária 3S - Saudável, Sustentável e Solidária, que busca contribuir com a erradicação da pobreza e na redução das desigualdades sociais, regionais, raciais e de gênero. E agora, junto a esse movimento, defende mudanças na forma de tributação que também contemple a sociobiodiversidade brasileira.
"As áreas que concentram maiores incentivos fiscais na tributação são o automobilístico, petróleo e gás, e agrotóxicos, por exemplo. E como resultado tivemos um crescimento econômico no país e também perda da biodiversidade, agravamento na desigualdade social, insegurança alimentar e morte de lideranças socioambientais", destacou Laura, secretária executiva do ÓSocioBio. “Por isso, acreditamos que é o momento de se pensar novas políticas de tributação, que incluam os produtos da sociobiodiversidade”, completa.
O Observatório defende que haja mecanismo de compensação nos tributos que incidem nos produtos oriundos da produção dessas populações agroextrativistas, que compõem a fase inicial da cadeia. É preciso que a fase de venda dessa produção tenha a compensação referente a 100% do que deveria ser pago pelo novo tributo em debate na Reforma Tributária, o IBS.
Isso significa que o preço da Castanha-da-Amazônia, do Açaí, do Baru, do Pequi, e de outros produtos da sociobiodiversidade brasileira e seus derivados, pode ser mais barato. E que os produtores não vão carregar uma carga tributária desproporcional aos seus lucros. Esses produtos contribuem ainda para a manutenção das florestas e campos vivos, das águas limpas, favorecendo a conservação da biodiversidade e equilíbrio climático.
Imagem
Integrantes do Observatório da Sociobiodiversidade participam da Virada da Sustentabilidade, em Brasília|Thiago Araújo/IEB
Audiência pública
Ainda na programação da Virada Parlamentar Sustentável, o ÓSocioBio promoveu, por meio de articulação com o gabinete do deputado federal Airton Faleiro (PT-PA), a audiência pública “Sociobioeconomia, desafios do equilíbrio climático e produção de alimentos saudáveis", para debater os PL 1855/2022 (Senado), a Indicação n° 42/2022 e o Projeto de Lei Complementar (PLP) 150/2022 (Câmara), com representantes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Companhia Nacional de Abastecimento (Conab-MDA), Ministério do Planejamento, Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS/ÓSocioBio).
O debate teve como objetivo central pautar a economia da floresta e promover economias pautadas no bem-estar social em conjunto com a conservação ambiental. Durante a audiência, Leosmar Terena, coordenador geral de promoção do bem-viver indígena do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), ressaltou que a economia da sociobiodiversidade é parte integrante das práticas e modos de vida dos povos originários, e não deve ser tratada como uma mera commodity. "Não queremos que a economia da sociobiodiversidade se torne apenas mais um produto, mas sim uma economia verdadeira, que já é praticada pelos povos indígenas há muito tempo", afirmou.
Rodrigo Augusto, coordenador de Projetos da Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), enfatizou a necessidade de estabelecer cadeias de valor justas, que remunerem de forma adequada os povos indígenas e comunidades tradicionais. Segundo ele, tudo isso só é possível se houver a garantia dos territórios. "É preciso estabelecer uma cadeia de valor justa que remunere de forma justa os povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, e nada disso existe se não existir território", destacou.
José Ivanildo Gama, diretor do Conselho Nacional das Populações Extrativistas e membro do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade, também participou da audiência e ressaltou a importância de políticas públicas que estejam alinhadas com a realidade dos povos da floresta. Ele defendeu a criação de políticas inclusivas. "Devem ser criadas políticas públicas que incluam os modos de vida dos povos da floresta, seus saberes e fazeres. Isso é importante para que o governo possa promover políticas adequadas e contextualizadas a essas realidades", enfatizou.
Virada Parlamentar Sustentável
A Virada Parlamentar Sustentável é um movimento que busca traçar um futuro próspero para o Brasil por meio de atos, debates, seminários, exposições, audiências públicas e mesas redondas. Os eventos vão ocorrer até 29/06 no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, com a participação de mais de 60 organizações da sociedade civil.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
‘Quando uma mulher quilombola tomba, o quilombo se levanta com ela’
II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas, em Brasília, debateu temas vitais, como titulação de territórios e combate à violência, e encaminhou demandas ao governo
II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas, em Brasília, contou com a participação de cerca de 350 pessoas|Claudio Kbene/@claudiokbene
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) realizou na semana passada o II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), em Brasília.
“Quando uma mulher quilombola tomba, o quilombo se levanta com ela”, foi o lema do evento, que tinha como tema “Resistir para Existir”, e contou com a participação de cerca de 350 delegadas representantes de quilombos de 24 estados e de dois países vizinhos – Colômbia e Equador –, além de autoridades do governo brasileiro, como a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, a primeira-dama, Janja Lula da Silva, e a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG).
“Nós estamos realizando o encontro em um momento de um pouco mais de – não diria tranquilidade –, mas pelo menos de abertura de diálogo agora no novo governo, retomando as pautas todas que haviam sido destruídas, sucumbidas e tiradas das ações do governo”, afirmou Givânia Maria da Silva, uma das fundadoras da Conaq e coordenadora do coletivo de educação.
O encontro acontece nove anos após a primeira edição, em 2014. “Desde o primeiro encontro até agora, uma das coisas que a gente vem denunciando é a ausência de políticas específicas para as mulheres quilombolas”, comentou Givânia da Silva.
“Nesse campo, não houve mudança. As mudanças que começaram a se iniciar em 2014 foram todas destruídas pelo golpe e pelo governo Bolsonaro. Agora que nós estamos novamente pautando o redesenho dessas políticas”, complementou.
Corpo-território
Imagem
Imagem
Roda de canto no II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas. À direita, Givânia Maria da Silva lê regimento interno na mesa de abertura junto à ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco|Ester Cezar/ISA
De acordo com a Coordenadora Executiva da Conaq e do coletivo de mulheres, Sandra Maria Andrade, uma das pautas prioritárias é a regularização dos territórios. “Só através da regularização desses territórios, nós poderemos ter o nosso etno-desenvolvimento, a proteção das nossas culturas, das nossas matas e das nossas águas”.
O objetivo do encontro era de que as delegadas se reunissem e discutissem as pautas relacionadas à vivência das mulheres quilombolas, das quais as principais são a titulação dos quilombos e o combate à violência. “Para nós, mulheres quilombolas, o território é o centro do nosso debate. Então não dá pra gente pensar em educação, saúde, moradia sem pensar no território. Porque o território é nele e com ele que a gente se afirma e luta pela garantia dos nossos direitos”, defendeu Givânia da Silva.
Também foram debatidos em Grupos de Trabalho (GTs) temas como saúde, educação, renda, insegurança alimentar, comunicação popular quilombola, racismo ambiental, justiça climática e religiosidade.
“Esse momento pra nós é histórico e importante. Vamos trabalhar as demandas e as especificidades das mulheres quilombolas que sofrem e não têm visibilidade da sua luta e dos seus direitos dentro dos seus quilombos”, disse Sandra Maria Andrade.
Imagem
A deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) presenteia Sandra Maria Andrade, da Conaq|Ester Cezar/ISA
Governo federal
“Agora no segundo encontro as mulheres convocam uma resistência com o sentido da existência”, enfatizou Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, que participou da mesa de abertura do encontro.
Em seu discurso, Franco enalteceu a trajetória e luta das mulheres quilombolas, parteiras, benzedeiras, raizeiras que cuidam da vida e da saúde do povo quilombola por meio dos saberes tradicionais, como o uso e aplicação “dos remédios do mato”.
“Isso é um saber e tanto, porque além de cuidar das pessoas, vocês estão cuidando também das plantas, da terra, das águas. Vocês também são as conselheiras das comunidades que mediam conflitos, conversam aqui e acolá e assim mantêm a união entre as famílias. E são vocês que estão nessa instância de representação política partidária, levando as pautas quilombolas para os espaços decisórios desse país”, acrescentou.
A ministra comentou sobre a secretaria dedicada à construção de políticas públicas para as comunidades quilombolas, lotada em seu ministério. Além disso, apresentou o Programa Aquilomba Brasil, que faz parte do Pacote da Igualdade Racial, anunciado em março pelo decreto 11447/2023.
“O programa Aquilomba Brasil, mais uma das medidas do pacote da igualdade racial tem objetivos que tocam diretamente vocês, mulheres quilombolas. Objetivos que passam pela promoção da segurança e da soberania alimentar, pelo fortalecimento da educação escolar quilombola, pela garantia do acesso à saúde, pelo respeito aos saberes e fazeres da medicina tradicional quilombola, pelo combate às violências, entre outros. No Aquilomba Brasil, em conjunto com outros ministérios, estamos trabalhando a construção de um plano nacional de titulação de territórios quilombolas, uma demanda histórica para a Conaq e para o movimento quilombola.”
Anielle também anunciou que está em diálogo com o Banco do Brasil para liberação de uma linha de crédito específica para mulheres quilombolas e ressaltou a importância da existência do selo quilombola para a comercialização dos alimentos produzidos nos quilombos.
O ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, listou uma série de medidas promovidas, e que estão em encaminhamento, pelo governo como o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) para todas as comunidades quilombolas para que sejam incluídas no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
O Ater Mulher Quilombola “é destinado àquelas famílias que tenham gente com capacidade de fazer assistência técnica e extensão rural para o desenvolvimento dessas economias. Queremos desenvolver a agroindústria nas comunidades quilombolas”, explicou.
Teixeira também relembrou o lançamento do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural, que contempla mulheres quilombolas, e a mesa de proteção territorial no Incra com participação da Conaq. “Não podemos perder um segundo no sentido de avançar com os direitos das mulheres quilombolas do Brasil”, afirmou o ministro.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) também foi um dos temas debatidos durante o encontro. Previsto no novo Código Florestal, o cadastro reúne informações ambientais sobre imóveis rurais, áreas protegidas e territórios tradicionais. A omissão do Poder Público no registro dos quilombos continua provocando violações de direitos territoriais dessas comunidades e impedindo-as de acessarem políticas públicas.
O ISA e a Conaq realizaram um estudo que demonstrou alto grau de sobreposição dos cadastros de imóvel rural de particulares sobre os territórios quilombolas. O trabalho foi apresentado durante o encontro da semana passada. Além disso, com objetivo de informar e engajar as comunidades, foi lançado no evento, vídeo produzido pela Conaq, ISA e Observatório do Código Florestal.
Ao final do evento foi lançada a carta do encontro, que aponta de forma geral os temas debatidos nos quatro dias. Acesse a íntegra da carta final. O próximo passo é o encaminhamento de um relatório final. “Pra gente apresentar a cada ministério e ao governo federal a necessidade que essas políticas cheguem até os quilombos para que nós consigamos sobreviver dentro dos nossos territórios”, concluiu Sandra Maria Andrade.
O II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas discutiu temas como a titulação de territórios e o enfrentamento a violências|Claudio Kbene/@claudiokbene
Apresentação do grupo Moçambique de São Benedito, do quilombo Carrapatos da Tabatinga- Bom Despacho (MG) |Ester Cezar/ISA
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Organizações de países amazônicos exigem participação dos povos da floresta na Cúpula da Amazônia, em Belém (PA)
Carta entregue às autoridades do Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela pede garantia da presença de representantes da sociedade civil, povos indígenas, comunidades tradicionais e afrodescendentes
Mais de 140 organizações dedicadas à proteção da Amazônia enviaram uma carta às autoridades brasileiras e dos outros países amazônicos (Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela) pedindo participação efetiva dos povos indígenas, comunidades tradicionais e afrodescendentes e da sociedade civil na Cúpula da Amazônia, que acontece em Belém (PA), Brasil, nos dias 8 e 9 de agosto.
A carta é dirigida aos presidentes dos países amazônicos, à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), à Assessoria Internacional da Presidência da República do Brasil e aos Ministérios das Relações Exteriores dos países, e é assinada por organizações como a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA), a Rede de Informações Socioambientais Georreferenciadas da Amazônia (RAISG) e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM).
A IV Reunião de Presidentes dos Estados Partes do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) ocorrerá em um contexto em que, segundo evidências científicas, o desmatamento e a degradação combinados da Amazônia chegam a 26%.
No documento, que convida a unir esforços para a construção de medidas conjuntas para a proteção socioambiental da Amazônia, são pedidos três pontos principais:
- Organização de espaços de participação ativa e efetiva nas discussões dos governos presentes à Cúpula da Amazônia;
- Garantia de participação de representantes de povos indígenas, comunidades tradicionais e afrodescendentes e da sociedade civil;
- Consideração de suas recomendações nas decisões.
As organizações afirmam na carta que é fundamental a articulação e participação dos povos indígenas, comunidades tradicionais e afrodescendentes e suas organizações, tendo em vista que seus territórios ocupam grande parte da Amazônia e que suas práticas ancestrais, saberes e contribuições no manejo florestal possibilitaram a conservação desse bioma de importância mundial.
Essas populações também são diretamente afetadas pelas pressões e ameaças sobre os territórios, como o desmatamento, a grilagem e o garimpo – além de serem os maiores prejudicados pela crise climática, estimulada pela destruição da Amazônia.
Igualmente são importantes as contribuições da sociedade civil, por sua experiência no monitoramento, investigação e apresentação de soluções para os problemas socioambientais na região amazônica.
As organizações que assinam a carta afirmam ainda que, para garantir a efetiva implementação e monitoramento das ações de proteção da Amazônia planejadas na Cúpula da Amazônia, um dos resultados da reunião deve ser direcionado à criação ou reativação de mecanismos permanentes de participação multinível.
Isso para que se possa institucionalizar o diálogo direto e frequente entre povos indígenas, comunidades tradicionais e afrodescendentes e sociedade civil, com os diferentes governos, organizações e órgãos da região.
Para Julio César López Jamioy, coordenador-geral da Organização Nacional dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana (OPIAC), “é fundamental que as autoridades de todos os países, ao tomar decisões, considerem o conhecimento dos povos indígenas amazônicos, que, como já demonstrado, têm contribuído para a conservação da biodiversidade do bioma amazônico”.
Por sua vez, Adriana Ramos, assessora do Instituto Socioambiental (ISA) do Brasil, assegura que “estamos em um momento decisivo para que o conhecimento científico e indígena se unam na construção de alternativas que resguardem a Amazônia. É precisamente disso que trata o pedido e o apelo que fazemos aos governos com vista à realização desta cúpula”.
Para Carmen Josse, diretora-executiva da Fundação EcoCiencia no Equador, “é fundamental que as organizações que trabalham na Amazônia, que trabalham dia a dia com os povos indígenas, tenham voz para apresentar o que consideram como soluções e questões prioritárias para esta região no âmbito desta cúpula; e que haja espaços organizados de participação e escuta para as diferentes demandas e contribuições que nós da sociedade civil queremos fazer”.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Quilombolas lançam animação para facilitar cadastro de territórios tradicionais no CAR
Segundo a Conaq, falta de apoio de órgãos oficiais e complexidade do processo geram baixa adesão ao sistema, fundamental para a garantia de direitos
Feito com apoio do Observatório do Código Florestal (OCF), do Instituto Socioambiental (ISA) e da Norway’s International Climate and Forest Initiative (NICFI), o vídeo tem o objetivo de orientar e encorajar as comunidades a procurarem a Conaq para auxílio no processo de cadastro.
Narrado pela ativista ambiental quilombola, Kátia Penha, do quilombo Divino Espírito Santo (ES), o vídeo conta a história de Tereza, uma quilombola do Amazonas. Nele, a personagem fictícia exalta a história de resistência dos quilombos no Brasil e reforça a necessidade de titulação dos territórios para assegurar direitos e preservar a cultura dos quilombolas.
Imagem
Animação traz ilustrações dos artistas Nainá (Amanda Nainá dos Santos) e Deco (Vanderlei Ribeiro)|Conaq
A animação conta com ilustrações dos artistas Nainá (Amanda Nainá dos Santos) e Deco (Vanderlei Ribeiro) e tem duração de 3 minutos.
Desde sua criação, a Conaq disponibiliza suporte técnico e informações sobre o CAR, auxiliando as comunidades tradicionais a realizarem o registro de forma correta e garantindo o reconhecimento de seus territórios.
O vídeo busca estimular a inclusão e regularização ambiental das comunidades quilombolas, resguardando seus direitos e fortalecendo a preservação socioambiental de seus territórios.
Dados do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) de março de 2023, revelaram que apenas 3.189 cadastros de povos e comunidades tradicionais (CAR-PCT) foram registrados, totalizando 39.308,9 hectares.
Os números indicam uma baixa adesão e demonstram a falta de apoio dos órgãos ambientais estaduais na implementação do cadastro para esse segmento específico.
O que é o CAR?
O Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado pela Lei nº 12.651/2012, é um registro eletrônico obrigatório para todas as propriedades rurais do país. Seu objetivo é integrar informações ambientais sobre o uso e preservação da cobertura vegetal nativa, fornecendo uma base de dados para monitoramento, planejamento e regularização socioambiental das áreas rurais.
Dentro desse contexto, o CAR reconhece uma categoria específica para povos e comunidades tradicionais.
Esses grupos representam comunidades culturalmente diferenciadas que possuem formas próprias de organização social e dependem da ocupação e uso de territórios e recursos naturais para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Eles utilizam conhecimentos, inovações e práticas transmitidas pela tradição.
No caso das comunidades quilombolas, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias reconhece a propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes dessas comunidades, exigindo que o Estado emita títulos correspondentes.
A gestão do CAR é realizada pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), que integra os dados de cadastro ambiental rural de todos os estados. Alguns estados utilizam diretamente a plataforma federal para operacionalizar suas atribuições associadas ao CAR, enquanto outros adaptaram o sistema federal para atender a peculiaridades locais. Além disso, alguns estados possuem plataformas próprias cujos dados são integrados ao Sistema Nacional.
Imagem
Vídeo elaborado pela Conaq ressalta a importância do registro das comunidades quilombolas no Cadastro Ambiental Rural (CAR)|Conaq
No entanto, mesmo com esses esforços, o cadastro de territórios tradicionais coletivos enfrenta desafios significativos. Muitas instituições estaduais e empresas terceirizadas responsáveis pela inscrição no CAR não estão familiarizadas com o módulo específico para esse tipo de cadastro no sistema federal.
Além disso, os estados que possuem sistemas próprios não contemplam um módulo exclusivo para o cadastro de territórios tradicionais coletivos e têm investido pouco esforço no apoio ao mapeamento e inscrição do CAR-PCT.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Lançamento do livro 'Povos Indígenas no Brasil' em Brasília reúne autoridades e lideranças indígenas
Debate sobre política indigenista marcou evento de apresentação da nova edição, no Memorial dos Povos Indígenas
Lançamento do livro 'Povos Indígenas no Brasil 2017-2022' em Brasília contou com cerca de 200 convidadosIMariana Soares/ISA
O livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022 foi lançado na sexta-feira (16/6), em Brasília, com a presença de autoridades e lideranças indígenas, representantes da sociedade civil e movimentos sociais.
Realizado no Memorial dos Povos Indígenas, o encontro contou com cerca de 200 pessoas, que assistiram a um debate sobre o tema 'Os retrocessos e a reconstrução da política indigenista' e ao documentário 'Povos Indígenas no Brasil'. (assista abaixo).
Esta é a 13ª edição do livro que, desde a década de 1980, busca ampliar a visibilidade da luta vivenciada pelos povos indígenas.
Retratando o período mais cruel pós-ditadura para indígenas no Brasil, a edição mais recente, em suas mais de 800 páginas, traz notícias, imagens históricas e mais de 100 artigos que abordam temas como políticas públicas, legislação, demarcação de Terras Indígenas, pressões e ameaças, desenvolvimento econômico e político, educação, saúde pública, cultura e muito mais.
Para o debate, o encontro recebeu Kleber Karipuna, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); Marcos Kaingang, diretor de Mediação de Conflitos do Ministério dos Povos Indígenas (MPI); Lucia Alberta, diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai; Samara Pataxó, assessora-chefe de Inclusão e Diversidade no Tribunal Superior Eleitoral; e Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA.
O ministro Luís Felipe Vieira de Mello, do Superior Tribunal do Trabalho, membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), também estava presente e se juntou à mesa. A mediação ficou a cargo de Adriana Ramos, especialista em política e direito socioambiental do ISA.
Kleber Karipuna iniciou a conversa falando sobre o período simbólico do qual trata a mais recente publicação do livro (2017-2022). Para ele, a união entre diferentes frentes da sociedade foi imprescindível para que os desafios desses anos, considerados os mais difíceis para o movimento indígenas e diversas frentes da sociedade, fossem enfrentados.
“Nós conseguimos superar esses quatro anos justamente porque juntamos as várias forças aliadas e conseguimos nos reinventar e ter uma resiliência fundamental em um momento crucial da nossa história”, recordou.
Em meio à retomada da política indigenista, a partir da criação do Ministério dos Povos Indígenas e das lideranças indígenas à frente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e outras instituições como a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), Karipuna considera que existem ainda muitos obstáculos a serem ultrapassados.
Imagem
Da esquerda para a direita: Márcio Santilli, Kleber Karipuna, Marcos Kaingang, Samara Pataxó e Lucia Alberta|Ester Cezar/ISA
Para ele, a solução passa, justamente, pela reconstrução desses espaços para efetivação de direitos, e também pela discussão de ideias, como a mesa do evento. "O debate positivo e propositivo de políticas públicas e ações é importante para o desenvolvimento dos trabalhos e políticas como um todo, mas, principalmente, lá na ponta das comunidades e do território", defendeu.
Na sequência, Marcos Kaingang, representante do Ministério dos Povos Indígenas, reforçou a importante missão das lideranças à frente das instituições governamentais. Para Kaingang, esses são espaços ocupados temporariamente e, portanto, devem carregar consigo o compromisso e responsabilidade com as organizações e com o movimento indígena.
Ele complementou ainda que é crucial que as pessoas que hoje ocupam esses cargos deem um retorno e implementem políticas públicas não apenas para, mas junto aos povos indígenas.
Para cumprir essa missão, ele destaca que o trabalho intercultural realizado pelo Ministério novo vai precisar muito de informações qualificadas como a da publicação lançada no evento. “Um livro que é uma ferramenta crucial não só como instrumento de luta para os povos indígenas, como para a sociedade não-indígena em geral. Nós como governo com certeza faremos bom uso dessa publicação”, afirmou.
Samara Pataxó, por sua vez, chamou atenção para acontecimentos que marcaram os últimos seis anos, como em 2017, quando o governo Temer instituiu o Parecer 001/2017, conhecido como “Parecer Antidemarcação” por barrar e anular as demarcações de Terras Indígenas no País, e a sua suspensão em 2020 pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin.
Para a assessora-chefe de Inclusão e Diversidade no TSE, foi a maneira como o movimento indígena se preparou para os momentos de enfrentamento como esses, tanto com as estratégias tradicionais, mas também com mobilização, tentativas e, sobretudo, a partir também da qualificação técnica, foi crucial para construção de uma política regrada a partir do coletivo.
“Acredito muito que aldear a política é sim possível e nós sabemos sim fazer política. Que o nosso futuro seja feito por nós”, conclamou.
Lúcia Alberta, assim como Samara, relembrou os diversos retrocessos que aconteceram nos últimos seis anos. “O governo passado tentou introduzir uma política de integração à força dos parentes. Voltamos à tutela, os processos de demarcação de Terras e de identificação foram totalmente desmontados.
Imagem
Ministro Luís Felipe Vieira de MelloIMariana Soares/ISA
Os retrocessos foram gigantescos”, rememorou. Para ela, fazer a reconstrução da política indigenista tendo indígenas à frente será um desafio muito grande.
“Espero que no próximo ‘Pibão’, venham esses resultados do nosso trabalho nesse processo. Porque agora nós estamos reconstruindo a política indigenista com o olhar, a sensibilidade e o conhecimento dos povos indígenas", finalizou.
Também presente no lançamento, o ministro Luís Felipe Vieira de Mello, do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e membro do CNJ, anunciou que o CNJ irá analisar nesta semana uma resolução que abrirá caminhos para que sejam adotadas cotas para indígenas na magistratura no País.
“A maneira como nós podemos enxergar não é apenas por ações afirmativas, mas pelo olhar dos povos indígenas”, destacou.
Encerrando o debate, Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA, falou sobre as transições ímpares retratadas pelo livro “Povos Indígenas no Brasil 2017-2022”.
Para ele, a publicação relata a forte disposição de mudanças apresentada pelo movimento indígena que culminou no atual momento vivido, de uma transição de uma política indigenista para uma política indígena.
“Em relação a essa edição, acho que cabe ressaltar algo que traz na capa a representação das mulheres indígenas, e isso não é gratuito. Como as mulheres indígenas nesse período ocuparam espaço e se mostraram tão vibrantes. É uma virada histórica”, celebrou.
Além da mesa, também foi exibido o minidocumentário “Povos Indígenas no Brasil”, que compõe a série de produtos que visam expandir a leitura da publicação, e inclui depoimentos e imagens que ilustram a beleza da diversidade indígena brasileira e as diversas pressões e ameaças enfrentadas pelos povos originários.
Assista:
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS
Marco temporal: naturalização de um estado de indigência para os povos indígenas
Não se pode flexibilizar os direitos das minorias vulneráveis sem que o pior aconteça. Não podemos aceitar mais ações que desfigurem a Constituição
De acordo com a teoria do “marco temporal de ocupação”, uma Terra Indígena só poderia ser demarcada se comprovado que os indígenas nela estavam no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O tema está sendo julgado pelo STF no RE 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.031), e deve ter continuidade nesta semana.
Quando se conhece em detalhes os processos que buscam anular demarcações de Terras Indígenas com fundamento na teoria do marco temporal, chega-se a uma conclusão: “pau que bate em Chico não bate em Francisco”, como dizia o ministro aposentado do tribunal, Marco Aurélio Mello.
Imagem
Vigília em junho de 2021 contra o Marco Temporal, tese jurídica que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas|Eric Terena
Se em qualquer processo administrativo há pressupostos basilares, como a presunção de legalidade, veracidade e legitimidade, o mesmo parece não valer para processos administrativos de demarcação de Terras Indígenas. No STF, por exemplo, há uma ação em que a parte apenas alegou “marco temporal” e tomou-se a decisão de suspender o registro da área em cartório – última fase do longo e demorado procedimento para a regularização fundiária dos territórios indígenas. O autor da ação, diga-se, não juntou nem um documento sequer que corroborasse a alegação de “marco temporal”.
A terra em questão estava homologada por decreto presidencial e o processo administrativo tramitou por mais de 30 anos. Esse caso mostra que, quando se trata de direitos indígenas, também não se tem tanto apreço à separação dos poderes ou temperança para evitar ingerência do Judiciário nas atribuições típicas do Poder Executivo.
A liminar que suspendeu o registro da terra em cartório, aliás, está vigente há mais de dez anos e o agravo interno que a questiona nunca foi levado ao Plenário. O princípio da colegialidade também não parece ser o forte quando se trata de direitos indígenas. O processo de demarcação foi aberto em 1982. Nele inexistem relatos de saída dos indígenas da área após essa data. O autor da ação também não juntou o processo administrativo de demarcação aos autos.
Resta a dúvida se será com esse grau de “poder geral de cautela” que os tribunais brasileiros vão aferir se, de fato, há um “marco temporal” num processo de demarcação, caso a interpretação seja aceita pelo STF no julgamento que se avizinha.
Há outra coisa que nós, os advogados defensores de direitos indígenas, devemos estar esquecendo de escrever em nossas petições: “protesta por todos os meios de prova em direito admitidas”. Pra provar que foram expulsos forçadamente de suas terras, hipótese em que não se aplicaria a malfadada tese do marco temporal, querem alegar que os indígenas só poderiam se valer de dois meios de prova: ou uma ação possessória judicializada em 5 de outubro de 1988 ou um conflito de fato que tenha perdurado até essa data. Para os indígenas, ao que parece, a latitude probatória do Código de Processo Civil e o direito ao contraditório e à amplíssima defesa podem ser extintos.
A ideia de um Estado que não deixe ao arbítrio do sujeito fazer justiça com as próprias mãos, idem – os povos indígenas se exige conflito que tenha perdurado até 5 de outubro de 1988. E, o que é pior: deles se quer exigir provas que só poderiam ter sido produzidas em 5 de outubro de 1988, ou seja, há mais de 34 anos, quando essas provas sequer eram imaginadas ou exigidas. Como diz o dito popular, há três coisas que não voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida. Parece que a impossibilidade de voltar no tempo também só vale para os não indígenas.
Agravam o cenário informações dos corredores do Supremo publicadas na semana passada pelo jornal O Globo, de que “um grupo de ministros” advogava a retirada de pauta do processo para que se discutisse “uma saída negociada”. Ora, de partida os indígenas já sairiam perdendo. Não se deveria tergiversar quando a Constituição grava direitos como inalienáveis e indisponíveis.
Enquanto são só as Terras Indígenas que estão sendo invadidas, alguns brios não perseveram. Contra esses invasores não há o peso da lei. Mais uma vez, quando são as Terras Indígenas ou os indígenas, o pundonor arrefece. Não há direito mais fácil de negociar do que o das minorias.
Naquela terra em que o registro foi suspenso por uma liminar do STF, os invasores estão começando a fazer um loteamento. O desmatamento, já há alguns anos, dispara. Depois, haverá quem diga que a área foi “antropizada” e que a retirada de invasores poderia ocasionar uma “guerra civil”. A situação na terra indígena, quando o decreto de homologação presidencial foi editado, era plenamente contornável – e ainda o é. Parece ser necessário criar razões para colocar Terras Indígenas em xeque. Ou aterrorizar a população dizendo que uma região do tamanho do Sudeste será convertida em Terras Indígenas – mesmo que inexista qualquer tipo de pretensão ou reivindicação verdadeira nesse sentido.
E quando o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), coloca em votação o Projeto de Lei 490/2007, que também prevê o marco temporal, tema reconhecido por unanimidade pelo STF como de repercussão geral e que está em julgamento, há, ainda, os que se calam sobre a tentativa de constranger o Judiciário e justificam que não se pode criar “conflito” entre os poderes.
O caso posto à análise do STF trata da definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 da Constituição. Não diz respeito, portanto, a questão passível de ser resolvida por Projeto de Lei.
Assistimos horrorizados à tragédia dos Yanomami. E agora, em vez de mais proteção aos povos indígenas, querem dar menos. Não se pode flexibilizar os direitos das minorias vulneráveis sem que o pior aconteça. Não podemos aceitar mais ações que desfigurem a Constituição. É preciso dar um basta ao racismo estrutural ou continuaremos assistindo, estarrecidos, ao “pau que bate em Chico, mas não bate em Francisco”.
Notícias e reportagens relacionadas
As principais informações sobre o ISA, seus parceiros e a luta por direitos socioambientais ACESSE TODAS